19/01/19

Brexit, UE e CEE

Nos últimos dias tem se tornado viral um texto de José Meireles Graça dizendo "O Brexit é um pesadelo, mas é um pesadelo porque a União Europeia é um pesadelo. Não só a saída da CEE nunca levantaria o mesmo tipo de problemas como é improvável que dela algum país quisesse sair. E o que se vislumbra por trás do projecto de acordo derrotado hoje, um ilegível mastodonte com quase 600 páginas, é que é mais difícil sair da UE do que foi, por exemplo, a separação da Eslováquia da República Checa (...).

Mas se depurarmos bem essa conversa, acho que se resume a "é muito mais fácil sair de um emprego em que se ganha o salário mínimo do que de um emprego onde se ganha 10.000 euros por mês" - se a Grã-Bretanha saísse da CEE em 1985, ficaria mais ou menos como ficará em caso de sair sem um acordo agora: os produtos ingleses teriam que pagar taxas para entrar na UE/CEE e ser sujeitos a inspeções na fronteira para ver se estão de acordo, ou com os regulamentos de qualidade da UE, ou com os regulamentos de qualidade de cada um dos países da CEE; a diferença, que torna talvez mais dífiicl sair da UE do que seria sair da CEE é que toda a economia já está "viciada na droga" dos produtos puderem circular de uns países para os outros sem terem que estar sujeitos aos regulamentos de qualidade específicos de cada país e vai ser complicado o "desmame".

Atenção que acima falo da Grã-Bretanha, não do Reino Unido, mas o problema fundamental da saída do Reino Unido é similar - é verdade que, se em 1985 o Reino Unido tivesse saído da CEE, não haveria todos aqueles problemas de "como é que as pessoas vão passar de Armagh para Ballyalbany?" ou "voltaremos a ter combates UVF versus IRA versus exército britânico?"; mas esses problemas não se colocariam pelo simples facto que ainda havia (acho) barreiras na fronteira e o IRA, o exército britânicos e as milícias lealistas continuavam a combater-se; claro que sem acordo da Sexta-Feira Santa e sem processo de paz, não haveria o problema de conciliar o Brexit com os acordos feitos (que foram feitos na premissa que tanto o RU como a Irlanda pertenciam à UE, o que tornava mas fácil a ambas as partes aceitarem um compromisso, já que tornava menos relevante a questão "Londres ou Dublin?"), mas é o mesmo que disse acima - a situação na Irlanda do Norte dificilmente ficará pior do que ficaria em 1985 (p.ex., por mais confusões que haja, duvido que a guerra regresse), só que entretanto toda a gente se habituou a uma situação muito melhor.

Mas deixando de lado a questão da Irlanda do Norte, eu diria que o grande problema do Brexit é que a ideologia de base dos brexiters (uma espécie de liberalismo económico anti-globalismo mas pró-globalização) muito provavelmente não faz sentido (pelo menos na realidade do mundo atual) - um Brexit feito por nacionalistas económicos (fossem de direita à maneira de Trump ou de Le Pen ou de esquerda como possivelmente parte do Labour de Corbyn) talvez pudesse dar algo coerente (gostássemos desse projeto coerente ou não); o Brexit dos liberais económicos do European Research Group ou do Legatum é provavelmente um projeto condenado a não ir dar a lado nenhum.

Para perceber melhor, vamos imaginar só dois países; há várias hipóteses da se processar o comércio entre eles:

a) Fazem em conjunto os regulamentos de qualidade dos produtos, e os produtos de cada um dos países podem ser livremente vendidos no outro

b) Um dos países compromete-se a ter regulamentos de qualidade decalcados dos do outro, e de novo
os produtos de cada um dos países podem ser livremente vendidos no outro

c) Cada país têm os seus próprios regulamentos de qualidade, e os produtos de cada país têm que ter alguma espécie de inspeção na fronteira para ver se estão de acordo com os regulamentos do país de destino

d) Nenhum dos países tem regulamentos de qualidade (sendo supostamente a qualidade dos produtos assegurada pelo jogo da oferta e da procura),  e os produtos de cada um dos países podem ser livremente vendidos no outro

A atual UE é basicamente a situação a); o tratado que havia sido negociado com o governo britânico era uma espéce de b) - o Reino Unido continuava a reger-se pelos regulamentos comunitários, e só deixava de participar nas reuniões da UE (ficando assim uma espécie de protetorado ou de estado-vassalo); c) é o que provavelmente o Brexit irá dar; d) é provavelmente o sonho da ala liberal dos Brexiters, mas isso (deixar de haver regulamentos a dizer que características determinados bens podem ou devem ter), goste-se ou não, não está  em cima da mesa em praticamente nenhum país do mundo desenvolvido.

1 comentários:

joão viegas disse...

Ola Miguel,

De facto o texto que citas é de uma estupidez e de uma ignorância raras. Basta lembrar que os tratados de 1957 não contemplavam sequer a hipotese de saida da comunidade. Esta existia à luz dos principios gerais do direito internacional publico sobre tratados (e da convenção de Viena), mas não havia nada de previsto nos textos comunitarios. Por conseguinte, a nivel juridico, os tratados subsequentes so podem representar uma melhoria, na medida em que enquadram a saida de algumas regras de bom senso, sem retirar alias a possibilidade de uma saida "seca", possibilidade que é precisamente vista hoje como problematica.

Logo, as dificuldade para sair da UE não têm rigorosamente nada a ver com as regras dos tratados dos anos 1990/2000. Decorrem apenas da profunda integração economica e social que existe ne pratica, devida à integração da economia do Reino Unido no mercado europeu.

E a dificuldade politica suscita exactamente o mesmo tipo de comentarios. A questão politica é continuar, ou não, a pertencer ao mercado europeu, com as vantagens e inconvenientes que isso acarreta. Muitos britânicos realizam hoje que lhes venderam gato por lebre e que a permanência no mercado europeu é, no fundo, uma boa ideia. Acontece que esta permanência sem ter uma palavra a dizer sobre as regras comuns é dificil de engolir. Precisamente a razão pela qual o RU aderiu à CEE ha 35 anos...

Um abraço