28/04/14

Compreender para onde vamos - III

O modo de produção capitalista, ou Capitalismo, tem-se mostrado mais persistente do que muitos esperariam, após Marx e Engels terem previsto a sua superação histórica há mais de um século. Segundo estes, a tomada de consciência pelo proletariado de que o sistema económico-social poderia tornar-se mais produtivo, não só em termos absolutos (em resultado do desperdício inerente ao modo de produção capitalista), mas também em relação ao retorno do trabalho efectuado pelo proletariado (devido à situação de exploração em que este se encontra), seria condição essencial para a substituição deste pelo modo de produção comunista, através duma fase intermédia dita socialista. Várias hipóteses explicativas têm sido avançadas para a persistência do Capitalismo. Nomeadamente, a maior ênfase colocada na extração da mais-valia relativa em detrimento da mais-valia absoluta, que permitiu simultaneamente aumentar a rentabilidade do Capital e o nível de bem-estar material do protelariado, ou o desenvolvimento dum sistema sofisticado e multi-dimensional de alienação das classes exploradas. Outros contendam que a previsão de Marx e Engels resulta de pressupostos errados, donde nunca se concretizará.

De acordo com Marx e Engels, a evolução histórica da Humanidade tem sido, no essencial, determinada pela relação desta com o meio físico onde se insere, com o material (materialismo histórico). Em consequência, todos os sistemas sócio-económicos que se desenvolveram ao longo da História surgiriam como resposta ao aparecimento dum novo potencial de capacidade produtiva. Em particular, o aparecimento de (certas) classes, bem como o seu declínio, resultaria do estabelecimento de novas relações de produção. Fiéis ao legado Iluminista, Marx e Engels possuíam uma visão optimista do curso da História, acreditando na inevitabilidade do progresso social e material da Humanidade.

Dada a ênfase colocada na relação da Humanidade com o material como factor explicativo da sua evolução histórica, não deixa de ser curiosa a crença manifestada por Marx e Engels na necessidade dum sujeito Histórico. Mais uma vez, é aqui visível a herança do Iluminismo, como já salientei. Assim, a evolução histórica da Humanidade requereria não só certas condições objectivas, nomeadamente no que concerne ao diferencial entre a capacidade produtiva potencial e a instalada num dado momento, mas também a consciência (elemento subjectivo) de tal situação por parte da classe (sujeito Histórico) capaz de resolver as contradições inerentes ao sistema sócio-económico dominante nesse momento. Como também referi no post anterior desta série, a existência dum sujeito Histórico foi severamente colocada em causa pelo Existencialismo e Pós-estruturalismo, para os quais qualquer sucessão de acontecimentos Históricos é fruto do acaso. Na verdade, não existe grande evidência histórica de que as transições entre diferentes modos de produção tenham sido instigadas, ou mesmo direccionadas, conscientemente, por uma ou mais classes. Parece-me que Marx e Engels, toldados pela sua proximidade ideológica com o Iluminismo, foram incapazes de desenvolver os pressupostos do materialismo histórico até à sua consequência lógica, radicando a evolução histórica da Humanidade apenas e só nas condições objectivas de produção potencial e instalada em cada momento.

A produção depende da execução de trabalho. A qual, por sua vez, requer o dispêndio de energia. Portanto, o factor que tem maior impacto no nível de produção reside na quantidade de energia disponível para a execução de trabalho. A tendência de incremento da produção (material) ao longo da História pode, assim, ser explicada (em grande parte) através do crescimento contínuo da quantidade de energia à disposição da Humanidade. Obviamente, não basta a existência de fontes (potenciais) de energia para que esta fique disponível, sendo necessário desenvolver a tecnologia necessária para a elas aceder e para as utilizar de modo eficiente. Deste ponto de vista, as transições entre diferentes estádios da evolução histórica da Humanidade passam a ser reflexo dos desenvolvimentos tecnológicos que permitiram aceder a novas e mais abundantes fontes de energia. Por exemplo, o desenvolvimento das primeiras técnicas agrícolas expandiu fortemente o acesso à fonte de energia mais básica: matéria comestível (que na verdade consiste, directa ou indirectamente, em radiação solar transformada). E foram os excedentes energéticos daí resultantes, relativamente ao que era necessário para manter os produtores de energia (agricultores) activos, que permitiu a primeira diferenciação em classes e o aparecimento de sociedades hierárquicas. Milénios mais tarde, o aproveitamento da energia eólica e hídrica (ex. moinhos), e principalmente das prodigiosas quantidades de energia armazenadas nos combustíveis fósseis, primeiro o carvão e depois o petróleo, marcou a transição para a hegemonia do modo de produção capitalista. Note-se que em qualquer período histórico, após o desenvolvimento da agricultura, elementos dos vários modos de produção coexistem. A competição entre estes pelo acesso a recursos (materiais e apoio politico-social) resulta num meio análogo a um eco-sistema. Na verdade, um meta-sistema social, que evolui entre diferentes fases em resultado de alterações na relação com o meio material que lhe serve de substrato. O Capitalismo pode assim ser entendido como uma componente desse meta-sistema, a qual entrou em reprodução acelerada a partir do momento em que a energia disponível aumentou exponencialmente. Simplesmente porque se revelou o mais apto na utilização dessas vastas quantidades de energia subitamente (numa perspectiva histórica) disponíveis. Nenhum outro modo de produção (e o Capitalismo de Estado é uma variante do Capitalismo) demonstrou a mesma aptidão e voracidade no modo como lidou com esse surto súbito na energia disponível para a realização de trabalho.

