A morte do General Pires Veloso depoletou uma vaga de homenagens póstumas e elogios fúnebres particularmente imaginativos que, não se distinguindo pelo rigor factual ou pela sobriedade analítica, permitem compreender a persistência de um núcleo duro de valores partilhado por diferentes sensibilidades de direita, que vão da invenção de uma sociedade civil robusta e com fortes valores liberais ao branqueamento histórico do fascismo português, numa sucessão de projecções mitológicas e narrativas heróicas fundamentalmente empenhadas em fornecer à pacata burguesia indígna algum consolo épico, nos conturbados tempos que atravessa a pátria.
Mário Tomé já veio a público desmontar a manobra de efabulação em curso com os argumentos próprios de quem viveu por dentro os acontecimentos de 1975. Não sendo esse o meu caso, todos estes canhestros salamaleques ao "vice-rei do Norte" transportaram-me de volta a uma tarde na Torre do Tombo e à correspondência enviada ao Conselho da Revolução, ali depositada num fundo próprio. Estava-se em Outubro de 1975 e a comissão sindical da Têxtil Luso-Galaica, uma empresa de fiação e tinturaria sediada em Fiães, escrevia ao Ministério do Trabalho (que por sua vez deu conhecimento aos militares do Conselho da Revolução) denunciando o desvio de milhares de contos levado a cabo pelos proprietários (que haviam abandonado a fábrica) e solicitando uma peritagem por um técnico do Ministério das Finanças às contas da empresa. Mais informavam que o seu gerente, que se mantivera em funções, não apenas se recusava a pagar os salários aos trabalhadores como os ameaçara já com armas de fogo. O resto antecipava os quarenta anos seguintes:
Da Região Militar do Norte, a quem pedimos a apreensão das armas, não nos foi dada nenhuma resposta, é certo que não esperávamos nada a nosso favor. Pois desde que veio o Sr. Brigadeiro Pires Veloso, a defesa do pão dos trabalhadores deixou de interessar a esse comando, em vez de pão, este Comandante, como no tempo do fascismo, manda bater nos trabalhadores, como aconteceu junto ao CICAP, trabalhadores foram agredidos por soldados, que batiam às ordens do Sr. Pires Veloso.Ainda há pouco tempo, quando descobríamos sabotagens e desvios de milhares de contos, como o nosso caso, existia no Quartel General a 5ª Secção, que logo que tomava conhecimento das sabotagens, certificava-se da sua existência e agia imediatamente, em defesa do pão dos trabalhadores e da economia nacional. Parece que foi desfeita esta secção, pelo menos agora não actua. Quer dizer, os patrões podem levar o resto do dinheiro para fora do país e lançar os trabalhadores na miséria que o Sr. Veloso apoia.[...]Será que o Sr. Ministro Tomás e o Sr. Dr. Marcelo, fazem ideia do que é chegarmos a casa e os filhos pedirem-nos pão e não o termos para lhes dar? É que nós já há largas semanas que não recebemos féria e ainda ganhamos 3.300$00. Basta que nos garantam rama para trabalhar, e um pequeno empréstimo para começar, que nós faremos o resto. Desloquem-se à nossa firma para ver se temos razão ou não.
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