A
crise lenta epersistente do sistema capitalista global acarreta, entre outros
aspectos, uma crise da representatividade e uma decadência contínua da classe
política, com as suas manifestações diversas de mediocridade, corrupção,
incompetência e impotência face aos efeitos da lógica da produção de lucro, bem
comode eficácia relativamente aos interesses do capitalismo especulativo.
Em
França, o espectáculo político continua a ser exemplar. O gangue dos patetas
socialistas que substituiu o agitado e agressivo clã sarkozista tirou do chapéu
um número de magia: a continuidade de uma mesma política ao serviço dos
interesses capitalistas. O governo actual, que dá pelo nome de socialista, tem
mesmo vindo a tomar «medidas que nenhum dos governos de direita anteriores se
atreveu a tomar», para citar a excelente análise de Nicole Thé no texto que aqui se reproduz. E o que se promete para
amanhã é a mesma receita.
Tanto
assim é que se tornou hoje voz comum dizer que, afinal, se votou socialista
para que o patronato controle directamente o governo! Mais uma dolorosa
revelação deste sistema representativo, que de democracia
não tem nada. Ou então, como diziam os jovens de Occupy, «That’s what democracy
looks like!» (É isto a democracia !). A deles!
A crise em França
Quando chega ao poder, propulsionado pela
dinâmica anti-Sarkozy e a defecção de DSK, Hollande, embora ligado pessoalmente
a altos dirigentes da banca e da grande indústria, está no seu papel de
representante da esquerda e tem de dar garantias ao seu eleitorado. Sem nunca
pôr em causa a necessidade do rigor orçamental nos termos definidos pela UE,
ele anuncia medidas de retoma de tipo keynesiano (criação de empregos na
Educação Pública, apoio ao investimento produtivo), prometendo «inverter a
curva do desemprego em 2013», e dá mesmo a impressão de querer retomar a
política social-democrata de redistribuição das riquezas anunciando um forte
agravamento fiscal para os mais ricos e a vontade de envolver a União Europeia
na luta contra os paraísos fiscais.
Passado menos de um ano, a desilusão é
geral. Os paraísos fiscais continuam de boa saúde, a fiscalidade sobre os altos
rendimentos pouco aumentou, a criação de empregos na Educação traduz-se
essencialmente em meras reestruturações. Quanto à «recuperação produtiva»
encarnada pelo ministro Montebourg, ela não impediu o encerramento de múltiplas
empresas, designadamente as últimas siderurgias da Lorena, as fábricas PSA de
Aulnay na região parisiense, a Continental no Oise, a Doux na Bretanha, etc.
Entretanto, a situação económica continua a degradar-se: em finais de 2013, a
curva do desemprego, após uma ligeira estabilização devido ao efeito do
regresso dos «empregos jovens», volta a subir, atingindo o limiar oficial de
seis milhões de desempregados.
Como explicar isto? Na grande competição
mundial intercapitalista, a França perde incontestavelmente terreno, embora
continue a querer afirmar-se como grande potência no plano militar. É verdade
que as multinacionais bancárias e industriais estão de boa saúde, mas as estratégias
de investimento ou de especulação já não são condicionadas por elas à escala
nacional. As numerosas pequenas e médias empresas, que constituem o essencial
do tecido económico e que estão sobretudo orientadas para o mercado interno
vêem-se estranguladas pela rarefacção do crédito bancário. Por outro lado, o
equipamento industrial é vetusto, devido ao subinvestimento crónico. Assim, a
desindustrialização continua, e a criação de postos de trabalho (que está longe
de compensar as perdas) já quase só abrange o sector terciário, com os
seus empregos de salários baixos e
prestações sociais reduzidas. O instrumento do fisco, sem o qual não há
intervenção do Estado, encontra-se fortemente fragilizado: as grandes empresas
escapam em grande parte ao imposto, colocando os seus lucros em paraísos
fiscais, e as grandes fortunas exploram todas as soluções de expatriação para
escapar às ameaças da fiscalidade. Ao mesmo tempo, a dívida pública continua a
crescer, nomeadamente sob o efeito da alta contínua do desemprego.
