24/04/18

Em defesa (mais ou menos) da habitação própria

Uma coisa que noto nas discussões sobre a questão da habitação é que esquerda e direita parecem confluir no propósito de "dinamizar o mercado de arrendamento" (divergindo, claro, completamente em como o fazer), em em considerar como um mal o "endividamento excessivo" derivado dos empréstimos para a compra de casa.

Suspeito que parte da razão é porque, à direita, a habitação própria faz-lhe pensar em mercados poucos flexíveis (uma pessoa vive numa casa e - porque é dela - ninguém a pode por dali para fora? Isso é quase como ser funcionário público!), e à esquerda a habitação própria é uma forma de propriedade (e, pior ainda, propriedade imobiliária, que na mística de muita esquerda, é ainda pior que as outras formas de propriedade).

Em contraponto, venho aqui defender as virtudes da posse da habitação própria e alegar que a tão falada debilidade do mercado de arrendamento até pode ser uma bênção disfarçada.

A maior vantagem da habitação própria é, claro, o não estarmos sujeitos aos caprichos arbitrários de outras pessoas - não corremos o risco de, um lindo dia, aparecer um senhorio a dizer "tens que te ir embora" ou "a tua renda vai ser aumentada 300%"; pode-se contra-argumentar que tal pode ser contrabalançado por legislação impedindo os senhorios de despejar inquilinos e/ou de aumentar a seu bel-prazer as rendas, mas das duas umas: ou essa legislação é efetiva e impede mesmo os senhorios de despejar e de aumentar as rendas, e nesse caso o resultado a longo prazo é os senhorios deixarem o prédio cair (e provavelmente não alugarem mais os apartamentos que vão ficando vagos); ou não é efetiva e o problema da incerteza associada à situação de inquilino mantêm-se. Diga-se que, mesmo que uma casa tenha sido comprada com um empréstimo ao banco e se tenha que pagar juros (também variáveis, e também sujeitos a despejo em caso de não pagamento) a situação é diferente - a fórmula que determina os juros está predefinida no contrato de arrendamento, e desde que uma pessoa os pague a tempo e horas, ninguém o pode tirar da casa

Além disso (e associado ao anterior) os problemas da chamada "gentrificação" praticamente só existem porque existe arrendamento - num bairro em que toda a gente tenha a sua casa, um aumento da procura por casas nesses bairro é vantajosa para os seus habitantes, que vêm o seu património valorizar; mas num bairro em que predomine o arrendamento, um aumento da procura significa que os habitantes originais vão ter que pagar rendas mais elevadas ou serem despejados. Aliás, há tempos li um texto em que o autor tentava distinguir "gentrificação" de "reabilitação urbana" - o texto era horrendo, com o autor a parecer querer dizer (ou a dizer mesmo?) que a diferença tinha a ver com a intenção (que a reabilitação era feita com o intuito de melhorar a qualidade e as condições de vida, e a gentrificação com o intuito de expulsar pessoas), como se a gentrificação fosse uma coisa decidida por alguém ("vamos gentrificar estes bairros!"), e não simplesmente o resultado das leis do mercado capitalista em ação; em vez dessa visão quase (?) conspiratória, eu diria que a diferença entre "gentrificação" e "reabilitação" é muito simples: a "gentrificação" mais não é que a forma que a "reabilitação" assume quando conjugada com um mercado habitacional dominado pelo arrendamento.

E que dizer dos argumentos a favor do arrendamento?

Um dos que costuma ser mais usado, o de que a culpa do "endividamento das famílias" é a compra de habitação própria, é uma quase-falácia: afinal, qual é exatamente o problema das pessoas se endividarem para adquirirem património duradouro? Uma pessoa pede um empréstimo de 100.000 euros para comprar uma casa de 100.000 euros - fica com bens no valor de 100.000 euros e dívidas no valor de 100.000 euros (riqueza líquida = zero euros); se em vez disso optar pelo arrendamento, não tem casa nem dívida (de novo, riqueza líquida = zero euros) - não é muito claro porque é que ter dividas de 100.000 euros e bens no valor de 100.000 euros há de ser pior do que não ter nem dívidas nem bens (suspeito que há aqui sobretudo uma aversão quase moralista à palavra "dívida" do que um raciocínio económico fundamentado).

