Nunca se recomendará o bastante a leitura da notabilíssima mise au point raisonnée que António Guerreiro propõe no Público sobre o Estado de Israel, o sionismo e os seus críticos jdeus, a perversão nacionalista, etc., etc.
O proto-sionismo do século XIX foi um ideal que tornou possível a edificação de um Estado judaico. Na sua dimensão política – muitas vezes em divergência com o plano cultural e o religioso - o sionismo cumpriu-se com a proclamação do Estado de Israel em 1948, na sequência da resolução da ONU que consagrava a criação de dois Estados, um judeu e outro árabe palestiniano. O não cumprimento desta resolução – a par da expansão territorial que resulta em formas coloniais de expulsão e de repressão – tornou-se um argumento usado para pôr em causa a legitimidade de Israel.
Em síntese, eram estes os princípios fundamentais do sionismo das origens: resgatar o povo judeu de uma história de humilhação e perseguição (que viria a culminar no extermínio como “solução final”), possibilitando aos judeus da diáspora serem acolhidos como cidadãos desse Estado; conceder aos Judeus um território de pertença nacional ao qual eles estavam ligados pela história, pela memória e pelo mito, de modo a reconstruir aí uma comunidade baseada em princípios culturais e religiosos que no exílio tinham sido reprimidos ou aniquilados; construir uma sociedade justa e democrática, fundada em valores que, em muitos aspectos, estavam em ruptura com a sociedade capitalista (não esqueçamos que o movimento sionista teve origem em duas típicas ideologias políticas do século XIX, que hoje parecem contraditórias: o nacionalismo e o socialismo). Mas os ideais do sionismo dissolveram-se ou, pelo menos, têm sido submetidos a muitas interrogações. Um povo que se constitui como nação, uma nação que se organiza como Estado, um Estado que reclama um predicado étnico e/ou religioso - “judeu” - implantado num território que se quer identificado com a ancestralidade bíblica da “Terra de Israel”: tudo isto é mais do que suficiente para que o sionismo se tenha transformado em ideologia (e o anti-sionismo se tenha reconfigurado à sua imagem) e a questão de Israel, a sua legitimação histórico-político-jurídica, seja motivo de disputas intelectuais exacerbadas.
O grande teórico do sionismo político foi o austríaco Theodor Herzl, que publicou em 1896 o livro-panfleto O Estado dos Judeus (Der Judenstaat), com o qual apelava a uma acção política de grande alcance, mobilizadora do movimento sionista internacional: fundar uma pátria onde os Judeus poderiam ser acolhidos e ficar a salvo do “eterno anti-semitismo”. Como explicou Hannah Arendt, esta ideia de um anti-semitismo eterno (simétrico do “judeu eterno”) teve como consequência a incapacidade dos Judeus de apreender a diferença existente entre a oposição dos Árabes a um Estado judeu e o anti-semitismo europeu moderno. Ou então, como afirma outra judia, Judith Butler, essa indistinção passou a ser praticada estrategicamente pelos sionistas, como recurso retórico. O projecto sionista causou sempre resistência nalguns sectores judaicos, tanto naqueles, laicos ou religiosos, que entendiam o sionismo como um movimento cultural e não político, como da parte dos ortodoxos, que achavam que era preciso esperar pelo Messias e não trazer o que era da ordem da intervenção divina para o plano político da história profana. E também grandes teólogos e filósofos judaicos, não ortodoxos, se mostraram reticentes. É o caso de duas figuras eminentes do judaísmo, na Alemanha, os filósofos e teólogos Martin Buber (1878-1965; austríaco de nascimento) e Franz Rosensweig (1886-1929), que trabalharam em conjunto numa tradução da Bíblia para a língua alemã. O primeiro achava que os fins do sionismo político pervertiam o espírito do sionismo cultural. Por isso, ele e muitos membros da organização a que pertencia contestaram a legitimidade da declaração da soberania política de Israel como estado judaico, feita por Ben-Gurion em 1948. Rosensweig, por seu lado, via no sionismo uma forma laicizada do messianismo que tendia a privar o judaísmo da sua identidade religiosa e a normalizá-lo, através da reterritorialização e politização num Estado. Mais perto de nós, George Steiner representa uma terceira posição anti-sionista no interior do judaísmo: a do cosmopolitismo e universalidade que requerem a diáspora.