Portanto, se a quantidade de energia à disposição da Humanidade continuasse a crescer no futuro, não creio que algum outro modo de produção tivesse qualquer tipo de possibilidade de colocar em causa a presente hegemonia do modo de produção capitalista. Os modos de produção alternativa ainda existentes apenas poderiam aspirar à sobrevivência em nichos geográficos e sociais cada vez mais irrelevantes. A ideia de que a disponibilidade de recursos materiais, incluindo a energia, cresce continuamente é prevalecente na sociedade. É transversal ao espectro político, e radica na ideologia Iluminista segundo a qual o Homem tudo pode e à Humanidade está destinado um futuro grandioso, quantificado em termos de Poder sobre o meio material onde se insere. Apesar do que se poderia pensar, o movimento ambientalista partilha em grande parte desta ideologia. Muitos que nele se inserem nada mais pretendem do que diminuir o impacto ambiental da (desejada) crescente actividade humana, crentes na capacidade humana para resolver qualquer problema através do desenvolvimento tecnológico.

Mas, e se o cenário acima descrito não se concretizar? Como reagiria o Capitalismo perante uma estagnação na evolução da quantidade de energia à disposição da Humanidade, ou mesmo numa sua diminuição? Esta discussão fica para o próximo post.

24 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
tenho seguido com atenção esta tua última série de posts, e creio entrever de certo modo onde queres chegar. No entanto, embora ninguém aprove mais do que eu a necessidade de emanciparmos do marxismo ou de qualquer teoria "confessional" a reflexão e a acção políticas que convêm a uma democratização instituinte, deparo, no post de hoje, com um problema grave. Grave, não tanto por não me parecer resultar de uma crítica suficiente do marxismo, mas, sobretudo, do ponto de vista do projecto de autonomia inseparável da democratização instituinte acima referida.
Com efeito, escrever que " se a quantidade de energia à disposição da Humanidade continuasse a crescer no futuro, não creio que algum outro modo de produção tivesse qualquer tipo de possibilidade de colocar em causa a presente hegemonia do modo de produção capitalista" parece-me duplamente errado. Em primeiro lugar, porque, ainda que o capitalismo esteja condenado a ser destruído pelas suas contradições internas ou pelo esgotamento das suas possibilidades de expansão, isso não garante que a alternativa venha a ser aquilo que tu e eu entendemos por democracia. Em segundo lugar, porque, ainda que o capitalismo não tenha esgotado as suas possibilidades de desenvolvimento, o projecto de autonomia da democratização instituinte mantém a sua actualidade e a sua urgência, que não lhe advêm do facto de ser impossível ao capitalismo reproduzir-se, nem de ser ele o passo ou etapa seguinte de uma evolução ou dinâmica inevitável. A democracia será acção, no sentido mais pleno, de fazer que começa e faz ser algo de novo, ou não será. Assim, ainda que teoricamente o capitalismo pudesse reproduzir-se indefinidamente, continuaria a competir-nos afirmar que a possibilidade não é a necessidade e lutar por essa forma de organização política democrática a que tenho chamado a cidadania governante, concebendo-a não como reverso da impossibilidade do capitalismo, mas como criação de uma possibilidade alternativa.

Abraço para ti

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Concordo totalmente que “(…)ainda que o capitalismo esteja condenado (…) isso não garante que a alternativa venha a ser aquilo que tu e eu entendemos por democracia.” Essa discussão vai aliás ser tópico dum post desta série, lá mais para o fim. Como tentarei demonstrar em posts subsequentes, acho que a forma dominante de Capitalismo está condenada, talvez mesmo a muito curto prazo. O seu desaparecimento poderá levar à queda do próprio modelo de produção capitalista, mais ou menos abrupta. Entre os escombros vários outros modos de produção, agora marginais, irão florescer. Quais, não sei. Cabe-nos agir agora de modo a que no futuro as sementes estejam prontas para germinar, e crescer por entre os escombros.Também concordo com o teu segundo ponto, mas com uma nuance: sim, devemos lutar pelo que consideramos ser mais justo, mesmo que a probabilidade de sucesso seja reduzida; mas, seria uma traição a nós próprios não agirmos de modo a maximizar essa probabilidade, o que por sua vez requer a consciência clara da situação em que nos encontramos e da (in)consequência das acções que encetarmos.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
vamos ter de discutir melhor alguns pontos noutra ocasião. Aqui a questão principal que eu levantava — deixando de lado a tua crítica do marxismo e, sobretudo, das Luzes em bloco — era a seguinte: não precisamos de demonstrar, e, bem vistas as coisas, não podemos sequer fazê-lo, a impossibilidade de reprodução da dominação hierárquia (sociedade de classes, distinção entre governantes e governados, separação entre produtores e meios de produção, etc. — para afirmar a possibilidade da criação de uma sociedade democrática ou a urgência e a racionalidade de uma acção de democratização instituinte. Pelo que vejo — e já supunha que assim fosse — , nada tens a objectar a esta ideia. E eu, pelo meu lado, é evidente que concordo com a tua nuance, que só não explicitei no meu comentário por me parecer óbvia: apesar da minha admiração por Max Weber, não oponho a ética da convicção à ética da responsabilidade — a primeira, não só não dispensa, como requer a segunda; quanto à segunda, não faz sequer sentido sem a primeira.

