Nunca se recomendará o bastante a leitura da notabilíssima mise au point raisonnée que António Guerreiro propõe no Público sobre o Estado de Israel, o sionismo e os seus críticos jdeus, a perversão nacionalista, etc., etc.
O proto-sionismo do século XIX foi um ideal que tornou possível a edificação de um Estado judaico. Na sua dimensão política – muitas vezes em divergência com o plano cultural e o religioso - o sionismo cumpriu-se com a proclamação do Estado de Israel em 1948, na sequência da resolução da ONU que consagrava a criação de dois Estados, um judeu e outro árabe palestiniano. O não cumprimento desta resolução – a par da expansão territorial que resulta em formas coloniais de expulsão e de repressão – tornou-se um argumento usado para pôr em causa a legitimidade de Israel.
Em síntese, eram estes os princípios fundamentais do sionismo das origens: resgatar o povo judeu de uma história de humilhação e perseguição (que viria a culminar no extermínio como “solução final”), possibilitando aos judeus da diáspora serem acolhidos como cidadãos desse Estado; conceder aos Judeus um território de pertença nacional ao qual eles estavam ligados pela história, pela memória e pelo mito, de modo a reconstruir aí uma comunidade baseada em princípios culturais e religiosos que no exílio tinham sido reprimidos ou aniquilados; construir uma sociedade justa e democrática, fundada em valores que, em muitos aspectos, estavam em ruptura com a sociedade capitalista (não esqueçamos que o movimento sionista teve origem em duas típicas ideologias políticas do século XIX, que hoje parecem contraditórias: o nacionalismo e o socialismo). Mas os ideais do sionismo dissolveram-se ou, pelo menos, têm sido submetidos a muitas interrogações. Um povo que se constitui como nação, uma nação que se organiza como Estado, um Estado que reclama um predicado étnico e/ou religioso - “judeu” - implantado num território que se quer identificado com a ancestralidade bíblica da “Terra de Israel”: tudo isto é mais do que suficiente para que o sionismo se tenha transformado em ideologia (e o anti-sionismo se tenha reconfigurado à sua imagem) e a questão de Israel, a sua legitimação histórico-político-jurídica, seja motivo de disputas intelectuais exacerbadas.
31/08/14
Até que ponto lutar por “direitos adquiridos” é de esquerda ?
por
joão viegas
Advertência : No post que se
segue, procurei ser o mais simples e o mais claro possível. Ainda assim,
tratando-se de uma questão que julgo complexa, o texto saiu comprido e por
vezes um pouco “técnico”. Quem quiser ir ao essencial pode ler directamente os
parágrafos finais (12 e 13). No entanto, não garanto que as minhas conclusões
sejam completamente compreensíveis para quem passou por cima dos 11 parágrafos
anteriores. Fiz o melhor que pude...
1/ Como sabem, num conjunto de decisões recentes, o Tribunal constitucional
declarou inconstitucionais várias normas orçamentais que visavam reduzir as remunerações
dos trabalhadores do sector público (são elas, principalmente, os acórdãos n° 353/2012
de 5 de julho de 2012, 187/2013 de 5 de abril de 2013 e 413/2014 de 30 de maio
de 2014)[1].
Não quero discutir aqui os méritos destas decisões. Muito foi já escrito sobre
o assunto e, na generalidade, tendo a concordar com as soluções[2][3].
2/ No entanto a argumentação jurídica utilizada para procurar demonstrar a
inconstitucionalidade das normas em causa levanta uma questão melindrosa que
julgo digna de vossa atenção porque, sendo jurídica, é também política e, sendo
técnica, não deixa de mexer com valores essenciais. Com efeito, os argumentos
submetidos ao Tribunal podem reconduzir-se (esquematizando um pouco) a dois
grandes tipos. Por um lado, as medidas restritivas da remuneração dos
funcionários foram criticadas por se aparentarem a um imposto e por violarem o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei (na sua
vertente que garante um tratamento igual perante o imposto). Por outro lado, procurou demonstrar-se que as
medidas restritivas, dada sua importância, violavam o princípio da confiança legítima, princípio que impede que os
poderes públicos venham, de um dia para o outro, ou com má fé, pôr em causa expectativas razoáveis
criadas por eles junto dos particulares. Estas duas formas de argumentar são
completamente diferentes, tanto na sua lógica como nas suas consequências.
3/ A primeira percebe-se bem : perante a lei, e especialmente perante a lei
fiscal, os cidadãos devem ser todos tratados de forma igual. Isto significa que
os cidadãos apenas podem receber um tratamento diferenciado se, e na medida em
que, estiverem objectivamente em situações diferentes. Quem tem maiores
rendimentos pode (e nalguns casos deve) ser tributado mais do que quem tem menores
rendimentos, uma vez que as duas situações são objectivamente diferentes em
termos de capacidade contributiva. Mas um cidadão com um rendimento anual de x
deve ser tratado exactamente como outro cidadão com rendimento anual de x. Neste
âmbito, não se percebe bem como poderíamos admitir, à luz do princípio, que o
funcionário público seja tratado de maneira diferente dos outros cidadãos. A
única forma de justificar esta diferença, seria demonstrar que o funcionário público
se encontra objectivamente numa situação diferente da dos outros cidadãos, ao
ponto de não fazer sentido comparar os seus rendimentos (quantitativamente) com
os dos restantes cidadãos. Vejo que há quem acredite que esta demonstração pode
ser feita. Não convenceram o Tribunal
mas noto que, se a demonstração fosse julgada procedente, somente poderia sê-lo
em nome da igualdade, por aplicação
da lógica da igualdade geométrica bem conhecida desde Aristóteles. No plano dos princípios, não haveria nada a
dizer...
