28/06/12

Eutanásia estatal

Há neste momento doentes oncológicos em Portugal sem acesso à terapia que melhor funciona nos seus casos pois esta é cara. Parece que os hospitais públicos estão proibidos de fazer gastos “excessivos” para manter vivos os seus pacientes. 
 É este o rosto da austeridade “custe o que custar”, da “racionalização” que não se mete em renegociações de PPP nem ousa as prometidas extinções de câmaras municipais, nem belisca as grandes fortunas. Mas que não hesita em cortar tudo a quem menos pode. Doentes que contribuíram para o SNS durante décadas, confiando que este cuidaria das suas aflições futuras. Pessoas que agora, quando mais precisam, são entregues à desesperança porque o país foi tomado de assalto por uma horda que não se acha obrigada a respeitar compromissos. 
Burocratas sem coluna no Excel onde inserir factores como a dignidade ou o valor da vida humana. No meio deste holocausto há quem toque lira. É ler como figurinhas do calibre do inenarrável deputado laranja Carlos Abreu Amorim saltitam por aí de lágrima ao canto do olho a cantar loas ao “génio humano”, dedicado ao “bem comum”, que engendra cirurgias inovadoras... nos EUA. 
Por cá, os senhores de lápis preso à orelha têm em vista o bem do sistema financeiro e a saúde dos bancos; contas feitas, que se lixe quem precisa de medicamentos caros. Esses que saiam das suas zonas de conforto e aprendam que sobreviver nesta nossa terra é agora um luxo para privilegiados.



Publicado também aqui.

27/06/12

Sobre a "Convocatória para um Congresso Democrático das Alternativas"

Pois bem, quanto à Convocatória para um Congresso Democrático das Alternativas, ocorre-me para já dizer o seguinte:

Compreendo, solidarizo-me com, secundo e aprovo a defesa das liberdades políticas e dos direitos sociais consagrados ou a consagrar n(um)a constituição de (uma) república, e aplaudo a iniciativa e a vontade de cidadania activa que terão levado alguns amigos meus a subscrever o documento. No entanto, não vejo qualquer razão válida que me obrigue à “defesa do Estado Social” com que a plataforma dos subscritores se comete. Com efeito, trata-se de uma fórmula restritiva, que exclui quem não se reveja no modelo do Estado-providência e do seu compromisso histórico, por muito disposto que esteja a defender e a tentar multiplicar os direitos conquistados e hoje ameaçados que esse modelo incluiu, mas sem por isso se limitar a eles ou renunciar ao combate por uma democratização do poder político e económico que garanta a participação governante dos cidadãos, e dela faça o seu critério de definição da “soberania popular”.

Dito isto, veria como um sinal encorajador a participação no Congresso, na elaboração das propostas de alternativas e outras iniciativas que a partir daí se promovam, dos que se disponham a fazê-lo assumindo uma posição crítica perante esta plataforma redutora inicial. Se esta, como escreveu algures Nuno Cardoso da Silva, não significar que estão já activos os “filtros habituais”, destinados a garantir a dependência da participação dos “independentes”.

26/06/12

Glosando Manuel António Pina

A Joana Lopes já pôs chamou a devida atenção para esta crónica de Manuel António Pina sobre o "ovo da serpente" da "irracionalidade racista", da qual retomo aqui o último parágrafo:

Ocorreu-me este episódio ao conhecer notícias recentes sobre a amnésia generalizada em que se gera o regresso da irracionalidade racista. Na Hungria, ao mesmo tempo que escritores nazis são hoje de leitura obrigatória nos curricula escolares, erguem-se estátuas ao "herói nacional" Miklós Horthy, regente do país entre as duas guerras e autor das primeiras leis anti-semitas da Europa Ocidental, responsável pelo envio de 450 mil judeus para campos de extermínio. Mais chocante ainda é o que se passa por estes dias em ...Israel: imigrantes negros vítimas de ataques - casas queimadas, espancamentos e outras agressões - e classificados pelo próprio primeiro-ministro de "praga" e de "cancro". O governo de Direita israelita parece ter esquecido os insultos semelhantes dirigidos aos judeus que precederam o Holocausto.

Ora, na esteira de Manuel António Pina, não deixa de ser curioso notar que — combinada com a estupidez das esperanças que investem o despotismo como redenção e ideal alimentadas pela prepotência arrogante da força e/ou vontade de dominação hierárquica de uns e pelo desespero resignado à impotência e à servidão de certas fracções fanatizadas das suas vítimas — a mesma amnésia generalizada surge em relação aos regimes estalinistas e à sua "ditadura sobre o proletariado".

24/06/12

Contributo menor para o futuro da esquerda

(o meu artigo no i da última quinta-feira) 


