21/12/18

Porque há poucos fundos de greve em Portugal?

Já muito se falou da oposição do PCP à ideia de grevistas receberem enquanto fazem greve (e pelas declarações do Jerónimo de Sousa, parece que o problema não é só com esses fundos serem financiados via internet, ou mesmo com haver qualquer espécie de recolha de fundos que não as quotas sindicais - parece mesmo uma objeção de princípio aos fundos de greves, como uma conversa sado-masoquista de que o sacríficio da greve aumenta a consciência de classe).

Mas isto levanta uma discussão - porquê a raridade dos fundos de greve em Portugal (e, claro está, a raridade das campanhas de recolha de dinheiro, que só fazem sentido se houver fundos de greve)?

Veja-se que esses fundos são algo que existe largamente nos outros países e há quase 200 anos (não é difícil encontrar referências em literatura do século XIX).

Uma hipótese é que seja resultado da baixa sindicalização em Portugal, que faz com que haja pouca gente a descontar para fazer o tal fundo; ainda por cima a lei portuguesa proíbe a "closed shop" (isto, acordos laborais estipulando que a empresa só contrata trabalhadores filiados naquele sindicato), o que se existisse seria um incetivo à existência de fundos de greve (a partir do momento em que todos os trabalhadores da empresa X têm que descontar para o sindicato Z, começa a fazer um certo sentido para o sindicato criar um sistema em que na prática os fura-greves acabam por ser obrigados a subsidiar os grevistas). No entanto, mesmo em setores e/ou épocas com elevados graus de sindicalização não se ouviu falar muito em fundos de greve (e, de qualquer maneira, se é um problema de haver poucos sindicalizados a descontar para fundos, poderia-se criar fundos que também só reembolsariam os sindicalizados - era menos a entrar mas também menos a sair).

Eu suponho que é um subproduto da raridade em Portugal de greves prolongadas ("à americana"?) - aquele tipo de greve que dura até se chegar a um acordo; parece-me que em Portugal a tradição é mais a das "jornadas de luta" - greves de um ou dois dias, para mostrar "vejam como os trabalhadores estão unidos e combativos!" (veja-se aliás a importância que tem a batalha dos números sobre a adesão às greves, que é indicativa do papel de combate ritual-simbólico que a greve tem: interessa menos saber quanto prejuízo real a greve causou e mais quanto gente fez greve; é quase como se a greve fosse uma mega-sondagem)

Um aparte - além de todas aquelas greves que ouvimos falar, chegam aos serviços de recursos humanos (pelo menos na administração pública) muitos mais pré-avisos de greve da CGTP ou da Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública: sempre que há uma manifestação em Lisboa ou nas principais cidades, esses sindicatos mandam pré-aviso de greve semi-fictícios para justificar a falta de quem for à manifestação (eu em tempos trabalhei em recursos humanos e, na sequência de esse pré-aviso ter chegado, presenciei esta conversa entre uma delegada sindical e uma colega minha que estava a perguntar que greve era aquela: Delegada Sindical: "O pré-aviso é para se quiseres ir a manifestação, vais a Lisboa  coberta pela greve"; Colega: "Não, eu só vou a Lisboa coberta pela meu marido"). Mas dá-me a ideia que não são só estas greves (que ninguém houve falar) que são para fazer manifestações - mesmas as greves para serem mesmo feitas têm mais uma função propagandística que outra coisa qualquer.

E suspeito que isso é o resultado da estratégia dos partidos que controlam grande parte dos aparelhos sindicais, a começar pelo PCP: o objetivo das greves (quando esses partidos estão na oposição) é sobretudo fazer a vida difícil ao governo do momento e criar condições para que os partidos que dominam os sindicatos em questão tenham maior representação parlamentar na eleição seguinte; a vitória em si, no sentido de obrigar o patronato ou o governo a ceder às reivindicações é secundário (e interessa só na medida em que a greve tem que ter alguma probabilidade de sucesso porque senão ninguém a faz) - e reveja-se as declarações do Jerónimo, no momento em que ele diz que a greve com sacrifício contribuiu para desenvolver a sua consciência política. Basicamente, muitas das greves portuguesas não sem nem greves reformistas como nos EUA e nos países da Europa do Norte (em que as greves até podem ser muito mais duras, mas em tornos puramente de objetivos materiais dentro do sistema), nem greves revolucionárias para derrubar o governo ou mesmo toda a ordem estabelecida - são simplesmente ginástica ideológica, feita não para uma vitória imediata (seja reformista ou revolucionária), mas para "acumular forças", "desenvolver a consciência", etc (ou seja, fazer com que depois da greve haja mais pessoas a simpatizar com a ideologia dos promotores da greve do que antes). E para isso, as greves de dois dias servem - mantêm o pessoal agitado sem se emburguesar e até têm as vantagem adicionais de não hostilizarem muito a opinião pública (o que poderia representar votos para a direita na tal eleição seguinte) e também a de não precisarem de ser ganhas: uma greve permanente até haver um acordo normalmente acaba com uma vitória (caso o patronato ceda) ou uma derrota (caso o sindicato decida suspender a greve sem obter as reivindicações). Pelo contrário, uma greve intermitente de um dia ou dois pode não atingir os seus objetivos que ninguém acha isso uma derrota do sindicato, já que dá para o cenário de " a luta continua", com os sindicalistas e os seus partidos a falar do assunto, fazer umas mini-greves e a capitalizar com ele durante anos.

Assim, do ponto de vista da promoção política, greves ocasionais de dois dias fazem mais sentido do que greves permanentes até haver um acordo - no primeiro caso, há quase 100% de hipóteses dos sindicalistas e dos seus partidos ganharem protagonismo e influência (só perdem caso convoquem uma greve e esta tenha visivelmente uma adesão muito reduzida); no segundo, há 50% de hipóteses de perderem essa influência e protagonismo (em caso de derrota de uma greve prolongada, é suficiente para abalar a carreira de um líder sindical), e nem estou certo que os 50% de vitória garantam muito mais protagonismo a longo prazo do que estar à frente de lutas que não atam nem desatam (ironicamente, se vermos a coisa do ponto de vista dos partidos e não dos sindicalistas individuais, até é possível que uma luta que se arrasta durante anos com greves episódicas dê mais votos que uma luta vitoriosa - para quê votar no partido tal nas eleições se o problema já foi resolvido?).

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