A propósito das praxes e dos acontecimentos recentes que
motivaram a discussão em seu redor – assumindo já que abomino praxes (seja qual
for a sua forma) e que sou totalmente contra a sua proibição – deixo algumas
notas:
1. Parece inegável que o que aconteceu no Meco tem relação
com as praxes. No entanto, mesmo não surpreendendo, também parece evidente que
foi um caso excepcionalmente extremo. Não deve, por isso, ser linearmente
ligado à praxe ou, muito menos, à tradição académica (seja lá o que isso for)
como algumas pessoas o têm feito.
2. Também não pactuo com a estupidificação, a infantilização
ou a irresponsabilização de quem aprecia, defende ou participa nas praxes
académicas (mesmo que muitas vezes se ponham a jeito para tal). Não acho que
quem praxe ou seja praxado tenha que ser necessariamente mais ou menos
estúpido, mais ou menos ingénuo, mais ou menos fraco ou “maria vai com as
outras” do que quem não é praxado. Muito menos consigo ver nisso uma justificação
para a sua proibição ou criminalização (se pensasse assim relativamente a tudo
o que me desagrada, repugna ou até revolta…). Há muita coisa em jogo na praxe.
3. Posto isto, há divergências fundamentais que me opõem à
praxe ou a uma grande parte da tradição académica e me fazem desejar o seu fim.
Se é verdade que nem toda a praxe tem que ter consequências tão graves como a do
caso do Meco, também é verdade que algo como o que aconteceu não é perceptível
sem perceber o que está invariavelmente em jogo na praxe (mesmo que de forma aparentemente
inocente) e que, em última instância, enquanto existir algo como a praxe (seja
qual for a sua forma e o conteúdo das suas brincadeiras), continuarão a
acontecer tragédias semelhantes.
4. O facto de uns rabiscos na cara não serem o mesmo que aceitar
rebolar em merda, ouvir parvoíces sexistas e homofóbicas ou obrigar alguém a
enfrentar as ondas do Meco, não faz com que o que está por trás disso não seja
exactamente o mesmo sistema de subserviência, conformação e obediência acrítica.
5. Como todas as instituições, a praxe tanto se deve a como cria e reproduz um certo um tipo de pessoas. Por isso, o que me
parece importante quando se fala de “praxe” ou “tradição académica” é o tipo de
pessoas que esta, enquanto instituição, tende a gerar. Não está em causa, para
mim, se esta é “amizade”, “integração” ou uma “forma de diversão” – não tenho
qualquer dúvida de que é tudo isso –, mas sim que formas de amizade, integração
ou diversão promove.
6. Ao assentar em formas de relacionamento hierárquicas e
autoritárias e ao promover o conformismo existentes para lá de si (tanto na
academia, como, mais genericamente, na sociedade), a praxe contribui para naturalizar
e perpetuar uma série de mecanismos altamente conservadores e contra-emancipatórios.
Também a ideia de que em nome da integração, da festa, da parvoíce ou da
tradição vale tudo (ou a simples ideia de que por ser festa e parvoíce entre
amigos ou colegas não há nada de importante em jogo e, logo, não temos que ser excessivamente
críticos ou "caretas") não é inocente e não deve ser menosprezada, na
medida em que é o primeiro sinal do acriticismo que muitas vezes a sustenta e
lhe dá força.
7. Tudo isso tem um significado político. E esse significado
político cresce em importância quanto mais “neutralizado” parece ser pela banalidade
e naturalidade das acções em causa (fruto quer da sua ligação a estruturas de
dominação hegemónicas, quer do próprio papel que desempenham no contexto da
universidade).
8. A hierarquia e a identidade são, sem dúvida, formas
particularmente eficazes de integração e de criação de sentimentos de pertença
colectiva, mesmo (ou especialmente) quando recorrem a rituais violentos ou
ofensivos ou quando invocam “tradições” assentes na obediência e na
subserviência. Não faltam exemplos na história para o demonstrar. Como tal, o
que está em causa e deve ser questionado não é a eficácia daquilo que a praxe
diz pretender, mas sim a forma e os mecanismos que adopta para o fazer. Para
além de banalizar a obediência e a violência, como disse atrás, um sistema que centraliza
e concentra poder leva facilmente situações de descontrolo, arbitrariedade e
violência. É por isso que o que aconteceu no Meco é indissociável da praxe e
não pode ser visto sem considerar o tipo de pessoas que esta, enquanto instituição,
cria ou privilegia.
9. A atestar o carácter extremo que pode assumir e como as
potenciais consequências envolvidas vão para lá dos excessos de um ou outro
indivíduo, está o respeito revelado por um grande número de alunos, mesmo
perante um caso tão trágico como este, pelo tal “pacto de silêncio” – uma regra
aparentemente tão banalizada pela instituição da praxe que até numa situação com
esta gravidade permite que se ignore o que está para lá dela, privilegiando o
seu “código” em detrimento de outros factores e valores.
