31/08/14

António Guerreiro sobre "O Preço de Ser Israel"

Nunca se recomendará o bastante a leitura da notabilíssima mise au point raisonnée que António Guerreiro propõe no Público sobre o Estado de Israel, o sionismo e os seus críticos jdeus, a perversão nacionalista, etc., etc. 


O proto-sionismo do século XIX foi um ideal que tornou possível a edificação de um Estado judaico. Na sua dimensão política – muitas vezes em divergência com o plano cultural e o religioso - o sionismo cumpriu-se com a proclamação do Estado de Israel em 1948, na sequência da resolução da ONU que consagrava a criação de dois Estados, um judeu e outro árabe palestiniano. O não cumprimento desta resolução – a par da expansão territorial que resulta em formas coloniais de expulsão e de repressão – tornou-se um argumento usado para pôr em causa a legitimidade de Israel.

Em síntese, eram estes os princípios fundamentais do sionismo das origens: resgatar o povo judeu de uma história de humilhação e perseguição (que viria a culminar no extermínio como “solução final”), possibilitando aos judeus da diáspora serem acolhidos como cidadãos desse Estado; conceder aos Judeus um território de pertença nacional ao qual eles estavam ligados pela história, pela memória e pelo mito, de modo a reconstruir aí uma comunidade baseada em princípios culturais e religiosos que no exílio tinham sido reprimidos ou aniquilados; construir uma sociedade justa e democrática, fundada em valores que, em muitos aspectos, estavam em ruptura com a sociedade capitalista (não esqueçamos que o movimento sionista teve origem em duas típicas ideologias políticas do século XIX, que hoje parecem contraditórias: o nacionalismo e o socialismo). Mas os ideais do sionismo dissolveram-se ou, pelo menos, têm sido submetidos a muitas interrogações. Um povo que se constitui como nação, uma nação que se organiza como Estado, um Estado que reclama um predicado étnico e/ou religioso - “judeu” - implantado num território que se quer identificado com a ancestralidade bíblica da “Terra de Israel”: tudo isto é mais do que suficiente para que o sionismo se tenha transformado em ideologia (e o anti-sionismo se tenha reconfigurado à sua imagem) e a questão de Israel, a sua legitimação histórico-político-jurídica, seja motivo de disputas intelectuais exacerbadas.

Até que ponto lutar por “direitos adquiridos” é de esquerda ?



Advertência : No post que se segue, procurei ser o mais simples e o mais claro possível. Ainda assim, tratando-se de uma questão que julgo complexa, o texto saiu comprido e por vezes um pouco “técnico”. Quem quiser ir ao essencial pode ler directamente os parágrafos finais (12 e 13). No entanto, não garanto que as minhas conclusões sejam completamente compreensíveis para quem passou por cima dos 11 parágrafos anteriores. Fiz o melhor que pude...

1/ Como sabem, num conjunto de decisões recentes, o Tribunal constitucional declarou inconstitucionais várias normas orçamentais que visavam reduzir as remunerações dos trabalhadores do sector público (são elas, principalmente, os acórdãos n° 353/2012 de 5 de julho de 2012, 187/2013 de 5 de abril de 2013 e 413/2014 de 30 de maio de 2014)[1]. Não quero discutir aqui os méritos destas decisões. Muito foi já escrito sobre o assunto e, na generalidade, tendo a concordar com as soluções[2][3].

2/ No entanto a argumentação jurídica utilizada para procurar demonstrar a inconstitucionalidade das normas em causa levanta uma questão melindrosa que julgo digna de vossa atenção porque, sendo jurídica, é também política e, sendo técnica, não deixa de mexer com valores essenciais. Com efeito, os argumentos submetidos ao Tribunal podem reconduzir-se (esquematizando um pouco) a dois grandes tipos. Por um lado, as medidas restritivas da remuneração dos funcionários foram criticadas por se aparentarem a um imposto e por violarem o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei (na sua vertente que garante um tratamento igual perante o imposto).  Por outro lado, procurou demonstrar-se que as medidas restritivas, dada sua importância, violavam o princípio da confiança legítima, princípio que impede que os poderes públicos venham, de um dia para o outro,  ou com má fé, pôr em causa expectativas razoáveis criadas por eles junto dos particulares. Estas duas formas de argumentar são completamente diferentes, tanto na sua lógica como nas suas consequências.