Abraço

miguel(sp)

M. disse...

Será que esta abordagem não é uma forma de naturalizar o capitalismo?
Ou seja, qual é o lugar para o político?

Pedro Viana disse...

Caro M.,

Marx foi o primeiro a "naturalizar" o Capitalismo, ao propor que este constitui uma fase inevitável da evolução da Humanidade. E, mesmo introduzindo um sujeito histórico, defendia a inevitabilidade da sua ação (consciente), ou seja "naturalizou" o político, ie. o livre arbítrio está condicionado pelo passado e pelas condições materiais de produção no presente. Eu partilho de muito perto esta visão marxista da evolução da História, mas não vejo qualquer necessidade dum sujeito histórico (i.e. dum actor plenamente consciente das consequências das suas acções). Parece-me uma concessão de Marx ao espírito Iluminista, que exaltava o Poder da Humanidade para conhecer e transformar com propósito o meio (natural e social) em que se insere. Ou seja, acho que o que é realmente possível do ponto de vista político está fortemente constrangido pela condições materiais e sociais, como Marx, mas, ao contrário de Marx, não creio que tenhamos capacidade para controlar (a não ser a uma escala muito local) a evolução sócio-económica através da acção política (consciente).

Cumprimentos,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
um coisa é dizer que a acção humana é condicionada, outra é dizer que as condições a determinam integralmente.
Por outro lado, se a democratização instituinte que propomos como alternativa não for uma criação deliberada e lúcida q.b. do nosso poder de transformar o meio, os modos de produzir e decidir, de fazer e viver, não vejo que outra coisa possa ser.
Finalmente, parece-me que privilegias demasiado o modo de produção (economia e técnica) sobre a politica e as relações de poder, e não tens em conta que o modo de produção capitalista — ou qualquer outro — pressupõe uma base e um quadro institucional, uma organização das relações de poder e do exercício governante que condicionam e moldam as relações de produção no sentido limitado. Se a democracia (democratização instituinte) implica a transformação do modo de produzir e da economia em geral, não é porque aqueles a determinem, mas porque são o resultado de instituições políticas que resultam da acção humana e que esta pode transformar. E se a autonomia democrática aponta para uma forma de organização social em que os cidadãos assumem a liberdade e a responsabilidade de se darem as suas próprias leis, pressupõe por fim, e desde o início, o mesmo "poder da humanidade (…) de transformar o [seu] meio", que na tua resposta à objecção — a meu ver, pertinente — do camarada M. pareces subestimar. Por outras palavras, a autonomia democrática não pressupõe — nem poderia fazê-lo sem absurdo — a ausência de condições que não produziu, dadas e herdadas, sociais e ambientais, etc., mas afirma-se ou propõe-se como um modo de lhes responder e de as governar.

Um abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Não acho que as condições (materiais, sociais) determinem integralmente a acção humana, nem que esta tem capacidade para a elas se sobrepor. Parece-me que tal depende da escala que consideramos. Quanto menor for, mais amplo será o leque de opções realmente à nossa disposição, não só em termos de acção mas também relativamente aos caminhos que realmente podemos percorrer. Para além duma maior capacidade para conseguirmos prever e controlar as consequências das nossas acções. O corolário é que à escala da humanidade, temo que de pouco sirvam as nossas (melhores) intenções. Ou seja, não me parece que a evolução histórica da humanidade possa ser mudada por via de acções conscientes que tenham esse fim em vista, sejam elas individuais ou coletivas. No entanto, as diferentes escalas a que ocorrem fenómenos políticos e sócio-económicos não são estanques. O (agregado) do que acontece a uma dada escala (ex. local) tem impacto no (agregado) que ocorre a outra escala (ex. global), e vice-versa. Mas tais interações são muito complexas, não-lineares. Ou seja, é possível que ao concentrarmo-nos na acção local, o conjunto ou agregado destas induza mudanças em escalas superiores. Que, como antes disse, não serão inteiramente previsíveis, e só terão lugar quando as condições materiais a essa escala sofrerem alterações substanciais. Dito de outro modo, a acção local não está tão condicionada pela relação humana com o material, as condições de produção, mas a sua influência em escalas superiores depende de alterações nessa relação.

Portanto, acho que a democratização instituinte que mencionas, sempre desejável, é possível em escalas locais, como há muito sabemos, mas parece-me que só poderá se propagar e implementar em escalas superiores quando as condições produtivas da Humanidade mudarem substancialmente. Nomeadamente, temo que apenas será exequível quando a disponibilidade de energia, fonte física do Poder constituído em hierarquia, sofrer uma redução tal que as actuais estruturas hierárquicas deixem de ser exequíveis (dos pontos de vista físico, sócio-económico e político).