De há uns tempos a esta parte, os debates sobre o futuro da esquerda em Portugal têm sido alimentados por alguns contributos que afirmam ter chegado o tempo da unidade. Estes contributos vão de rigorosos exercícios de cálculo eleitoral a comoventes desabafos de alma, mas eu queria colocar aqui três entraves à famigerada unidade.
O primeiro entrave tem que ver com uma divisão entre, de um lado, quem coloca mais empenho na reivindicação da democracia do que na crítica do capitalismo e, do outro, quem mais se dedica a combater o capitalismo e menos preza a luta pela democracia. Esta divergência entre quem acha que a esquerda é sobretudo nome de uma luta pela liberdade política e a quem acha que a esquerda é sobretudo uma luta pela igualdade económica não se resolve através da busca de um mínimo denominador comum, como alguns pretendem, mas maximizando: precisamos de uma esquerda que assuma que a sua luta deve ser simultaneamente uma luta radical pela igualdade económica e um combate sem tréguas pela liberdade política. Precisamos de uma esquerda ciente de que não há combate ao capitalismo que não seja luta pela democracia e vice-versa. Um exemplo, entre outros possíveis, de uma tal esquerda estaria numa política que travasse os combates pela liberdade de expressão não apenas como uma luta por direitos políticos ou pela liberdade de imprensa, mas também como uma luta pelo direito de todos os trabalhadores a não passarem a maior parte do dia e dos dias a fazerem o que não querem e sob o comando de outrem.
O segundo entrave à unidade tem que ver com as formas de poder que as esquerdas preconizam e praticam. Aqui há também uma divergência fundamental. No actual mundo das palavras, à direita como à esquerda, um dos casos de maior sucesso é provavelmente o da chamada elite, termo que circula com o maior à vontade por entre peças jornalísticas e discursos parlamentares, saltando de livros de História para o verbo de politólogos. Colada à boca de quase todos, a palavra não é, porém, usada de um modo sempre idêntico. Há quem a utilize de maneira elogiosa e quem dela faça uso com intenções críticas. E entre estes últimos cava-se uma distância que não é menor entre, por um lado, os críticos da elite que a depreciam porque entendem que é necessário apurarmos uma nova elite que substitua a velha elite e, por outro, os que a rejeitam porque simplesmente acreditam que um compromisso radical com a democracia deve simplesmente riscar a palavra do seu dicionário. Há uma bifurcação, sem ponto de convergência à vista, entre quem entende que a esquerda deverá ser sobretudo nome de um projecto que visa derrubar governos de direita e substituí-los por governos de esquerda e quem julga que a esquerda é antes de mais o nome de um projecto de combate à elitização da política, isto é, um projecto de crítica democrática da democracia representativa. Eu estou com estes últimos – nenhum combate político à esquerda pode continuar a ser travado com recurso às velhas fórmulas hierarquizantes em que uns dirigem e outros são dirigidos, uns planeiam e outros são planeados, uns pensam e outros são pensados; dirigentes revolucionários ao leme da vanguarda partidária e economistas reformistas que analisam a sociedade do alto do Estado devem ser atirados para o caixote de lixo da história.
Finalmente, o terceiro entrave é a obsessão com as frases claras e o estilo categórico, que podem parecer úteis para combatermos a direita, mas que a médio prazo pagaremos caro. Isto é, não pesemos excessivamente as nossas preocupações e as nossas propostas, o que naturalmente abrange as que fazem parte deste meu contributo... Não percamos muito tempo a demarcar o que está dentro e o que está fora dos nossos territórios. E isto não é só válido para os partidos ou para os partidos que são apodados de ortodoxos. Aplica-se seguramente ao manifestante anti-autoritário que ao atirar ovos à sede de um partido de esquerda se limitou a erguer as paredes do seu próprio partido e a fazer-se capataz do que deveria ser indomável, o anarquismo. E aplica-se também aos que em nome da unidade dos partidos de esquerda decidem simplesmente tecer armas contra todos os sectarismos de todos os partidos de esquerda, como se a sua resposta à fragmentação partidária da esquerda fosse simplesmente criarem mais um fragmento que, por lhe chamarem unidade, é suposto não tomarmos como mais um fragmento. Infelizmente, fazer bandeira da heterodoxia é caminho rápido para chegar a ortodoxo.

23/06/12

Resposta de João Valente Aguiar ao meu post anterior sobre o seu ensaio "O Nacionalismo, a Esquerda Anticapitalista e o Euro"

Demasiado longa para ser publicada como comentário, aquio fica a resposta do João Valente Aguiar ao meu post sobre o seu ensaio,  publicado no Passa Palavra, "O Nacionalismo, a Esquerda Anticapitalista e o Euro".


Caro Miguel,

obrigado pelas tuas observações e vou tentar aprofundar a discussão desses pontos.

1) Em primeiro lugar, é para mim óbvio que uma saída do euro levaria a uma exploração ainda mais violenta. E ela seria ainda pior por dois motivos fundamentais. Por um lado, a saída de um país periférico europeu da zona euro não só teria problemas socioeconómicos impossíveis de resolver de forma autónoma, como as tentativas de resolução de tais problemas pelos governos (fossem eles dirigidos por QUALQUER partido) assentariam em medidas que só conseguiriam passar pelo incremento da mais-valia absoluta. Se as medidas de austeridade na actual conjuntura já assentam em muito nessa modalidade de extorsão da mais-valia (aumento do horário de trabalho, aumento dos dias de trabalho, corte nominal de salários, etc.), então num quadro de forte descapitalização económica, não vejo como países como Portugal ou a Grécia pudessem remodelar a médio prazo o seu aparelho produtivo e a sua força de trabalho no sentido de uma elevação da produtividade. Pelo contrário, o aperto terrível que a nova situação colocaria aos governos de países colocados fora do euro, faria com que a sua política económica tivesse de assentar em medidas que colocariam a predominância nos mecanismos da mais-valia absoluta. Não há desenvolvimento económico possível portanto, não há modernização capitalista possível quando se aposta fortemente nos mecanismos da mais-valia absoluta. A mera saída do euro não representaria um corte com a austeridade mas, pelo contrário, seria um prolongamento ainda mais pronunciado.

Por outro lado, existe a tese de que a saída de um país do euro sob a direcção de um partido de esquerda levaria a experiências de poder popular. O Partido Comunista da Grécia defende isso nos seus comunicados. Contudo, como sempre, importa comparar o discurso com a prática efectiva. E nesse plano a verdade é que o que aconteceria seria a nacionalização dos meios de produção e da banca, com o Estado como representante de todos os trabalhadores. Não há muito a acrescentar a esta tese política pois ela não se distingue em nada da formação de uma nova camada de gestores conforme ocorrido noutras experiências lideradas por partidos comunistas. Ainda hoje a esquerda dessa tradição quer implantar um capitalismo de estado, precisamente porque confunde estatismo com a transformação das relações de produção. Ou, para ser mais preciso, confundindo relações jurídicas de propriedade com as relações sociais de produção e de apropriação do excedente económico. Por isso, mesmo que disso não tenham consciência, os aspirantes a gestores políticos presentes nos sindicatos e partidos de esquerda são a vanguarda da implantação de uma futura classe de gestores tecnocratas.

2) Em segundo lugar, é evidente que a federalização é um mal menor. Mal menor porque só existem duas alternativas reais em cima da mesa no curto-médio prazo: ou a saída do euro e o regresso às moedas nacionais e ao recrudescimento de nacionalismos; ou a integração política, orçamental, fiscal e financeira da UE. Muitos críticos de esquerda desta integração baseiam-se nas palavras de Lénine acerca da impossibilidade do estabelecimento de uns Estados Unidos da Europa. O que a utilização dessas palavras de Lénine não tem em conta é o duplo facto de que já não vivemos num tempo em que as economias nacionais ainda detinham um grau elevado de autonomia económica, financeira, comercial e política, e de que não há nada mais mecânico do que aplicar palavras de ordem dirigidas para contextos concretos bastante distintos. Do meu ponto de vista, e porque estamos numa fase de crise económica no capitalismo e não numa crise de dominação das classes dominantes (vd. a quarta parte do meu artigo no Passa Palavra) a escolha é portanto entre a volta atrás, ou desenvolver-se as lutas sociais no quadro europeu.

