15/01/19

Política, poder e dinheiro

Ainda a respeito disto, suspeito que muita coisa é melhor explicada se vista em termos de luta pela poder (ou pelo menos por status) do que por dinheiro em sentido estrito (já agora, ver também este post sobre o teletrabalho, que acaba por andar também à volta disso). Talvez durante grande parte da nossa história evolutiva as diferenças de poder ou status fossem mais relevantes das estritamente materiais - afinal, num clã de caçadores-recoletores provavelmente não há riqueza suficiente para ser possível sequer existir uma classe de ricos, mas já é possível existirem indivíduos muito mais influentes (ou por serem mais fortes, ou mais conhecedores, ou criarem melhores estratégias de caça, ou...) que outros (mas provavelmente já estou a divagar; daqui a pouco começo a fazer teorias envolvendo a dinâmica social de crustáceos marinhos...).

Alguns exemplos:

- Para níveis de rendimento similares, trabalhadores por conta de outrem tendem a ser mais de esquerda do que trabalhadores por conta própria; não haveria grande razão para isso se o único motivo de votar em políticas redistributivas fosse ter mais dinheiro, mas já fará se considerarmos que o verdadeiro problema é mais a submissão hierárquica do que o dinheiro

- Há muito mais polémica com altos ordenados de gestores do que de futebolistas ou celebridades do audiovisual; de novo, faz mais sentido se assumirmos um problema de poder do que propriamente de dinheiro (os gestores são poderosos, podem tomar decisões que - como consumidores dos seus produtos ou trabalhadores das suas empresas - podem afetar as nossas vidas, e por isso os seus altos vencimentos suscitam mais desconfiança)

- A usual oposição da classe patronal a medidas de expansão económica keynesiana, no mecanismo que Kalecki explicou há muitos anos (Political Aspects of Full Employment [pdf]): a economia crescer até pode ser maior para os seus lucros, mas muitos empresários gostam que haja muito desemprego porque isso lhes dá mais poder sobre os seus empregados

- O aparente entusiasmo dos conservadores norte-americanos (cuja ideologia supostamente é o "fusionismo" entre conservadorismo moral e liberalismo económico) por Donald Trump, com uma vida privada muito pouco cristã-evangélica e nem particularmente liberal na economia (protecionista, às vezes a favor de mais investimento público, muito menos anti-"estado social" que o típico Republicano...). Mas se considerarmos que o conservadorismo moral é apenas uma capa para defender a autoridade dos maridos sobre as mulheres e o liberalismo económico uma capa para defender a autoridade dos patrões sobre os empregados, tudo faz sentido: o perfil "machão" de Trump e a imagem de patrão autoritário que ele cultiva (nos seus reality shows - em que a imagem de marca dele era o "you are fired!" - ou na forma como enxovalha publicamente os seus assessores caídos em desgraça) representam ao objetivo final do programa conservador (mulheres e assalariados "no seu lugar"), mesmo que ele não se identifique muito com os meios preferidos dos conservadores ("valores familiares", "governo pequeno") para atingir esses objetivos (estes três artigos de Paul Krugman são interessantes a esse respeito).

- A atitude face à "caridade"; se a ideia for redistribuir rendimento, a caridade privada, à partida, seria tão boa como o estado social. Mas em termos de relações de poder social, é completamente diferente - se alguma coisa, pobres que estejam dependentes da caridade de um benfeitor se calhar estão ainda mais num estado de subordinação hierárquica do que pobres que tenham ajuda de ninguém

- A existência de greves: em termos puramente económicos, há uma certa irracionalidade num trabalhador fazer greve - perde um dia de ordenado e, caso a greve resulte, beneficiara de qualquer maneira, mesmo que não tivesse feito greve (nota - esta aparente irracionalidade é menos irracional se existirem fundos de greve); mas se há uma questão de poder pelo meio, a coisa muda de figura: durante a greve, em vez de o trabalhador ser o pau-mandado que faz o que lhe mandam, é o patrão ou o chefe que pode estar desesperado porque precisa do trabalho dele e não o tem ali ao pé, levando quase a uma inversão temporária (e se calhar mais psicológica do que real...) da relação de dependência.