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
confesso que a tua resposta me deixa tão desconcertado que receio ter-te compreendido mal. O que compreendi foi que dizes agora que as possibilidades da democratização para além do nível local dependem do esgotamento dos recursos energéticos hoje nas mãos do poder político oligárquico (estatal no sentido estrito e"econõmico"). Parece-me uma aposta extremista e insensata - uma espécie de aposta no juízo final, ou, se preferes, num apocalipse, que, através do desastre planetário, nos revele a via de uma salvação de outro modo inacessível.
De outro ponto de vista, o "local" não pode ignorar o "global" ou o geral. E a inversa também é verdadeira. É o poder de decisão que em cada lugar onde vivemos se exerce que se trata de conquistar para a liberdade democrática, e essa conquista não será possível abstraindo do "centro".
Mas espero ainda não te ter compreendido bem…

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Infelizmente não me compreendeste mal. Mas, repara, que não fiz nenhum tipo de “aposta” ou juízo de valor. Limito-me a descrever o que penso ser o motor da evolução histórica da humanidade, e para onde nos conduziu e nos conduzirá. Compreendo perfeitamente a frustração que isso possa provocar, e não me agrada de modo nenhum ser o portador de más noticias. Mas acho que é muito importante termos plena noção do que é ou não possível.

A diminuição da energia disponível ao dispor da Humanidade não resultará necessariamente numa catástrofe, ou apocalipse. Podemos bem viver com apenas uma fracção da energia hoje disponível. Exigirá, no entanto, uma mudança radical nas estruturas produtivas, não só a um nível físico mas também organizacional. À sua maior localização, e descentralização, naturalmente corresponderá uma mesma transformação na super-estrutura social e política que delas depende, o que abre (melhores doa eu no presente) perspectivas de implementação e generalização da democratização instituinte que descreves. O grande problema é a reação das estaturas capitalistas existentes a uma diminuição do fluxo de energia. Esta pode muito bem originar, porque coloca em causa o seu Poder, e por diversos meios (fome, guerra, poluição extrema), uma ou mais catástrofes, que juntas resultem num colapso civilizacional. Creio que o único modo que temos à nossa disposição para o evitar é criar estruturas alternativas desde já, começando pela base, localmente. Estruturas sociais, que é o mais fácil, mas também de cariz económico (ie. criação dum circuito produtivo alternativo) e político (fora do Estado).

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
não quero prolongar demasiado esta discussão. De qualquer modo, gostaria de chamar a tua atenção para o modo como Castoriadis põe até certo ponto o problema que te preocupa e como sugere que se lhe deve responder. Peço-te apenas que tenhas em conta que a transformação das condições nas colectividades de produtores, etc. a que Castoriadis se refere é impensável sem confronto com o regime govenante à escala global ou geral (noutros textos, Castoriadis mostra-o bem). Aqui vai, pois:

'Não é concebível que [uma sociedade autónoma] institua o autogoverno das colectividades […] e que o exclua nas colectividades de produção [… que exclua] a realização da democracia no domínio em que os indivíduos passam metade do tempo da sua vida desperta.
[…]
Devemos dizê-lo mais claramente ainda: o preço a pagar pela liberdade é a destruição do económico como valor central e, de facto, único. […] Quem pode crer que a destruição da Terra poderá continuar por mais um século ao ritmo actual? Quem não vê que essa destruição seria ainda mais acelerada se os países pobres se industrializassem? E que fará o regime quando deixar de poder conter as populações fornecendo-lhes constantemente novos gadgets?
Se o resto da humanidade tiver de sair da sua miséria insuportável, e se a humanidade inteira quiser sobreviver neste planeta num steady and sustainable state, será necessário aceitarmos uma gestão de bom pai de família dos recursos do planeta, um controle radical da tecnologia e da produção, uma vida frugal. […] para assentar as ideias, podemos dizer que já seria bastante bom que pudéssemos garantir 'indefinidamente' a todos os habitantes da Terra o 'nível de vida' dos países ricos em 1929.
O que pode ser imposto por um regime neofascista; mas pode ser também livremente feito pela colectividade humana, organizada democraticamente […] abolindo o papel monstruoso da economia como fim e voltando a pô-la no seu lugar adequado, de simples meio da vida humana' (("Fait et à faire", retomado em Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe V, Paris, Seuil, 1997).

Com um abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá de novo,

Mas o que eu escrevi não resulta da minha preocupação com os danos ambientais, em particular, do Capitalismo. Aliás, infelizmente, não creio que sejamos capazes de impedir os piores cenários nesse aspecto, em particular no que concerne as alterações climáticas, a não ser que as estruturas Capitalistas sejam mais frágeis do que creio, entrando rapidamente em colapso após os choques energéticos que provavelmente acontecerão no prazo duma década. Estou apenas a descrever o que me parece ser a trajectória mais provável para a humanidade a curto-médio prazo, com base nas necessidades materiais que sustentam o modo de produção capitalista.

Não tenho dúvidas que o “regime governante à escala global ou geral” tentará por todos os meios impedir a emergência e expansão duma sociedade que lhe desobedece, que tenha (re)criado a sua autonomia face ao Estado. No entanto, creio que devido à diminuição dos recursos energéticos à sua disposição, terá cada vez menos meios físicos para exercer de facto esse controlo.

Parece-me que Castoriadis também coloca demasiada fé na capacidade da humanidade actuar como um corpo social único, com vontade própria, e capacidade para impor o seu “livre arbítrio”. Não partilho dessa crença. Acho sim que homens e mulheres possuem capacidade para influenciar de modo concreto o seu futuro no seu local de habitação e trabalho, a curto-médio prazo. Mas é uma ilusão pretender que essa capacidade também existe em maior escala, onde a coerência necessária para que uma dada acção tenha as consequências pretendidas (assumindo que as conseguimos prever correctamente) é muito mais difícil de conseguir.

