25/11/19

Houve ou não fraude eleitoral na Bolívia? (II)

Este assunto parece já ter perdido alguma relevância, já que as várias partes envolvidas já estão numa espécie de processo de acordo, mas de qualquer maneira temos aqui um post de um norte-americano perito em estatística e ciência política, Andrew Gellman (famoso pelo livro "Red State, Blue State, Rich State, Poor State Why Americans Vote the Way They Do") , exatamente sobre esses dois documentos com conclusões opostas.

Gellman não se pronuncia muito, dizendo que percebe muito pouco da Bolívia, mas parece-me que acha o estudo do CEPR (que diz que não houve fraude) um bocadinho melhor (pelo menos na parte da análise matemática) que o da OEA.

22/11/19

Houve ou não fraude eleitoral na Bolívia?

Duas leituras sobre o assunto, cada qual com a sua inclinação:

Statement of the Group of Auditors Electoral Process in Bolivia, publicado pela OEA, indicando que provavelmente ouve fraude

No Evidence That Bolivian Election Results Were Affected by Irregularities or Fraud, Statistical Analysis Shows, publicado pelo Center for Economic and Policy Research, indicado que provavelmente não houve fraude

Diga-se que há uma diferença de estilo entre os dois relatórios - o relatório da OEA concentra-se sobretudo na questão "a maneira como os votos foram contados tornou fácil aldrabar os resultados?" (concluindo que sim), e o do CEPR na questão "os resultados finais anunciados são resultados muito diferentes do que seria de esperar numa eleição limpa?" (concluindo que não).

N-ésima prova de que a extrema-direita não se baseia nas redes sociais

Right-Wing Populism, Social Media and Echo Chambers in Western Democracies[pdf], por Shelley Boulianne, Karolina Koc-Michalska, and Bruce Bimber (via Tyler Cowen):
Many observers are concerned that echo chamber effects in digital media are contributing to the polarization of publics and in some places to the rise of right-wing populism. This study employs survey data collected in France, the United Kingdom, and United States (1500 respondents in each country) from April to May 2017. Overall, we do not find evidence that online/social media explain support for right-wing populist candidates and parties. Instead, in the USA, use of online media decreases support for right-wing populism. 
Isto é mais ou menos o que eu já tinha dito aqui;
Vamos puxar um bocadinho pela cabeça - é mais ou menos sabido que Trump, o Brexit, o FPOe austríaco, etc., têm tido as suas maiores votações nas pequenas localidades, entre as pessoas mais velhas e com menos instrução (a parte das localidades é sabido - basta ver os resultados; a parte do "pessoas mais velhas e com menos instrução" pode não ser assim tão linear, mas é o que as sondagens indicam); parecem-lhes mesmo o tipo de pessoa que passa o dia no Facebook, talvez com um intervalinho para jogar no Farmville ou para ver um filme no Netflix? Eu imagino-os mais facilmente no café do bairro a queixarem-se que "os miúdos de hoje estão sempre agarrados à máquina e já não fazem desporto nem convivem".

A policia lançando gás lacrimogénio sobre a marcha com os mortos nos protestos bolivianos

21/11/19

O massacre de ontem na Bolívia

What happened was a massacre': grief and rage in Bolivia after day of deadly violence (The Guardian):
Eight young Bolivians were killed in El Alto on Tuesday, and locals say the interim government of Jeanine Áñez is to blame

19/11/19

José Mário Branco. Um dia triste

Morreu o José Mário Branco. Morre com ele um pouco de todos aqueles que acreditaram sempre que era possível construir uma sociedade mais justa, realizar a Mudança para um mundo melhor.


18/11/19

Os maiores massacres do século XX

30 Worst Atrocities of the 20th Century (mortos em percentagem da população), por Matthew White (via Noah Smith):



Ajuda a pôr isto em contexto.

17/11/19

Protesto psicadélico no Chile


16/11/19

A liberdade de imprensa na nova Bolívia


15/11/19

O Gulag era diferente de Auschwitz

Anne Applebaun, em Gulag - Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos, (páginas 23-25):
Nada  disso  significa  que  os  campos  soviéticos  e  nazistas  fossem  idênticos. Conforme   qualquer   leitor   com   algum   conhecimento   geral   do   Holocausto  descobrirá  no  decorrer  deste  livro,  a  vida  no  sistema  de  campos  soviético  diferia  de  muitas  maneiras  (quer  sutis,  quer  óbvias) da  vida  no  sistema  de  campos  nazista.  Havia  diferenças  na  organização  do  cotidiano  e  do  trabalho,  diferentes  tipos  de  guardas  e  punições,  diferentes  tipos  de  propaganda.  O Gulag  durou  muitíssimo  mais  e  passou  por  ciclos  de  relativa  crueldade  e  relativa humanidade. A história dos campos nazistas é mais curta e apresenta  menos  variações:  eles  simplesmente  se  tornaram  cada vez  mais  cruéis,  até  serem  destruídos  pelos  alemães  em  retirada  ou  libertados  pelos  Aliados.  O Gulag  também  continha  variedade  maior  de  campos,  desde  as  letais  minas  auríferas  da  região  de  Kolyma  até  os "luxuosos"  institutos  secretos  nas  cercanias  de  Moscou,  onde  cientistas  aprisionados  projetavam  armas  para  o Exército  Vermelho.  Embora  existissem  diferentes  espécies  de  campo  no  sistema nazista, a gama era muitíssimo menor.