3/ A primeira percebe-se bem : perante a lei, e especialmente perante a lei fiscal, os cidadãos devem ser todos tratados de forma igual. Isto significa que os cidadãos apenas podem receber um tratamento diferenciado se, e na medida em que, estiverem objectivamente em situações diferentes. Quem tem maiores rendimentos pode (e nalguns casos deve) ser tributado mais do que quem tem menores rendimentos, uma vez que as duas situações são objectivamente diferentes em termos de capacidade contributiva. Mas um cidadão com um rendimento anual de x deve ser tratado exactamente como outro cidadão com rendimento anual de x. Neste âmbito, não se percebe bem como poderíamos admitir, à luz do princípio, que o funcionário público seja tratado de maneira diferente dos outros cidadãos. A única forma de justificar esta diferença, seria demonstrar que o funcionário público se encontra objectivamente numa situação diferente da dos outros cidadãos, ao ponto de não fazer sentido comparar os seus rendimentos (quantitativamente) com os dos restantes cidadãos. Vejo que há quem acredite que esta demonstração pode ser feita.  Não convenceram o Tribunal mas noto que, se a demonstração fosse julgada procedente, somente poderia sê-lo em nome da igualdade, por aplicação da lógica da igualdade geométrica bem conhecida desde Aristóteles.  No plano dos princípios, não haveria nada a dizer...

4/ Já o segundo argumento é muito diferente e levanta problemas mais bicudos. De acordo com este argumento, as medidas orçamentais restritivas das remunerações dos funcionários públicos são, em razão da sua importância, atentatórias do princípio da confiança legítima, princípio que protege os cidadãos contra decisões que vêm frustrar expectativas razoavelmente fundadas. Este princípio da confiança legítima, consagrado desde o início dos anos 80 na jurisprudência europeia (ver por ex. TJUE Mavridès c/ Parlamento Europeu, caso 289-81), tem origem, tanto quanto julgo saber, no direito alemão. É muitas vezes apresentado como a faceta subjectiva do princípio da segurança jurídica e radica no princípio da boa fé. Trata-se de um princípio que visa corrigir os abusos da administração pública no exercício dos seus poderes. Na medida em que a administração agiu objectivamente de maneira a gerar expectativas legítimas junto de determinados cidadãos, o princípio obriga-a a comportar-se como se tivesse contraído obrigações para com estes cidadãos, um pouco como se tivesse celebrado um contrato com eles e não pudesse modificar unilateralmente as cláusulas desse contrato de um dia para o outro. De um ponto de vista teórico, o princípio da confiança legítima é por vezes analisado como um corolário do princípio do respeito dos direitos adquiridos, com consequências que excedem nitidamente a proibição da retroactividade das decisões das autoridades públicas.

5/ No caso das medidas restritivas das remunerações dos funcionários públicos, é óbvio que o argumento baseado na violação da confiança legítima tem um vinco marcadamente “contratual”. De acordo com o raciocínio subjacente, os funcionários públicos são considerados (pelo menos de forma implícita) como estando em relação à administração que os emprega, numa situação próxima da dos trabalhadores vinculados por contratos de trabalho. Este pressuposto leva-nos a julgar que o Estado/entidade patronal não deve poder modificar as regras do contrato de um dia para o outro, e defraudar desta forma as expectativas legítimas de quem aceitou entrar ao seu serviço mediante determinadas condições retributivas. Por conseguinte, o nosso primeiro impulso vai no sentido de considerar abusivo um comportamento que temos como de má fé e que jamais toleraríamos por parte de uma entidade patronal privada.

6/ Acontece que este raciocínio está gravemente inquinado e assenta em várias confusões.

7/ Em primeiro lugar, na abstração “Estado/Entidade patronal” confundimos duas realidades bem diferentes : por um lado o Governo, poder executivo, que é quem nomeia os funcionários públicos e quem exerce em relação a eles as prerogativas típicas da entidade patronal, por outro, a Assembleia da República, poder legislativo, a quem compete definir as bases do estatuto dos funcionários assim como os princípios gerais da sua remuneração, exactamente da mesma maneira que lhe compete definir as regras imperativas que enquadram as relações laborais de direito privado.  Neste caso, as medidas submetidas ao Tribunal constitucional não eram decisões do Governo (entidade patronal), mas medidas legislativas contidas no orçamento do Estado (que é uma lei). Logo, se quisermos fazer uma analogia com a situação do trabalhador de direito privado, não devemos comparar as medidas em causa com decisões ou medidas adoptadas unilateralmente pelo patrão, mas antes com normas que emanam da autoridade pública situada acima do patrão e do trabalhador. Ora acontece que existem tais normas, com incidência sobre as relações laborais privadas, por exemplo as normas que modificam o código do trabalho, e que estas normas têm vigência imediata sem que ninguém – nem o trabalhador, nem a entidade patronal (privada) – possa prevalecer-se de “direitos adquiridos” ou de “expectativas legítimas” contra a aplicação imediata da nova lei. Exemplifiquemos : se amanhã uma lei vier modificar o código do trabalho para dispôr que as empresas devem facultar aos seus trabalhadores dois dias por ano de formação sobre segurança e higiene, nenhuma entidade patronal poderá recusar-se a cumprir a nova lei com o argumento de que é vedado ao legislador modificar direitos que derivam de contratos celebrados antes da vigência da lei. E ainda bem que assim é...