Para percebermos as razões e contradições do projecto sionista, assim como o seu aspecto poligonal, é imprescindível ler os escritos autobiográficos, alguma correspondência, as entrevistas e os artigos sobre Israel e o sionismo de Gershom Scholem (1897-1982), dado que se trata de um dos maiores intelectuais judeus do século XX e um “fundador”, de tal modo que as suas posições e intervenções ganharam um valor doutrinário e paradigmático, iluminando aquilo que a ideologia e as contingências de uma guerra sem solução entretanto obscureceram. Este berlinense de uma família judia completamente integrada e desligada da tradição (grande amigo, desde jovem, de Walter Benjamin, a quem tentou, em vão, aproximar das teses sionistas) emigrou para a Palestina em 1923 e tornou-se o maior estudioso da Cabala e da mística judaica. A sua decisão de emigrar para a Palestina, que ele justificou como sendo de ordem moral, isto é, ditada pelo imperativo de “renovar o judaísmo” e “edificar uma sociedade judaica”, teve a veemente oposição da família, que nunca viu com bons olhos a ligação do jovem Gerhard (na Palestina passou a chamar-se Gershom) aos círculos semitas de estudantes, quando estudava Matemática, na Universidade. Scholem instalou-se em Jerusalém porque tinha a esperança de que o sionismo – aquele em que acreditava, que ele dizia ser um “sionismo prático”, não messiânico, em que o lado político contava pouco ou, pelo menos, não era essencial – iria fazer renascer o judaísmo do seu interior. O renascimento e a renovação do judaísmo - que ele entendia como algo em movimento, em metamorfose - eram a sua principal motivação pois considerava que a diáspora o tinha conduzido a um “estado de morte clínica” e que só lá, na “Terra de Israel”, é que poderia reencontrar vida. Para ele, o judaísmo era algo vivo, destinado a transformar-se e impossível de ser encerrado numa definição dogmática. O sionismo devia então corresponder a esta necessidade de renascimento. A resistência de Scholem ao ambiente em que cresceu e foi educado e, depois, a sua partida para a Palestina foi uma reacção à assimilação judaico-alemã, em que ele não acreditava, considerando-a uma farsa. Para percebermos como a sua adesão ao sionismo perturba os quadros actuais de entendimento político-ideológico do fenómeno, devemos dizer que Scholem, na sua juventude, fazia parte da ala radical sionista mais à esquerda, o que significa – afirmou ele numa entrevista – “que nunca teria considerado como sionista alguém que não tivesse querido emigrar para a Palestina”. Até ao fim da vida, Scholem considerou-se um anarquista. E, numa entrevista, sublinhou que “uma grande parte dos representantes da edificação de Israel é o movimento operário e os seus representantes que fizeram o verdadeiro trabalho”.
Como é que ele encarou o problema do conflito entre judeus e árabes? Desde o início, isto é, desde a primeira vaga de emigração, nos anos 20 do século passado, conta Scholem, houve uma consciência desse problema e ele foi colocado pelos próprios sionistas. Mas a evolução, diz ele, era difícil de prever e “nós pensávamos que era possível ter uma discussão com os Árabes sem pôr em causa a paz, graças a um compromisso recíproco, uma interpenetração dos universos judeu e árabe”. A intenção inicial (pelo menos anterior a 1920), não era a de construir um Estado judaico, pensava-se antes numa sociedade mista. Porém, a partir de 1922, os revisionistas – como ficou conhecido um grupo no interior do movimento sionista – começaram a insistir num Estado nacional, recusando-se a aceitar uma mera “pátria nacional”. Em 1936, em plena segunda vaga de emigração de judeus para a Palestina, já não a dos idealistas dos anos de 1920 (a daqueles que, como Scholem, se consideravam a vanguarda do povo judeu), mas uma outra, iniciada na década seguinte, quando Hitler chegou ao poder, as tensões começaram a manifestar-se e a questão da edificação de um Estado começou a emergir com força. Foi então que Scholem percebeu que estava no centro de um grande problema histórico e que o sionismo não poderia ter a pretensão de ser a definitiva solução para o “problema judaico”. Em nenhum momento se refere à expulsão inicial de cerca de 800.000 palestinianos, mas em 1967 foi um dos sete primeiros professores da Universidade Hebraica de Jerusalém a assinar uma declaração contra a anexação da Cisjordânia e a manifestar o receio de que Israel se tornasse um gueto armado. E afirmou por várias vezes: “O ódio que têm por nós os Árabes não se assemelha ao ódio de Hitler, tem o seu fundamento num interesse real que nós lesámos”.