De qualquer modo, não vejo em que o possível cenário que descrevo constitui uma mudança tão grande relativamente ao que muitos advogam no seio da esquerda libertária ou autonomista. Tentar usurpar o Poder de Estado, ou constituir um Poder alternativo com que com ele possa competir, teria como consequência a reprodução do mesmo tipo de estruturas hierárquicas que se pretendia substituir. A autonomia social e política só poderá surgir da agregação livre de colectivos locais.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Viva, Pedro.
Ora bem, a estratégia da conquista do poder de Estado ou do topo da pirâmide hierárquica é, sem d´vida, por definição, antidemocrática; mas a construção de um poder alternativo — ou, para comerçar, contrapoderes —, que desloque para base o exercício do poder, o governo da cidade e dos seus territórios, é uma via necessária da democratização. Convém não confundir as duas coisas.
Temos, depois, a questão do local. Mas tu deves reconhecer que, a partir do momento em que as colectividade de base, as pequenas unidades em que apostas, se multiplicarem e/ou tornarem politicamente significativas, constituirão, de facto e necessariamente, uma contestação do poder e da organização geral dominantes. E terão de ser capazes de o enfrentar com êxito, de lhe resistirem e de o substituirem nas suas funções de síntese e coordenação. Daqui, não vejo como fugir — nem me parece desejável esquecê-lo, por mais local e concreta que seja sempre cada acção ou iniciativa. A própria possibilidade de se encetar a formação de grupos e associações como as que imaginas ou privilegias, as próprias experiências pioneiras que apontas, tudo isso pressupõe a existência, a manutenção, o reforço e a extensão de liberdades e direitos supralocais, ou seja: de condições políticas gerais das quais os cidadãos envolvidos nessas formas alternativas não podem responsavelmente desinteressar-se. Por exemplo, num regime "comunista" ou de tipo fascista, o tipo de acção que encaras e propões seria imediatamente reprimido por via policial e administrativa. Por fim, se tomarmos a sério um regime de autogestão generalizada, se assumirmos um projecto de autonomia individual e colectiva baseado na generalização da autogestão, convirá que saibamos e tenhamos em conta que estamos a lutar por um regime alternativo ao regime classista e hierárquico do capitalismo e do Estado. No fundo, é aqui que o ponto bate, e era sobre este ponto que, para começar, gostaroa que nos conseguíssemos entender — tanto para nosso proveito de ambos, como para o daqueles que eventualmente nos leiam e queiram participar no debate ou transpô-lo para outras arenas e teatros.

Abraço para ti

miguel(sp)

joão viegas disse...

Caros,

Creio que vocês não estão propriamente a discutir Marx, mas antes as aporias classicas determinismo vs livre arbitrio. Notem que essas aporias são facilmente ultrapassaveis : na verdade se não houvesse determinismo (relativo) a acção humana, e a propria politica, não fariam qualquer sentido. Inversamente, se o determinismo fosse absoluto, sem deixar espaço para a liberdade de acção do homem sobre as condições que o rodeiam, reflectir sobre a acção também seria desprovido de sentido...

Esta questão é classica. Trata-se do sofisma da razão preguiçosa.

Julgo que é pacifico que Marx não era um fatalista, e que a sua filosofia pretendia responder à questão das possibilidades que se oferecem a nos para agir, ainda que de forma limitada, sobre as condições materiais que interferem com a nossa vida social. De uma maneira concreta, ainda que o pensamento dele se insira nas concepções da época que hoje nos parecem caducas (a crença num progresso técnico infinito e univoco no sentido de uma progressiva libertação das condições materiais de existência, etc.), o principal problema de que falava permanece actual : como sair das contradições proprias do capitalismo, que acaba por desvirtuar o trabalho do maior numero para alienar a sua liberdade. E' certo que o problema evoluiu, até porque o capitalismo secretou modos de resolver (pelo menos em aparência) algumas das suas contradições mais chocantes. Mas no essencial, muito do que Marx disse continua a ser pertinente nas nossas sociedades actuais...

Podemos sempre ser pessimistas, caro Pedro, mas julgo que é injusto acusar Marx de justificar o pessimismo, quando o pensamento dele era diametralmente oposto.

Vamos la por absurdo : se amanhã o planeta terra for absorvido pela explosão de uma super nova que ninguém viu chegar perto de nos, e se ele desaparecer com todas as espécies animais que o povoam (incluindo o César das Neves), vamos dizer que este facto refuta as teorias de Marx ? Não me parece...

Abraço aos dois.

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo João,

por mim, acho o teu juízo correctíssimo: a discussão sobrer Marx não chegou a começar… No entanto, creio, relendo o teu comentário, que não deixamos de estar de acordo quanto ao fundo da questão da acção política. Pelo menos, pelo meu lado, não vejo no que escreves nada que a contrarie. Dito isto, creio que sobre Marx e o marxismo teremos pontos de vista nem sempre coincidentes, embora me pareça, de novo, que dessas diferentes leituras não tiraremos conclusões políticas nem concepções da democracia propriamente contárias.

Abraço para ti

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

“(…)um projecto de autonomia individual e colectiva baseado na generalização da autogestão, convirá que saibamos e tenhamos em conta que estamos a lutar por um regime alternativo ao regime classista e hierárquico do capitalismo e do Estado (…) era sobre este ponto que, para começar, gostaria que nos conseguíssemos entender.”