10. A demonstrar, ainda, o grau de obediência e submissão a
que a praxe pode chegar, está o voluntarismo de quem é praxado (mesmo
quando já não é um "simples" caloiro). Este voluntarismo é o que
torna a praxe particularmente complexa, pois não só é o que o expõe a
banalidade da obediência e da violência que existem a montante da praxe (o
contexto social) como é o que demonstra a sua eficácia na reprodução e
consolidação desses elementos, servindo, em última instância, como sua
legitimação. A praxe encaixa perfeitamente numa sociedade cheia de pessoas
que tanto gostam de mandar como de ser mandadas.
11. Quanto à proibição, é precisamente porque a praxe
reflecte o que existe, e é, por isso, indissociável dum contexto mais amplo,
que sou contra a sua proibição ou criminalização. Para além de me parecer uma
solução ineficaz, a proibição reproduz, por outra via, a subserviência e
obediência acríticas que tornam a praxe abominável. Por outras palavras, o seu
problema de fundo – aquilo que a torna possível e que supostamente “neutraliza”
o seu significado político – fica por resolver. Para quem se opõe apenas à
violência (psicológica ou física) envolvida na praxe, a criminalização e
proibição desta podem ser suficientes; no entanto, devem reconhecer que ao ignorar as suas causas estruturais estão simplesmente a deslocar para outro “lugar” essa violência. Não se acaba com uma polícia dentro das universidades (ou fora
delas) substituindo-a por outra polícia.
12. Para concluir, a praxe é só mais uma das coisas que
demonstra que a “hierarquia das causas” que muita gente se apressa a esgrimir
(“está tudo a discutir as praxes/ a vida de um cão/ o eusébio quando o que
interessa são as pensões/ o desemprego/ o capitalismo/ a guerra/ a fome”),
especialmente quando os temas em discussão fogem da sua agenda de prioridades,
não faz qualquer sentido. Não só pelo ascetismo que tem implícito e que parece
sugerir que o que é verdadeiramente importante exige, nas suas vidas, uma
dedicação exclusiva de 24 horas, como porque ignora a profunda interrelação
entre muitas coisas aparentemente distintas e distantes. A praxe não só merece
ser discutida em si, como é excelente para pensar o país e o mundo que temos –
até porque nos lembra que os obstáculos a contornar para que outro mundo seja
possível assumem muitas formas diferentes no nosso quotidiano.
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Finalmente, tudo isto lembra o Die Welle, um filme que retrata uma
experiência feita numa sala de aula por um professor que pretendia provar aos
seus alunos cépticos que algo como o nazismo podia perfeitamente voltar a
repertir-se. O filme
passa-se na Alemanha mas baseia-se numa experiência realizada nos EUA nos anos
60. Não é brilhante, mas vale a pena ver, especialmente com todas estas coisas
em mente. Para não me esticar mais, fica um artigo publicado no The Guardian sobre o filme:
4 comentários:
O filme "A Onda" é bem lembrado.
Eis a minha opinião: http://ohomemquesabiademasiado.blogspot.pt/search?q=a+onda
É uma boa colecção de NIM's, ou seja, de SIM,SIM's mas NÃO,NÃO's… e vamos lá dormir descansados a pensar noutras coisas, depois destes profundos raciocínios e inócuas posições.
Já agora, realmente, o que é que conclui... só para ajudar a pensar ????
Propor ver o filme é uma boa saída airosa, porque não a "Branca de Neve e os 7 anões" para NIM também serve.
"Nim" parece-me uma boa conclusão, não percebo o desagrado. Lamento que o texto não diga o quer. O "nim" parece-me a melhor forma de escapar entre os pingos da chuva e de me esconder algures no meio dos extremos da escala que têm dominado a discussão: dum lado quem é a favor da praxe e vê nos seus motivos para isso legitimidade para ignorar o que aconteceu; e do outro quem é contra e deseja a proibição (tal como provalmente terá tendência para desejar a proibição de tudo aquilo a que se opõe) ou defende uma espécie de praxe invertida, que passa por canalizar contra os "praxistas" toda a violência e autoritarismo que critica neles. Talvez por medo de represálias de um lado ou do outro fiquei-me pelo "nim" e escrevi umas notas rápidas e soltas em vez dum ensaio.
Também por isso fico satisfeito com o carácter inócuo do texto. Até porque prefiro a descontracção de escrever posts à responsabilidade de emitir pareceres. Só não percebo é por que é que acha tão importante saber uma conclusão absoluta minha sobre o assunto e eu só tenho direito a saber a sua sobre um texto inócuo, ignorando o que afinal pensa sobre algo que parece tão importante para si?
(E o filme, apesar de ser uma saída airosa, era só uma sugestão e não uma conclusão. Aliás, agradeço ao "Homem que Sabia Demasiado" a partilha da sua opinião sobre ele)
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