Sobretudo,  duas  diferenças  entre  os  sistemas  me  parecem  fundamentais.  Em  primeiro  lugar,  a  definição  de  "inimigo"  na  URSS  sempre  foi  muito  mais  vaga  que a de "judeu" na Alemanha nazista. Nesta, com número muito pequeno de  exceções  incomuns,  nenhum  judeu  podia  alterar  sua  condição,  nenhum  judeu  preso num campo podia ter esperança racional de escapar à morte, e todos os  judeus  estavam  cientes  disso  o  tempo  todo.  Embora  milhões  de  prisioneiros  soviéticos  temessem  pela  própria  vida  -  e  milhões  deles  tenham  realmente  morrido -,  não  havia  nenhuma  categoria  de  prisioneiro  cuja morte  estivesse  absolutamente  garantida.  Por  vezes,  certos  presos  podiam  melhorar  sua  situação   em postos de trabalho relativamente   confortáveis, como os de engenheiro ou geólogo. Em cada campo, havia uma hierarquia de prisioneiros, na  qual  alguns  eram  capazes  de  subir  à  custa (ou  com a ajuda) de  outros.

Outras vezes - quando o Gulag se via sobrecarregado de mulheres, crianças e  idosos,  ou  quando  se  necessitava  de  soldados  para  a frente  de  batalha  -,  os  presos  era  soltos  graças  a  anistias  maciças.  Em  certos  momentos,  acontecia  que  categorias  inteiras  de  "inimigo"  se  beneficiavam  subitamente  de  uma  mudança de condição. Em 1939, por exemplo, no começo da Segunda Guerra Mundial,  Stalin  prendeu  centenas  de  milhares  de  poloneses  -  e  depois,  em 1941,  ele  os  libertou  de  chofre,  quando  a  Polônia  e a  URSS  se  tornaram  temporariamente aliadas. O oposto também se aplicava: na URSS, os próprios  opressores  podiam  virar  vítimas.  Guardas  e  administradores  do  Gulag  e  até  altos  funcionários  da  polícia  secreta  também  podiam  ser  aprisionados  e  condenados   aos   campos.   Em   outras   palavras,   nem   todas as "víboras"  conseguiam  manter  as  presas  -  e  não  havia  nenhum  grupo  específico  de  prisioneiros soviéticos que vivesse na expectativa  constante da morte.

Em segundo lugar (conforme, mais uma vez, ficará claro no decorrer do livro), o  propósito  primordial  do  Gulag,  segundo  tanto  a  linguagem  privada  quanto  a  propaganda  pública  daqueles  que  o  fundaram,  era  econômico.  Isso  não  significa  que  o  sistema  fosse  humanitário.  Nele,  os prisioneiros  eram  tratados  como  gado,  ou  melhor,  como  pedaços  de  minério  de  ferro.  Os  guardas  os  faziam ir para lá e para cá a seu bel-prazer, embarcando-os e desembarcando- os  de  vagões  de  gado,  pesando-os  e  medindo-os,  alimentando-os  se  parecia  que poderiam vir a ser úteis, deixando-os à míngua  quando não o eram. Para  usarmos  a  linguagem  marxista,  os  prisioneiros  eram  explorados,  reificados  e  mercantilizados. A menos que fossem produtivos, suas vidas não valiam nada  para seus senhores.

Sua  vivência,  porém,  era  muito  diferente  daquela  dos  judeus  e  dos  outros  prisioneiros que os nazistas enviavam para um grupo especial de campos que  se  chamavam  não  Konzentrationslager,  mas  Vernichtungslager  -  campos  que  não  era  realmente  "campos  de  trabalhos  forçados",  e  sim  usinas  da  morte. Havia  quatro  deles:  Belzec,  Chelmno,  Sobibor  e  Treblinka.  Já  Majdanek  e Auschwitz  continham  tanto  campos  de  trabalhos  força dos  quanto  campos  de  extermínio.  Ao  entrarem  nesses  campos,  os  prisioneiros  passavam  por  uma "seleção".   Um   número   ínfimo   era   designado   para   algumas   semanas   de  trabalhos  forçados.  O  restante  era  mandado  direto  para  as  câmaras  de  gás,  onde os assassinavam e então cremavam de imediato.

Até  onde  pude  comprovar,  essa  forma  específica  de  homicídio,  praticada  no  auge do Holocausto, não teve equivalente na URSS. É bem verdade que esse último  país  encontrou  outras  maneiras  de  chacinar  centenas  de  milhares  de  cidadãos.  Geralmente,   eles   eram   conduzidos  à   noite  para   uma  floresta,  alinhados,  baleados  na  nuca  e  enterrados  em  sepulturas  coletivas  antes  mesmo  de  chegarem  perto  de  um  campo  de  concentração -  modalidade  de  homicídio  não menos  "industrializada"  e  anônima  que a usada  pelos  nazistas. Há   mesmo   histórias   de   que   a   polícia   secreta   soviética   usou   gás   de  escapamento  (uma  forma  primitiva  de  gás  venenoso)  para  matar  prisioneiros,  da   mesma   forma   que   os   nazistas   fizeram   no   começo. No   Gulag,   os  prisioneiros também morriam, em geral graças não à  eficiência dos captores, e  sim  à  incompetência  e  à  negligência  crassas. Em  certos  campos  soviéticos em   determinadas   épocas,   a   morte   era   praticamente   certa   no   caso   dos escolhidos  para  cortar  árvores  nas  florestas  hibernais  ou  trabalhar  nas  piores minas  auríferas  de  Kolyma.  Prisioneiros  também  eram trancados  em  celas punitivas  até  morrerem  de  frio  ou  inanição,  largados  sem  tratamento  em hospitais  subaquecidos  ou  simplesmente  baleados  por  "tentativa  de  fuga" quando dava na telha dos guardas. Entretanto, o sistema soviético de campos como um todo não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial - mesmo que às vezes o resultado fosse esse.