8/ Em segundo lugar, e muito mais importante, os funcionários públicos não estão numa situação “contratual” comparável com a dos trabalhadores do privado. Com efeito, os funcionários públicos estão numa situação principalmente estatutária toda ela enquadrada por imperativos legais. É certo que estão numa relação de subordinação jurídica (à autoridade de nomeação) que, nalguns aspectos, lembra a situação dos trabalhadores assalariados. Mas apesar disto, a situação é fundamentalmente diferente[4]. As obrigações são outras. Não nascem de um contrato mediante o qual um trabalhador coloca a sua força de trabalho ao serviço de uma empresa que se propõe fazer frutificar bens privados, nem são modificáveis por motivos que extravasem o interesse público. Os direitos também são diferentes, tal como a deontologia, etc. Poderia estar aqui muito tempo a explicar o porquê desta diferença, mas jamais alcançaria o poder de convicção do argumento seguinte, ad absurdum : se considerássemos que os funcionários públicos são apenas uma categoria de trabalhadores subordinados e que eles se encontram numa situação semelhante à dos assalariados que celebraram um contrato de trabalho, então, por aplicação do princípio de igualdade a que aludi mais acima, eles deveriam beneficiar da protecção do código do trabalho, e também poder recorrer aos tribunais de trabalho, em condições idênticas às dos outros trabalhadores por conta de outrem.  Dito de outra maneira : deveriam deixar de ser funcionários públicos, para passar a ser trabalhadores “normais”, contratados ao abrigo do direito do trabalho... Não sendo assim, a analogia com a situação contratual dos trabalhadores assalariados de direito privado só pode ser manca.

9/ Quer isto dizer que os funcionários públicos não têm direitos que mereçam a consideração do legislador, ou que podem ser pagos abaixo do salário mínimo se por acaso isso fôr oportuno para equilibrar as contas públicas ? Claro que não.  É inevitável e altamente desejável que alguns princípios básicos do direito do trabalho (o salário mínimo, a protecção da mulher grávida no trabalho, a protecção contra as discriminações, etc.) se apliquem também no domínio da função pública, até porque cabe ao Estado respeitar os direitos fundamentais das pessoas mesmo quando elas estão ao seu serviço... No entanto, isto não significa que o Estado/legislador deve tratar os funcionários públicos como se eles fossem trabalhadores contratados por uma entidade privada nas condições fixadas pelo mercado do trabalho. A situação dos funcionários é radicalmente diferente pelas razões já referidas, porque é completamente impregnada pelo princípio da legalidade que vincula o funcionário tanto quanto a autoridade que o dirige, e que remete para o interesse geral. Ignorar esta diferença levaria a subscrever as teorias libertarianas que defendem que todas as funções do Estado devem poder ser desempenhadas por qualquer pessoa (pública ou privada) em condições e por um preço determinados exclusivamente pela lei da oferta e da procura. Em contrapartida, se acreditarmos que existem funções regalianas do Estado[5], devemos entender que a primeira preocupação do legislador, ao definir o estatuto dos funcionários públicos, deve ser a de garantir que eles vão agir, com competência e com integridade, exclusivamente em nome da lei e do interesse geral, colocando-o sempre acima de qualquer interesse privado (incluindo o seu). Com alguma provocação, podemos afirmar que os direitos dos agentes públicos serão sempre secundários (o que não significa subalternos) em relação ao objectivo para o qual eles foram nomeados, que consiste em velar pelo interesse geral. Não fosse assim, e os funcionários deixariam pura e simplesmente de ser públicos. Regressaríamos então à época da venalidade dos ofícios. Ora, um dos avanços decisivos das revoluções liberais foi precisamente a igualdade e a transparência no acesso, na titularidade e no exercício dos cargos públicos. O sistema das prebendas e das tenças era outro, nem por isso mais democrático ou mais igualitário...

10/ Há aqui um ponto melindroso, mas fundamental, e receio que nem sempre mostremos grande discernimento nesta matéria. Quando a direita tenta acirrar a população contra os funcionários públicos, falaciosamente apresentados como uns “privilegiados”, devemos saber distinguir, por detrás da demagogia fácil, uma argumentação mais subtil, e nem por isso desprovida de fundamento : de facto, o que faz a especificidade dos funcionários públicos, e que devia também ser o seu ponto de honra, é estarem ao serviço da lei, que é a expressão do interesse geral. Nesta medida, quando vejo funcionários protestar contra a lei, a pretexto de que ela viria pôr em causa direitos adquiridos, não posso deixar de franzir o nariz. Argumentação perigosa e altamente contestável, que só vem trazer confusão. No plano dos princípios, é dificilmente aceitável que o funcionário público, supostamente devotado ao interesse geral como dom Quixote a Dulcineia[6], venha afirmar que o seu interesse próprio é superior ao disposto pelo povo soberano. Posso admitir que ele o faça para proteger situações verdadeiramente adquiridas em sentido jurídico, ou seja que pugne pela não retroactividade da lei. Como demonstrou o grande jurista Paul Roubier (1886-1963), o princípio de não-retroactividade traduz na realidade uma exigência de efectividade da lei, que é um corolário natural da sua primazia (com efeito, o legislador deve começar por respeitar-se a si próprio, o que implica que respeite as decisões que tomou no passado). Mas, em contraste, nada justifica que o funcionário público venha sobrepôr os seus interesses próprios às exigências da aplicação imediata da lei e da sua vigência para o futuro, nem sequer quando a lei decide, como pode perfeitamente suceder, que afinal de contas a colectividade dispensa completamente o serviço dodito funcionário no futuro. De contrário, teríamos um funcionário que se coloca acima da lei e do interesse geral o que seria, no mínimo, problemático.