E entendemo-nos!
A questão não está no objectivo desejado. Mas sim nos constrangimentos que nos impedem de o atingir. Em resumo, parece-me que és da opinião que esse objectivo é atingível mesmo na presença de todas as condições, nomeadamente materiais, que possibilitaram ao modo de produção capitalista tornar-se dominante. Com a qual, infelizmente, não concordo. Ou seja, acho que o objectivo que partilhamos só poderá ser atingido quando essas condições, que sustêm o Capitalismo, começarem a desaparecer. Ainda, parece-me que defendes que só agindo simultaneamente em várias escalas geográficas, é que o nosso objectivo comum poderá ser alcançado. Também discordo. Quanto maior for a escala, maior é a dificuldade da acção coordenada e consequente, e maior a probabilidade de ilicitar uma resposta repressiva da oligarquia, via Estado ou outra. É mais fácil a acção local passar despercebida, ganhando massa crítica para poder irromper a escalas geográficas maiores, assim que o modo de produção capitalista começar a fraquejar. Não me preocupa que as pessoas tentem agir em escalas geográficas alargadas, pois essas acções podem servir de embrião para a desejada coordenação nessas escalas quando as condições estiverem reunidas. O que me preocupa é que isso se faça em detrimento do reforço das estruturas de base, locais, ignorando o papel fulcral que terão, não em termos de gestão social e política, mas também do ponto de vista produtivo.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Boas, Pedro.
Enfim, creio que as nossas divergências vão sendo pouco a pouco superadas. Mas parece-me que a maneira como formulas estes problemas nem sempre é inequívoca.
Evidentemente, eu não penso que sem transformação das relações de força presentes, sem enfraquecimento da oligarquia governante e do seu regime, possamos avançar. O que penso é que, em princípio, essa relação de forças pode ser transformada pela acção e pela vontade política da grande maioria dos cidadãos (se estes enveredarem por essa via), e que, nesse caso, os recursos materiais do regime não são o aspecto mais importante.
Quanto ao problema da acção local, mantenho o que escrevi no meu penúltimo comentário, fazendo-te notar que a acção na base só poderá passar desapercebida enquanto não ganhar peso político determinante — pelo que a tua última formulação a esse respeito não me parece que adiante muito.
Mas, enfim, alguma coisa avançámos, e é isso o que mais conta por agora.
Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro João,

Não sou pessimista, ou optimista, nem julgo que se possa aplicar tais adjectivos a Marx. Este pretendeu antes de mais identificar as condições na origem da evolução histórica da humanidade, tendo concluído que resultam acima de tudo da interacção desta com o meio (material) onde está inserida. Em particular, do diferença entre a produtividade num dado momento e a que potencialmente poderia ser atingida se as super-estruturas, sociais e políticas, desenvolvidas em resultado das condições de produção, fossem alteradas. Na sua óptica, quando essa diferença se tornava demasiado grande, o curso da História acelerava e ocorria uma transição para novas formas de organização social e política. Concordo com esta análise, que parece-me que ainda não foi interiorizada totalmente pelas ciências sociais. Principalmente, por requer a compreensão no concreto dos mecanismos, físicos e técnicos, associados à produção, e os constrangimentos que nela provocam, bem como das possibilidades em aberto. Esta parte do legado de Marx nem implica nenhum pessimismo, ou optimismo. Seria como afirmar que estou optimista ou pessimista sobre a possibilidade duma bola cair ao chão se abrir a minha mão que a agarra. Também não é fatalista. No sentido em que, apesar de achar que o nosso futuro colectivo não dependerá da acção consciente da humanidade, mas essencialmente das mudanças nas condições materiais a que estará sujeita, que futuro será esse não é algo que julgue previsível. O que restitui (algum) sentido à acção: como não sei se o que faço terá impacto no futuro que nos espera, actuo esperando que assim seja. Este sentido da acção é reforçado, se estiver associado à crença de que a acção terá as consequências desejadas. Mas, como tenho tentado argumentar, essa crença só é sustentável quando a acção é local, circunscrita geograficamente. Talvez se possa aplicar os adjectivos pessimista-optimista relativamente ao que penso sobre a acção, individual ou colectiva, o primeiro relativamente à acção global e o segundo relativamente à acção local. No entanto, como disse, já não aplicaria os mesmos adjectivos no que concerne ao que penso sobre a evolução histórica da humanidade.

Voltando a Marx, acho que sem dúvida era optimista, não só no que concerne a todo tipo de acção, ou seja todas têm potencial transformativo, mas também relativamente ao curso histórico da humanidade. Acima de tudo porque acreditava, como bem dizes “num progresso técnico infinito e univoco no sentido de uma progressiva libertação das condições materiais de existência”, associando tal a algo positivo.

Abraço,

Pedro

Pedro Viana disse...

Acabo de ver que comecei os dois parágrafos do comentário anterior com duas afirmações contraditórias... bom, o que pretendia afirmar no 1o caso era que à 1a parte da análise marxista, a parte científica, que se debruça sobre as condições necessárias à evolução Histórica, não se podem associar os qualificativos pessimista/optimista. Mas, quando Marx depois faz considerandos subjectivos sobre essa evolução Histórica, então pode-se afirmar que Marx se revela um optimista.

Abraço,

Pedro

joão viegas disse...