São distinções sutis, mas importantes. Embora o Gulag e Auschwitz realmente  pertençam  à  mesma  tradição  intelectual  e  histórica,  eles  ainda  assim  são  fenômenos separados e diferentes, tanto um do outro quanto dos sistemas de  campos  estabelecidos  por  outros  regimes.  A  idéia  de campo  de  concentração  talvez seja genérica o bastante para que a usem em  culturas e situações muito  diversas,  mas  até um estudo  superficial  da história transcultural  desse  tipo  de  campo revela que os detalhes específicos - como se  organizava a vida, como o  estabelecimento   se   desenvolvia   no   decorrer   do   tempo, quão rígido ou  desorganizado  se  tornava,  quão  cruel  ou  liberal  permanecia  -  dependiam  do  país, do regime político e da cultura. Para quem estava encurralado atrás do arame farpado, esses detalhes eram cruciais para a vida, a saúde e a sobrevivência.

Regressando ao Chile - nova constituição à vista

Chile anuncia plebiscito para nova Constituição em abril de 2020 (Veja):
Congressistas chilenos anunciaram, em coletiva de imprensa nesta sexta-feira 15, que o país realizará um plebiscito em abril de 2022 para estabelecer uma nova Constituição, substituindo a atual que remota ao período de ditadura militar. A medida é uma resposta do governo após quase um mês de protestos pelo país, que deixaram ao menos 22 mortos.

O plebiscito deve questionar primeiramente se a população está de acordo com a formulação de uma nova Constituição. Aos eleitores que responderam que sim, o modelo deve perguntar também quem deve formar a assembleia constituinte: apenas cidadãos eleitos para essa função ou uma comissão mista incluindo congressistas.
A noticia fala em 2020 no título e em 2022 no corpo do artigo, mas lendo o acordo assinado entre os partidos políticos é mesmo 2020:

13/11/19

A nova "presidente" da Bolívia

Jeanine Añez Chavez tomou posse como presidente da Bolívia ("presidente constitucional", como ela se proclama no Twitter); diga-se que a constituição boliviana não é muito clara sobre o que acontece se o presidente, o vice-presidente, o presidente do senado e o presidente da câmara dos deputados se demitirem[pdf] (e de qualquer maneira a reunião do parlamento em que ela assumiu o cargo não tinha quorom porque os deputados do MAS não participaram):
En caso de impedimento o ausencia definitiva de la Presidenta o del Presidente del Estado, será reemplazada o reemplazado en el cargo por la Vicepresidenta o el Vicepresidente y, a falta de ésta o éste, por la Presidenta o el Presidente del Senado, y a falta de ésta o éste por la Presidente o el Presidente de la Cámara de Diputados. En este último caso, se convocarán nuevas elecciones en el plazo máximo de noventa días (artº 169º, ponto 1).

Parece que o tribunal constitucional da Bolívia disse que a posse dela era legítima, mas a esse respeito já alguém escreveu "A constitutional court also said Morales could run again in spite of an obvious constitutional prohibition against it. I'm not sure Bolivia's constitutional court is doing the best job checking the power of the presidency."

Alguns comentários que li por aí à sua posse:
Além disso, consta que ela terá publicado isto no Twitter (e posteriormente apagado):

É possível que isto seja fake, já que não se encontra o original em lado nenhum; num entanto, usando a Wayback Machine é possivel recuperar este tweet dela, também apagado, onde ela me parece associar o ano novo aymara ao satanismo:

12/11/19

Evo Morales e o golpe na Bolívia

O desempenho dos governos liderados por Evo Morales do ponto de vista da redução da desigualdade foi extraordinário. Sendo a  Bolívia um país muito pobre a redução para metade da população afectada pela pobreza e o aumento do salário mínimo, passando de 54 para 305 dólares, são marcos assinaláveis.

No entanto, Morales e a estrutura partidária que o suporta não foram capazes de quebrar a lógica da pessoalização da política, típica da América Latina. O presidente boliviano é o mais antigo presidente em funções na América Latina e, nas eleições agora realizadas, cometeu vários erros, que os seus adversários aproveitaram. O primeiro foi a sua recandidatura. Faz muita confusão que ao longo de 14 anos não tenho sido possível encontrar alguém com capacidade para continuar a liderar o projecto político de que Morales foi a face visível. Faz muita confusão, por outro lado, que estes dirigentes sejam incapazes de aceitar - e de compreender - os resultados eleitorais, quando estes os penalizam.

Quando falo de adversários refiro-me aos adversários políticos e às grandes corporações que olham para a Bolívia como olham para qualquer outro país: um jazigo de matérias primas e de mão de obra escrava, prontos a serem utilizados.

O que terá ajudado ao golpe de estado, que o Exército concretizou contra Morales, foi a decisão que o Presidente tomou relativamente às reservas de lítio existentes no país, em particular a sua decisão de cancelar um acordo com uma multinacional alemã. Os recursos existentes na Bolívia, ou noutro qualquer país, não são das populações. São das multinacionais, que não olham a meios para atingir os seus fins. Afinal, como aprendemos depois da crise de 2008, o neoliberalismo é a lógica do mercado imposta pela violência, como nos recorda Paul Mason* no seu último livro.

