02/01/19

O "modelo nórdico" da prostituição não pune as prostitutas?

Nalguns sectores e países tem estado na moda o chamado "modelo nórdico" no combate à prostituição - criminalizar os clientes mas não as prostitutas (há dias no Público havia uma crónica sobre isso, em tom crítico). Mesmo recentemente o Congresso dos EUA aprovou normas que vão em parte nesse sentido e Israel provavelmente fará o mesmo.

Mas será que punir os clientes não acaba por prejudicar as prostitutas?

Vamos imaginar um modelo simples de oferta e procura:

A vermelho temos a oferta, a azul a procura, e inicialmente o preço será "P1" e a quantidade "Q1" (o preço está no eixo dos Yx e a quantidade no eixo dos Xs); até este momento não há grande diferença entre estarmos a falar de prostituição ou de ir ao cabeleireiro.

Agora vamos imaginar que começa a haver punições legais para os clientes das prostitutas; isso vai, em principio, reduzir a procura (para alguns poderá aumentar, em busca da emoção de estarem a fazer algo ilegal, mas duvido que esse efeito seja predominante).

A linha azul tracejada é a nova curva da procura, inferior à anterior: assim, o preço baixa de P1 para P2 e a quantidade também baixa de Q1 para Q2. Mas, se o preço dos seus serviços baixa, as prostitutas ficam sem dúvida prejudicadas - no esquema acima, o retângulo rosa corresponde ao prejuízo que as prostitutas têm pela baixa do preço (a área do retângulo corresponde à quantidade de serviços que vendem - Q2 - multiplicada pela redução do preço - a diferença entre P1 e P2). Se estivessemos a falar de outro serviço ou produto qualquer, tanto o retângulo rosa como o triângulo amarelo (este correspondendo ao prejuízo derivado de passarem a ter menos clientes) contariam como perdas de quem vende, mas como aqui reduzir a prostituição é mesmo o objetivo, vamos aceitar as premissas dos defensores do modelo nórdico e considerar que as prostitutas só são prejudicadas por passarem a receber menos por cliente, mas não por passarem a ter menos clientes.

Claro que o efeito total disto - sobretudo a questão do reduzir preço versus reduzir o número de clientes - depende do formato da oferta da prostituição; se as prostitutas tiveram muitas alternativas e puderem facilmente mudar de profissão se passarem a ganhar menos na prostituição, a oferta será largamente elástica (o que nos quadros acima corresponderá a uma linha perto do horizontal), pelo que uma redução da procura levará sobretudo a uma redução da prostituição, com uma pequena redução dos preços:

Numa situação destas, o prejuízo para as prostitutas é muito reduzido, quer o meçamos apenas pela redução dos preços que recebem (a área rosa), quer incluamos também o prejuízo por terem menos clientes (a área amarela). O que há é uma redução significativa da prostituição - ou seja, um sucesso quase total do "modelo nórdico" face aos objetivos proclamados: reduzir a prostituição sem prejudicar as prostitutas.

Mas esse cenário (em que as prostitutas podem facilmente mudar para outra profissão qualquer) fará sentido? Provavelmente não; aliás, são os próprios defensores do "modelo nórdico" que enfatizam que as prostitutas não o são por sua vontade verdadeiramente livre, mas sim porque frequentemente não têm alternativa, devido a uma combinação de pobreza, baixas qualificações, dependências e exclusões sociais diversas. Nesse caso, será mais realista assumir que a oferta da prostituição será largamente inelástica, e que não é por os preços que os clientes pagam subirem ou descerem muito que a prostituição vai aumentar ou diminuir muito. Nesse caso, os efeitos da criminalização dos clientes serão mais estes:

Ou seja, haver uma redução significativa dos preços, mas não grande redução do número de mulheres a se prostituir (condizente com o facto de não terem outra alternativa realista de vida) - o único resultado significativo será as prostitutas passarem a ganhar menos; ou seja, se as premissas dos defensores do "modelo nórdico" estiverem corretas (e eu suspeito que estão), então o resultado será exatamente o contrário do pretendido: grande prejuízo pessoal para as prostitutas, mas quase nenhuma redução da prostituição.