Caro Pedro,

Ola. A contradição não me parece ser meramente de superficie. Julgo, se me permites, que corresponde a algo de mal resolvido no que escreves, embora corresponda a uma confusão muitissimo comum. As proposições cientificas, apesar de procurarem descrever uma "realidade objectiva", que aparenta escapar ao que depende de nos, no fundo não teriam sentido, nem se calhar conteudo util, se nos levassem a concluir que não podemos interagir de maneira nenhuma com a realidade. Na verdade, esta-lhes mesmo subjacente a ideia inversa : a de que, conhecendo melhor os fenomenos naturais que condicionam a nossa acção, saberemos dirigir melhor esta ultima.

E' precisamente o sentido do sofisma da razão preguiçosa ("se o teu destino é morrer, de que te serve o médico, se o teu destino é curar-te, porquê recorrer ao médico ?"). Os antigos sabiam disso muito mais do que nos...

Isto aplica-se a Marx, como a tantos outros. Alias, que eu saiba, Marx não defendia que o homem atingiu o estado do capitalismo de forma cega e imposta do exterior. Pelo contrario, o capitalismo apareceu pela mão do homem, atravês da sua acção livre, e num movimento que representava, aos seus olhos, um passo na direcção da libertação progressiva do homem em relação às suas condições de existência. Marx era o contrario de um fatalista e julgo que é um contra-senso ver na sua obra a descrição de uma realidade que escapa à liberdade do homem...

E nada disto obsta a que haja muito a deixar de lado em Marx (na minha modesta opinião). Eu não considero que as suas teorias sejam o alpha e o ômega. Apesar de reconhecer que, em muitos aspectos, a leitura que ele faz do mundo continua actual...

Abraço

Pedro Viana disse...

Boa noite,

Marx tentou fazer a quadratura do círculo. Se é verdade que na sua opinião a transição entre as diferentes fases históricas da Humanidade, associadas a diferentes modos de produção, resultaram da acção consciente de certas classes sociais (tendo identificado o proletariado como a classe que conscientemente guiaria a transição do modo de produção capitalista para o comunista), por outro lado, também era da opinião que tais transições eram inevitáveis, tendo necessariamente de acontecer, mais tarde ou mais cedo. De outro modo, a sua teoria da História em nada se diferenciaria da visão Iluminista (hoje denominada Liberal), segundo a qual nada limitava a acção da Humanidade, nem sequer o seu passado, ou as condições materiais em que se encontra em cada momento. Portanto, Marx depois de concluir sobre a inevitabilidade duma certa trajectória histórica para a Humanidade, re-introduziu o “livre arbítrio”, a necessidade da acção consciente, um sujeito histórico, talvez por influência do Iluminismo, talvez porque suspeitasse que a inevitabilidade podia dar lugar à complacência. Na verdade, Marx era até mais fatalista do que eu, pois acreditava que a Humanidade tinha um destino inevitável: o comunismo. Eu apenas julgo que é possível prever de que modo vão evoluir as condições materiais da humanidade (tal como Marx). Mas não sei prever como é que esta, ou mais precisamente as várias estruturas existentes no seu seio, irão reagir a essa evolução. Tenho suspeitas, mas poucas convicções no que respeita a tal tipo de previsão.

Quanto ao primeiro parágrafo do último comentário do João, consideremos o caso dum furacão. Hoje percebemos muito melhor do que há, digamos 100 anos, como se forma um furacão. Até podemos identificar os momentos iniciais da sua formação e evolução posterior, com a ajuda de satélites. Mas não temos a mínima capacidade para alterar a sua intensidade ou rota. Podemos apenas tomar medidas que mitigam os estragos que vai causar. Estamos na mesma situação no que concerne à disponibilidade de recursos energéticos. Um furacão está a formar-se e nada impedirá o seu progresso, e o seu impacto não só sobre a infra-estrutura produtiva mas também sobre toda a super-estrutura política e social por ela sustentada. Podemos tentar mitigar esse impacto. É o que tentará fazer a oligarquia, através dum cada vez maior açambarcamento dos recursos remanescentes. Cabe ao resto, a nós, descortinar uma estratégia que impeça isso, sem que tal leve simplesmente à substituição da actual oligarquia por outra.

Abraços,

Pedro

Pedro Viana disse...

"In the social production of their existence, men inevitably enter into definite relations, which are independent of their will, namely relations of production appropriate to a given stage in the development of their material forces of production. The totality of these relations of production constitutes the economic structure of society, the real foundation, on which arises a legal and political superstructure and to which correspond definite forms of consciousness. The mode of production of material life conditions the general process of social, political and intellectual life. It is not the consciousness of men that determines their existence, but their social existence that determines their consciousness. At a certain stage of development, the material productive forces of society come into conflict with the existing relations of production or — this merely expresses the same thing in legal terms — with the property relations within the framework of which they have operated hitherto. From forms of development of the productive forces these relations turn into their fetters. Then begins an era of social revolution. The changes in the economic foundation lead sooner or later to the transformation of the whole immense superstructure. In studying such transformations it is always necessary to distinguish between the material transformation of the economic conditions of production, which can be determined with the precision of natural science, and the legal, political, religious, artistic or philosophic — in short, ideological forms in which men become conscious of this conflict and fight it out."