E isto por duas grandes razões. A primeira porque entre a modernização capitalista ou um capitalismo de estado (vulgo socialismo) da miséria eu prefiro, de longe, a primeira. Não por uma questão ideológica, como fazem os nacionalistas de esquerda, mas porque é inconcebível para comunistas, anarquistas e outros anti-capitalistas preferirem modalidades de exploração muitíssimo mais violentas e degradantes do que uma modernização capitalista baseada na elevação da produtividade e na correspondente melhoria salarial e das condições de vida. Em vez de defenderem o progresso civilizacional, é inacreditável como a esquerda nacionalista prefere uma versão ainda mais miserável do capitalismo de estado, pois que realizada já não mais em condições de desenvolvimento nacional das economias e em territórios exíguos e sem aparelho produtivo razoavelmente desenvolvido. Pior ainda, essa esquerda considera que tal capitalismo de estado seria um socialismo, portanto, uma sociedade onde os trabalhadores estariam emancipados. Muitos comentadores ficaram ofendidos com esta minha crítica, mas a verdade é só uma: não há liberdade efectiva para os trabalhadores se estes passarem fome e se estes não controlarem a produção da vida social e política. Chamar socialismo a uma sociedade capitalista de estado, mesmo que denominada de socialista, não só não melhora as condições de vida dos trabalhadores, como muito menos lhes daria condições para o controlo da vida social.
Portanto, eu não entendo a modernização capitalista como objectivo político da esquerda anti-capitalista mas como a única alternativa no actual quadro presente. Em suma, esta minha posição que é aqui formulada em termos políticos já foi fundamentada em termos objectivos e económicos nos artigos do Passa Palavra pelo que só foquei os primeiros.

A segunda razão tem a ver com o futuro que se quer dar à luta da classe trabalhadora. Ou queremos integrar os trabalhadores numa comunidade nacional, misturando gestores políticos, gestores tecnocráticos e trabalhadores numa amálgama ideológica e que se edificaria em portugueses e gregos contra alemães e suecos. Ou queremos aproveitar o espaço europeu para ampliar a solidariedade internacionalista e se trabalhar para formas de luta europeias. Não há outra solução para a classe trabalhadora. Ou deixar-se afogar no nacionalismo - o que comprometeria a luta contra as barreiras nacionais por décadas - ou aproveitar a integração económica europeia para facilitar o intercâmbio e solidariedades internacionais. Longe vão os tempos em que toda e qualquer luta da classe trabalhadora era considerada apenas como parte de um processo global de emancipação social.

Momento musical

A "sociedade urbana industrial"

Nesta discussão, tanto de um lado como do outro, tem-se falado na "sociedade urbana industrial"; é uma chavão há muito repetido (e lembro-me de numa aula de Inglês no 10º ano termos falado na diferença entre as cidades industriais e o campo).

No entanto, pelo menos para quem tenha crescido em Portimão nos anos 70/80, isso acaba por ser um paradoxo: afinal, lá a zona industrial era sobretudo nas aldeias vizinhas (Mexilhoeira da Carregação, Parchal, etc.); e imagino que não seja caso único - penso que em Lisboa, zonas (ex-?)industriais como a Margem Sul ou o concelho de Loures também têm uma grande semi-ruralidade implicita, com bairros operários rodeados por campo que, em muitos aspectos, não diferem muito de aldeias. E o que dizer do Norte de Inglaterra? Ou de grande parte da Rustbelt norte-americana?

Para falar a verdade, até suspeito que seja muito vezes nesse mundo industrial quase aldeão que surgem (ou surgiam) muitas das manifestações mais radicais de combatividade operária, provavelmente porque nesses ambientes pequenos pode ser mais fácil organizar sindicatos, clubes operários, etc.

Isso meu raciocínio pode não ter implicações nenhumas, mas acho boa ideia termos em atenção que "urbano" e "industrial" são conceitos não necessariamente ligados.

Ainda sobre a preservação da natureza

Ainda a respeito disto, ocorre-me que, historicamente, os grandes impérios despóticos com uma burocracia centralizada costumavam estar associados a sociedades intensamente agrícolas (Egipto, China, etc.).

Já aldeias livres, eventualmente com reuniões periódicas dos habitantes para discutir assuntos de interesse geral, costumavam ter uma zona cultivada a volta da aldeia, e depois vastas extensões de florestas, matagais ou rochedos (sendo a actividade agrícola conjugada com a caça, pesca, actividades sílviculas e pastoreio).

É verdade que correlação no implica causa (é possivel que ambos os efeitos sejam resultado de um terceiro factor, como baixa densidade populacional ou relevo acidentado).

22/06/12

Opressão como conceito universal

Do meu ponto de vista, o que distingue a Esquerda da Direita é a recusa da legitimidade da opressão, ou seja da possibilidade de alguém impor limites ao poder de outro (para ser, agir, fazer, ter). Muito esquematicamente, para a Esquerda a opressão pode ser necessária, mas nunca é legítima, enquanto que para a Direita a opressão é legítima, mas pode ser desnecessária. Seria assim de esperar que à Esquerda houvesse como primeira preocupação a identificação de todas as situações (genéricas) de opressão, e só depois uma análise global que, assentando numa valorização relativa das situações identificadas e indivíduos envolvidos, determinasse prioridades e elaborasse estratégias que tivessem como objectivo a minimização (condicionada pela valorização relativa atrás mencionada) de todas em situações de opressão.

Isto vem a propósito da atitude que a Esquerda deve ter perante os apelos à preservação dos actuais ecosistemas, e reversão de algumas das transformações ocorridas ao longo dos últimos séculos. Na minha opinião, de entre as muitas justificações apresentadas juntamente com esses apelos, existem (pelo menos) duas que são particularmente importantes para quem se revê, como eu, na visão da Esquerda acima exposta.

 

Ainda sobre "O Nacionalismo, a Esquerda Anticapitalista e o Euro" de João Valente Aguiar

Já tive ocasião de chamar aqui a atenção para o ensaio — O Nacionalismo, a Esquerda Anticapitalista e o Euro — que o João Valente Aguiar tem vindo a publicar no Passa Palavra, onde a partir de hoje estão acessíveis as quatro partes que o integram.

Os amplos pontos de acordo com o João encorajam-me a deixar aqui duas observações, que talvez sejam para ele ocasião de precisar melhor as suas posições.

A primeira é que, se o li bem, me parece que o seu artigo não mostra apenas, como o JVA sustenta, que  a via nacionalista e paladina da saída do euro e da desagregação da UE aponta um método errado de luta nticapitalista, mas que é, de facto, a via de um regime político e económico de agravamento da exploração e da opressão, e não uma via anticapitalista.  Creio que o próprio João não andará longe de aprovar este reparo. Mas ele dirá de sua justiça, se assim o entender.