As reacções políticas por cá - com excepção do PCP e do BE - e em geral na União Europeia são nulas.

* - Um futuro Livre e Radioso. Uma defesa apaixonada da Humanidade. Paul Mason. 2019. Objectiva. Grupo Editorial da Penguin Random House.




11/11/19

Ponto de ordem

É possível achar simultaneamente que:

a) Evo Morales violou a constituição (recandidatando-se) e tentou uma fraude eleitoral

b) o que aconteceu ontem ao fim do dia na Bolívia foi um golpe de Estado

10/11/19

Por falar em reações ao muro de Berlim

Monica Crowley, atualmente da Administração Trump:

09/11/19

A reação de um extremista de esquerda de 16 anos à queda do Muro de Berlim

9 de novembro de 1989.

Cinco meses antes, em março e abril, tinha havido as primeiras eleições na URSS em que, desde o princípio dos anos 20, tinha havido algo parecido com candidatos da oposição; em abril tinham começado protestos na China, na sequência da morte de Hu Yaobang (um dirigente reformista do PC, demitido por alegadamente ter sido muito tolerante com outros protestos em 1986-87) e durante quase dois meses era tema central dos telejornais a enorme manifestação de estudantes na Praça Tienanmen (cantando, note-se, A Internacional). Mas, a 4 de junho, o mundo acordou com duas noticias (ou pelo menos foram as duas noticias que abriram o jornal das 13 da RTP desse domingo) - uma a morte do ayatollah Khomeini do Irão; outra que o exército tinha avançado sobre os manifestante de Pequim, provocando cerca de 4 mil mortos. Ao fim do dia, outra noticia - nas eleições polacas, nos poucos círculos eleitorais em que o governo comunista tinha permitido candidaturas oposicionistas, o Solidariedade teve uma vitória esmagadora e ganhou, penso todos os lugares - no entanto, aparentemente os comunistas (isto é, o Partido Operário Unificado Polaco - em muitos países de Leste, o partido comunista não se chamava Partido Comunista) e os seus dois partidos-fantoches (o ZSL - Partido Popular Unido, camponês, e a SD- Aliança dos Democratas) continuavam a ter a maioria do parlamento.

No entanto, em agosto dá-se uma reviravolta - o ZSL e a SD mudam de campo e aliam-se ao Solidariedade; a nova aliança tem a maioria no parlamento e pela primeira vez o partido comunista é afastado do governo de um país do bloco soviético; em outubro, uma segunda baixa - o Partido Socialista Operário Húngaro muda o nome para Partido Socialista Húngaro, o que é descrito por toda a gente como "os comunistas húngaros passaram a socialistas" (para falar a verdade, se ligarmos só à mudança de nome oficial, não me pareceu uma mudança muito grande, de "Socialista Operário" para "Socialista"); o governo húngaro já havia largamente aberto a fronteira com a Áustria,  e em breve os alemães orientais começam a fazer em massa o percurso RDA-Checoslováquia-Hungria-Áustria-RFA. Em outubro, o líder comunísta da RDA, Erich Honnecker, é substituído por Egon Krenz; no entanto, os cidadãos da RDA acham que é uma mudança cosmética e generalizam-se os protestos contra o regime, que atingem o seu pico na manifestação de 4 de novembro.

Finalmente, na manhã de 9 de novembro o governo da RDA dá ordens para abrir as portas do Muro de Berlim; e o resto é história, como se diz.

Após esta pequena introdução, vamos ao que interessa - o que é que um extremista de esquerda português, um estudante de 16 anos, que pouco antes se tinha convertido ao trotskismo (ou ao que ele considerava "trotskismo" - mais à frente explico), pensou dos acontecimentos.

Para começar, alguns estarão a pensar "trotskista aos 16 anos? Isso não é muito cedo para alguém lhe dar essas pancadas?"; mas penso que não - isto é, a maior parte das pessoas nunca lhes chega a dar para isso, mas os que andam ou andaram por esses caminhos acho que começam quase todos por essa idade, mais ano menos ano.

Em segundo lugar, uma coisa que logo na altura notei, e que continuo a notar hoje em dia, é enorme confusão que quase toda a gente da direita e do centro (e também os apolíticos) fazia e faz entre a extrema-esquerda e os Comunistas-com-C-grande; na verdade, sobretudo até 1989, a divisão era clara: os Comunistas-com-C-grande defendiam a URSS, enquanto a extrema-esquerda (pelo menos no sentido em que a expressão é normalmente usada nos países latinos) consideravam os governos de Moscovo e dos seus satélites como um grupo de contra-revolucionários traidores ao socialismo, que teriam que ser derrubados pela revolução dos trabalhadores. Hoje em dia uma complicação adicional é que a posição "a URSS não é/era o verdadeiro socialismo" deixou de ser uma posição defendida por grupúsculos obscuros que raramente chegavam aos 1% em eleições para passar a ser largamente o mainstream da esquerda, o que obscurece essa diferença de posições; mas já nessa altura acho que quase ninguém percebia essa diferença: alguns dos meus colegas na altura diziam-me "pensei que estivesses desmoralizado", quando eu andava era eufórico com a queda dos regimes "estalinistas", e era difícil tentar explicar-lhes que a queda do "estalinismo" era razão para um trotskista ficar contente, não triste (curiosamente, dos meus amigos da altura, o que mais percebia a lógica interna do meu raciocínio, o Luís A., era provavelmente o mais solidamente de direita e anti-socialista - ainda que achasse que o tal "verdadeiro socialismo" era impossível e condenado ao fracasso, era também quem percebia melhor o argumento que a URSS não era socialista). Para exemplos mais modernos de confusões similares, ver estes meus dois posts de 2006 -Re: A "Esquerda Florida" e Re: A "Esquerda Florida" (II) e o Muro de Berlin.