11/ Por todas estas razões, julgo que o Tribunal constitucional esteve bem ao considerar que as medidas restritivas das remunerações dos funcionários e dos agentes públicos não violavam o princípio da confiança legítima. É certo que o Tribunal declarou o princípio aplicável em matéria de remunerações dos funcionários[7]. Mas na prática, acabou por não encontrar nenhuma violação concreta. De notar que o Tribunal também não encontrou nenhuma violação do princípio nas outras normas submetidas ao seu controlo. A medida que suscitou um controlo mais apertado desse ponto de vista, foi a suspensão do pagamento do subsídio de férias de aposentados e reformados (artigo 77 do Orçamento para 2013). Deve sublinhar-se que os “direitos” postos em causa com esta última medida não se podem equiparar aos direitos remuneratórios dos agentes públicos no futuro. Seja como fôr, após uma análise muito interessante da natureza dos direitos em causa (que são direitos sociais de carácter previdencial derivando de um sistema que funciona por repartição e não por capitalização), o Tribunal acabou por afastar o argumento baseado na violação da confiança legítima e censurou a norma apenas porque a julgou contrária ao princípio da igualdade perante os encargos públicos (cf. acórdão n° 187/2013, p. 91-94). O raciocínio mostra como o princípio da confiança legítima tende a diluir-se em conceitos relativamente abertos (para não dizer vagos), como a proporcionalidade e a razoabilidade, a ponto de ser questionável que ele ainda tenha um conteúdo normativo claramente identificável (pelo menos a meu ver). Nesta medida, podemos considerar que as decisões do Tribunal constitucional traduzem, na prática, o mesmo tipo de desconfiança em relação ao princípio da confiança legítima, do que a manifestada pelo Conselho de Estado francês[8], que se recusa até hoje a aplicá-lo fora do domínio da interpretação e da aplicação do direito comunitário (CE, Ass. 24 de Março 2006, Société KPMG et Société Ernst & Young et autres, Rec. 154).

12/ O conflito que acabei de expôr entre uma lógica estatutária/legalista, igualitarista e de primazia do interesse público, contraposta a uma lógica contratualista, individualista e de salvaguarda dos direitos privados, tem inúmeras ramificações que ultrapassam o domínio da técnica jurídica. Estudado habitualmente de forma sumária nas cadeiras introdutórias dos cursos de direito (a propósito da questão da aplicação da lei no tempo) o problema que evoco é por vezes referido como a questão dos direitos adquiridos. Até que ponto a lei nova deve poder pôr em causa situações jurídicas constituídas ? Na sequência das doutrinas objectivistas, de que o já referido Paul Roubier é um dos mais ilustres representantes[9], os juristas habituaram-se a considerar que a lei deve ter efeito imediato e reger em princípio[10] todos os factos que ocorrem a partir da sua entrada em vigor, ressalvando-se apenas os efeitos já produzidos pelos factos anteriores (que se regem pela lei antiga). De acordo com esta lógica, é usual distinguir-se entre os factos constitutivos (ou extintivos) de uma situação jurídica, e os efeitos de uma situação jurídica constituída. Apenas os primeiros têm vocação a reger-se exclusivamente pela lei em vigor à data em que a situação foi criada (ou extinta), enquanto os segundos podem vir a ser regidos pela lei nova a partir da data em que ela entra em vigor[11]. Não interessa aqui discutir se esta teoria permite resolver todas as dificuldades concebíveis na prática, mas importa sublinhar que ela vem afirmar um princípio importante – o do efeito imediato da lei – contra a teoria tradicionalista (subjectivista) da salvaguarda dos direitos adquiridos, a qual tendia a conceber estes últimos de maneira extensiva e a limitar, correlativamente, a aplicação da lei nova, o que equivale a limitar o poder da soberania popular. A concepção tradicionalista e maximalista dos direitos adquiridos é intrinsecamente conservadora. Em contrapartida, a teoria da aplicação imediata é muito mais aceitável para quem se afirma progressista e para quem encara o direito como um instrumento de construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária.

