Raimond Carver perdoar-me-ia o recurso ao título de um dos seus livros mais conhecidos.
Mas talvez não faça mal trazer alguma literatura para o debate. Diz o Pedro Viana, num comentário ao post do Miguel Madeira, que o BE - com base nas reservas do Miguel, quanto a uma integração forçada nas matas nacionais - defende o arrendamento forçado das terras dos proprietários absentistas.
Aqui é que eu julgo que devemos parar um pouco e tentar começar pelos conceitos. Afinal do que é que falamos quando falamos de proprietários absentistas? A questão não pode ser discutida sem que se reflicta sobre a estrutura da propriedade e sobre a forma como se concretiza a relação entre o Estado e a propriedade rústica em Portugal.
Não tenho visto no debate público quem olhe para o problema a partir desta perspectiva. Não será aqui que a questão será "escalpelizada", mas ficam algumas questões que podem ser úteis para debates futuros.
Num incêndio de grandes proporções ardem grandes propriedades e propriedades muito mais pequenas, sendo que isso varia em função das tipologias de propriedade característico de cada região do nosso País.
Os pequenos proprietários são os mais afectados porque muitos deles perdem as casas e as famílias quando não a própria vida. São regra geral aqueles que construíram a casa onde moram na propriedade que receberam dos país, e que ali praticam uma agricultura de subsistência ou que optaram por plantar espécies florestais que lhes permitem obter um reforço do escasso rendimento. São uma população idosa que regressou ao campo ou que dele nunca se separou.
Outros são pequenos proprietários e por razões associadas à idade e à situação financeira - sem rendimentos além de míseras pensões de duas ou três centenas de euros mensais, na melhor das hipóteses - não dispõem de condições para tirar qualquer proveito da propriedade tão pouco para as manter limpas.
Estes dois tipos de proprietários são os últimos que desempenham, com sacrífico da própria vida, como alguns descobrem tarde de mais, uma função real de defesa do território. São aqueles que em cada dia da sua vida defendem o território nacional e praticam o povoamento do interior. Recebem como única resposta do Estado uma ajuda ineficaz quando dele precisam. Depois da tragédia consumada assistem chocados, os que sobrevivem, a esta conversa acusatória dos proprietários absentistas, trauteada pelos figurões engravatados que se limitam a aparecer nos directos televisivos com um ar adequadamente consternado.
Há ainda os que abandonaram as freguesias e desde há muito residem nas cidades, afastados da terra. Muitos desses nem são capazes de encontrar a parcela do território de que são proprietários, por heranças partilhadas com irmãos e outros familiares.
A propriedade pode ainda estar na área de uma das reservas nacionais quer seja da Reserva Agrícola Nacional quer seja na Reserva Ecológica Nacional e, por essa via, o direito de propriedade estar severamente limitado pelas razões de interesse público que presidiram à formação das ditas Reservas.
O Estado não pode tratar toda esta gente como proprietários absentistas. O Estado supõe-se - embora seja apenas isso, uma suposição - é uma pessoa de bem.
A Floresta sendo um recurso estratégico e sendo maioritariamente privada tem que ter uma gestão eminentemente pública. Os terrenos florestais pagam um IMI miserável, o que favorece os grandes proprietários e os propietários especulativos - grupos financeiros, seguradoras - que compram propriedades rústicas nas periferias urbanas à espera da mudança de uso para urbano e da correspondente captura das mais-valias. Esse IMI muito baixo penaliza as receitas do Estado e os impostos pagos pelos proprietários urbanos, que são expoliados fiscalmente. É um prémio pago por todos em benefício dos grandes proprietários especulativos e dos grandes proprietários dos sectores mais rentáveis da fileira florestal.
O Estado que intega por decisão muitas vezes irrracionais, desprovidas da necessária fundamentação técico-cientifica, os terrenos rústicos na REN ou na RAN, não está disponível para pagar aos proprietários a menos-valia que essa reclassificação determinou. Pode-se argumentar que o Estado também não cobra mais-valias quando classifica os terrenos rústicos como urbanos. Pois não. Mas isso é um erro e um erro não justifica o outro. Acresce o facto de os beneficiários deste duplo equívoco serem, por paradoxal que pareça, os mesmos, sendo que em nenhum caso são os pequenos proprietários a beneficiar.
Limpar as propriedades cujos proprietários não dispõem de recursos próprios, compensar adequadamente os pequenos proprietários pela plantação de espécies que contribuam para um melhor ordenamento do espaço florestal e limpar as bermas das estradas e dos caminhos cumprindo legislação com décadas, é em primeiro lugar dever de um Estado decente, de um Estado de direito.
O Estado que não é capaz de regular e de intervir no sentido de assegurar a gestão do território em defesa do interesse público - sendo indiferente se ele é de posse pública ou privada - mostra-se muito eficiente a mobilizar milhares de milhões de euros dos contribuintes para apagar os fogos que não se cansa de atear com as suas politicas erradas. Ou a financiar o não funcionamento de sistemas de comunicação cuja única função parece ser gerar dividendos aos seus proprietários.
Já sabemos que este é o estado neoliberal que favorece os negócios, cego pela convicção de que o Mercado resolve. Podemos parar de agir como se estivessemos apenas perante pequenas ou grandes anomalias, incompetências deste ou daquele responsável político, que depois de cada catástrofe ocupam todo o espaço da bolha mediática?