Reconhecendo muito embora as razões do lado árabe (ou melhor, considerando válidos e incontestáveis os argumentos de ambas as partes) e consciente de que era preciso encontrar uma forma de coexistência que o sionismo político tornava cada vez mais difícil, Scholem nunca renunciou à sua ideia de que o povo judeu tinha direito à “Terra de Israel” e de que sem sionismo não havia, para este povo, existência possível. Como podemos perceber, ele acreditava profundamente no povo judeu, isto é, na persistência de uma tradição nunca interrompida e presente de maneira muito viva durante toda a história de um exílio com mais de dois mil anos. Daí, a afirmação de que “a história dos Judeus foi a história da Bíblia e não a dos países onde eles viviam” e a de que há uma memória que está na base de uma “relação sentimental” com a Palestina e que funda um direito: “Aquele que se lembra, tem um direito”, disse Scholem citando Chaim Weizmann, primeiro presidente de Israel.
Sabemos como a reclamação da anterioridade bíblica passou a valer, no que diz respeito ao território, como título de propriedade. Ao mesmo tempo, ela instala a palavra “judeu” numa transcendência a-histórica e a comunidade judaica numa dimensão de eternidade. São precisamente estes axiomas – e as consequências que eles têm tido ao legitimarem a percepção de Israel de que há uma superioridade do seu direito, um “direito eterno” sobre o território designado pela imagem bíblica de “Terra de Israel” - que um historiador judeu da Universidade de Telavive, chamado Shlomo Sand, refuta num livro que desencadeou uma enorme polémica, publicado em 2008, com um título que vale quase como um manifesto (e citamo-lo na tradução francesa): Comment le peuple juif fut inventé. De la Bible au sionisme. A tese de Shlomo Sand é a de que essa entidade chamada “povo judeu” é um mito e uma construção ideológica, já que – argumenta ele longamente – não existe qualquer continuidade de sangue ou de modo de vida, nenhuma “unidade eterna”, entre a comunidade judaica e a nação de Israel, pelo que os Judeus, enquanto sujeito histórico, são uma ficção. Assim, diz Sand, afirmando-se Israel como o Estado dos Judeus de todo o mundo que decidam “regressar” (palavra que pressupõe que aquela é sua “terra ancestral”) e não como o de todos os cidadãos que lá vivem, estes descendentes imaginários de um ethnos detêm imediatamente privilégios que não são concedidos a muitos dos que vivem no território e se exprimem na língua oficial.
Relativamente às questões do sionismo, Scholem esteve quase sempre numa posição oposta à da sua amiga Hannah Arendt, que foi certamente a mais importante crítica do sionismo, muito especialmente do sionismo político. Um episódio significativo dessa divergência foi uma dura discussão epistolar entre ambos, em 1963, pouco tempo depois de ter sido publicado Eichmann em Jerusalém, que custou a Hannah Arendt uma grande hostilidade dos meios intelectuais judaicos. Scholem também contesta as teses de Arendt e as acusações que ela faz aos dirigentes judeus, imputando-lhes responsabilidades no Holocausto, e a certa altura escreve-lhe o seguinte: “Na tradição judaica existe um conceito, difícil de definir e, no entanto, bastante concreto, que se chama Ahabath Israel: ‘o amor pelo povo hebraico...’ Em ti, cara Hannah, não encontro vestígios dele”. Ao que a judia Hannah Arendt lhe respondeu: “Tens toda a razão, não me sinto animada por nenhum ‘amor’ desse género: na minha vida, nunca ‘amei’ nenhum povo ou colectividade. Amo ‘apenas’ os meus amigos e a única espécie de amor que conheço e em que acredito é o amor pelas pessoas”.
