10/06/18

Sobre a "nova" OPERAÇÃO INTEGRADA DE ENTRECAMPOS. Vai a cidade "libertar-se" do Mercado? - I

Decorreram duas sessões públicas sobre a Operação Integrada de Entrecampos. A primeira - realizada no dia 5 de Junho, no Fórum Capitólio, no Parque Mayer - foi liderada pelo Presidente da autarquia, Fernando Medina, e contou com a presença do vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, e a participação da Junta de Freguesia das Avenidas Novas e da Santa Casa da Misericórdia, parceira no Projecto.

Esta apresentação incluiu um período destinado à intervenção dos cidadãos presentes. [quem quiser ver a apresentação do Projecto feita por Fernando Medina pode fazê-lo aqui]

No dia 7 de Junho a Assembleia Municipal (AM)  promoveu uma Audição Pública sobre o Projecto Integrado de Entrecampos , no Fórum Roma, com prévia inscrição dos interessados em usar da palavra. Nessa sessão da AM a Câmara fez-se representar pelo vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, acompanhado por alguns técnicos dos serviços sob a sua gestão, que fez uma apresentação do Projecto recorrendo ao mesmo video. Foi depois dada a palavra aos munícipes presentes que se tinham previamente inscrito.

Estive presente nas duas sessões e usei da palavra na sessão da Assembleia Municipal no período destinado às intervenções do público. Cada intervenção dispunha de cinco minutos, tempo manifestamente escasso.

Em primeiro lugar uma nota: a realização destas sessões de divulgação de um projecto desta dimensão deve ser saudada. Embora isto decorra do mais elementar respeito pela democracia participativa, sabemos nós que muitas vezes estes comportamentos apenas se destinam a cumprir o que a lei determina. O facto de a Assembleia Municipal ter - por inicitiva do CDS, ao que parece - avançado com as audições públicas deve ser saudado. As AM são orgãos desacreditados na generalidade do país, meras câmaras de ressonância dos poderes executivos que, em cada período, governam as autarquias. O debate democrático sobre a polis está afastado das AM, como está afastado da realidade do dia a dia das autarquias. "Coisas" apenas para os eleitos investidos nas funções executivas. Pelos vistos nas grandes cidades ainda não é assim. Ainda bem.

Do que vi e li até ao dia da sessão da AM, algumas dúvidas emergiram. Na minha intervenção nessa sessão tentei colocá-las no debate. O tempo curto não o permitiu totalmente. Deixo aqui uma breve listagem dos aspectos  positivos e negativos que a Operação me suscita, no actual estado de conhecimento.

Aspectos Positivos: Como já referi - nos post´s anteriores dedicados ao tema, e como salientei na intervenção que fiz na AM -  agrada-me o facto de o processo de desenvolvimento urbano ser liderado pela autarquia. Quer isto dizer que o facto de a autarquia não ter conseguido vender os terrenos da Feira Popular por "atacado" e ter optado por esta solução pode representar uma oportunidade para a cidade.

No entanto, para que essa oportunidade se concretize, não basta que quem lidera o processo seja a autarquia, é necessário esclarecer a forma como essa liderança se concretiza, quais são os resultados que se pretende obter e como.  Não basta que o Projecto da antiga Feira Popular se tenha transformado na Operação Integrada de Entrecampos e tenha passado a incluir cerca de 700 fogos de habitação destinada ao arrendamento social, as chamadas habitações de renda acessível. No velho, e abandonado, Projecto da Praça de Entrecampos já estava prevista habitação para quase 600 famílias.

Esclarecimentos Obtidos no debate:  Está prevista uma criação de 15 mil postos de trabalho nos terrenos da antiga Feira Popular. Esses postos de trabalho serão fundamentalmente absorvidos pelos serviços e uma parte menor pelo comércio.
Estão previstos 2 mil novos moradores para a zona de Entrecampos,  logo que a oferta de habitação - 700 destinadas a renda condicionada, de iniciativa pública e 272 fogos destinados ao mercado livre - esteja concretizada.

A minha intervenção na AM foi sobre esta "relação". De uma forma resumida questionei a autarquia sobre a sua disponibilidade para rever a relação entre os usos propostos. Propus, com base numas contas fáceis de fazer, com os indicadores do próprio projecto, uma redução dos postos de trabalho para 10 mil, o que significaria aumentar a oferta de habitação para 3500 novos moradores. [Julgo que esta minha proposta pode ser ampliada até ao máximo de 5 mil novos moradores para 5 mil novos postos de trabalho. Acho, no entanto, que aquilo que está estabelecido é inalterável, apesar de estar a decorrer a discussão pública e de nos Termos de Referência da Operação se admitir - como não podia deixar de ser - que o Modelo Urbano tem que ser validado pelo Estudo de Impacte de Tráfego e Transportes a realizar].

Esta alteração, acho eu, deve passar por uma expansão da oferta da habitação destinada a renda acessível, passando dos actuais 700 fogos para 1200 fogos, pela expansão da habitação destinada ao mercado livre, que deveria aumentar até aos 500 fogos, e pela introdução de uma oferta de habitação a custos controlados, para aquisição pelas famílias solventes dentro de certos limites de preço, da ordem dos 700 fogos.