4/ Já o segundo argumento é muito diferente e levanta problemas mais
bicudos. De acordo com este argumento, as medidas orçamentais restritivas das remunerações
dos funcionários públicos são, em razão da sua importância, atentatórias do princípio da confiança legítima,
princípio que protege os cidadãos contra decisões que vêm frustrar expectativas
razoavelmente fundadas. Este princípio da confiança legítima, consagrado desde
o início dos anos 80 na jurisprudência europeia (ver por ex. TJUE Mavridès c/ Parlamento Europeu, caso
289-81), tem origem, tanto quanto julgo saber, no direito alemão. É muitas
vezes apresentado como a faceta subjectiva do princípio da segurança jurídica e
radica no princípio da boa fé. Trata-se de um princípio que visa corrigir os abusos
da administração pública no exercício dos seus poderes. Na medida em que a
administração agiu objectivamente de maneira a gerar expectativas legítimas
junto de determinados cidadãos, o princípio obriga-a a comportar-se como se
tivesse contraído obrigações para com estes cidadãos, um pouco como se tivesse
celebrado um contrato com eles e não pudesse modificar unilateralmente as cláusulas
desse contrato de um dia para o outro. De um ponto de vista teórico, o
princípio da confiança legítima é por vezes analisado como um corolário do
princípio do respeito dos direitos adquiridos, com consequências que excedem
nitidamente a proibição da retroactividade das decisões das autoridades
públicas.
5/ No caso das medidas restritivas das remunerações dos funcionários
públicos, é óbvio que o argumento baseado na violação da confiança legítima tem
um vinco marcadamente “contratual”. De acordo com o raciocínio subjacente, os
funcionários públicos são considerados (pelo menos de forma implícita) como
estando em relação à administração que os emprega, numa situação próxima da dos
trabalhadores vinculados por contratos de trabalho. Este pressuposto leva-nos a
julgar que o Estado/entidade patronal não deve poder modificar as regras do
contrato de um dia para o outro, e defraudar desta forma as expectativas
legítimas de quem aceitou entrar ao seu serviço mediante determinadas condições
retributivas. Por conseguinte, o nosso primeiro impulso vai no sentido de considerar
abusivo um comportamento que temos como de má fé e que jamais toleraríamos por
parte de uma entidade patronal privada.
6/ Acontece que este raciocínio está gravemente inquinado e assenta em
várias confusões.
7/ Em primeiro lugar, na abstração “Estado/Entidade patronal” confundimos duas
realidades bem diferentes : por um lado o Governo, poder executivo, que é quem nomeia os funcionários públicos e quem exerce
em relação a eles as prerogativas típicas da entidade patronal, por outro, a
Assembleia da República, poder
legislativo, a quem compete definir as bases do estatuto dos funcionários
assim como os princípios gerais da sua remuneração, exactamente da mesma
maneira que lhe compete definir as regras imperativas que enquadram as relações
laborais de direito privado. Neste caso,
as medidas submetidas ao Tribunal constitucional não eram decisões do Governo
(entidade patronal), mas medidas legislativas contidas no orçamento do Estado
(que é uma lei). Logo, se quisermos fazer uma analogia com a situação do
trabalhador de direito privado, não devemos comparar as medidas em causa com
decisões ou medidas adoptadas unilateralmente pelo patrão, mas antes com normas
que emanam da autoridade pública situada acima do patrão e do trabalhador. Ora
acontece que existem tais normas, com incidência sobre as relações laborais
privadas, por exemplo as normas que modificam o código do trabalho, e que estas
normas têm vigência imediata sem que ninguém – nem o trabalhador, nem a
entidade patronal (privada) – possa prevalecer-se de “direitos adquiridos” ou
de “expectativas legítimas” contra a aplicação imediata da nova lei. Exemplifiquemos
: se amanhã uma lei vier modificar o código do trabalho para dispôr que as empresas
devem facultar aos seus trabalhadores dois dias por ano de formação sobre
segurança e higiene, nenhuma entidade patronal poderá recusar-se a cumprir a nova
lei com o argumento de que é vedado ao legislador modificar direitos que
derivam de contratos celebrados antes da vigência da lei. E ainda bem que assim
é...
8/ Em segundo lugar, e muito mais importante, os funcionários públicos não estão numa situação “contratual”
comparável com a dos trabalhadores do privado. Com efeito, os
funcionários públicos estão numa situação principalmente estatutária toda ela enquadrada por imperativos legais. É certo que
estão numa relação de subordinação jurídica (à autoridade de nomeação) que,
nalguns aspectos, lembra a situação dos trabalhadores assalariados. Mas apesar
disto, a situação é fundamentalmente diferente[4].