Ora, se vermos a política como tendo a ver mais com relações de subordinação hierárquica do que apenas com economia no sentido mais estrito, faz sentido que muitas vezes as questões "sociais" tenham mais relevância que as "económicas"- pelo menos no ponto em que o debate político está atualmente, grande parte das políticas sobre "costumes" mexem quase diretamente com as relações de poder existentes na sociedade (ao ponto de serem chamadas pelos seus detratores de "engenharia social"); já as políticas económicas afetam não têm um efeito tão direto sobre as relações de poder (seria o caso se estivéssemos a discutir a autogestão ou o controlo operário - bem, nalguns países está-se a discutir a cogestão, e o RBI está a entrar na moda - mas o que se discute hoje em dia são sobretudo impostos e salários mínimos).

1 comentários:

joão viegas disse...

Ola Miguel,

Pessoalmente, não vejo uma tão grande oposição entre "material" e "espiritual" ou "imaterial". Julgo que quem defende a prioridade dada às questões "materiais" e, nomeadamente, "financeiras", "monetarias" ou "economicas", não esta necessariamente a afirmar a supremacia das riquezas sobre os outros bens (as honras e as amizades, para me referir às categorias dos antigos), mas apenas a lembrar que as riquezas "materiais" são, numa larga medida, condições e/ou meios de exercer as liberdades (logo, também, de alcançar os outros tipos de bens). O exercicio de liberdades, ou alias de poderes, supõe que se esteja de barriga relativamente saciada, a dignidade, logo a igualdade, supõe que sejamos olhados em relação à comunidade como um membro prestavel, o que quer também dizer alguém com capacidades (de trabalho, de contribuição financeira, etc.). Em Roma, o censor devia aferir, ao mesmo tempo, a riqueza do cidadão (logo a sua capacidade para contribuir para o exército) e a sua "moralidade", e não tenho a certeza que as duas coisas fossem claramente dissociadas.

E' claro que a afirmação acima não deve de maneira nenhuma levar (nem justificar) à alienação aos bens materiais, tão caracteristica da sociedade de consumo moderna. Quem abdica da sua independência, da sua liberdade de pensar, ou da sua faculdade de fazer amigos, para poder comprar um carro ou para ir de férias todos os anos ao algarve, não esta a utilizar as suas riquezas para aumentar as suas liberdades, mas ao contrario para diminui-las. Isto é insofismavel e, neste aspecto, concordo com o que dizes no post.

No entanto, pode acontecer, e muitas vezes acontece, exactamente o inverso : uma pessoa renunciar aos bens materiais que dariam conteudo e realidade às suas liberdades, em nome de pseudo-bens imateriais. As igrejas funcionam muito à base desse tipo de logro : "trabalha e sofre enquanto ca andas, que has de ser pago mais tarde no céu"... E não é evidente que algumas das nossas instituições economicas não funcionem da mesma maneira.

Estas dificuldades desaparecem numa larga medida, a meu ver, se aceitarmos que o "material" e o "imaterial" não são realidades claramente distintas, mas pelo contrario, realidades agendadas à realização dos mesmos bens. O util, o bem e o belo convergem, diziam os filosofos antigos. Assim, como dizes muito bem, devemos protestar contra os salarios baixos, mas sera sempre mais inteligente lutarmos por liberdades concretas, que muitas vezes poderão tomar um aspecto não monetario. Uma coisa não deve excluir a outra, nem me parece que devamos renunciar a uma em proveito da outra.

Este é um dos aspectos que eu gosto na filosofia pragmatica : ela assenta essencialmente num ponto muito simples, defendendo que a distinção que fazemos habitualmente entre meios e fins é numa larga medida uma falacia.

Um abraço