23/07/18

O relativismo multissecularista politicamente incorreto

Quando se fala de assuntos como a escravatura, massacres coloniais, etc., frequentemente surgem os que contra-argumentam que não podemos julgar o comportamento de pessoas de outras épocas pelos padrões atuais; curiosamente, muitas vezes são os mesmos que, perante comportamentos "problemáticos" associados a outras culturas ou etnias, são os primeiros a atacar o que chamam "relativismo multiculturalista politicamente correto" e a defender o que consideram ser valores universais.

Acho que isso não faz grande sentido (que digo eu? não faz sentido rigorosamente nenhum): se se acha que há coisa que são intrinsecamente boas ou más, e que isso não depende da opinião da "sociedade" sobre o que é o bem ou o mal, isso deveria ser válido tanto no espaço como no tempo (se apedrejar adúlteras até à morte é mau mesmo numa cultura, situada num dado local, que veja isso como bom, então escravizar pessoas é mau mesmo numa cultura, situada numa dada época histórica, que veja isso como bom).

A esse respeito, e para dar um exemplo concreto, aproveito para citar o economista de direita ultra-liberal Bryan Caplan, no seu post "Columbus: The Far Left is Dead Right": "The lamest excuse of all is that we have to judge Columbus by the standards of his time. For this is nothing but the cultural relativism that defenders of Western civilization so often decry. If some cultures and practices are better than others, then we can fairly hold up a mirror to Columbus and the Spanish conquerors, and find theirs to be among the worst."

Basicamente, o que poderemos chamar o "relativismo multissecularista politicamente incorreto" (isto é, a posição que não podemos julgar as outras épocas e séculos pelos padrões atuais) e o "relativismo multiculturalista politicamente correto" são largamente similares (a única diferença é que as culturas que o "multissecularismo" acha que não podemos julgar pelos valores da nossa cultura existiram no passado e não no presente) - eu diria que ambos têm implícito a ideia que o problema da escravatura ou da lapidação não estará no mal que fazem a quem é escravizado ou lapidado, mas em ser uma ofensa à normas da sociedade (algo parecido com os tempos em que crimes como a violação eram classificados como "crimes contra os costumes" em vez de "crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual"), e portanto não serão de condenar se ocorrerem numa sociedade que aceite ou incentive esses comportamentos. Ou dito de outra maneira, os dois "relativismos" (multissecularista e multiculturalista) podem ser vistos como variantes da defesa de Nurumberga - já não "estava apenas cumprindo ordens", mas o ligeiramente diferente "estava apenas cumprindo as normas sociais em vigor nesse momento e lugar".

Mas como explicar esse paradoxo - de frequentemente os maiores defensores do "relativismo multissecularista politicamente incorreto" serem os maiores críticos do "relativismo multiculturalista politicamente correto", e vice-versa? A explicação que me parece mais lógica é que os que defendem o relativismo multissecularista e são contra o multiculturalista o que realmente querem é defender a status de superioridade da "civilização ocidental", e que tanto uma posição como a outra não passam de justificações ad hoc usadas quando dá jeito: quando se trata de comparar culturas diferentes, dá jeito dizer que há valores universais, de preferência equiparados aos ocidentais (e depois dizer que, de acordo com esses valores, o "Ocidente" é melhor que as outras culturas); mas quando se trata de falar de coisas que ocorreram no passado, e em que os "ocidentais" fiquem mal na fotografia, aí já dá mais jeito dizer que não podemos julgar os outros séculos pelos padrões do atual - as duas posições são logicamente incoerentes, mas produzem o mesmo resultado: ambas ajudam a dizer que "Ocidente" é uma maravilha. E claro, o mesmo se poderá dizer, mutatis mutandis, dos que defendem o relativismo multiculturalista e são contra o multissecularista (que o que querem é atacar o status do "Ocidente"). Dito isto, suspeito (mas não andei a fazer nenhuma contagem - pode ser simplesmente uma ilusão derivada de quem costuma mais ler) que os primeiros são mais que os segundos: há montes de gente que critica o papel dos países "ocidentais" na escravatura, imperialismo, etc. sem defender aquelas ideias de "não podemos criticar o que se passa na Arábia Saudita porque é outro cultura" (é a minha posição, p.ex.); já não são tão frequentes, parece-me, os que acham que não podemos condenar acontecimentos dos séculos passados nem os hábitos de outros povos ou culturas.

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