O problema é de outra natureza: tem a ver coma forma como o Estado se relaciona com a sociedade e com a promoção e defesa do interesse público.
Uma boa intervenção do Estado - ninguém está a defender esta posição excepto alguns técnicos que reclamaram contra a extinção dos serviços florestais - passa em primeiro lugar por voltar a adquirir essa capacidade de gestão do território. Capacidade de fazer bem. Capacidade de fazer de forma preventiva. Capacidade que perdeu por opção politica concretizada ao longo de décadas. Uma capacidade de exercer a sua função de defesa da floresta e do correcto ordenamento do território. Uma capacidade que num estado de direito deveria ser inalienável.
Se o Estado quer copiar bons exemplos eles não faltam por todo o mundo. Nesta matéria a nossa incompetência é líder, e, apesar de não ser muito divulgada pela nossa bolha mediática sempre ávida dos "nossos melhores do mundo", ela vê-se bem assim como as suas devastadoras consequências.
02/07/17
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3 comentários:
Bom dia,
O BE defende o arrendamento compulsivo nos termos do artigo 88 da CRP:
Artigo 88.º
Meios de produção em abandono
1. Os meios de produção em abandono podem ser expropriados em condições a fixar pela lei, que terá em devida conta a situação específica da propriedade dos trabalhadores emigrantes.
2. Os meios de produção em abandono injustificado podem ainda ser objecto de arrendamento ou de concessão de exploração compulsivos, em condições a fixar por lei.
Obviamente, falta "fixar por lei". Os mais fáceis de classificar como "proprietários absentistas" são aqueles que nem sequer reivindicam a sua "propriedade" perante o Estado. Muitos destes, talvez a maior parte, nem sequer sabem que a ela têm "direito". Outros poderão não se aperceber que precisam de a reinvidicar, num dado momento, mas é precisamente por isso que existe um período muito alargado (15 anos, no caso de expropriação) para essa reivindicação ser feita (sem limite temporal, no caso do arrendamento compulsivo). Depois há mais dois tipos de "proprietários absentistas": os que não habitam na vizinhança da propriedade, e que por isso a maior parte das vezes estão-se a marimbar para o impacto das suas decisões sobre as comunidades próximas (o que inclui desde o pequeno ao grande proprietário); e os que habitam na vizinhança da propriedade, mas que não têm meios para a gerir ou "explorar". É óbvio que, no contexto do sistema sócio-económico em que vivemos os primeiros, infelizmente, nunca serão, por lei, considerados "proprietários absentistas", ao contrário de muitos dos segundos.
Como é perceptível pelo parágrafo anterior, tenho uma concepção maximalista de "proprietário absentista". O meu ponto de partida é o seguinte: a terra é um bem comum, que deve ser administrado pelas comunidades que a habita. Tal ainda é feito em parte do território, nos chamados baldios. Isto não quer dizer que tais comunidades possam fazer o que quiserem, pois o interesse de comunidades mais abrangentes também tem de ser respeitado. Esta perspectiva é radicalmente oposta à figura de "proprietário absentista", no que respeita ao significado de qualquer uma das palavras que constituem tal expressão. Portanto, apoio tudo o que diminua o número de "proprietários absentistas" e a quantidade de terra sob o seu controlo. Independentemente, de serem pequenos ou grandes proprietários.
(cont.)
(cont.)
Não percebo a ideia subjacente às frases: "Estes dois tipos de proprietários são os últimos que desempenham (...) uma função real de defesa do território. São aqueles que em cada dia da sua vida defendem o território nacional e praticam o povoamento do interior." Defendem o território nacional de quê? Dos incêndios, plantando espécies florestais altamente combustíveis? O povoamento do interior não é importante em si. O que é importante é que as pessoas que habitam o interior do território o vejam e sintam como algo a preservar, no que devem ser apoiadas por todos aqueles que, não habitando nesse território, também valorizam a sua preservação. Podendo esse apoio vir através do Estado. Mas, lamento, apesar de perceber porque muitos dos que habitam o interior vêm o território, antes de mais, como algo a explorar, não posso aceitar essa postura, nem deixá-la passar sem crítica.
Também não percebo o conceito de "(...)compensar adequadamente os pequenos proprietários pela plantação de espécies que contribuam para um melhor ordenamento do espaço floresta(...)". Se formos por esse caminho, também quero ser compensado por não deitar lixo para a rua. A "propriedade" da terra não é um direito. É uma responsabilidade. Quem não estiver à altura que se afaste, voluntariamente ou não, cedendo a gestão do território a quem o habite e tenha capacidade para em comum o preservar, podendo ser compensado, não porque seja justo (porque é que alguém que herdou terra tam mais direitos que quem não herdou?..., mas para que não haja instabilidade social.
Do ponto de vista prático, infelizmente, muito do que devia ser feito não é possível no presente. E de entre o que é possível, acho que o BE encontrou um elenco de medidas exequíveis e justas.
http://www.esquerda.net/sites/default/files/politicas_florestais_be.pdf
Abraço,
Pedro
Vou retomar a parte:
"Pode-se argumentar que o Estado também não cobra mais-valias quando classifica os terrenos rústicos como urbanos."
Essa é boa! Ai não que não cobra! Eu mostro-lhes O IMI que passei a pagar por ter passado um prédio rústico para urbano. E isto sem ter investido nada lá!
António Alves Barros Lopes
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