16/03/18

Re: 50 anos do Maio de 68: a vitória de Raymond Aron

André Abrantes Amaral escreve no Jornal Económico sobre o que ele chama os "50 anos do Maio de 68: a vitória de Raymond Aron".

Em primeiro lugar, vamos lá ver se em breve não estaremos a escrever um "84 anos do Fevereiro de 34: a vitória de Charles Maurras" - Macron (o suposto herdeiro dos moderados da altura) parece estar cada vez mais impopular.

Mas o meu ponto principal não é esse - é o que me parece a tendência de AAAmaral para associar o Maio de 68 ao Partido Comunista ("No primeiro de Maio de 1968, Daniel Cohn-Bendit, que nem sequer era francês, foi a faísca que tornou tudo possível quando, ao serviço da CGT (uma confederação sindical comunista), se envolveu em alguns confrontos.", "À afronta, o Estado respondeu com confronto. Em resultado, os sindicatos solidarizaram-se com os estudantes exigindo mais direitos para os trabalhadores. A 10 de Maio têm início as greves que se vão estendendo a todo o país; greves a que nem os acordos de Grenelle (25 de Maio) põem termo. Dividido, o Partido Comunista, que domina vários sindicatos, acaba por ceder à força das manifestações e as greves continuam por mais alguns dias. A expectativa é que o caos lhe seja favorável.", "Esse mito foi uma tentativa da extrema-esquerda, partido comunista incluído, de tentar a sua sorte.", etc...).  Factos como Georges Marchais ter chamado Cohn-Bendit de "anarquista alemão" são ignorados, e só muito levemente se pode, lendo o seu texto, ter uma ideia que, após os sindicatos controlados pelo PC terem feito os tais acordos com o governo, em muitos locais de trabalho foram feitos plenários que os recusaram (sim, AAAmaral aborda um pouco isso, mas de uma maneira tão ligeira que até parece que foi uma questão de manobras internas dentro do aparelho comunista - que primeiro teria mandado fazer os acordos, e depois, com as manifestações a continuarem, teria mandado as greves se prolongarem - como se os trabalhadores grevistas de carne e osso não passassem de marionetes sem agência).

O que levará a esse ocultar do conflito entre os rebeldes (tanto estudantes como operários) do Maio de 68 e o PC? Admito que será sobretudo AAAmaral que não seja o que alguém chamou de "leftist trainspotter" (alguém obcecado com os micro-detalhes referentes às várias fações da esquerda, as diferenças entre elas e as suas múltiplas cisões). mas, de qualquer forma, imagino que acaba por dar jeito à direita esquecer ou menorizar os conflitos (que se tornaram mais visíveis a partir dos anos 60) entre os PC ortodoxos e a esquerda radical:

a) Torna mais fácil usar o argumento "como é que depois de 1989 ainda podem defender coisas dessas?", já que permite associar toda a esquerda anti-capitalista ao comunismo de tipo soviético (exemplo, os artigos de Bernardo Pires de Lima sobre a "esquerda florida").

b) Apresentar os sindicatos como puras cadeias de transmissão do PC, e os trabalhadores grevistas como puras cadeias de transmissão dos sindicatos é mais confortável (afinal, o discurso nessa área, quando há conflitos laborais, é sempre "a culpa é dos sindicatos", como se os trabalhadores fossem desprovidos de vontade própria - veja-se, aliás, a narrativa recente acerca da Autoeuropa*)

c) Palpita-me também que muitos dos motivos da cisão entre os comunistas ortodoxos e parte da esquerda radical nos anos 60 sejam algo incómodos para a direita liberal; falo sobretudo da crítica à "burocracia" nas organizações sindicais e operárias, que reprimiria os impulsos revolucionários (ou pelo menos contestatários) dos trabalhadores "de base", e da crítica à "sociedade industrial" por colocar a maior parte das pessoas em trabalhos em que não têm espaço para por em prática a sua criatividade e iniciativa (em contraste com os comunistas ortodoxos, que não tinham problema nenhum com a "sociedade industrial" e a organização capitalista-burocrática do trabalho, apenas querendo que ela fosse usada ao serviço do proletariado e não da burguesia). Haver à esquerda quem faça também o discurso da "iniciativa" e "criatividade" versus "seguir ordens vindas de cima e decididas centralmente" (e talvez com maior coerência lógica?) pode por em causa a retórica liberal.

* Há tempos, acerca da Autoeuropa, um amigo de um amigo do Facebook, de tendência liberal, parecia sinceramente espantado com os trabalhadores terem votado contra o acordo com a administração, perguntando algo como "Mas porque é que eles votaram contra? Afinal, os sindicatos não os podem obrigar" (só este pedaço poderia dar a entender que era ironia, mas lendo a sequência toda de comentário tudo indica que ele estava seriamente perplexo por os trabalhadores votarem contra um acordo sem serem obrigados a isso pelos sindicatos).

1 comentários:

Niet disse...

No grande e maravilhoso livro de Morin, Lefort e Castoriadis sobre Maio 68 -Inventário de uma Rebeliäo - há um capitulo escrito pelo Casto. onde säo discriminadas as " Etapas da Crise " que destrocaram quase todas as teias ignóbeis da cultura capitalista-burocrática onde os " comunistas " e as máfias marxistas-leninistas se enredaram acabando por " salvar o sistema " .Há dezenas de textos sobre Maio 68 , e o debatezinho escalpelizado pelo Miguel Madeira é, pois, obscenamente indigente e redutor cumplice da ideologia do faz-de-conta-mas-näo pode, onde surgem os tracos da peste emcional mais perversa e anti-libertária. Niet