As obrigações são outras. Não nascem de um contrato mediante o qual um
trabalhador coloca a sua força de trabalho ao serviço de uma empresa que se
propõe fazer frutificar bens privados, nem são modificáveis por motivos que extravasem
o interesse público. Os direitos também são diferentes, tal como a deontologia,
etc. Poderia estar aqui muito tempo a explicar o porquê desta diferença, mas
jamais alcançaria o poder de convicção do argumento seguinte, ad absurdum : se considerássemos que os
funcionários públicos são apenas uma categoria de trabalhadores subordinados e
que eles se encontram numa situação semelhante à dos assalariados que
celebraram um contrato de trabalho, então, por aplicação do princípio de
igualdade a que aludi mais acima, eles deveriam beneficiar da protecção do
código do trabalho, e também poder recorrer aos tribunais de trabalho, em
condições idênticas às dos outros trabalhadores por conta de outrem. Dito de outra maneira : deveriam deixar de
ser funcionários públicos, para passar a ser trabalhadores “normais”,
contratados ao abrigo do direito do trabalho... Não sendo assim, a analogia com
a situação contratual dos trabalhadores assalariados de direito privado só pode
ser manca.
9/ Quer isto dizer que os funcionários públicos não têm direitos que
mereçam a consideração do legislador, ou que podem ser pagos abaixo do salário
mínimo se por acaso isso fôr oportuno para equilibrar as contas públicas ?
Claro que não. É inevitável e altamente
desejável que alguns princípios básicos do direito do trabalho (o salário
mínimo, a protecção da mulher grávida no trabalho, a protecção contra as
discriminações, etc.) se apliquem também no domínio da função pública, até
porque cabe ao Estado respeitar os direitos fundamentais das pessoas mesmo
quando elas estão ao seu serviço... No entanto, isto não significa que o Estado/legislador
deve tratar os funcionários públicos como se eles fossem trabalhadores contratados
por uma entidade privada nas condições fixadas pelo mercado do trabalho. A situação
dos funcionários é radicalmente diferente pelas razões já referidas, porque é
completamente impregnada pelo princípio da legalidade que vincula o funcionário
tanto quanto a autoridade que o dirige, e que remete para o interesse geral.
Ignorar esta diferença levaria a subscrever as teorias libertarianas que
defendem que todas as funções do Estado devem poder ser desempenhadas por
qualquer pessoa (pública ou privada) em condições e por um preço determinados exclusivamente
pela lei da oferta e da procura. Em contrapartida, se acreditarmos que existem
funções regalianas do Estado[5],
devemos entender que a primeira preocupação do legislador, ao definir o
estatuto dos funcionários públicos, deve ser a de garantir que eles vão agir, com
competência e com integridade, exclusivamente em nome da lei e do interesse
geral, colocando-o sempre acima de qualquer interesse privado (incluindo o seu).
Com alguma provocação, podemos afirmar que os direitos dos agentes públicos serão
sempre secundários (o que não
significa subalternos) em relação ao
objectivo para o qual eles foram nomeados, que consiste em velar pelo interesse
geral. Não fosse assim, e os funcionários deixariam pura e simplesmente de ser públicos. Regressaríamos então à época da
venalidade dos ofícios. Ora, um dos avanços decisivos das revoluções liberais
foi precisamente a igualdade e a transparência no acesso, na titularidade e no
exercício dos cargos públicos. O sistema das prebendas e das tenças era outro, nem
por isso mais democrático ou mais igualitário...
10/ Há aqui um ponto melindroso, mas fundamental, e receio que nem sempre
mostremos grande discernimento nesta matéria. Quando a direita tenta acirrar a
população contra os funcionários públicos, falaciosamente apresentados como uns
“privilegiados”, devemos saber distinguir, por detrás da demagogia fácil, uma
argumentação mais subtil, e nem por isso desprovida de fundamento : de facto, o
que faz a especificidade dos funcionários públicos, e que devia também ser o
seu ponto de honra, é estarem ao serviço da lei, que é a expressão do interesse
geral. Nesta medida, quando vejo funcionários protestar contra a lei, a pretexto de que ela viria pôr em causa direitos adquiridos, não posso deixar de
franzir o nariz. Argumentação perigosa e altamente contestável, que só vem trazer
confusão. No plano dos princípios, é dificilmente aceitável que o funcionário
público, supostamente devotado ao interesse geral como dom Quixote a Dulcineia[6],
venha afirmar que o seu interesse próprio é superior ao disposto pelo povo
soberano. Posso admitir que ele o faça para proteger situações verdadeiramente adquiridas em sentido jurídico, ou seja
que pugne pela não retroactividade da lei. Como demonstrou o grande jurista
Paul Roubier (1886-1963), o princípio de não-retroactividade
traduz na realidade uma exigência de efectividade da lei, que é um corolário
natural da sua primazia (com efeito, o legislador deve começar por respeitar-se
a si próprio, o que implica que respeite as decisões que tomou no passado). Mas,
em contraste, nada justifica que o funcionário público venha sobrepôr os seus
interesses próprios às exigências da aplicação imediata da lei e da sua
vigência para o futuro, nem sequer quando a lei decide, como pode perfeitamente
suceder, que afinal de contas a colectividade dispensa completamente o serviço
dodito funcionário no futuro. De contrário, teríamos um funcionário que se
coloca acima da lei e do interesse geral
o que seria, no mínimo, problemático.