13/ No caso das normas retritivas das remunerações dos funcionários, é fácil de ver que a tese que atribui aos agentes públicos um direito adquirido a manter no futuro o seu nível de remuneração, podendo com este fundamento opôr-se a medidas legais decididas pela Assembleia da República, só dificilmente pode ser sustentada até ao fim, a menos que consideremos que os agentes públicos devem ser privilegiados em relação aos outros cidadãos. Mas o mesmo problema coloca-se em muitas outras situações e pode mesmo, a meu ver, ser considerado como a raiz de algumas das grandes questões políticas e económicas com que nos debatemos. Assim :

a.       A maior parte dos nossos direitos sociais – a começar pelos direitos a pensão de velhice – produzem os seus efeitos no futuro e (tendencialmente) durante um vasto período de tempo. Estes “direitos”, tanto de um ponto de vista jurídico, como de um ponto de vista económico[12], não estão completamente constituídos na altura em que os “adquirimos”. Defender que eles são intocáveis e que o legislador não deve poder modificá-los para o futuro, equivale a exigir do legislador (e de todos nós) uma garantia para a execução destes direitos no futuro, sejam quais forem as circunstâncias. Ora não me parece de excluir que esta posição cause sérios problemas de justiça social, ou seja situações contrárias ao princípio de igualdade. Reparem que não estou a afirmar que estamos hoje claramente perante uma situação destas. Apenas digo que recusar por princípio entrar nesta discussão a pretexto de que não devemos pôr em causa direitos adquiridos, não me parece uma posição particularmente de esquerda.

b.      O problema equacionado aqui em cima está intrinsecamente ligado à questão da eficácia e da efectividade das normas jurídicas. Trata-se a meu ver de um problema central e decisivo para definir a identidade da “esquerda”. Simplificando um pouco, pode mesmo dizer-se que foi este problema que esteve na origem da clivagem entre esquerda e direita no momento das revoluções liberais. Com efeito, nas assembleias (pretensamente) representativas, todos eram contra o poder arbitrário do monarca ; mas enquanto os mais instalados, sentados à direita do hemiciclo, estavam sobretudo preocupados em limitar o poder político (que hoje tendem a querer abolir), os outros, sentados à esquerda, não desconfiavam tanto do poder (necessário para mudar a sociedade) mas antes do seu carácter arbitrário... A defesa dos direitos adquiridos foi sempre um cavalo de batalha dos primeiros. Para os segundos, a aplicação imediata da lei constitui garantia bastante, pelo menos enquanto a lei exprimir a vontade do povo. Há ainda outra forma de pôr a questão. Afinal, para que é que queremos direitos ? “Para segurar o que já temos”, diz a direita que pensa (ou finge que pensa) que a igualdade é dada à partida. Ao que a esquerda responde : “Para alcançar verdadeiramente a igualdade que ainda não temos, a não ser no papel”...

c.       Resta dizer que o problema que descrevo é actualíssimo e que tem incidência em domínios que extravasam completamente o campo da técnica jurídica para entrar em questões políticas fundamentais. Vejamos por exemplo a questão da construção de uma esquerda europeia, tão debatida neste blogue. Não será a defesa cega de direitos adquiridos – em detrimento da única questão que devia interessar as forças progressistas, que consiste em avançar para uma maior igualdade efectiva entre os povos europeus – um dos principais obstáculos que explicam a completa paralisia das forças de esquerda neste momento ? Não haverá aqui um logro utilizado pelas forças conservadoras de direita, que se contentam muito bem com um mercado europeu aberto, mas que não querem de maneira nenhuma o aprofundamento da Europa política, pois sabem que ele é condição necessária para exigir mais igualdade ? Ora foi pecisamente a aproximação aos níveis de vida dos países mais desenvolvidos – logo uma igualização tendencial, pelo menos a nível material – que levou os povos da Europa do sul a subscrever maioritariamente o projecto de integração europeia. Nestas condições, o que deve ser hoje considerado mais “de esquerda” : trabalhar para que a dinâmica integradora incorpore verdadeiramente o princípio de igualdade (que faz parte da genética do projecto europeu), de forma a que as populações dos países mais pobres não fiquem materialmente prejudicadas, ou bloquear a integração em nome do respeito de direitos adquiridos, correndo o risco de criar uma situação em que esses mesmos direitos serão desprovidos de efectividade ? Este é que devia ser o debate de fundo sobre a Europa entre pessoas de esquerda. Mas, curiosamente, neste debate, são muitas vezes aqueles que se afirmam mais radicais que defendem um ponto de vista formalista e conservador, ponto de vista que assume por vezes a forma de um “nacionalismo” nostálgico, como se fizesse algum sentido moldar a sociedade igualitária e justa a que aspiramos sobre o exemplo do nosso passado...