Karl Marx, em 1859, no prefácio ao seu livro " A Contribution to the Critique of Political Economy"

Em abono da verdade, diga-se que acima de tudo Marx e Engels enfatizavam a necessidade do estudo dos modos e relações de produção material existentes numa dada época para ser possível prever a sua evolução futura, bem como da super-estrutura política e social que delas depende. Na época em que viveram, aquilo que observaram levou-os a prever a inevitável evolução do capitalismo para o comunismo,e a consequente abundância material. Acredito que se vivessem hoje, não deixariam de colocar em causa essa previsão tendo em conta as muito diferentes condições materiais em que nos encontramos.

Abraços,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caros,
isto é só uma nota à margem — desculpem o esquematismo.

Seja o que for que Marx disse — e disse muitas coisas diferentes em diferentes momentos — e seja qual for a interpretação de Marx que façamos, a verdade é que as condições materiais nada determinam univocamente, não têm uma dinâmica autónoma da acção humana, são sempre, em suma, percebidas, respondidas, organizadas, articuladas e transformadas por instituições e pelo conjunto das instituições centrais da sociedade. Do mesmo modo, a produção material é sempre institucionalmente determinada, tal como resulta e decorre do fazer humano. Por isso, dizer que o mais provável é que as condições materiais daqui a dex ou vinte anos sejam X e não Y equivale a dizer, e devemos não o esquecer, que a sociedade e os "seus" indivíduos tenderão a manter ou a modificar sob este ou aquele aspecto a sua actividade institucional e politicamente determinada. Ora, quem fala em instituição fala em normas, valores, representações, etc. que significam e articulam internamente a acção da sociedade e dos seus membros — ao mesmo tempo que a política propriamente dita nasce quando surge a consciência de que as instituições que moldam e informam a acção humana, incluindo a produção material, são elas próprias criações ou sedimentações dessa acção, "opções" sobre as quais podemos pronunciar-nos.
Assim, meu caro Pedro, estou longe de negar a importância incontornável das condições materiais a que teremos de dar uma resposta ou outra, sendo essa resposta política e civilizacionalmente decisiva. Mas essas condições materiais só negativamente são o factor determinante: este é o modo como as interpretarmos e lhes respondermos, as assumirmos e transformarmos.

Abraço para todos

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola,

"Podemos apenas tomar medidas que mitigam os estragos que vai causar".

E' isso, apenas... Esse é o escopo de Marx, e de qualquer autor que elabora um projecto politico. Minimizar os estragos, ou aumentar as vantagens, ambas as coisas vão dar no mesmo...

O que eu estou a dizer, tão so, é que Marx apoia-se na ciência (com o paradigma determinista da época, que da a sensação de que ela indica a ordem necessaria do universo), mas sem nunca perder de vista que ela deve apoiar a acção livre. "Os filósofos [ou para todos os efeitos os cientistas] têm apenas
interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é
transformá-lo", afirma ele claramente nas teses sobre Feuerbach.

Julgo que a forma como apresentas as coisas assenta num erro sobre a natureza e os limites da ciência. Se as regras de formação do furacão fossem arbitrarias, não haveria ciência possivel. Mas se as regras que "regem" o universo em que se produzem os furacões excluissem completamente a nossa liberdade de agir, ainda que marginalmente e de forma limitada, sobre a realidade, também não haveria ciência que prestasse...

O "fatalismo" de que te reclamas assenta, na minha opinião, numa falsa alternativa : ou as coisas obedecem a leis que se impõem ao homem, ou obedecem à liberdade do homem e ao seu capricho. Esta alternativa é falsa, e mesmo perigosa porque, no limite, torna perfeitamente absurdo que o homem procure apoiar as suas decisões e as suas acções sobre os conhecimentos da ciência...

Em todo o caso, esta postura não me parece ser uma interpretação correcta do pensamento de Marx, embora veja muitas vezes pessoas de esquerda perfilharem-na. Se Marx tivesse acreditado que o comunismo iria cair do céu pelo simples decorrer do tempo, dada a necessaria concatenação das coisas, tinha ficado sentado à espera...

Abraços

Pedro Viana disse...

Olá,

Relativamente aos últimos 2 parágrafos:

- não me reclamo de nenhuma dessas alternativas extremas, que ilustram o caracterizam a época pré-Iluminista (o Homem nada pode contra os desígnios de Deus e/ou Natureza), e a época Iluminista (o Homem tudo pode, em particular na sequência do conhecimento adquirido por via do método científico); apenas afirmo que a acção humana num dado momento é condicionada não só pelo conhecimento científico e técnico adquirido, mas também pelos recursos materiais disponíveis, e pela super-estrutura cultural, social e política existente - podemos, mas não podemos tudo, nem muito do que seria desejável, em particular do ponto de vista material;

- Marx não acreditava que o comunismo cairia do céu; isso é evidente pelo facto de Marx ter inserido um sujeito histórico na sua interpretação da evolução histórica da humanidade; nomeadamente, Marx ergueu a classe a sujeito histórico, e foi bem claro na necessidade duma dada classe tornar-se consciente da possibilidade de instauração dum modo de produção mais eficiente, para que tivesse lugar uma transição histórica (o proletariado tem de tomar consciência da possibilidade do comunismo, para que a transição para este ocorra); mas, Marx acreditava que todas as transições históricas passadas eram inevitáveis, bem como a transição histórica para o comunismo o será, ou seja mais tarde ou mais cedo (esta á única questão em aberto, o quando, que será decidida pela acção consciente) tais transições teriam ou terão inevitavelmente lugar.

Abraço,

Pedro