11/ Por todas estas razões, julgo que o Tribunal constitucional esteve bem
ao considerar que as medidas restritivas das remunerações dos funcionários e dos
agentes públicos não violavam o princípio da confiança legítima. É certo
que o Tribunal declarou o princípio aplicável em matéria de remunerações dos
funcionários[7]. Mas
na prática, acabou por não encontrar nenhuma violação concreta. De notar que o
Tribunal também não encontrou nenhuma violação do princípio nas outras normas
submetidas ao seu controlo. A medida que suscitou um controlo mais apertado
desse ponto de vista, foi a suspensão do pagamento do subsídio de férias de
aposentados e reformados (artigo 77 do Orçamento para 2013). Deve sublinhar-se
que os “direitos” postos em causa com esta última medida não se podem equiparar
aos direitos remuneratórios dos agentes públicos no futuro. Seja como fôr, após
uma análise muito interessante da natureza dos direitos em causa (que são direitos
sociais de carácter previdencial derivando de um sistema que funciona por
repartição e não por capitalização), o Tribunal acabou por afastar o argumento
baseado na violação da confiança legítima e censurou a norma apenas porque a julgou
contrária ao princípio da igualdade perante os encargos públicos (cf. acórdão
n° 187/2013, p. 91-94). O raciocínio mostra como o princípio da confiança
legítima tende a diluir-se em conceitos relativamente abertos (para não dizer
vagos), como a proporcionalidade e a razoabilidade, a ponto de ser
questionável que ele ainda tenha um conteúdo normativo claramente identificável
(pelo menos a meu ver). Nesta medida, podemos considerar que as decisões do
Tribunal constitucional traduzem, na prática, o mesmo tipo de desconfiança em
relação ao princípio da confiança legítima, do que a manifestada pelo Conselho
de Estado francês[8], que
se recusa até hoje a aplicá-lo fora do domínio da interpretação e da aplicação
do direito comunitário (CE, Ass. 24 de Março 2006, Société KPMG et Société Ernst & Young et autres, Rec. 154).
12/ O conflito que acabei de expôr entre uma lógica estatutária/legalista, igualitarista
e de primazia do interesse público, contraposta
a uma lógica contratualista, individualista e de salvaguarda dos direitos privados, tem inúmeras ramificações que ultrapassam
o domínio da técnica jurídica. Estudado habitualmente de forma sumária nas
cadeiras introdutórias dos cursos de direito (a propósito da questão da
aplicação da lei no tempo) o problema que evoco é por vezes referido como a questão dos direitos adquiridos. Até
que ponto a lei nova deve poder pôr em causa situações jurídicas constituídas ?
Na sequência das doutrinas objectivistas, de que o já referido Paul Roubier é
um dos mais ilustres representantes[9],
os juristas habituaram-se a considerar que a lei deve ter efeito imediato e
reger em princípio[10]
todos os factos que ocorrem a partir da sua entrada em vigor, ressalvando-se
apenas os efeitos já produzidos pelos factos anteriores (que se regem pela lei
antiga). De acordo com esta lógica, é usual distinguir-se entre os factos constitutivos (ou extintivos) de
uma situação jurídica, e os efeitos
de uma situação jurídica constituída. Apenas os primeiros têm vocação a
reger-se exclusivamente pela lei em vigor à data em que a situação foi criada
(ou extinta), enquanto os segundos podem vir a ser regidos pela lei nova a
partir da data em que ela entra em vigor[11].
Não interessa aqui discutir se esta teoria permite resolver todas as
dificuldades concebíveis na prática, mas importa sublinhar que ela vem afirmar
um princípio importante – o do efeito imediato da lei – contra a teoria
tradicionalista (subjectivista) da salvaguarda dos direitos adquiridos, a qual
tendia a conceber estes últimos de maneira extensiva e a limitar,
correlativamente, a aplicação da lei nova, o que equivale a limitar o poder da
soberania popular. A concepção tradicionalista e maximalista dos direitos
adquiridos é intrinsecamente conservadora. Em contrapartida, a teoria da
aplicação imediata é muito mais aceitável para quem se afirma progressista e para
quem encara o direito como um instrumento de construção de uma sociedade mais
justa e mais igualitária.
13/ No caso das normas retritivas das remunerações dos funcionários, é
fácil de ver que a tese que atribui aos agentes públicos um direito adquirido a manter no futuro o
seu nível de remuneração, podendo com este fundamento opôr-se a medidas legais
decididas pela Assembleia da República, só dificilmente pode ser sustentada até
ao fim, a menos que consideremos que os agentes públicos devem ser privilegiados
em relação aos outros cidadãos. Mas o mesmo problema coloca-se em muitas outras
situações e pode mesmo, a meu ver, ser considerado como a raiz de algumas das
grandes questões políticas e económicas com que nos debatemos. Assim :
a. A maior parte dos nossos direitos sociais
– a começar pelos direitos a pensão de velhice – produzem os seus efeitos no
futuro e (tendencialmente) durante um vasto período de tempo. Estes “direitos”,
tanto de um ponto de vista jurídico, como de um ponto de vista económico[12],
não estão completamente constituídos na altura em que os “adquirimos”. Defender
que eles são intocáveis e que o legislador não deve poder modificá-los para o
futuro, equivale a exigir do legislador (e de todos nós) uma garantia para a execução destes direitos
no futuro, sejam quais forem as circunstâncias. Ora não me parece de excluir
que esta posição cause sérios problemas de justiça social, ou seja situações
contrárias ao princípio de igualdade. Reparem que não estou a afirmar que
estamos hoje claramente perante uma situação destas. Apenas digo que recusar
por princípio entrar nesta discussão a pretexto de que não devemos pôr em causa
direitos adquiridos, não me parece
uma posição particularmente de esquerda.