A segunda tem a ver com a questão da federação - ou "federalização". O João entende-a como um mal menor, preferível à desagregação da UE que a ruptura do euro verosimilmente acarretaria. Ora bem, é verdade que a federação não é um objectivo revolucionário. O que me parece é que, não podendo nós rejeitar a estratégia nacionalista, que o João tão vigorosamente denuncia, sem aceitar uma integração orçamental e fiscal da zona euro, que acarretará sempre uma "federalização", isó teremos a ganhar com uma federação explícita e acompanhada por uma carta de liberdades e de direitos fundamentais (nivelando-os "por cima", para o conjunto sa UE), assegurando uma "integração política", inevitável como alternativa à ruptura, que, não sendo em si mesma "anticapitalista" e correspondendo até a uma medida "inteligente" da oligarquia europeia, fornecerá, apesar de tudo, à luta por uma democratização efectiva e pela extensão das capacidades (contra-)governantes dos trabalhadores e da grande maioria dos cidadãos condições mais favoráveis.

Ou seja, como ainda recentemente tentei argumentar, a UE é hoje uma instância de poder governante, tutelar, não eleita e não responsabilizável extra partes, que se vem somar às unidades pré-existentes, para, em cada vez maior medida, as governar do exterior. Assim, no seu quadro, o Estado-nação (ou coligação de Estados-nação) mais forte, ocupando os postos de comando dos aparelhos de decisão da UE, tende a reduzir os outros à condição de Estados-vassalo, e, dentro destes, os direitos e liberdades dos cidadãos, conquistados contra as prerrogativas das camadas oligárquicas que detinham as alavancas de comando dos aparelhos de Estado propriamente ditos e dos aparelhos de direcção da economia, tendem a esvaziar-se de conteúdo efectivo e a ser reduzidos à insignificância. O resultado é o que a linguagem corrente traduz na perfeição em frases como: "A UE exige de nós…", "A UE impõe aos países da zona euro…", "A UE não permite…", etc., etc. — frases que traduzem a exterioridade que protege e absolutiza as instâncias reais que nos governam. Ora, não se tornariam as coisas mais claras aos olhos dos cidadãos comuns que somos, e não limitaria o poder das oligarquias governantes, uma transformação federalista da UE, que nos permitisse responsabilizar directamente o seu governo como sendo, para cada país, o "nosso"(ainda que este "nosso" designe o inimigo com que temos de nos haver)? Ou, por outras palavras, que, quando nos referíssemos à UE, nos fizesse dizer, por exemplo: "Este governo não serve, é necessário mudá-lo" — ou: "O problema não é só o deste governo, é de regime; é o regime, ou são as instituições e a nossa relação com elas, que temos de mudar, através da instauração de outras formas de poder político, devolvendo as capacidades de deliberar e decidir aos cidadãos que somos, pois que é do nosso governo que se trata, e é a nós que, como cidadãos adultos, compete a tarefa de nos governarmos"? Dizer que a federação por si só, ou em si própria, não basta para desencadear o processo de democratização radical que a sobrevivência da nossa condição de cidadãos activos torna uma necessidade cada vez mais urgente, é, sem dúvida, verdade. Mas é verdade também que tornaria mais favorável abrir-lhe caminho.

E, com isto, passo a palavra ao João, ou a quem a queira tomar.

21/06/12

Um argumento pela preservação da natureza

O de Edward Abbey:
“the wilderness should be preserved for political reasons. We may need it someday not only as a refuge from excessive industrialism but also as a refuge from authoritarian government, from political oppression. Grand Canyon, Big Bend, Yellowstone, and the High Sierras may be required to function as bases for guerrilla warfare against tyranny...The value of wilderness, on the other hand, as a base for resistance to centralized domination is demonstrated by recent history. In Budapest and Santo Domingo, for example, popular revolts were easily and quickly crushed because an urbanized environment gives the advantage to the power with technological equipment. But in Cuba, Algeria, and Vietnam the revolutionaries, operating in mountain, desert, and jungle hinterlands with the active or tacit support of a thinly dispersed population, have been able to overcome or at least fight to a draw official establishment forces equipped with all of the terrible weapons of twentieth century militarism.”
Com "Budapest" e "Santo Domingo" ou autor refere-se a isto e isto (o texto é mais ou menos da minha idade, e a tal "recent history" já não é assim tão recente).

Indo ainda mais longe que o autor, eu acrescentaria que a natureza mais ou menos "selvagem", além de poder ser um refúgio contra a opressão politica, também é um potencial refúgio contra a opressão "social"; nomeadamente no que respeita aos tempos "livres", é no meio "natural" (com todas as ressalvas, reconheço, que podem ser levantadas ao conceito de "natural") que é mais fácil exercer actividades lúdicas auto-organizadas e auto-geridas.

Resposta de João Bernardo ao post anterior: "Ponto Final: Excepcional breve ensaio-manifesto do João Bernardo no Passa Palavra"

O João Bernardo enviou a seguinte resposta ao meu post sobre o seu Ponto Final, que, excedendo os limites da caixa de comentários, aqui publico à parte.


Caro Miguel Serras Pereira,

Muito obrigado por te teres interessado por aquele manifesto. É minha intenção que ele seja realmente um ponto final, e não estou desejoso de entrar em debate a respeito de questões que foram por demais debatidas, mas já que formulas perguntas...

1) Até agora, quando ataco a ecologia e os ecologistas não tem havido confusão acerca de quem viso, aquilo que tu chamas a «ecologia profunda» (mas a que literalmente deveríamos chamar superficial).
Tu invocas «a finitude dos recursos naturais», mas a sociedade industrial não se limita a usar elementos, ela combina-os de formas diferentes daquelas que existem na natureza, e deste modo amplia a natureza, cria outra natureza, que já não é natureza, é indústria.

Também mencionas as «devastações paisagísticas», mas muito do que hoje, em Junho de 2012, consideramos paisagem, perante a qual ficamos de boca aberta e exclamamos «Que lindo!», resulta de devastações paisagísticas operadas por sociedades de outras eras, noutros modos de produção. Os desbravamentos, que constituíram um dos elementos estruturantes do regime senhorial, devastaram as florestas europeias e criaram aquela paisagem que nos serve de padrão quando dizemos que a indútria tal e tal devasta a paisagem em redor. Mesmo eu, que sou urbano e pouco dado a apreciar paisagens que não sejam formadas por muros e ruas, fico deslumbrado com o vale do Douro, mas o que é aquilo senão uma paisagem secularmente devastada pela indústra vinícola, que transformou em socalcos as encostas de ambas as margens do rio? E o que são os jardins, tanto à francesa como à inglesa, senão paisagens devastadas, ou seja, substituídas por paisagens construídas? E então os lisboetas vão ao domingo para Sintra e extasiam-se perante o que julgam que é natureza e nada mais é do que um artificioso jardim romântico, devastação da narureza anterior. Todos os jardins constituem o triunfo da indústria sobre a natureza, tanto assim que só existem jardins em sociedades urbanizadas. Será esta a «dimensão subjectiva» da natureza que tu referes, a sua concepção como um «acontecimento paisagístico»?