Bem, e além do meu entusiasmo pela queda do "estalinismo", o que é que eu julgava que ia ser o desfecho da queda do muro e acontecimento concomitantes? Estava (nos primeiros meses, ou pelo menos semanas) convencido que o resultado ia ser a implantação de um sistema económico de tipo autogestionário ou coisa parecida nesses países, e que tal iria servir de inspiração para os paises ocidentais,sendo o primeiro ato da revolução mundial que iria também acabar com o capitalismo (hei, o que é que queriam que alguém que, na altura, era um trotskista pensasse?) - o meu raciocínio: a privatização das empresas estatais iria originar despedimentos e uma quebra do nível de vida dos trabalhadores, logo isso seria impossível de impor a povos acabados de sair de revoluções (afinal, veja-se que, no Ocidente, os defensores do liberalismo económico tendem a ser também os maiores defensores de "governos fortes capazes de tomar medidas impopulares"), ainda mais atendendo o que os prováveis beneficiários dessas privatizações seriam os quadros do regime anterior (que era quem ainda teria algum dinheiro e contactos para conseguir adquirir essas empresas) - assim, o desfecho mais provável seria o que muitas vezes acontece em situações revolucionárias: os trabalhadores a criarem comités de empresas, sanearem os seus chefes e implantarem uma espécie de autogestão ou controle operário (e se isso acontece em revoluções em países capitalistas, ainda mais se esperaria que acontecesse num sistema de economia estatizada, em que por definição os administradores são representantes do regime, logo ainda mais faz sentido a formação de conselhos operários para assumirem a direção dos locais de trabalho, à maneira da Hungria em 1956).

Aliás, uns meses depois, já em 1990, cheguei a escrever um texto prevendo que isso iria acontecer na Polónia - um levantamento operário que oporia de um lado os sindicatos (nomeadamente o Solidariedade) e do outro o exército, os novos capitalistas e o PC (o texto não foi para ser publicado em lado nenhum - era mesmo eu que tinha que treinar a letra e portanto, já que tinha que escrever qualquer coisa, aproveitava para passar para o papel as minhas divagações mentais, mesmo que ninguém as fosse ler).

A partir de 90/91 (à medida que em todas as eleições que iam sendo feitas nesses países, quem ganhava era a direita e não a esquerda anti-estalinista), percebeu-se claramente que não era essa o rumo que as coisas iam levar; mas, mesmo hoje em dia não acho que as minhas previsões/esperanças fossem totalmente descabidas - havia efetivamente muita coisa no "ar do tempo" que levava que a saída autogestionária não parecesse completamente descabida:

a) Em primeiro lugar, era mesmo uma evolução em parte nesse sentido que estava a ser posta em prática na URSS, nos tempos de Gorbachov - entregar a gestão das empresas estatais aos coletivos de trabalhadores

b) Inicialmente, o movimento de protesto na RDA era largamente dinamizado (ou, pelo menos, era o único grupo oposicionista organizado que existia, além das igrejas) pelo Neues Forum, que depois veio a integrar-se com os Verdes da RFA, e que defendia a democracia política (com alguma ênfase a democracia de base) e as liberdades civis, mas sem grande entusiasmo pelo capitalismo - ou seja, praticamente o equivalente daquilo que no ocidente se chama de "esquerda alternativa" ou "esquerda folclórica"; em compensação os partidos de direita, nomeadamente a CDU, até à queda do regime eram partidos-fantoche (estilo PEV) do partido comunista na chamada "Frente Nacional"; claro que quando finalmente foram as eleições a CDU teve 40% e o Novo Fórum e os seus aliados tiveram 3%, apesar do passado colaboracionista da primeira e oposicionista do segundo

c) Na Checoslováquia, a ala trotskista (+ "companheiros de estrada") do Forum Cívico (a aliança oposicionista) até parecia ter alguma influência, já que o seu lider, Petr Uhl, foi um dos deputados mais votados (ou mesmo talvez o mais votado) nas primeiras eleições livres; mas esfumou-se completamente (os votos em Uhl devem ter tido mais a ver com o seu papel de intelectual oposicionista do que com simpatia ideológica por ele)

d) Isto até só soube há pouco tempo (não quando tinha 16, 17 ou 18 anos - nem os jornais que os meus pais compravam nem a revista trotskista - "Combate", que por qualquer razão se vendia no quiosque à frente da escola - que eu comprava falavam disto, ao contrário dos pontos anteriores), mas nalguns grupos oposicionistas soviéticos (ou pelo menos moscovitas) houve realmente mesmo um grande disputa entre liberais e  socialistas democráticos autogestionários

Ou seja, a queda do comunismo, ou do estalinismo, ou do que lhe queiramos chamar, veio acompanhada do aparecimento de movimentos autogestionários, eco-socialistas, trotskistas, etc suficiente para convencer quem quisesse ser convencido de a verdadeira revolução socialista vinha ai.