b. O problema equacionado aqui em cima está
intrinsecamente ligado à questão da eficácia
e da efectividade das normas
jurídicas. Trata-se a meu ver de um problema central e decisivo para definir a
identidade da “esquerda”. Simplificando um pouco, pode mesmo dizer-se que foi
este problema que esteve na origem da clivagem entre esquerda e direita no
momento das revoluções liberais. Com efeito, nas assembleias (pretensamente)
representativas, todos eram contra o poder arbitrário do monarca ; mas enquanto
os mais instalados, sentados à direita do hemiciclo, estavam sobretudo
preocupados em limitar o poder político
(que hoje tendem a querer abolir), os outros, sentados à esquerda, não
desconfiavam tanto do poder (necessário para mudar a sociedade) mas antes do
seu carácter arbitrário... A defesa
dos direitos adquiridos foi sempre um
cavalo de batalha dos primeiros. Para os segundos, a aplicação imediata da lei constitui garantia bastante, pelo menos
enquanto a lei exprimir a vontade do povo. Há ainda outra forma de pôr a
questão. Afinal, para que é que queremos direitos
? “Para segurar o que já temos”, diz
a direita que pensa (ou finge que pensa) que a igualdade é dada à partida. Ao
que a esquerda responde : “Para alcançar
verdadeiramente a igualdade que ainda não temos, a não ser no papel”...
c. Resta dizer que o problema que descrevo é actualíssimo
e que tem incidência em domínios que extravasam completamente o campo da
técnica jurídica para entrar em questões políticas fundamentais. Vejamos por
exemplo a questão da construção de uma esquerda europeia, tão debatida neste
blogue. Não será a defesa cega de direitos
adquiridos – em detrimento da única questão que devia interessar as forças
progressistas, que consiste em avançar para uma maior igualdade efectiva entre
os povos europeus – um dos principais obstáculos que explicam a completa
paralisia das forças de esquerda neste momento ? Não haverá aqui um logro utilizado
pelas forças conservadoras de direita, que se contentam muito bem com um
mercado europeu aberto, mas que não querem de maneira nenhuma o aprofundamento
da Europa política, pois sabem que ele é condição necessária para exigir mais
igualdade ? Ora foi pecisamente a aproximação aos níveis de vida dos países
mais desenvolvidos – logo uma igualização
tendencial, pelo menos a nível material – que levou os povos da Europa do sul a
subscrever maioritariamente o projecto de integração europeia. Nestas
condições, o que deve ser hoje considerado mais “de esquerda” : trabalhar para que
a dinâmica integradora incorpore verdadeiramente o princípio de igualdade (que
faz parte da genética do projecto europeu), de forma a que as populações dos
países mais pobres não fiquem materialmente prejudicadas, ou bloquear a
integração em nome do respeito de direitos
adquiridos, correndo o risco de criar uma situação em que esses mesmos
direitos serão desprovidos de efectividade ? Este é que devia ser o debate de
fundo sobre a Europa entre pessoas de esquerda. Mas, curiosamente, neste
debate, são muitas vezes aqueles que se afirmam mais radicais que defendem um
ponto de vista formalista e conservador, ponto de vista que assume por vezes a
forma de um “nacionalismo” nostálgico, como se fizesse algum sentido moldar a
sociedade igualitária e justa a que aspiramos sobre o exemplo do nosso
passado...
[1] As medidas em causa abrangiam
diversas reduções remuneratórias (com uma lógica de progressividade) e a
suspensão dos subsídios de férias e de natal. Os acórdãos censuram também
outras medidas orçamentais, por exemplo medidas restritivas para pensionsistas
(antigos trabalhadores do sector público empresarial ou não). Para maior
clareza, achei melhor cingir-me às medidas que restringem as remurerações dos
agentes públicos, que permitem expor com mais nitidez o conflito entre a lógica
contratual e a lógica estatutária.
[2] Sobre
o assunto, pode consultar-se o estudo de António Martins A jurisprudência constitucional sobre as leis do Orçamento do Estado e
(in)constitucionalidade do OE 2014, Coimbra, Almedina, Abril 2014, com um
interessante prefácio de António Manuel Hespanha. Este estudo não contempla o
último dos acórdãos aqui tratados.
[3] O
presente texto é postado antes de eu ter lido na íntegra o acórdão do Tribunal
Constitucional de 14 de Agosto de 2014 (em fiscalização preventiva). À primeira
vista, as conclusões deste último acórdão não me parecem desmentir
fundamentalmente a análise proposta.
[4] Esta é, pelo menos, a concepção
tradicional. Em rigor, há que sublinhar que existe em Portugal uma tendência recente para pôr em causa esta
concepção tradicional. Por exemplo, criou-se em 2008 o “contrato de trabalho em
funções públicas”, figura híbrida que apesar de tudo, tanto quanto percebo,
continua a pertencer à competência dos tribunais administrativos. O resultado
desta inovação é levantar questões legítimas de igualdade entre os diversos
agentes da administração pública, como as levantadas pelo Miguel Madeira neste post.
[5] Mas,
se elas não existissem, para que é que precisaríamos de funcionários ?
[6] Já leram a tradução da obra-prima de
Cervantes pelo Miguel Serras Pereira, não leram ?
[7] Cf. Acórdão n° 413/2014, p. 41 e s.
Como disse, esta afirmação causa-me uma certa perplexidade, pelo menos
tratando-se de medidas legislativas sobre remuneração de agentes públicos.