Consideras também que eu «não aplic[o] [...] à ideologia da "abundância" as considerações críticas que [...] estão implícitas na parte "estética" do [...] ensaio e na denúncia da degradação dos lazeres». Já no Passa Palavra Leo Vinícius disse o mesmo num dos seus comentários, embora em sentido inverso. Mas não creio que exista ali uma contradição. A minha apologia do capitalismo da abundância só se entende como uma crítica ao socialismo da miséria. Os trabalhadores querem ganhar mais para aumentar o número de Big Macs que depejam pelas goelas abaixo? E querem trabalhar menos para aumentar o tempo dedicado a ver televisão? Pois que o façam, porque assim lutam contra a extorsão da mais-valia, e que o façam duplamente, porque assim erguem maiores dificuldades ao socialismo da miséria. Mas trata-se neste âmbito de uma questão de quantidade. Quando eu procedo à crítica estética dos lazeres — ou daquilo que são considerados lazeres — trata-se de uma questão de qualidade. No manifesto citei a Bauhaus e os Vkhutemas como prova de que pode haver uma produção artística industrial e de massas e, não obstante, de alta qualidade. Mas como talvez alguns leitores situem aquelas duas instituições na high art e não na low art, vou dar outro exemplo. Em 1967, numa época em que já existia plenamente o mercado juvenil de massas, o disco mais vendido na Grã-Bretanha foi A Whiter Shade of Pale, dos Procol Harum, uma obra prima, tanto pela música e pela nterpretação como pelo poema. Quando um comentador que citei acima, Leo Vinícius, me criticou no Passa Palavra dizendo que «os trabalhadores assim como querem consumir e ter abundância, querem todas essas artes denominadas vulgares e ruins», este argumento não me espanta da parte de quem, noutra polémica, defendeu que «a arte é inimiga do povo». Ele falará por si. Mas trata-se de uma questão de contexto histórico e do grau de politização desse contexto. Na década de 1960, no mercado de massas da juventude, o Bob Dylan, a Joan Baez, os Procol Harum e tantos outros e outras eram celebridades de massas sem serem «vulgares e ruins» e eram eles, e não Elvis Presley, os ídolos da juventude insubmissa, enquanto hoje eu posso duvidar da solidez de rebeldias que se revêem em Michael Jackson ou na Lady não sei o quê.
2) Quanto à segunda questão que levantas, é menos questão do que parece e acho que estamos a dizer o mesmo, embora cada um dentro de sistemas de referências teóricas distintos. Se eu defendo que devemos «entender a reestruturação da classe trabalhadora operada pelo sistema de produção toyotista, pela terceirização da mão-de-obra e pela transnacionalização do capital», em vez de a resumir «ao fabrico industrial de artigos materiais», estou a propor uma noção muito ampla e plástica da classe trabalhadora contemporânea. Não creio que o sujeito empírico daqui resultante seja diferente «da grande maioria dos homens e mulheres que somos», como tu escreves.

Na minha opinião, as lutas sociais reorganizam o modo de produção e, reorganizando uma classe, reorganizam as classes que se lhes opõem, porque uma classe social não é passível de uma definição substantiva e só tem realidade em função das classes sociais opostas. Creio que, no plano empírico, o nosso sujeito revolucionário é o mesmo, embora eu dê mais ênfase às relações de exploração e à luta contra a exploração.

Mas será que dou? Na medida em que diluo o limite entre o económico e o político e em que refiro a soberania das empresas durante o próprio proceso de trabalho, será que procedo a uma politização do económico ou a uma economização do político? Tu dizes que «a haver agente revolucionário identificável este seria o conjunto dos cidadãos comuns empenhados na instituição da sua cidadania como governante». Eu formulo a mesma ideia em termos de controlo sobre o processo de trabalho, em sentido amplo, incluindo os lazeres, o que vai dar ao mesmo. Uns falam chinês outros português, uns usam a linguagem do Marx outros a do Castoriadis, e é necessário não confundir ideias diferentes com maneiras deiferentes de exprimir as mesmas ideias.

Finalmente, esperando que possa pôr ponto final no ponto final, cito uma parte do primeiro dos comentários colocados no Passa Palavra, assinado por Rugai. «Faltou você complementar com um parágrafo sobre o fato de aquela parcela rústica da classe trabalhadora que é ferozmente anticapitalista, nos guetos, nas favelas, nas periferias, viver num mar de ondas sombrias. Num pessimismo catástrófico, vendo cada dia como a guerra nossa de cada dia, como a morte nossa de cada dia….». Era precisamente neles que eu estava a pensar quando escrevi que «não desisto da capacidade da classe trabalhadora para acabar com o existente» e que «uma revolução nos nossos dias só pode significar uma libertação das energias criativas dos trabalhadores nos processos de trabalho». Mas sem dúvida que o Rugai foi mais eloquente.

20/06/12

Ponto Final: Excepcional breve ensaio-manifesto do João Bernardo no Passa Palavra (actualizado)


O João Bernardo acaba de publicar um breve ensaio-manifesto excepcional no Passa Palavra.
Começarei por citar, à laia de homenagem, alguns excertos, que qualquer mera paráfrase empobreceria:

"A adopção de uma multiplicidade de sujeitos históricos significa que a esquerda do século XXI abandonou a luta por um novo ser humano — um ser humano integral em quem deixem de ser pertinentes as divisões entre sexos e as diferenças entre as cores da pele e os formatos do nariz e dos olhos — e reforçou todo o tipo de particularismos. Superar os particularismos é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é transformar a sociedade numa colecção de particularismos, ligados pelo mercado. Ressuscitaram-se assim as condições ideológicas para a biologização da cultura, que foi a operação distintiva do racismo e, mais especialmente, do nacional-socialismo germânico".

"A cultura europeia, hoje tão denegrida, desde há muito não existe. Foi superada pela cultura capitalista que, ao mesmo tempo que ultrapassou as tradições europeias e a sua área étnica, absorveu as culturas dos outros continentes e encetou um processo de unificação mundial. Quando a esquerda contemporânea recorre à acusação de eurocentrismo como arma polémica, não está a referir-se a uma Europa que acabou há muito. O que está realmente a fazer é a negar a aspiração a um ser humano integral e à universalização da cultura".