[1] As medidas em causa abrangiam diversas reduções remuneratórias (com uma lógica de progressividade) e a suspensão dos subsídios de férias e de natal. Os acórdãos censuram também outras medidas orçamentais, por exemplo medidas restritivas para pensionsistas (antigos trabalhadores do sector público empresarial ou não). Para maior clareza, achei melhor cingir-me às medidas que restringem as remurerações dos agentes públicos, que permitem expor com mais nitidez o conflito entre a lógica contratual e a lógica estatutária.
[2] Sobre o assunto, pode consultar-se o estudo de António Martins A jurisprudência constitucional sobre as leis do Orçamento do Estado e (in)constitucionalidade do OE 2014, Coimbra, Almedina, Abril 2014, com um interessante prefácio de António Manuel Hespanha. Este estudo não contempla o último dos acórdãos aqui tratados.
[3] O presente texto é postado antes de eu ter lido na íntegra o acórdão do Tribunal Constitucional de 14 de Agosto de 2014 (em fiscalização preventiva). À primeira vista, as conclusões deste último acórdão não me parecem desmentir fundamentalmente a análise proposta.
[4] Esta é, pelo menos, a concepção tradicional. Em rigor, há que sublinhar que existe em Portugal  uma tendência recente para pôr em causa esta concepção tradicional. Por exemplo, criou-se em 2008 o “contrato de trabalho em funções públicas”, figura híbrida que apesar de tudo, tanto quanto percebo, continua a pertencer à competência dos tribunais administrativos. O resultado desta inovação é levantar questões legítimas de igualdade entre os diversos agentes da administração pública, como as levantadas pelo Miguel Madeira neste post.
[5] Mas, se elas não existissem, para que é que precisaríamos de funcionários ?
[6] Já leram a tradução da obra-prima de Cervantes pelo Miguel Serras Pereira, não leram ?
[7] Cf. Acórdão n° 413/2014, p. 41 e s. Como disse, esta afirmação causa-me uma certa perplexidade, pelo menos tratando-se de medidas legislativas sobre remuneração de agentes públicos.
[8] O Conselho de Estado (Conseil d’Etat) é a mais alta instância com competência em matéria de direito administrativo em França. Corresponde ao Supremo Tribunal Administrativo português.
[9] Le droit transitoire, conflits des lois dans le temps Dalloz et Sirey 1960, reed. Dalloz 2008.
[10] Isto é, desde que a própria lei não contenha disposições expressamente retroactivas (com efeito, a retroactividade não é vedada de uma maneira geral, só o é nalgumas matérias, nomeadamente em direito penal).
[11] Estas distinções estão claramente reflectidas no artigo 12° do código civil português : « 1. A lei só dispõe para o futuro ; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos ; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da entrada em vigor ».
[12] O João Valente Aguiar que me desminta se fôr caso disso.

30/08/14

A crise em França



A crise lenta epersistente do sistema capitalista global acarreta, entre outros aspectos, uma crise da representatividade e uma decadência contínua da classe política, com as suas manifestações diversas de mediocridade, corrupção, incompetência e impotência face aos efeitos da lógica da produção de lucro, bem comode eficácia relativamente aos interesses do capitalismo especulativo.
Em França, o espectáculo político continua a ser exemplar. O gangue dos patetas socialistas que substituiu o agitado e agressivo clã sarkozista tirou do chapéu um número de magia: a continuidade de uma mesma política ao serviço dos interesses capitalistas. O governo actual, que dá pelo nome de socialista, tem mesmo vindo a tomar «medidas que nenhum dos governos de direita anteriores se atreveu a tomar», para citar a excelente análise de Nicole Thé no texto que aqui se reproduz. E o que se promete para amanhã é a mesma receita.
Tanto assim é que se tornou hoje voz comum dizer que, afinal, se votou socialista para que o patronato controle directamente o governo! Mais uma dolorosa revelação deste sistema representativo, que de democracia não tem nada. Ou então, como diziam os jovens de Occupy, «That’s what democracy looks like!» (É isto a democracia !). A deles!

A crise em França

Quando chega ao poder, propulsionado pela dinâmica anti-Sarkozy e a defecção de DSK, Hollande, embora ligado pessoalmente a altos dirigentes da banca e da grande indústria, está no seu papel de representante da esquerda e tem de dar garantias ao seu eleitorado. Sem nunca pôr em causa a necessidade do rigor orçamental nos termos definidos pela UE, ele anuncia medidas de retoma de tipo keynesiano (criação de empregos na Educação Pública, apoio ao investimento produtivo), prometendo «inverter a curva do desemprego em 2013», e dá mesmo a impressão de querer retomar a política social-democrata de redistribuição das riquezas anunciando um forte agravamento fiscal para os mais ricos e a vontade de envolver a União Europeia na luta contra os paraísos fiscais.
Passado menos de um ano, a desilusão é geral. Os paraísos fiscais continuam de boa saúde, a fiscalidade sobre os altos rendimentos pouco aumentou, a criação de empregos na Educação traduz-se essencialmente em meras reestruturações. Quanto à «recuperação produtiva» encarnada pelo ministro Montebourg, ela não impediu o encerramento de múltiplas empresas, designadamente as últimas siderurgias da Lorena, as fábricas PSA de Aulnay na região parisiense, a Continental no Oise, a Doux na Bretanha, etc. Entretanto, a situação económica continua a degradar-se: em finais de 2013, a curva do desemprego, após uma ligeira estabilização devido ao efeito do regresso dos «empregos jovens», volta a subir, atingindo o limiar oficial de seis milhões de desempregados.