Agora, 30 anos depois, vamos lá rever isto:

Em primeiro lugar, ali atrás falei em «um estudante de 16 anos, que pouco antes se tinha convertido ao trotskismo (ou ao que ele considerava "trotskismo" - mais à frente explico)»; a verdade é que eu, supostamente um trotskista entusiasta, pouco mais sabia sobre o trotskismo do que tinha visto nalguns tempos de antena do PSR, da POUS e da FER (hei, não é que em 1989 fosse fácil obter informação sobre temas obscuros - não havia a Internet para ir ver à Wikipedia, ao Google ou ao Marxists.org; este tipo de assunto era conhecido lendo livros velhos à venda em quiosques e livrarias com ar decrépito, e normalmente só em Lisboa; mas consegui comprar um exemplar d'A Revolução Traída em Portimão); à medida que, anos mais tarde, foi conhecendo melhor o trotskismo, cheguei à conclusão que eu na verdade estaria mais na linha de dissidentes como Max Shachtman, Bruno Rizzi ou pelo menos Tony Cliff. Ou dito por outras palavras - a minha ideia (que era largamente o "senso comum" nos anos 80) era que a URSS tinha uma sociedade exploradora, em que os dirigentes do partido, do estado e das empresas públicas tinham substituído os capitalistas como uma classe dominante; já a posição trotskista é muito mais complexa e talvez ambígua - é de que esses dirigentes já eram uma casta privilegiada mas ainda não uma classe privilegiada, e portanto a sociedade soviética ainda não era bem uma nova forma de sociedade exploradora, mas uma sociedade a meio-caminho entre o capitalismo e o socialismo (mas isto é melhor explicado aqui e aqui). Mas  a minha evolução ideológica posterior fica para altura.

Em segundo lugar, no meio do falhanço total das minhas expetativas da altura, não deixa de ser verdade que nalguns países foram realmente os ex-comunistas (agora "socialistas") que mais entusiaticamente venderam as suas economias ao capitalismo global, e foi de movimentos com raiz na antiga oposição e grande apoio nas classes populares que ainda veio alguma resistência - só que essa resistência não veio da esquerda, como eu esperava, mas da direita, do nacional-conservadorismo do Fideszs húngaro ou da Lei e Justiça polaca, cuja ideologia combina um profundo nacionalismo e conservadorismo social com pelo menos alguma moderação no capítulo do liberalismo económico.

Em terceiro lugar, eu pertenço à ultima fornada de radicais de esquerda que aderiram a correntes dessa área quando ainda o modelo soviético do socialismo parecia relativamente sólido e para quem a oposição à URSS e ao comunismo ortodoxo era um aspeto quase tão fundamental da sua identidade política como a oposição ao capitalismo; interrogo-me se nas gerações mais novas de pessoas que aderem a ideologias à esquerda do comunismo ortodoxo a atitude não será diferente. P.ex., há dias, face ao abandono por grande parte da esquerda da greve dos camionistas, alguém de direita me dizia "estás a ter tempo de vida suficiente para constatares em directo e pessoalmente a hipocrisia e dualidade da esquerda real."; claro que para alguém cuja formação política ainda foi muito influenciada pela luta contra o estalinismo, isso não tem muito de especial: a ideia de os sindicatos oficiais e grande parte da intelectualidade de esquerda estarem do lado oposto (e provavelmente prontos a se aliarem à burguesia) era quase a ordem natural das coisas; será também assim para os mais novos?

Finalmente, há dias parece que se andou a falar muito de um artigo cujo autor foi descrito como "um beto de 17 anos"; se há 30 anos houvesse a tecnologia atual e se eu já pudesse publicar as minhas teorias na Internet, se calhar seria chamado de "um lunático de 16 anos" ou coisa parecida; já agora, a respeito desse artigo, vi comentários que estaria demasiado elaborado para um adolescente de 17 anos; perfeito disparate - se alguma coisa, até por experiência própria, creio que adolescentes que se interessem por um qualquer tema (sobretudo se for um tema que dependa largamente da reflexão, como filosofia, matemática ou política) provavelmente até têm mais capacidade que adultos para fazerem textos elaborados, já que têm mais disponibilidade para passarem muito tempo a pensar (já os adultos têm que pensar nos problemas da vida deles, e portanto não têm muito tempo para esses raciocínios teórico-abstratos).

08/11/19

O novo partido da burguesia alemã?

Ou talvez seja a demonstração de uma ideia que me ocorreu há uns dias (a respeito de uma discussão no Facebook - motivada por um artigo de opinião no Obervador - sobre se hoje em dia os "betos" eram "o sistema" ou "anti-sistema") - que existe uma divisão política entre duas facções da classe dominante: aqueles cuja riqueza atual é o resultado de rendimentos ocorridos no passado (isto é, são ricos porque acumularam o dinheiro que - eles mesmos ou os seus antepassados - foram ganhado) e aqueles que é o resultado de rendimentos previstos para o futuro (isto é, são ricos porque o valor de mercado das suas empresas já reflete, não apenas o seu stock de capital, mas sobretudo as expetativas de lucros futuros). O primeiro grupo tende a alinhar-se com uma direita liberal na economia e conservadora nos costumes; já entre o segundo grupo (onde se incluem os fundadores de start-ups) se calhar há um núcleo significativo alinhado com um centro-esquerda centrista na economia e progressista nos costumes.

Mas não sei se esta intuição é testável ou sequer explicável.