"Com a redução da classe trabalhadora à modalidade arcaica fica escamoteada a sua enorme ampliação e a sua plasticidade social, que corresponde à ampliação espacial dos locais de trabalho e à plasticidade que adquiriram ao integrarem os lazeres no processo formativo da força de trabalho.
Os espaços de lazer estão hoje tão vigiados como as fábricas e os escritórios. E aqueles jovens, ou já não tão jovens, que agora investem as ruas como os operários tradicionais podem ocupar as fábricas sabem, intuitiva mas certeiramente, que ambos os espaços são locais de trabalho.
Por isso se ilude aquela porção da esquerda que defende as formas artísticas mais degradadas com o argumento de que o seu consumo pelas massas lhes confere um carácter proletário. A indústria cultural capitalista tem, sem dúvida, uma vocação proletária, mas na mesma acepção em que a tem o fast-food. Não se pode lutar contra a proletarização do trabalho se se aceita a proletarização dos lazeres".

Esperando que estes excertos tenham levado o leitor a querer conhecer o texto na íntegra, há, no entanto, dois pontos que me parecem menos convincentes, e sobre os quais, em qualquer caso, o João Bernardo deveria, a meu ver, completar ou precisar as suas teses. Aqui ficam, pois, simplesmente anotados, em termos quase telegráficos, que se limitam a assinalar a importância que atribuo à sua discussão.

1. A crítica do ecologismo. 

O primeiro diz respeito à crítica da esquerda ecológica. Com efeito, se as considerações do JB sobre os mitos e a ressacralização da lei natural são brilhantes e penetrantes como poucas, aplicam-se, sobretudo, à chamada ecologia profunda, e perdem pertinência se entendermos que se referem a toda e qualquer preocupação ambiental. Por duas razões principais, das quais a primeira é que, por muito catastrofismo que inquine a ideologia ecologista, a finitude dos recursos naturais e as devastações paisagísticas, que não relevam de considerações contabilizáveis, não me parece que possam ser negadas de ânimo tão leve. A segunda decorre do facto de o JB não aplicar ao investimento dos modos de consumo dominantes e à ideologia da "abundância" as considerações críticas que se justificariam e que seria lógico vê-lo formular, tanto mais que estão implícitas na parte "estética" do seu ensaio e na denúncia da degradação dos lazeres. Como não há duas sem três, outra questão se poderia pôr ainda: para criticarmos a sacralização de pretensas leis naturais e os mitos do puritanismo ecológicos, não poderemos arranjar melhor do que a concepção da natureza como simples matéria-prima inerte e exterior a uma humanidade, subjectiva e desencarnada, concebida como sua dona e senhora? Não poderemos e deveremos conceber mais paisagisticamente a emergência da dimensão subjectiva, concebê-la como um acontecimento paisagístico, uma metamorfose ontológica, que justamente não sacraliza a natureza na justa medida em que a concebe como dimensão interna de um sujeito que, sendo uma transformação sua, a transforma por sua vez, recriando as próprias condições da sua criação?

[Adenda: Por outras palavras e em suma, a concepção da realidade humana como instância e dimensão social e subjectiva de uma paisagem do real ("natureza") da qual emergiu como acontecimento metamórfico singular, e da qual é desde início parte activa e transformação criadora, conforta e reitera a ideia do JB daquilo a que poderíamos chamar a natureza histórica peculiar que a acção humana (social e subjectiva) introduz, faz ser, cria na natureza que a criou. Mas, se entendermos assim a transformação da natureza como auto-transformação paisagística ou auto-criação social-histórica continuada, teremos de assumir que a acção sobre a natureza nunca é política, social ou culturalmente neutra - o que significa que nem todas as formas ou modalidades de transformação se equivalem e que os modos da acção humana sobre a natureza são uma dimensão interna da instituição e da auto-transformação da sociedade. ]

2. O sujeito histórico universal.

A segunda grande questão a pôr ao texto do JB tem a ver com o conceito de classe trabalhadora que ele mantém como sujeito histórico universal, ou como identidade do agente da transformação revolucionária e do seu universalismo. Se a sua crítica da adopção de uma multiplicidade de sujeitos históricos (cf. o primeiro excerto aqui citado, bem como a crítica do multiculturalismo e das reivindicações identitárias que atravessa todo o seu magnífico breve ensaio-manifesto) é, sem dúvida, convincente, daí não se deduz que seja necessário fazer corresponder a uma classe ou grupo social precisos e dados de antemão o sujeito histórico da transformação revolucionária. Podemos e, a meu ver, devemos pensar antes que a construção desse sujeito é, desenvolvendo-se com ela, inseparável da transformação visada a partir, não de uma classe ou grupo universal que já o fosse antes de o ser, mas da grande maioria dos homens e mulheres que somos, assumindo como cidadãos comuns um projecto de autonomia e autogoverno que nos permita concebermo-nos e agirmos como responsáveis pelas leis e instituições que nos vinculam. Nesta perspectiva, a haver agente revolucionário identificável este seria o conjunto dos cidadãos comuns empenhados na instituição da sua cidadania como governante. Ao mesmo tempo que esta cidadania governante se definiria como exercício livre, igualitário e responsável do poder político (incluindo evidentemente as áreas do trabalho, da economia, etc. entre os assuntos vitais da cidade) por aqueles mesmos que governa ou que através dele se governam. Assim, a divisa da "cidadania governante" preservaria e aprofundaria, retomando a sua verdade permanente, a universalização proposta pela velha divisa: "A emancipação dos trabalhadores será obra dos mesmos trabalhadores".

[Adenda: Embora não valorizando menos do que o JB "a questão da tomada em mão do funcionamento global da sociedade", pois o aspecto decisivo é, aos seus olhos, "a actividade pela qual os homens, nos locais sociais em que estão colocados, vivem e agem o conflito social, e mais exactamente o constituem como conflito social, as formas de organização e de luta que inventam, os conteúdos que emergem por ocasião dessas lutas, enfim a [sua] capacidade (…) — ainda que percial, minoritária e intermitente — de visar o todo social, de se afirmarem como querendo tomar a seu cargo a organização e o funcionamento da sociedade", Castoriadis mostra que o alcance universal ou o trabalho de universalização de uma transformação radical instituinte não depende da identificação antecipada de um autor (indivíduo, partido, teoria ou sequer classe ou grupo social) ao qual as condições objectivas imporiam esse papel.

 A este propósito e para especificar a minha divergência com o JB sobre a concepção do sujeito histórico da construção de uma sociedade autónoma e autogovernada, creio que vale a pena deixar aqui, sem mais comentários, uma longa transcrição de excertos do ensaio de 1973 de Castoriadis sobre "A Questão da História do Movimento Operário", em A Experiência do Movimento Operário - 1, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979:

"Perante a desagregação generalizada que abala a sociedade contemporânea (…) [n]ão pode existir política que se queira revolucionária que não tente explicitar e elucidar a sua relação com a sua origem e a sua raiz histórica, o movimento operário.