Aspectos Negativos:

Até ao momento de realização da AM, não tinham sido disponibilizados duas informações muito importantes: A Calendarização do Projecto e a Estrutura Financeira da Operação- o Plano de Investimento e o Modelo de Financiamento. 

Na sua intervenção na AM o vereador Manuel Salgado esclareceu que o investimento público total previsto é de 63 milhões de euros. Esclareceu igualmente que no primeiro trimestre de 2021 serão entregues os primeiros edificios de habitação de renda acessível.
Entretanto a Câmara Municipal irá realizar a partir de Setembro deste ano três hastas públicas para vender os lotes criados nos terrenos da Feira Popular.

Porque razão é assim tão importante conhecer a Estrutura Financeira da Operação e o Plano de Investimento e o Modelo de Fiannciamento? Bom, estamos perante uma operação que decorre em terrenos municipais, sob liderança do municipio. Quer isto dizer que as mais-valias geradas neste projecto são integralmente capturadas pela autarquia. Quer isto dizer que os usos de maior poder aquisitivo  vão financiar os usos sociais - habitação de renda acessível - aqueles -não considerados até agora - em que o fnanciamento público é menor, mas existe algum financiamento público, rapidamente recuperado - habitação a custos controlados - e a realização das infraestruturas e a construção dos equipamentos públicos.

Face ao investimento público anunciado pelo vereador Manuel Salgado a operação é largamente rentável. Haverá no entanto passivos financeiros, relacionados com estes terrenos, que oneram a autarquia e cuja resolução passa por este projecto. Passivos que serão eliminados por parte da mais-valia urbanística aqui capturada.

O carácter Integrado da Operação não ficou presente ao longo destas intervenções, nem está presente em qualquer documento. Toda a informação visual centra-se exclusivamente nos terrenos da antiga Feira Popular. Há um estudo dos edificios a construir feito pelo arquitecto Souto Moura  - vender um projecto com o apoio de uma arquitecto de top, é uma opção recorrente, agravada no período que precedeu a crise de 2008 - e uma apresentação tridimensional da sua implantação no local.

Sobre a intervenção nos terrenos sobrantes da anterior "Operação Integrada Praça de Entrecampos" nada foi apresentado além da delimitação das unidades de execução.

Urbanisticamente é claro que, no momento actual,  existem dois Projectos: o da antiga Feira Popular e o da antiga Praça de Entecampos. A ligação entre eles é feita pelo prolongamento da Rua da Cruz Vermelha até à Avenida da República: para integração é pobre e é curto.

Aspectos críticos -  Apesar do recurso à palavra Integrada, existe uma evidente segregação dos terrenos da antiga Feira Popular. A habitação com preocupações sociais não entra nestes terrenos.
Alguém perguntou - na sessão do dia 5 -  e a resposta foi clara por parte do Vereador Manuel Salgado: não haverá Plano de Pormenor para esta operação, passando directamente do PDM para os loteamentos e construção. Um erro, parece-nos, pouco articulável com o controlo público da operação. Aqui a autarquia tem que dar o exemplo de separar claramente o plano do projecto sem repetir a nefasta  moda do período aureo do neoliberalismo, a moda dos projectos urbanos.

A relação entre os usos é desiquilibrada e vai acentuar os problemas já existentes na zona. Entrecampos tem uma elevada concentração de emprego - Universidades, Câmara Municipal de Lisboa, Hospital de Santa Maria - e um número de moradores muito baixo. Ao fim de semana a zona fica deserta, com todo o comércio encerrado. O comércio é fundamentalmente destinado a apoiar uma população que vem para aqui trabalhar e que não reside aqui. [ Entrecampos é uma homenagem ao zonamento, aliás, como parte importante de Lisboa. Este projecto pode acentuar essa situação critica].

Há uma vontade de dotar esta zona de uma oferta de áreas destinadas a serviços com um elevado poder aquisitivo e que careçam de uma oferta até agora inexistente. Essa posição é assumida pela autarquia. Foi essa convicção que em 2008 levou a autarquia a alterar o Projecto da Praça de Entrecampos, suprimindo cerca de 550 fogos destinados à habitação - que agora são devolvidos a esse uso na variante renda acessível. Como se sabe essa procura não deu noticias entre 2008 e 2018. A autarquia volta à carga com uma oferta ampliada, embrulhada no projecto de Souto Moura.

Parece evidente que esta operação carece de um maior debate e de mais informação dispobilizada aos moradores. Parece evidente que esta operação não importa apenas aos moradores mas a toda a cidade.

No debate fizeram-se ouvir algumas posições que criticam a vinda para as habitações de renda condicionada de pessoas problemáticas. Lamentável a tendência que algumas pessoas exibem para criminalizar a pobreza ou associá-la a comportamentos marginais. Acresce o facto de em Lisboa, no ano de 2018, se utilizarmos como critério definidor de pobreza o acesso às habitações disponibilizadas pelo Mercado chegaremos à conclusão que cerca de 9 milhões de portugueses são, na verdade,  muito pobres.

(continua)





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