07/11/19

Policias absolvidos de espancar e cegar porque se encobriram mutuamente

Agentes da PSP acusados de agredir e cegar adepto em Guimarães foram absolvidos (SAPO 24) - recomendo a leitura do artigo todo:



06/11/19

Os pobres votam no PS (e também muitos no PCP)

Como se pode ver pelas estatísticas disponíveis; estranho era se não votassem desproporcionadamente nos partidos que propõem politicas redistributivas, como se tentou argumentar. Diga-se que nem era preciso os cálculos que Sérgio Grácio fez para se perceber isso - mesmo quem olhasse com olhos de ver para o artigo inicial de Bárbara Reis via que os operários e afins representavam uma proporção significativamente maior dos eleitorados do PS e da CDU do que da PàF: "Aí aprendi que 33% dos eleitores portugueses são operários (obras, carpinteiros, mecânicos) e que os operários votam em todos os partidos. São 43% do eleitorado do PCP, 39,6% do PS, 26% do PSD/CDS e 20,9% do BE. Os trabalhadores de serviços (empregados de limpeza e mesa) são 21,5% no total e também votam em todos os partidos: são 25% do eleitorado do PCP, 22,4% do PS, 20,6% do PSD/CDS e 14% do BE.".

Aliás, pelo menos em Portimão basta olhar para as mesas de voto para ver isso - o PS tem sempre votações esmagadoras na zona da Coca Maravilhas (uma área largamente dominada por bairros operários típicos e por bairros sociais) e nas vilas e aldeias (que hoje em dia são mais subúrbios dormitórios do que outra coisa), e o PSD tem as suas maiores votações nas mesas da cidade mesmo, onde vive a classe média-alta; poderia ser uma exceção, mas parece que não é (se Portimão é uma exceção será na força que o BE também tem nos bairros pobres, fenómeno que não me parece tão vincado no resto do país).

Mas o que me chama mais a atenção é ter visto muita gente de esquerda a ter andado a partilhar entusiasticamente o artigo de Bárbara Reis; até percebia se fosse em tom "estão a ver como o PS é um partido burguês?", mas o tom parecia-me claramente quase o oposto - uma defesa do PS face à acusação que teria sobretudo os votos dos pobres; mas não era suposto partidos de esquerda ou ditos de esquerda quererem ter sobretudo os votos dos mais desfavorecidos? Ou seja, a esquerda não deveria aceitar entusiasticamente a afirmação que são os pobres que votam nela? Terá sido simplesmente uma atitude de "se a Iniciativa Liberal diz que o céu é azul, então com certeza que ele tem muitos tons de cinzento e até de vermelho"? Terá sido uma questão de terem aceite a validade interna do silogismo do deputado da IL ("os pobres votam sobretudo no PS, logo o PS tem interesse em manter a pobreza") e portanto terem tentado refutar a premissa ("os pobres votam sobretudo no PS") em vez da conclusão (só para ter uma ideia de como o silogismo está errado, pense-se na seguinte variante: "o eleitorado liberal é composto sobretudo por pessoas que sentem a opressão estatal, via altos impostos e burocracias, portanto os liberais têm interesse em manter ou até aumentar a intervenção estatal" - bem, para falar a verdade algumas defesas por parte de liberais da flat tax e afins parecem-me andar perto disso)? 

Ou será que estão mesmo convertidos ao elitismo tecnocrático e acham que deve ser mesmo a classe média-alta a manter no poder os governos que depois, benemeritamente, vão cuidar dos pobres (uma espécie de "governo das elites, pelas elites e para o povo")? Algo algures entre o paternalismo do catolicismo social e o vanguardismo do marxismo-leninismo?

03/11/19

Pode um socialista ter acções? Pode um liberal ser funcionário público?

Sim. Sim.

[A respeito da discussão entre Sérgio Barreto Costa, do Blasfémias, e António Araújo]

Uma conversa longínqua em 1995, no ISEG, entre mim e R. (alguém que atualmente é um economista de esquerda com algum destaque - muito mais que eu - e que também escreve regularmente num blog e nas redes sociais):
R. - Então, onde é que estás a trabalhar?

Eu - Estou a fazer um estágio no Deutsche Bank

R. - Como é que um gajo do PSR vai trabalhar para o Deutsche Bank?

Eu - No âmbito da produção material necessária à sua existencia, os indivíduos estabelecem relações sociais independentemente da sua vontade.

R. - Muito bem, vejo que tens mantido as tuas leituras em dia
Mas deixando conversas do século passado, porque acho que um socialista (mesmo daqueles que querem acabar com a propriedade privada dos meios de produção) pode ter ações e um liberal ser funcionário público (mesmo naqueles sectores em que ele acha que o estado não deveria intervir):

Imagine-se um socialista que ache que a propriedade privada dos meios de produção leva à exploração dos trabalhadores (ou, numa versão mais soft, que a propriedade privada de "monopólios naturais" leva à exploração dos consumidores). É por ele deixar de ter acções dessas empresas que os trabalhadores (ou os consumidores) deixam de ser explorados? Não.

Ou um liberal que ache que a administração pública é financiada com dinheiro roubado aos contribuintes. É por ele deixar de ser funcionário público que os contribuintes deixam de ser "roubados" para financiar a escola pública? Não.

Ou seja, um socialista não ter acções ou um liberal não trabalhar no sector público em nada resolve os problemas que os socialistas vêm no capitalismo ou que os liberais vêm no estatismo.

Assim, quando se diz que um socialista não dever ter acções ou um liberal não deve trabalhar para o estado, isso equivale a dizer que quem não gosta do sistema atual deve suportar todos os defeitos que acham que o sistema tem ("exploração", impostos) mas sem beneficiar das suas vantagens. No fundo, é como alguém marcar um quarto num hotel, reclamar das condições e responderem-lhe "Então vai-te embora - mas pagas à mesma!"