"A história do movimento operário é a história da actividade de homens pertencentes a uma categoria social e económica criada pelo capitalismo (e a outras que lutaram ao seu lado), actividade através da qual essa categoria se transforma,  fazendo-se  (…) uma  'classe' num sentido novo deste termo - constituindo-se efectivamente numa 'classe' da qual a história não oferece análogo proximo ou longínquo. Transforma-se, transformando a passividade, a fragmentação e a concorrência (…) em actividade, solidariedade e colectivização, invertendo a signifucação capitalista do trabalho. Inventa na sua vida quotidiana, nas fábricas e fora delas, respostas sempre renovadas à exploração, engendra princípios estranhos e hostis ao capitalismo, cria formas de organização e de luta originais. Tenta unir-se para além das fronteiras, adopta como hino um canto que se chama A Internacional. Paga à ignomínia capitalista o mais pesado tributo de miséria, perseguição, deportação, prisão e sangue. Nos momentos culminantes da sua história, cria novas instituições universais (…).

"Transformada assim, pela sua actividade, de objecto de exploração em força social determinante da história desde há cento e cinquenta anos, a classe operária transformou também a sociedade capitalista (…) Mas o 'resultado' provisório  (…) foi o desaparecimento do movimento operário enquanto força social-histórica originária e autónoma. A classe operária, no sentido próprio do termo, tende cada vez mais a tornar-se uma camada numericamente minoritária nos países de capitalismo moderno. Ainda mais importante, deixou de se manifestar e de se pôr a si própria como classe. É certo que se assiste paralelamente à transformação da quese totalidade da população trabalhadora em população assalariada (…) mas (…) [a]inda menos do que na situação 'objectiva' do operário industrial haverá na de assalariado em geral uma predestinação revolucionária.
(…)
"(…) não se pode hoje nem manter uma posição privilegiada do proletariado no sentido tradicional, nem estender mecanicamente as características deste ao conjunto dos assalariados, nem, enfim, pretender que estes se comportem como uma classe, ainda que embrionária. Todas as camadas da sociedade moderna, à excepção das cúpulas dirigentes, vivem e agem na sua existência quotidiana a alienação da sociedade capitalista contemporânea, as contradições e o esgotamento profundo do sistema, a luta contra este sob uma variedade infinita de formas (…) As lutas operárias em torno das condições de trabalho iam e continuam a ir muito longe (…) [que] a empresa tenha sido, e em certa medida continue a ser, um lugar privilegiado de socialização sob o capitalismo, é decerto verdade e é importante - mas isso não reduz a importância de outros locais de socialização exsistentes nem,  sobretudo, dos que estão por criar. (…)

"Numa sociedade mundial (…) em que se põe com uma acuidade nunca antes conhecida o problema político como problema do todo, continuamos a ser tomados pelo projecto revolucionário engendrado pela classe operária, cujo autor recua e desaparece entre a multidão dos actores sociais. Econtramo-nos na situação paradoxal de entrecer cada vez melhor — ou, pelo menos, de acreditar que assim é — o que implica uma transformação social-histórica radical, e cada vez menos quem a pode realizar.

"Mas talvez a situação só na aparência seja paradoxal. (…) O projecto revolucionário tornou-se tal que não terá sentido nem realidade se a esmagadora maioria dos homens e das mukheres que vivem na sociedade contemporânea não vierem a assumi-lo e a fazer dele a expressão activa das suas necessidades e das suas aspirações. Não há salvador supremo, e nenhuma categoria particular tem a seu cargo a sorte da humanidade".

Já vimos esta História


Uma crise além-mar faz com que as torneiras do crédito se fechem sem aviso, secando o acesso das empresas nacionais a dinheiro de que necessitam como de pão para a boca. Sectores económicos inteiros vêem-se atolados num lodaçal de dívidas. Resposta do banco central e do governo? Deflacionar severamente a economia nacional. A cobrança de impostos é usada, de forma cada vez mais feroz, como ferramenta nesta política de empobrecimento voluntário, tida por todos os técnicos respeitáveis como “inevitável”. Corta-se a fundo no que parece supérfluo, começando na solidariedade social, claro. O desemprego sem controlo, a queda na pobreza mais abjecta de incontáveis famílias de classe média, a crescente agitação social... tudo contribui para a aproximação de uma catástrofe pouco antes inimaginável. 
Se isto lhe parece uma recapitulação escusada do nosso calvário colectivo nestes dias de escuridão, desengane-se: trata-se sim de um resumo das condições que levaram Adolf Hitler ao poder, às cavalitas de uma onda de descontentamento, revolta e descrença na Democracia. 
Há precisamente um ano, um artigo do líder do think tank Civita, publicado no inglês “Telegraph”, já fazia esta evocação, de súbito tão relevante. Agora que o governador do banco nacional da Áustria (que já antes nos alertara para o poder sem freio das agências de rating) trouxe de novo à ribalta este paralelo assustador, pode ser que alguém, de preferência em Berlim, por fim pare para pensar.


Publicado também aqui.

Cosmopolis



"Cosmopolis" afinal não é bem um filme. É mais um codicilo, um acrescento a "Crash". Nem Pattinson nem Sarah Gadon fazem de actores; apenas de manequins hieráticos que ecoam o pathos exangue de James Spader e de Deborah Kara Unger. 
 O automóvel, que era em “Crash” um potente vector de agressão e sexualidade, vê-se mais do que nunca sacralizado: no seu habitáculo, o trono de Eric Packer domina uma galeria de ecrãs que crepitam com a energia malévola e insondável dos dados, sussurrando as fatias de milissegundos de realidade que levaram Benno, o candidato a assassino, à demência. A informação surge aqui como uma segunda instância da velocidade terminal de “Crash”, metastizada ao ponto de atrofiar vontades, afectos, vidas. 
O sexo já não encena a celebração das possibilidades sensuais da própria viatura; se Ballard/Spader o usava como interface com as zonas erógenas da tecnologia automóvel, agora surge também despido de élan vital, parecendo servir a Packer apenas como processo de marcação no território do seu voluntário resvalar para o abismo. 
O momento-chave para oficializar esta geminação com a obra-prima de 96 surge quando a limusina/casulo se arrasta em slow-motion, carregando as marcas tribais com que o tumulto do mundo a desfigurou: ouvimos claramente acordes do tema musical de “Crash”. 
Quanto ao resto, não entendo mesmo a embirração de tanto crítico com este filme: se parece coisa fria e remota, é porque assim deveria ser. E mesmo a multiplicidade de pistas que o argumento vai deixando atrás de si já representa uma grande simplificação face à matriz da novela de DeLillo. Certo é que a elisão do constante trânsito entre as realidades de Packer e do tresloucado Benno acaba por deixar aqueles 22 minutos finais como um corpo estranho: uma longa catarse a dois, pejada de sugestões religiosas – da chaga crística de Packer ao diálogo através de uma espécie de confessionário acidental. 
Mas é do fado das obra-primas a contaminação por um qualquer foco de desequilíbrio, da tal "assimetria" que tanto atormenta Packer.