Mas podemos imaginar um cenário ainda mais radical; vamos supor três hipóteses (nenhuma das quais me parece especialmente irrealista):

a) prostituta mãe solteira/divorciada/abandonada que precisa de se prostituir diariamente até arranjar dinheiro para alimentar os filhos

b) prostituta toxicodependente que precisa de se prostituir diariamente até arranjar dinheiro para a dose

c) prostituta "de luxo" que fixou como objetivo de carreira ter X apartamentos para alugar numa zona turística e viver desses rendimentos  e que pretende prostituir-se até conseguir comprar esses apartamentos (ou outro plano de investimentos qualquer, mas suspeito que comprar apartamentos deve ser o investimento preferido - e mais seguro - das pessoas sem formação na área financeira)

Essa situações podem ser bastante diferentes nalguns aspetos, mas têm um ponto comum: todas estas três prostitutas estão numa situação em que têm que se prostituir até obterem uma dada quantidade de dinheiro; o corolário será uma curva da oferta invertida, em que quanto menor o preço que receberem por cliente, mas terão que trabalhar - no caso a) e b) terão que atender mais clientes por dia até obterem o dinheiro que necessitam (eu diria que esses dois casos são quase idênticos em termos económicos, embora possam ser diferentes a nível de eventuais juízos morais), no caso c), terá que se prostituir por mais anos até conseguir comprar os tais apartamentos.

Assim, se este efeito fosse geral, e a curva da oferta da prostituição tivesse mesmo uma inclinação descendente, o resultado seria este:

A redução da procura, além de reduzir os preços, iria ainda aumentar (em vez de diminuir!) a prostituição, devido ao tal efeito de terem que atender mais clientes para ganharem o dinheiro que precisam ou querem (neste modelo não estou certo que o prejuízo para as prostitutas seja exatamente a área que pintei a rosa, mas se não for anda lá perto) - ou seja, um fracasso total da política face aos objetivos pretendidos (diga-se que, apesar de tudo, não acredito muito neste cenário de uma curva da oferta invertida - mesmo que uma redução dos preços leve cada prostituta individual a ter que atender mais clientes, de certeza que também levará menos mulheres a prostituírem-se, o que provavelmente anulará o efeito anterior).

Uma objeção que poderá ser feita a este modelo é que estou a assumir uma prostituta que fica com o rendimento do seu trabalho - no caso de uma prostituta escrava, a baixa do preço do seu trabalho não a irá prejudicar a ela, mas sim a quem a mantêm aprisionada e a obriga a prostituir-se (ficando com o dinheiro e dando-lhe provavelmente apenas o necessário para não morrer de fome), e até diminuirá o incentivo a raptar mulheres para as obrigar a prostituir; mas é duvidoso que haja (no mundo real, e não no mundo das telenovelas brasileiras ou dos filmes de ação norte-americanos) mesmo uma quantidade significativa de mulheres sequestradas e obrigadas a prostituir-se (alguns artigos sobre o assunto em vários países); parte desse mito é capaz de derivar da ambiguidade da expressão "tráfico de pessoas" (veja-se que essas medidas são invariavelmente apresentadas como um meio de combater o "tráfico de pessoas") - como alguém escreveu, "tráfico de pessoas" é usado sem grande critério para dizer três coisas diferentes:

a) imigração ilegal
b) trabalho escravo
c) prostituição

O estereótipo da "vítima de tráfico" é uma mulher introduzida ilegalmente no país por uma rede de "tráfico" e obrigada a prostituir-se - ou seja, a tripla, combinando os três pontos; esta ambiguidade semântica contribui para criar a ideia de que grande parte das prostitutas são escravas: porque são prostitutas e frequentemente imigrantes ilegais, foram automaticamente "traficadas", de acordo com algumas definições de "tráfico"; e se foram "traficadas", então são escravas, já que outras definições de "tráfico" associam-no a trabalho escravo.

Diga-se que isto tem alguma semelhança com o principio da incidência económica do imposto, que diz que quem paga um imposto não é quem a lei diz que paga o imposto,  mas sim sobretudo que tiver um comportamento menos sensível a variações de preços, e que é indiferente a lei dizer que um dado imposto é pago pelo cliente ou pelo vendedor (ou pelo empregador ou pelo trabalhador) - não é totalmente igual (porque sanções criminais não são exatamente iguais a impostos) mas anda perto.

[Uma nota quase de última hora - recentemente foi divulgado um estudo concluindo que todas as formas de criminalização da prostituição, incluindo a criminalização apenas dos clientes, levam a maior violência contra as prostitutas - Associations between sex work laws and sex workers’ health: A systematic review and meta-analysis of quantitative and qualitative studies (via The Guardian e Richard Stallman)]

1 comentários:

Anónimo disse...

No EUA a prostituição é legal desde que prostituta tenha 18 anos ou mais e que o acto seja registado em vídeo e comercializado, se tiver menos de 21 anos então não vai poder beber uma cerveja para limpar a garganta