Poder-se-á então dizer que, num
contexto de economia globalizada, as receitas keynesianas contra a crise, e,
por via de consequência, as receitas social-democratas de redistribuição, se
encontram forçosamente postas em causa? A questão está em aberto, mas não
retira nada ao facto de as modalidades de pilotagem da economia pelo poder
estarem sobretudo condicionadas pela relação de forças entre as classes. Ora,
da parte da classe trabalhadora, aquela que poderia, através da luta, obrigar o
governo quanto mais não fosse a resistir às eternas lamentações patronais
relativamente ao custo do trabalho, a pressão é bem fraca. Nenhum dos grandes
sindicatos tem a intenção de terçar armas com um governo de esquerda que
multiplica as comissões e os círculos de negociação, e que tem o cuidado de
associar as suas reformas regressivas a novas formas de cogestão. Os seus
protestos passaram a ser puramente formais: as manifestações contra a nova
reforma das pensões de 2013 e contra a ANI (ver
adiante) quase que só mobilizaram os dirigentes e delegados sindicais – o
mínimo para manter a ficção necessária dos sindicatos porta-vozes do mundo do
trabalho. Mas, do lado da base, também não se vê nenhuma pressão significativa
em prol de uma mobilização capaz de fazer sair os assalariados do seu estado de
fragmentação, unindo-os em torno de uma luta comum. A última grande batalha
deste género, que foi travada contra a reforma sarkoziana das pensões (2010),
saldou-se por uma derrota que só provocou a desmoralização dos mais combativos
e o aumento do sentimento de impotência. Este sentimento, em pleno reino
generalizado do medo, mantém o mundo do trabalho num estado essencialmente
depressivo – de tal modo que são agora os suicídios e o «sofrimento no
trabalho» que fornecem matéria de estudo aos sociólogos e aos serviços de
consultadoria de gestão dos «recursos humanos» …
É verdade que esta atonia de conjunto não
impede as reacções localizadas. No sector público, são paradoxalmente as
escolas onde se observam movimentos grevistas: em 2013, a fúria suscitada por
uma reforma dos ritmos escolares imposta de cima, sem ter em conta as condições
concretas locais, acabou por se esgotar em negociações ao nível municipal;
actualmente verificam-se mobilizações esparsas e sem eco mediático contra a
penúria de professores e de meios de que sofrem, na realidade, mais do que
nunca os estabelecimentos dos departamentos mais mal apetrechados (para os
quais esta reforma representará aliás um recuo suplementar). No sector
industrial, os inúmeros «planos sociais» e restruturações fizeram nascer várias
lutas tenazes contra os despedimentos que amiúde saíram do quadro bem
comportado da negociação sindical. O ministro Montebourg (esquerda do PS) fez
continuamente o papel de bombeiro, mas foi sobretudo nos casos em que a luta
assumiu uma forma mais radical que se conseguiram impor mais cedências aos
detentores do capital. Com efeito, com excepção de alguns casos em que a
recuperação da empresa pelos trabalhadores foi encarada seriamente (SeaFrance e
SNCM), estas lutas travadas em condições desesperadas tiveram sempre como única
perspectiva conseguir a diminuição dos despedimentos forçados e obter
compensações financeiras que permitissem enfrentar um longo período de
desemprego. A perspectiva de constituir uma frente comum capaz de fazer a
diferença na relação de forças à escala nacional, embora tenha sido
contemplada, nunca teve o vigor suficiente para se concretizar (apesar de
algumas tentativas de convergência na acção levadas a cabo com maior ou menor
convicção por sindicalistas da CGT). Finalmente, a única excepção a este
fenómeno de dispersão das lutas dos trabalhadores atingidos pela crise foi a
muito vilipendiada revolta dos «gorros vermelhos», que aproveitou a hostilidade
histórica da Bretanha contra o poder central parisiense para fundir raivas
sectoriais num movimento que promoveu manifestações conjuntas de todas as
camadas da população – sem no entanto conseguir manter-se para além do recuo
governamental sobre aquilo que lhe serviu de detonador: a instauração da
«ecotaxa».
Mas o governo de coligação PS-Verdes
procurou fazer alguma coisa para alterar esta relação de forças mais
desfavorável do que nunca ao mundo do trabalho? Sim, introduziu reformas. Com
eficácia e num tempo recorde. Dando instrumentos legislativos decisivos… ao
patronato.
Instrumentos que, sob a capa da «concertação» e do «diálogo social»,
irão fazer inscrever na lei a degradação das relações de forças registada no
terreno. O acordo nacional interprofissional (ANI), negociado em Janeiro de
2013 e adoptado sob a forma de lei em Junho, é um modelo de duplicidade: sob o
pretexto de tornar menos atractivo o recurso aos contratos precários, ele
instaura um CDI (contrato de duração indeterminada) «ejectável» com a isenção
de encargos para os menos de 26 anos e prevê a experimentação de um contrato
eventual; ao pretender limitar o tempo parcial, flexibiliza-o permitindo a sua
anualização à vontade do empregador; para manter «direitos de formação» durante
a carreira, ele reintroduz o equivalente numérico da caderneta operária do
século XIX … Em contrapartida, para se desfazer dos trabalhadores estáveis,
nada de floreados: os procedimentos de despedimento colectivo e o recurso ao
desemprego social foram simplificados, a mobilidade foi imposta; mais grave do
que isso, em caso de «grandes dificuldades conjunturais», o contrato de
trabalho deixou de poder ser invocado perante o empregador que quiser baixar os
salários e aumentar o tempo de trabalho. Trata-se de medidas que nenhum dos
governos de direita anteriores se atreveu a tomar, e que, ao reduzir a migalhas
o direito do trabalho que foi sendo construído e aperfeiçoado no último meio
século, atacam frontalmente o que resta de capacidade de resistência da classe
trabalhadora. Aliás, a reforma da inspecção do trabalho em curso virá completar
o quadro com a retirada da autonomia jurídica do inspector e o enfraquecimento
da sua ligação com os trabalhadores, que muitas vezes não possuem mais nenhum
outro recurso para além dele contra o arbítrio patronal. E o mesmo se aplica à
reforma dos tribunais arbitrais actualmente na gaveta.