Já agora (talvez não tenha muito a ver com isto, mas talvez tenha), este post do "libertarian" (liberal) Roderick T. Long, Guide for Statists: How to Argue Against Libertarians:
If they advocate the abolition of some government program from which they personally benefit, call them hypocrites.

If they advocate the abolition of some government program from which they don’t personally benefit, call them selfish.

Imagino que esse post possa ser facilmente virado ao contrário num "Guia para liberais: como argumentar contra socialistas":
Se eles são contra algum "privilégio" de que eles próprios beneficiam, chamem-lhes de hipócritas

Se eles são contra algum "privilégio" de que eles próprios não beneficiam, chamem-lhes de invejosos
Até aqui isto foi largamente uma adaptação do que escrevi aqui e aqui; mas agora uns pontos adicionais:

A analogia que  Sérgio Barreto da Costa faz aqui entre o socialista que trabalha numa empresa privada e o liberal funcionário público não me parece a mais correta - muitos liberais acham que os funcionários públicos vivem de dinheiro roubado ao sector privado; já os socialistas normalmente não acham que os trabalhadores do sector privado vivem de dinheiro roubado ao sector público (acham sim que os trabalhadores do sector privado são explorados pelos patrões do sector privado); ou seja, discutir se um socialista pode trabalhar numa empresa privada seria mais o equivalente a discutir se um liberal pode pagar impostos (ou, se para ser coerente, teria que ganhar um ordenado abaixo do limiar do IRS, só comprar produtos isentos de IVA, etc.).

Parte da questão é que acho que se deveria ver as coisas em termos de "pode um socialista/liberal/seja-o-que-for beneficiar conscientemente de uma situação de que discorda politicamente?" (como já expliquei, acho que a resposta continua a ser "sim", mas só nesses casos é que há sequer polémica). Isso provavelmente explica porque o António Filipe não foi prejudicado por ter sido visto na sala de espera de um hospital privado (penso que nunca foi esclarecido se ele estava mesmo lá como utente, mas provavelmente estaria) - por norma os críticos da saúde privada não consideram que os utentes da saúde privada sejam beneficiados com ela; pelo contrário, a narrativa habitual é que são prejudicados por o Estado não apostar na saúde pública e por isso são empurrados para o privado (se o António Filipe fosse acionista de um hospital privado é que seria polémico); da mesma maneira, mesmo um socialista radical, que queira coletivizar a posse dos meios de produção, por norma não acha que os trabalhadores de empresas privadas são beneficiados por existirem empresas privadas, logo não terá qualquer problema de consciência nisso; da mesma maneira, poderá haver também liberais que acham que alguns funcionários públicos não são beneficiados ou até serão prejudicados por causa do setor em que trabalham ter forte presença do Estado (p.ex., imagino facilmente um liberal a achar que os professores estariam melhor se o ensino fosse privado), logo aí também não haverá lugar nenhum ao tal "problema de consciência". [Atenção ao meu "conscientemente" a seguir ao "beneficiar" - aqui interessa menos se o individuo beneficia realmente ou não, mas sobretudo se ele acha que beneficia].

Agora, vamos ao "caso Robles"; a respeito disso, na altura eu escrevi:
Uma declaração pessoal - eu não tenho grandes problemas em ser contra uma lei, achar que deveria ser abolida ou alterada, mas beneficiar dela enquanto ela existir. Por exemplo - eu era contra as contas poupança-habitação terem benefícios no IRS, concordo com a decisão do governo de Santana Lopes de ter acabado com esse benefício, mas enquanto esse benefício existiu eu usava-o todos os anos. Em suma, uma pessoa pode discordar das regras do jogo, mas jogar por elas enquanto não as conseguir alterar (e não, não é uma variante do "faz o que eu digo, não faças o que eu faço" - eu nunca andei a defender que as outras pessoas deveriam abster-se voluntariamente de usar benefícios fiscais que existem).
Sérgio Barreto Costa recorre ao mesmo argumento que muita gente usou no caso Robles - de que em abstrato não há mal em alguém jogar com as regras que existem, mesmo que as queira alterar, mas no caso de políticos do Bloco de Esquerda já há, porque o BE, alegadamente, tem um discurso "moralista"; mas essa conversa do alegado "moralismo" do BE é uma conversa que é mais afirmada do que efetivamente demonstrada (basicamente, tornou-se "sabedoria convencional" considerar que o BE  "tem um discurso moralista" e tal não precisa de ser demonstrado nem explicado). Em que é que consiste efetivamente o "moralismo" do BE? Em fundamentar as suas propostas com argumentos normativos? Mas quase toda a política tem argumentos normativos; ou o Sérgio Barreto Costa achará que liberais consequencialistas podem ser funcionários públicos mas liberais deontológicos já não?

Um ponto final - acho mais relevante quando alguém faz alguma coisa que tem contradição com os seus juizos de facto do que com os seus juizos de valor; alguém fazer algo a que se opõe em principio levanta a tal discussão infidável que tenho falado neste post; mas alguém dizer que "X vai acontecer" e depois ter atos que não fazem grande sentido se X realmente for acontecer levanta claramente dúvidas sobre se acreditam realmente no que dizem; p.ex., alguém que diz que a bolsa está sobrevalorizada mas que ao mesmo tempo continua a comprar ações, ou alguém que diz que o nível do mar vai subir mas compra uma garagem na zona do Largo do Sapal em Portimão, ou um defensor do Brexit que, como gestor financeiro, recomenda que se desinvista no RU e se invista na Europa continental.