[8] O
Conselho de Estado (Conseil d’Etat) é
a mais alta instância com competência em matéria de direito administrativo em
França. Corresponde ao Supremo Tribunal Administrativo português.
[9] Le droit transitoire, conflits des lois dans
le temps Dalloz et Sirey 1960, reed. Dalloz 2008.
[10] Isto
é, desde que a própria lei não contenha disposições expressamente retroactivas
(com efeito, a retroactividade não é vedada de uma maneira geral, só o é nalgumas
matérias, nomeadamente em direito penal).
[11]
Estas distinções estão claramente reflectidas no artigo 12° do código civil
português : « 1. A lei só
dispõe para o futuro ; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva,
presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei
se destina regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade
substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se,
em caso de dúvida, que só visa os factos novos ; mas, quando dispuser
directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos
factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias
relações já constituídas, que subsistam à data da entrada em vigor ».
[12] O João Valente Aguiar que
me desminta se fôr caso disso.
30/08/14
A crise em França
por
Jorge Valadas
A
crise lenta epersistente do sistema capitalista global acarreta, entre outros
aspectos, uma crise da representatividade e uma decadência contínua da classe
política, com as suas manifestações diversas de mediocridade, corrupção,
incompetência e impotência face aos efeitos da lógica da produção de lucro, bem
comode eficácia relativamente aos interesses do capitalismo especulativo.
Em
França, o espectáculo político continua a ser exemplar. O gangue dos patetas
socialistas que substituiu o agitado e agressivo clã sarkozista tirou do chapéu
um número de magia: a continuidade de uma mesma política ao serviço dos
interesses capitalistas. O governo actual, que dá pelo nome de socialista, tem
mesmo vindo a tomar «medidas que nenhum dos governos de direita anteriores se
atreveu a tomar», para citar a excelente análise de Nicole Thé no texto que aqui se reproduz. E o que se promete para
amanhã é a mesma receita.
Tanto
assim é que se tornou hoje voz comum dizer que, afinal, se votou socialista
para que o patronato controle directamente o governo! Mais uma dolorosa
revelação deste sistema representativo, que de democracia
não tem nada. Ou então, como diziam os jovens de Occupy, «That’s what democracy
looks like!» (É isto a democracia !). A deles!
A crise em França
Quando chega ao poder, propulsionado pela
dinâmica anti-Sarkozy e a defecção de DSK, Hollande, embora ligado pessoalmente
a altos dirigentes da banca e da grande indústria, está no seu papel de
representante da esquerda e tem de dar garantias ao seu eleitorado. Sem nunca
pôr em causa a necessidade do rigor orçamental nos termos definidos pela UE,
ele anuncia medidas de retoma de tipo keynesiano (criação de empregos na
Educação Pública, apoio ao investimento produtivo), prometendo «inverter a
curva do desemprego em 2013», e dá mesmo a impressão de querer retomar a
política social-democrata de redistribuição das riquezas anunciando um forte
agravamento fiscal para os mais ricos e a vontade de envolver a União Europeia
na luta contra os paraísos fiscais.
Passado menos de um ano, a desilusão é
geral. Os paraísos fiscais continuam de boa saúde, a fiscalidade sobre os altos
rendimentos pouco aumentou, a criação de empregos na Educação traduz-se
essencialmente em meras reestruturações. Quanto à «recuperação produtiva»
encarnada pelo ministro Montebourg, ela não impediu o encerramento de múltiplas
empresas, designadamente as últimas siderurgias da Lorena, as fábricas PSA de
Aulnay na região parisiense, a Continental no Oise, a Doux na Bretanha, etc.
Entretanto, a situação económica continua a degradar-se: em finais de 2013, a
curva do desemprego, após uma ligeira estabilização devido ao efeito do
regresso dos «empregos jovens», volta a subir, atingindo o limiar oficial de
seis milhões de desempregados.
Como explicar isto? Na grande competição
mundial intercapitalista, a França perde incontestavelmente terreno, embora
continue a querer afirmar-se como grande potência no plano militar. É verdade
que as multinacionais bancárias e industriais estão de boa saúde, mas as estratégias
de investimento ou de especulação já não são condicionadas por elas à escala
nacional. As numerosas pequenas e médias empresas, que constituem o essencial
do tecido económico e que estão sobretudo orientadas para o mercado interno
vêem-se estranguladas pela rarefacção do crédito bancário. Por outro lado, o
equipamento industrial é vetusto, devido ao subinvestimento crónico. Assim, a
desindustrialização continua, e a criação de postos de trabalho (que está longe
de compensar as perdas) já quase só abrange o sector terciário, com os
seus empregos de salários baixos e
prestações sociais reduzidas. O instrumento do fisco, sem o qual não há
intervenção do Estado, encontra-se fortemente fragilizado: as grandes empresas
escapam em grande parte ao imposto, colocando os seus lucros em paraísos
fiscais, e as grandes fortunas exploram todas as soluções de expatriação para
escapar às ameaças da fiscalidade. Ao mesmo tempo, a dívida pública continua a
crescer, nomeadamente sob o efeito da alta contínua do desemprego.