Neste contexto, não é de surpreender que
Hollande, confrontado com o retorno em flecha da alta do desemprego e recordes
de impopularidade nas sondagens, se sinta com as mãos livres para assumir
abertamente o papel de um Schröder francês e fazer uma espécie de coming-out
pro-patronal declarando que o mais premente é agora a baixa dos «encargos» das
empresas. Porém, a lógica dos «presentes ao patronato» não data deste início de
ano de 2013. As isenções de cotizações sociais para os salários mais baixos
instituídas pela direita, que se elevam a dezenas de milhares de milhões de
euros por ano, não só nunca foram postas em causa, como, a partir de 2014, foi
concedido mais um «crédito fiscal» às empresas (de 10 mil milhões em 2014, e 20
mil milhões 2015). E o governo, não se atrevendo a atacar os rendimentos dos
mais ricos para financiar este buraco orçamental, transferiu sorrateiramente a
pressão fiscal para as camadas populares através do aumento do IVA – a que em
breve irá acrescentar uma fatia quando começar a submeter a imposto o
financiamento das prestações sociais de que alivou as empresas. Finalmente,
para encontrar os 50 mil milhões de euros de economias anunciadas para 2015-2017
em nome do rigor orçamental (para além dos 15 mil milhões já previstos no
orçamento de 2014), vai ser preciso lançar mão de todos os recursos. O primeiro
a ser alvo de cortes será o orçamento da segurança social: entre as medidas em
curso de negociação está a diminuição dos subsídios de desemprego; entre as
medidas «em estudo» estão restrições mais drásticas do que nunca no orçamento
da saúde. Além disso, vão-se tentar implementar medidas de «controlo da massa
salarial» da função pública – mas a este respeito há ainda muitas hesitações,
pois vai ser preciso tacto: está-se a entrar no couto privado dos sindicatos, e
os trabalhadores do sector público não estarão porventura tão desunidos que não
sejam capazes de reagir…
No entanto, na opinião da maioria dos economistas,
estas medidas de submissão às exigências patronais não serão certamente
suficientes para assegurar a retoma da economia nacional. Para a «esquerda da
esquerda», a explicação é simples: o PS – que também não soube resistir aos
imperativos europeus de redução da dívida pública e de
restruturação-privatização em nome da concorrência «livre e não falseada» (como
aconteceu, designadamente, com os caminhos-de-ferro) – converteu-se
definitivamente à ideologia liberal. Poderíamos ver aí, em termos mais gerais,
um comportamento de classe dirigente sem visão de futuro nem voluntarismo, que
agora deixa «o poder agir sem ela» (segundo a expressão de… Pasolini) –,
mas não remeterá isso de novo para a atonia de uma classe trabalhadora que,
depois de ter perdido todas as referências colectivas a um mundo igualitário e
solidário a construir, deixou de exercer a sua pressão junto daqueles que
pretendem representá-lo?
Seja como for, a arraia-miúda, uma vez
quebrado o seu fascínio por um Sarkozy que prometia um mundo melhor aos
apaixonados do trabalho, vê-se confrontada, como única perspectiva, com o mero
imperativo do rigor, em nome de «necessidades» de gestão sobre as quais não tem
nenhum controlo. Para as camadas mais pobres, isso significa concretamente
condições de vida cada vez mais difíceis. Com efeito, a polarização social
continua, o número de pobres aumenta e a crise da habitação agrava-se
constantemente, multiplicando o número de pessoas sem-abrigo e com habitações
precárias, tudo isto num contexto de reforço das desigualdades sociais e
territoriais. Para a grande massa da classe média, ainda muito pouco atingida
pela redução do nível de vida, isto só agudiza o grande medo de desqualificação
social, um medo alimentado por um desemprego jovem que não diminui. Ora, não se
vislumbra nenhuma dinâmica de luta colectiva sobre as grandes questões sociais
que possa conferir uma expressão política a este mal-estar, e a esquerda e a
extrema-esquerda militantes, já muito debilitadas, continuam a esgotar as suas
energias num eleitoralismo sem esperança e na denúncia impotente das traições
do poder. Embora as convicções anticapitalistas não estejam mortas, longe
disso, o seu único campo de intervenção actual são os combates «contra os
grandes projectos inúteis e impostos» (o mais emblemático dos quais é
Notre-Dame-des-Landes, no qual se concentra agora a esperança de fazer recuar o
governo). Estes combates têm o mérito de federar sensibilidades diversas e de
voltar a dar à ecologia a sua dimensão de luta, desde há muito sacrificada por
uns Verdes ávidos de lugares de poder e de notoriedade mediática, mas cuja
principal limitação é a de permanecerem cortados do mundo do trabalho.