Ainda a respeito disso (ou quase disso - aqui o ponto é o endividamento geral do país), relembro o que escrevi há uns anos:
De vez em quando surge a teoria de que a culpa do endividamento nacional é (pelo menos em parte) da dificuldade em arrendar casa (...); se eu percebo, a teoria é que, como não há casas para arrendar, as pessoas têm que comprar casa, e como muitas não têm dinheiro para isso, tem que pedir emprestado.

Então, vamos lá ver - vamos supor que eu, em vez de ter pedir, digamos, 100.000 euros ao banco para comprar uma casa, ia viver para uma casa arrendada; teriamos menos endividamento, certo? Afinal, foram menos 100.000 euros que foram pedidos de empréstimo.

Mas, mesmo que eu arrendasse uma casa em vez de comprar, ela não ir surgir do ar; ou seja, mesmo que eu não compre a casa, alguém tem que a comprar (para depois a arrendar a mim); e, então, das duas uma:

1ª hipótese - essa pessoa (o meu hipotético senhorio) pediu ele dinheiro emprestado para comprar a casa; nesse caso, nada muda em termos de endividamento

2ª hipótese - essa pessoa comprou a casa com o dinheiro dele; realmente, nesse caso (e ao contrário dos anteriores), não foi concedido nenhum empréstimo de 100.000 euros; mas provavelmente foi levantado um depósito de 100.000 euros, logo a diferença entre "empréstimos concedidos" e "dinheiro disponível em Portugal para emprestar" aumentou à mesma 100.000 euros (por outras palavras, é a mesma necessário ir pedir mais 100.000 euros emprestados ao estrangeiro).

Ou seja, a diferença entre comprar ou arrendar casa pode afectar a quantidade de dinheiro que alguns portugueses devem a outros portugueses, mas não terá efeitos relevantes sobre a dívida total liquida do conjunto dos portugueses.

Pondo as coisas de outra maneira - ou há capital disponível em Portugal para financiar a construção e compra de casas, ou não há; se há, a compra de casas (seja para habitação própria, seja para arrendamento) não vai causar endividamento líquido do conjunto dos portugueses (alguns podem-se endividar, mas outros terão um saldo positivo); e se não há, haverá endividamento de qualquer maneira (a única diferença entre as várias modalidade é quem se irá endividar).
Porque é que eu escrevo acima que é uma quase-falácia? É verdade que há efetivamente uma diferença entre ter uma casa de 100.000 euros e dever 100.000 euros, e não ter casa nem dívida nenhuma - a primeira opção é mais arriscada (já que há o risco da casa desvalorizar, e aí fico efetivamente com uma situação líquida negativa, a dever 100.000 euros e com bens a valer apenas 80.000 euros), mas isso é em larga medida o contraponto de deixar de ter o risco de o senhorio despejar-me ou aumentar a renda.

Há outros argumentos a favor do arrendamento que já têm um pouco mais de lógica, mas em assuntos em que esse não me parece o problema fundamental:

Efetivamente num mercado de habitação assente no arrendamento, é mais fácil as pessoas mudarem de localidade caso percam o emprego e tenha que aceitar outro noutra cidade, mas suspeito que aí o maior obstáculo é que a maior parte das pessoas vivem integrados em famílias, com conjugues e filhos, logo, com ou sem arrendamento, há sempre o problema de ambos os conjugues arranjarem emprego na nova localidade, e mais a mudança de escola dos filhos (mas pronto, admito que seja a minha situação de quase funcionário público - mais exatamente, empregado com contrato individual de trabalho sem termo num hospital EPE - que me torne talvez menos sensível do que deveria ser ao problema da necessidade de mobilidade geográfico para arranjar emprego).