Poder-se-á então dizer que, num
contexto de economia globalizada, as receitas keynesianas contra a crise, e,
por via de consequência, as receitas social-democratas de redistribuição, se
encontram forçosamente postas em causa? A questão está em aberto, mas não
retira nada ao facto de as modalidades de pilotagem da economia pelo poder
estarem sobretudo condicionadas pela relação de forças entre as classes. Ora,
da parte da classe trabalhadora, aquela que poderia, através da luta, obrigar o
governo quanto mais não fosse a resistir às eternas lamentações patronais
relativamente ao custo do trabalho, a pressão é bem fraca. Nenhum dos grandes
sindicatos tem a intenção de terçar armas com um governo de esquerda que
multiplica as comissões e os círculos de negociação, e que tem o cuidado de
associar as suas reformas regressivas a novas formas de cogestão. Os seus
protestos passaram a ser puramente formais: as manifestações contra a nova
reforma das pensões de 2013 e contra a ANI (ver
adiante) quase que só mobilizaram os dirigentes e delegados sindicais – o
mínimo para manter a ficção necessária dos sindicatos porta-vozes do mundo do
trabalho. Mas, do lado da base, também não se vê nenhuma pressão significativa
em prol de uma mobilização capaz de fazer sair os assalariados do seu estado de
fragmentação, unindo-os em torno de uma luta comum. A última grande batalha
deste género, que foi travada contra a reforma sarkoziana das pensões (2010),
saldou-se por uma derrota que só provocou a desmoralização dos mais combativos
e o aumento do sentimento de impotência. Este sentimento, em pleno reino
generalizado do medo, mantém o mundo do trabalho num estado essencialmente
depressivo – de tal modo que são agora os suicídios e o «sofrimento no
trabalho» que fornecem matéria de estudo aos sociólogos e aos serviços de
consultadoria de gestão dos «recursos humanos» …
É verdade que esta atonia de conjunto não
impede as reacções localizadas. No sector público, são paradoxalmente as
escolas onde se observam movimentos grevistas: em 2013, a fúria suscitada por
uma reforma dos ritmos escolares imposta de cima, sem ter em conta as condições
concretas locais, acabou por se esgotar em negociações ao nível municipal;
actualmente verificam-se mobilizações esparsas e sem eco mediático contra a
penúria de professores e de meios de que sofrem, na realidade, mais do que
nunca os estabelecimentos dos departamentos mais mal apetrechados (para os
quais esta reforma representará aliás um recuo suplementar). No sector
industrial, os inúmeros «planos sociais» e restruturações fizeram nascer várias
lutas tenazes contra os despedimentos que amiúde saíram do quadro bem
comportado da negociação sindical. O ministro Montebourg (esquerda do PS) fez
continuamente o papel de bombeiro, mas foi sobretudo nos casos em que a luta
assumiu uma forma mais radical que se conseguiram impor mais cedências aos
detentores do capital. Com efeito, com excepção de alguns casos em que a
recuperação da empresa pelos trabalhadores foi encarada seriamente (SeaFrance e
SNCM), estas lutas travadas em condições desesperadas tiveram sempre como única
perspectiva conseguir a diminuição dos despedimentos forçados e obter
compensações financeiras que permitissem enfrentar um longo período de
desemprego. A perspectiva de constituir uma frente comum capaz de fazer a
diferença na relação de forças à escala nacional, embora tenha sido
contemplada, nunca teve o vigor suficiente para se concretizar (apesar de
algumas tentativas de convergência na acção levadas a cabo com maior ou menor
convicção por sindicalistas da CGT). Finalmente, a única excepção a este
fenómeno de dispersão das lutas dos trabalhadores atingidos pela crise foi a
muito vilipendiada revolta dos «gorros vermelhos», que aproveitou a hostilidade
histórica da Bretanha contra o poder central parisiense para fundir raivas
sectoriais num movimento que promoveu manifestações conjuntas de todas as
camadas da população – sem no entanto conseguir manter-se para além do recuo
governamental sobre aquilo que lhe serviu de detonador: a instauração da
«ecotaxa».
Mas o governo de coligação PS-Verdes
procurou fazer alguma coisa para alterar esta relação de forças mais
desfavorável do que nunca ao mundo do trabalho? Sim, introduziu reformas. Com
eficácia e num tempo recorde. Dando instrumentos legislativos decisivos… ao
patronato.
29/08/14
Da insignificância das alternativas à alternativa da insignificância
por
Miguel Serras Pereira
O vazio hiante das declarações programáticas de António Costa — sendo que exactamente o mesmo se poderia dizer das de Seguro — parece, neste exercício crítico de Estela Serrano, incentivar, ou servir de pretexto, a uma curiosa hermenêutica que o apresenta como alternativa política última e profunda a qualquer orientação política definida. Só ficamos sem saber o que mais admirar se a inexaurível flexibilidade não tanto táctica como verdadeiramente estratégica do candidato que se propõe conduzir o PS não importa onde, tornando a sua direcção uma questão menor contanto que adoptada sob a sua presidência, se a radical desconstrução preventiva das próprias condições elementares do debate político e da tomada de posições alternativas que a comentadora e apoiante do candidato valoriza na insignificância das suas (dele) declarações e discurso, assim superando a insignificância das alternativas numa apologia da alternativa da insignificância. Parafraseando a exegese que Filipe Nunes Vicente propõe do texto de Estela Serrano, só podemos concluir que as alternativas são uma maçada: deviam ser proibidas. E, de caminho, ou consequentemente, o juízo político também.
27/08/14
O ISIS e os outros muçulmanos
por
Miguel Madeira
Ultimamente, têm surgido alegações que os "muçulmanos moderados" não condenam e/ou não se distanciam do ISIS.