Hannah Arendt formulou, com grande peso, as razões pelas quais considerava que a fundação do Estado de Israel era ilegítima. Tentemos resumi-las: 1º) o sionismo trouxe consigo uma ideologia, uma Weltanschauung que, no fundo, ambiciona fornecer chaves de leitura da história; 2º) o sionismo ignora conscientemente toda a crítica ao Estado-nação (crítica que é central nas teorias políticas de H. Arendt sobre a modernidade); 3º) Israel não deveria ser um Estado judaico e todos os esforços para legitimar as suas reivindicações territoriais deram sempre origem à violência de Estado e a formas racistas de colonização; 4º) o objectivo de fundar um Estado judaico “como a França é francesa e a Inglaterra é inglesa” (Chaim Weizmann) só poderia ter como resultado “uma Esparta moderna, uma nação de dois milhões e meio de ‘iguais’ que reina sobre dois milhões de hilotas”; 5º) Só a loucura, escreve Arendt em Repensar o Sionismo, poderia “induzir a escolher uma política que confia na protecção de uma potência imperial longínqua e aliena os vizinhos”, deixando-lhes “a possibilidade de escolher entre a emigração voluntária e uma cidadania de segunda classe”; 6º) A guerra entre Israel e o mundo árabe não é uma guerra normal entre Estados, mas um enfrentamento entre dois grandes movimentos nacionais, entre dois povos que se combatem pela mesma terra, pelo que só pode encontrar solução no recíproco reconhecimento das duas partes.
Em suma: a constituição de um Estado judaico, nas condições em que foi realizada, representou para H. Arendt a derrocada de muitas esperanças e as suas posições são hoje reivindicadas por sectores pós-sionistas (que os sionistas dirão antes anti-sionistas) que defendem um Estado binacional (Arendt foi explícita nesta defesa, em 1947: um Estado binacional regido com base federal), onde seja possível a co-habitação, que Edward Said entendia como “convergência de exílios”. Uma ilustre representante do pós-sionismo é a filósofa americana, também judia, Judith Butler, bem conhecida na Europa e em todo o mundo pelas suas teorias do género. As suas críticas visam, antes de mais, aquilo que ela designa como “a violência de Estado e as modalidades coloniais de expulsão e de repressão”. Como observou o professor de ciência política da Universidade de Telavive, Amal Jamal, uma das trágicas contradições de Israel é o facto de ter suscitado novamente o conceito de má memória que os judeus conheceram bem, enquanto vítimas: o conceito de Lebensraum, de espaço vital, agora encarnado nas políticas sionistas do território. Butler procura demonstrar que é possível fazer essas críticas no interior de uma tradição judaica e que é preciso contestar a equação que assimila as críticas a Israel ao anti-semitismo e ao anti-judaísmo. A sua perspectiva crítica, muito baseada em Hannah Arendt, pretende retirar ao sionismo o controle sobre o judaísmo, “em nome do qual Israel pretende falar”. Para romper com essa identificação, Butler trabalha antes com o conceito de “judeicidade”, como categoria cultural, histórica e política, que vai buscar a Hannah Arendt. Butler visa, assim, pôr em discussão o direito do Estado de Israel de falar em nome dos valores judeus ou até do povo judeu; e sobretudo não deixar que se ratifique uma equação histórica que diz que ser judeu é ser sionista.
A dessionização de Israel, a separação da religião e do Estado, é um programa que já foi proposto por alguns críticos judeus do sionismo, que entendem que na base do problema e da guerra sem solução está o facto de o Estado ter sido fundado sobre um direito de sangue, reivindicando-se como “Estado judaico”, o que é pelo menos cinquenta por cento incompatível com uma moderna democracia liberal, se aceitarmos que é acertada a fórmula que um político israelita opositor do regime encontrou para o definir: “um Estado democrático para os Judeus e judeu para os Árabes”. Uma outra divisão cheia de consequências – das muitas com que o sionismo e o Estado de Israel têm sido obrigados a confrontar-se - foi uma vez formulada por Hannah Arendt: “Na Palestina temos uma nação judaica, na diáspora um povo judeu”.
31/08/14
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