Nestas circunstâncias, não surpreende que
as expressões reaccionárias do mal-estar social tenham tendência para ocupar o
espaço. Sobretudo porque o poder não se exime de jogar com elas para tentar
consolidar o seu campo e lhe fazer esquecer as suas abdicações no plano social[1]. Com efeito, é difícil não
pensar que a escolha do governo de empreender, num tal contexto, reformas «de
sociedade» como o direito ao «casamento homossexual» se tivesse destinado
sobretudo a desempenhar este papel de diversão. Teria ele previsto a vaga
impetuosa que provocou de tudo o que a França conta ainda de conservadorismos,
vaga esta (que se aproximou sem dúvida de um milhão de pessoas na segunda
«Manifestação para Todos», em Março de 2013) organizada por uma Igreja que,
apesar de uma descristianização quase completa, soube conservar e multiplicar
os seus pontos de apoio mediáticos e sociais? É legítimo duvidar, tendo em
conta o seu recuo recente a respeito do projecto de lei de legalização da
procriação medicamente assistida para os casais de mulheres.
De
qualquer modo, estas manifestações essencialmente conservadoras provocaram uma
radicalização de extrema-direita de uma franja da juventude e uma dinâmica de
convocação para a rua, através da Internet, das expressões direitistas mais
heteróclitas (entre as 100 a 150.000 pessoas do «Dia de Cólera»» [2 de
Fevereiro], havia católicos integristas, militantes de extrema direita,
«identitários», colectivos contra a «equitaxa», alguns gorros vermelhos,
colectivos anti-islão e apoiantes do anti-semita Dieudonné…). Estará esta
dinâmica destinada a durar e a ampliar-se, à imagem do fenómeno do Tea Party
nos Estados-Unidos? É pouco provável, dada a sua ausência total de coesão.
Tanto mais que o derivativo eleitoral vai poder voltar a funcionar em breve.
As sondagens não permitem vislumbrar
qualquer capitalização pela direita clássica desta onda reaccionária. Se algum
partido vier a beneficiar com ela será certamente a Frente Nacional. Em
primeiro lugar porque, apesar dos esforços, feitos inclusivamente no próprio
seio do governo, para captar votos xenófobos – o Ministro do Interior Manuel
Valls criou uma especialidade mediática de caça aos ciganos, que «não querem
integrar-se» –, o tema «há imigrantes a mais» continua fundamentalmente a ser o
da FN, que é quem o agita. Este discurso, embora não tenha grande fundamento (a
taxa de imigração é actualmente bem menor do que em outros países europeus),
joga com um medo difuso e renitente, uma vez que é alimentado pelo constante
ruído de fundo mediático de denúncia do atraso do Islão – que reproduz o
sentimento anti-árabe das velhas gerações – e pela atomização e desorientação
produzidas pela desagragação dos vínculos sociais. Além disso, o ódio contra a
classe politica («todos uns vendidos! ») que a FN tradicionalmente explora
não quebra, sobretudo depois da série de escândalos de corrupção que envolveram
nos últimos anos altas personalidades do Estado. Finalmente, a FN soube ajustar
o seu discurso, agora já não só anti-União Europeia e de saída do euro, mas
antiliberal e assente num programa de consolidação da protecção social (para os
Franceses…) – o que a diferencia claramente de todos os partidos de governo. O
êxito eleitoral daqueles que «nunca experimentámos» parece assim provável. No
entanto, ele não contribuirá para resolver a profunda crise de legitimidade da
democracia representativa que três decénios de liberalismo globalizado
agudizaram continuamente – mas isso é ainda outra história...
Entretanto, esta mobilização dos
conservadorismos e das direitas radicais, dado que, por agora não tem nenhum
contrapeso significativo nas lutas sociais, tende a dar nova vida à lógica
antifascista, contribuindo para manter, apesar de tudo, um certo consenso das
forças de esquerda em torno do poder. Mas até quando?
Nicole Thé (Paris, Fevereiro de 2014)
[1] Juntamente com o anti-racismo, os «direitos» do indivíduo parecem ser
o único registo ideológico que a esquerda institucional consegue agora
mobilizar.
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