Já muita gente desmontou essa conversa, dando exemplos de muçulmanos a protestar contra o ISIS e referindo que a maior parte das vitimas do ISIS são outros muçulmanos; mas eu iria ainda mais longe - não só a maioria esmagadora das vitimas do ISIS são muçulmanos, como quase de certeza que a maioria esmagadora de soldados do ISIS que têm sido mortos em combate têm sido mortos por outros muçulmanos: quem é que está a lutar contra o ISIS? Antes dos bombardeamentos norte-americanos, eram os exércitos da Síria, do Iraque, do Irão, do Líbano, e mais as milícias curdas e do Hezbollah, provavelmente quase todos muçulmanos (poderá haver muitos cristãos no exército libanês e alguns no sírio, mas de certeza que os muçulmanos são a maioria esmagadora do total das forças anti-ISIS).
Aliás, pode haver excepções, mas dá-me a ideia que essa conversa de que "os muçulmanos não condenam o ISIS" vem muitas vezes de pessoas que, em politica externa, defendem a linha "o que é preciso é ação, não basta palavras". Mas neste caso, tudo se inverte - o que lhes interessa é que os outros muçulmanos emitam palavras condenando o ISIS, não interessando para nada as balas e bombas que há meses (ou anos, se contarmos com as organizações que lhe deram origem) os outros muçulmanos dirigem contra o ISIS.
Um caso que me parece particularmente desfasado deste argumento é este post de José Simões, onde o autor critica "os ayatollahs e os mullahs, sempre tão lestos com fatwas de cada vez que alguém escreve um livro ou desenha um cartoon, [que não] se lembram agora de publicar, urbi et orbi, uma"; se o autor tivesse falado em "imãs, sheiks e ulemas" ainda poderia fazer algum sentido - mas ir buscar nomes de autoridades religiosas especificas do xiismo ("ayatollah" é um título xiita; "mullah" não é especifico do xiismo, mas sendo um termo usado tipicamente no Irão, acaba por estar também mais associado ao xiismo) torna a coisa completamente sem sentido, já que o inimigo principal do ISIS são exatamente os xiitas e está mais ou menos comprovado que o Irão (um país governado pelos ayatollahs e pelos mullahs) tem tropas no Iraque a apoiar o governo de Bagdade contra o ISIS.
Finalmente noto que, quando há umas semanas, houve a intervenção norte-americana em defesa dos yazidis, não me parece que tenha aparecido alguém a querer aplicar-lhes o mesmo critério, exigindo que os yazidis moderados condenassem os atos dos yazidis radicais (e estamos a falar de uma religião que, antes dos últimos acontecimentos, praticamente só era conhecida no resto do mundo pelos "crimes de honra" em que alguns dos seus crentes se envolviam)
Já muita gente desmontou essa conversa, dando exemplos de muçulmanos a protestar contra o ISIS e referindo que a maior parte das vitimas do ISIS são outros muçulmanos; mas eu iria ainda mais longe - não só a maioria esmagadora das vitimas do ISIS são muçulmanos, como quase de certeza que a maioria esmagadora de soldados do ISIS que têm sido mortos em combate têm sido mortos por outros muçulmanos: quem é que está a lutar contra o ISIS? Antes dos bombardeamentos norte-americanos, eram os exércitos da Síria, do Iraque, do Irão, do Líbano, e mais as milícias curdas e do Hezbollah, provavelmente quase todos muçulmanos (poderá haver muitos cristãos no exército libanês e alguns no sírio, mas de certeza que os muçulmanos são a maioria esmagadora do total das forças anti-ISIS).
Aliás, pode haver excepções, mas dá-me a ideia que essa conversa de que "os muçulmanos não condenam o ISIS" vem muitas vezes de pessoas que, em politica externa, defendem a linha "o que é preciso é ação, não basta palavras". Mas neste caso, tudo se inverte - o que lhes interessa é que os outros muçulmanos emitam palavras condenando o ISIS, não interessando para nada as balas e bombas que há meses (ou anos, se contarmos com as organizações que lhe deram origem) os outros muçulmanos dirigem contra o ISIS.
Um caso que me parece particularmente desfasado deste argumento é este post de José Simões, onde o autor critica "os ayatollahs e os mullahs, sempre tão lestos com fatwas de cada vez que alguém escreve um livro ou desenha um cartoon, [que não] se lembram agora de publicar, urbi et orbi, uma"; se o autor tivesse falado em "imãs, sheiks e ulemas" ainda poderia fazer algum sentido - mas ir buscar nomes de autoridades religiosas especificas do xiismo ("ayatollah" é um título xiita; "mullah" não é especifico do xiismo, mas sendo um termo usado tipicamente no Irão, acaba por estar também mais associado ao xiismo) torna a coisa completamente sem sentido, já que o inimigo principal do ISIS são exatamente os xiitas e está mais ou menos comprovado que o Irão (um país governado pelos ayatollahs e pelos mullahs) tem tropas no Iraque a apoiar o governo de Bagdade contra o ISIS.
Finalmente noto que, quando há umas semanas, houve a intervenção norte-americana em defesa dos yazidis, não me parece que tenha aparecido alguém a querer aplicar-lhes o mesmo critério, exigindo que os yazidis moderados condenassem os atos dos yazidis radicais (e estamos a falar de uma religião que, antes dos últimos acontecimentos, praticamente só era conhecida no resto do mundo pelos "crimes de honra" em que alguns dos seus crentes se envolviam)
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