Como explicar isto? Na grande competição mundial intercapitalista, a França perde incontestavelmente terreno, embora continue a querer afirmar-se como grande potência no plano militar. É verdade que as multinacionais bancárias e industriais estão de boa saúde, mas as estratégias de investimento ou de especulação já não são condicionadas por elas à escala nacional. As numerosas pequenas e médias empresas, que constituem o essencial do tecido económico e que estão sobretudo orientadas para o mercado interno vêem-se estranguladas pela rarefacção do crédito bancário. Por outro lado, o equipamento industrial é vetusto, devido ao subinvestimento crónico. Assim, a desindustrialização continua, e a criação de postos de trabalho (que está longe de compensar as perdas) já quase só abrange o sector terciário, com os seus  empregos de salários baixos e prestações sociais reduzidas. O instrumento do fisco, sem o qual não há intervenção do Estado, encontra-se fortemente fragilizado: as grandes empresas escapam em grande parte ao imposto, colocando os seus lucros em paraísos fiscais, e as grandes fortunas exploram todas as soluções de expatriação para escapar às ameaças da fiscalidade. Ao mesmo tempo, a dívida pública continua a crescer, nomeadamente sob o efeito da alta contínua do desemprego.
            Poder-se-á então dizer que, num contexto de economia globalizada, as receitas keynesianas contra a crise, e, por via de consequência, as receitas social-democratas de redistribuição, se encontram forçosamente postas em causa? A questão está em aberto, mas não retira nada ao facto de as modalidades de pilotagem da economia pelo poder estarem sobretudo condicionadas pela relação de forças entre as classes. Ora, da parte da classe trabalhadora, aquela que poderia, através da luta, obrigar o governo quanto mais não fosse a resistir às eternas lamentações patronais relativamente ao custo do trabalho, a pressão é bem fraca. Nenhum dos grandes sindicatos tem a intenção de terçar armas com um governo de esquerda que multiplica as comissões e os círculos de negociação, e que tem o cuidado de associar as suas reformas regressivas a novas formas de cogestão. Os seus protestos passaram a ser puramente formais: as manifestações contra a nova reforma das pensões de 2013 e contra a ANI (ver adiante) quase que só mobilizaram os dirigentes e delegados sindicais – o mínimo para manter a ficção necessária dos sindicatos porta-vozes do mundo do trabalho. Mas, do lado da base, também não se vê nenhuma pressão significativa em prol de uma mobilização capaz de fazer sair os assalariados do seu estado de fragmentação, unindo-os em torno de uma luta comum. A última grande batalha deste género, que foi travada contra a reforma sarkoziana das pensões (2010), saldou-se por uma derrota que só provocou a desmoralização dos mais combativos e o aumento do sentimento de impotência. Este sentimento, em pleno reino generalizado do medo, mantém o mundo do trabalho num estado essencialmente depressivo – de tal modo que são agora os suicídios e o «sofrimento no trabalho» que fornecem matéria de estudo aos sociólogos e aos serviços de consultadoria de gestão dos «recursos humanos» …
É verdade que esta atonia de conjunto não impede as reacções localizadas. No sector público, são paradoxalmente as escolas onde se observam movimentos grevistas: em 2013, a fúria suscitada por uma reforma dos ritmos escolares imposta de cima, sem ter em conta as condições concretas locais, acabou por se esgotar em negociações ao nível municipal; actualmente verificam-se mobilizações esparsas e sem eco mediático contra a penúria de professores e de meios de que sofrem, na realidade, mais do que nunca os estabelecimentos dos departamentos mais mal apetrechados (para os quais esta reforma representará aliás um recuo suplementar). No sector industrial, os inúmeros «planos sociais» e restruturações fizeram nascer várias lutas tenazes contra os despedimentos que amiúde saíram do quadro bem comportado da negociação sindical. O ministro Montebourg (esquerda do PS) fez continuamente o papel de bombeiro, mas foi sobretudo nos casos em que a luta assumiu uma forma mais radical que se conseguiram impor mais cedências aos detentores do capital. Com efeito, com excepção de alguns casos em que a recuperação da empresa pelos trabalhadores foi encarada seriamente (SeaFrance e SNCM), estas lutas travadas em condições desesperadas tiveram sempre como única perspectiva conseguir a diminuição dos despedimentos forçados e obter compensações financeiras que permitissem enfrentar um longo período de desemprego. A perspectiva de constituir uma frente comum capaz de fazer a diferença na relação de forças à escala nacional, embora tenha sido contemplada, nunca teve o vigor suficiente para se concretizar (apesar de algumas tentativas de convergência na acção levadas a cabo com maior ou menor convicção por sindicalistas da CGT). Finalmente, a única excepção a este fenómeno de dispersão das lutas dos trabalhadores atingidos pela crise foi a muito vilipendiada revolta dos «gorros vermelhos», que aproveitou a hostilidade histórica da Bretanha contra o poder central parisiense para fundir raivas sectoriais num movimento que promoveu manifestações conjuntas de todas as camadas da população – sem no entanto conseguir manter-se para além do recuo governamental sobre aquilo que lhe serviu de detonador: a instauração da «ecotaxa».