Outro argumento é que no mercado de arrendamento é mais fácil a jovens em princípio de vida arranjarem um apartamento para morarem, sem precisarem de ficar alguns anos a juntar dinheiro para darem de entrada, e podendo ir viver para um T1 em vez de estarem já a escolher uma casa para a vida inteira; em parte é verdade, mas creio que o maior obstáculo a um jovem de 20 e poucos anos que queira ir morar sozinho não é a escassez de casas para arrendar, é mesmo o estigma social que nas culturas latinas/católicas/mediterrânicas existe contra o sair de casa dos pais sem ser para casar - um jovem de 20 e poucos anos que vá viver sozinho é normalmente visto pela família (talvez sobretudo a alargada) e pelos vizinhos da família como um desalmado que não gosta dos pais (e se for uma rapariga provavelmente ainda é pior - para muita gente será sinal que o que quer é receber homens lá em casa, se calhar casados).

Finalmente, diga-se que algumas das vantagens (talvez sem as desvantagens) da habitação própria que apresento neste post possivelmente também poderiam ser conseguido com habitação social bem pensada (por isso é que há um "mais ou menos" no título), mas isso já seria outro tópico.

3 comentários:

José Guinote disse...

Passando pelo blogue e tendo pouco tempo para comentar o interessante texto do Miguel, deixo duas ou três notas, para ajudar à discussão.
Em primeiro lugar os países com maior desenvolvimento económico - medido, valha isso o que valer, por exemplo pelo PIB per capita - e com mais transparência, têm um mercado de habitação mais segmentado. Quer isto dizer que a forma de acesso é repartida entre aquisição e arrendamento, sendo que no caso deste último há o arrendamento social e o arrendamento privado. Há uma correlação clara no equilíbrio entre aquisição e arrendamento e a possibilidade de controlo do preço do imobiliário. Quer isto dizer que nos países em que se verifica esse equilíbrio - ou nos quais ele é maior - os preços são menores quer para aquisição quer para arrendamento.
Esta questão não se coloca no plano das opções individuais tomadas livremente num contexto de várias alternativas. A opção dos portugueses pela aquisição de habitação não foi uma opção livre. Foi tomada no contexto de uma oferta liderada pelo mercado. Como dizia o Harvey nos idos de setenta a oferta de habitação para as classes de menor rendimento é inelástica e inflexível do ponto de vista da sua localização. Ora a desigualdade que caracteriza sociedades como a nossa é também entendível pela análise da variação da forma urbana.
Numa democracia com alguma justiça social a questão da habitação é uma responsabilidade pública. Trata-se mesmo de uma das mais importantes políticas públicas. As questões relacionadas com a habitação são tratadas no ãmbito do sistema de planeamento. Não se trata apenas das questões da espacialização da oferta mas também do preço do imobiliário e das formas de acesso. Em Portugal como outros países, os mais liberais por exemplo em termos europeus, essas questões têm sido determinadas pelo Mercado. Contra os interesses das pessoas.

Anónimo disse...

Deixo uma nota para o posterior texto do Miguel Madeira sobre as limitações da habitação social (debate esse muito mais interessante num contexto de "geringonça"): na Holanda este segmento abrangia 30% das famílias mas as regras da UE (não sei ao certo quais) impedem o sector de crescer, e está hoje em dia concretamente a destruir-se habitacao social habitavel para entregar os terrenos a privados para construção privada.

Lowlander disse...

https://mainlymacro.blogspot.co.uk/2018/02/house-prices-and-rents-in-uk.html

https://mainlymacro.blogspot.co.uk/2014/05/house-prices-rents-and-supply.html

Um par de interessantes artigos do Simon Wren-Lewis acerca da habitacao. E obviamente necessaria cautela na transposicao da analise para o caso portugues.
Saliento no entanto tres pontos interessantes que os textos dele levantam:

1) e um erro de raciocinio separar o mercado de arrendamento do mercado de aquisicao
2) os precos das casas, na ausencia de politicas publicas de habitacao, sao muito influenciados pelas politicas dos bancos centrais de longo prazo nas taxas de juro
3) e muito importante notar as interligacoes entre a habitacao e transportes, um pais que nao investe na sua rede de transportes vera a medio prazo desiquilibrios no mercado de habitacao porque concentra a procura de habitacao

Para mim uma lacuna importante nos textos dele e nao falar dos impactos do turismo na habitacao.