Mas o governo de coligação PS-Verdes procurou fazer alguma coisa para alterar esta relação de forças mais desfavorável do que nunca ao mundo do trabalho? Sim, introduziu reformas. Com eficácia e num tempo recorde. Dando instrumentos legislativos decisivos… ao patronato.

29/08/14

Da insignificância das alternativas à alternativa da insignificância

O vazio hiante das declarações programáticas de António Costa — sendo que exactamente o mesmo se poderia dizer das de Seguro — parece, neste exercício crítico de Estela Serrano, incentivar, ou servir de pretexto, a uma curiosa hermenêutica que o apresenta como alternativa política última e profunda a qualquer orientação política definida. Só ficamos sem saber o que mais admirar se a inexaurível flexibilidade não tanto táctica como verdadeiramente estratégica do candidato que se propõe conduzir o PS não importa onde, tornando a sua direcção uma questão menor contanto que adoptada sob a sua presidência, se a radical desconstrução preventiva das próprias condições elementares do debate político e da tomada de posições alternativas que a comentadora e apoiante do candidato valoriza na insignificância das suas (dele) declarações e discurso, assim superando a insignificância das alternativas numa apologia da alternativa da insignificância. Parafraseando a exegese que Filipe Nunes Vicente propõe do texto de Estela Serrano, só podemos concluir que as alternativas são uma maçada: deviam ser proibidas. E, de caminho, ou consequentemente, o juízo político também.


27/08/14

O ISIS e os outros muçulmanos

Ultimamente, têm surgido alegações que os "muçulmanos moderados" não condenam e/ou não se distanciam do ISIS.

Já muita gente desmontou essa conversa, dando exemplos de muçulmanos a protestar contra o ISIS e referindo que a maior parte das vitimas do ISIS são outros muçulmanos; mas eu iria ainda mais longe - não só a maioria esmagadora das vitimas do ISIS são muçulmanos, como quase de certeza que a maioria esmagadora de soldados do ISIS que têm sido mortos em combate têm sido mortos por outros muçulmanos: quem é que está a lutar contra o ISIS? Antes dos bombardeamentos norte-americanos, eram os exércitos da Síria, do Iraque, do Irão, do Líbano, e mais as milícias curdas e do Hezbollah, provavelmente quase todos muçulmanos (poderá haver muitos cristãos no exército libanês e alguns no sírio, mas de certeza que os muçulmanos são a maioria esmagadora do total das forças anti-ISIS).

Aliás, pode haver excepções, mas dá-me a ideia que essa conversa de que "os muçulmanos não condenam o ISIS" vem muitas vezes de pessoas que, em politica externa, defendem a linha "o que é preciso é ação, não basta palavras".  Mas neste caso, tudo se inverte - o que lhes interessa é que os outros muçulmanos emitam palavras condenando o ISIS, não interessando para nada as balas e bombas que há meses (ou anos, se contarmos com as organizações que lhe deram origem) os outros muçulmanos dirigem contra o ISIS.

Um caso que me parece particularmente desfasado deste argumento é este post de José Simões, onde o autor critica "os ayatollahs e os mullahs, sempre tão lestos com fatwas de cada vez que alguém escreve um livro ou desenha um cartoon, [que não] se lembram agora de publicar, urbi et orbi, uma"; se o autor tivesse falado em "imãs, sheiks e ulemas" ainda poderia fazer algum sentido - mas ir buscar nomes de autoridades religiosas especificas do xiismo ("ayatollah" é um título xiita; "mullah" não é especifico do xiismo, mas sendo um termo usado tipicamente no Irão, acaba por estar também mais associado ao xiismo) torna a coisa completamente sem sentido, já que o inimigo principal do ISIS são exatamente os xiitas e está mais ou menos comprovado que o Irão (um país governado pelos ayatollahs e pelos mullahs) tem tropas no Iraque a apoiar o governo de Bagdade contra o ISIS.

Finalmente noto que, quando há umas semanas, houve a intervenção norte-americana em defesa dos yazidis, não me parece que tenha aparecido alguém a querer aplicar-lhes o mesmo critério, exigindo que os yazidis moderados condenassem os atos dos yazidis radicais (e estamos a falar de uma religião que, antes dos últimos acontecimentos, praticamente só era conhecida no resto do mundo pelos "crimes de honra" em que alguns dos seus crentes se envolviam)