Grécia X Alemanha - antevisão do próximo jogo?

Turismo Antiterrorista Israelita nos Territórios Ocupados

Um mail do João Bernardo deu-me conhecimento desta notícia, assinada por Guila Flint e publicada pela BBC Brasil, que aqui transcrevo sem mais comentários:


Pacote turístico israelense oferece treino para 'matar terroristas'

Um campo de treinamento de tiro ao alvo localizado em um assentamento israelense tem provocado polêmica ao oferecer aos visitantes um pacote de "turismo radical" que inclui treinamento para "matar terroristas".
O campo Caliber 3, no assentamento de Gush Etzion, no território palestino da Cisjordânia, usa como alvo de tiros figuras em tamanho real portando tradicionais turbantes árabes.
O local, com mais de 10 mil metros quadrados, é usado em treinamentos do Exército e da polícia de Israel. O proprietário, o empresário Sharon Gat, contou à BBC Brasil que resolveu aproveitar as instalações já existentes para dar início ao "projeto turístico".
"Queremos que os judeus do mundo inteiro possam ver com seus próprios olhos que no Estado de Israel há organizações e pessoas que sabem ensinar auto-defesa no mais alto nível", disse o empresário.
"Também queremos que os judeus do mundo vejam que aqui existe orgulho judaico, pois os judeus, que foram massacrados há 70 anos (em referência ao Holocausto), hoje têm um Estado, um Exército e as melhores instalações de treinamento", acrescentou.
De acordo com Gat, cerca de 5 mil turistas já passaram pelo curso, entre eles centenas de crianças, que são admitidas nos treinamentos após cinco anos de idade.
Os adultos atiram com armas e munição de verdade, em alvos de papelão ilustrados com o esteriótipo do "terrorista". As crianças utilizam armas de paintball.
O preço do curso, de duração de duas horas, é 440 shekels (cerca de R$ 220) para adultos e 200 shekels (R$ 100) para crianças.

‘Projeto sionista’

Sharon Gat, de 40 anos, um oficial da reserva do Exército israelense, disse que o projeto Caliber 3 foi criado em memória de seu cunhado, Hagai Haim Lev, que morreu em combate na Faixa de Gaza.
"É um projeto sionista, positivo e importante, que proporciona muito emoção para muita gente", disse.
"O curso serve para turistas de todas as idades, que tenham interesse em aprender táticas antiterroristas", afirmou o empresário.
O projeto também inclui programas especiais para aniversários, encontros de amigos e luta de paintball e oferece aos turistas "experiências emocionantes que não poderão ter em lugar algum, exceto no campo de batalha".
O prefeito do assentamento de Gush Etzion, David Perl, afirmou que o novo projeto turístico proporciona "um incentivo a mais" para o turismo na região.
O assentamento, que fica ao sul de Jerusalém e foi construído em terras do distrito palestino de Belém, "recebe cerca de 400 mil turistas por ano", de acordo com Perl.
O prefeito também disse à BBC Brasil que, além do Caliber 3, o Gush Etzion oferece como atividades turísticas visitas a um museu local e a ruínas antigas .


18/06/12

Resgate político

Escreve o Nuno Serra nos Ladrões: "o que esteve em jogo nas eleições gregas de ontem [foi] A escolha entre um partido (Syriza), que prometia negociar com a troika um novo quadro, radicalmente diferente, de condições de assistência financeira; e dois partidos (Nova Democracia e PASOK), para os quais qualquer simulacro de acordo seguramente servirá". O que significa, ao contrário do que muitos dos órgãos de comunicação social insinuam ou proclamam, que, longe de aliviar a crise da zona euro, a vitória relativa dos partidos pró-memorando torna mais forte a ameaça do "fim do euro" e da desagregação da UE. E mais urgente do que nunca um resgate político, protagonizado pela defesa dos direitos da cidadania comum, inverta a lógica dos "resgates financeiros" e da sua austeridade catastrófica.

Rodney King (1965-2012)

Rodney King, o rosto dos motins de LA, morreu aos 47 anos (Publico):
As pessoas que têm hoje menos de 25 anos dificilmente se lembrarão do nome de Rodney King, mas em Março de 1991 este homem transformou-se num símbolo da brutalidade policial americana, que desencadeou violentos motins na cidade de Los Angeles. King morreu hoje, aos 47 anos. (...)

Rodney King foi agredido por agentes do LAPD (Los Angeles Police Department) em Março de 1991. O incidente foi integralmente filmado por um transeunte e rapidamente as imagens da agressão - alegadamente por motivos racistas - começaram a circular pelas principais cadeias de televisão norte-americanas e, seguidamente, pelo mundo inteiro, originando uma onda de indignação.

No ano seguinte, os quatro agentes envolvidos nas agressões foram absolvidos pela justiça americana, o que desencadeou violentos confrontos raciais na cidade de Los Angeles, em 1992. No total morreram 53 pessoas durante estes motins e centenas de pessoas ficaram feridas. Quanto a danos materiais, estima-se que tenha havido prejuízos na ordem dos mil milhões de dólares.

17/06/12

Eleições gregas

22:15 - Resultados com 80,89% dos votos contados (isto já não há de mudar muito):

16/06/12

Um mail do João Valente Aguiar sobre as eleições gregas de amanhã

Se há momentos em que as eleições num regime representativo contem — apesar de todas os entraves que a representação põe à democratização efectiva do exercício do poder político —, amanhã, na Grécia, vamos ter um deles.

Por isso, por mais vezos e vícios social-democratas e/ou também de tradição "m-l" que possam que afectem o Syriza, faço minhas as palavras deste mail que acabo de receber do João Valente Aguiar:

"Se a Syriza vencer (como espero e desejo) creio que haverá uma renegociação e um ajustamento da austeridade. Claro que isso estaria mto mto mto longe do desejável, mas (…) já seria uma conquista para os trabalhadores gregos. Por outro lado, (…) estimularia uma rejeição às tendências centrífugas da UE, bem como ajudaria a simultaneamente reforçar os laços entre os trabalhadores europeus ("nativos" e migrantes) e [a] lutar contra a política austeritária".

Sublinho que sustentar que a desconfiança perante o Syriza, sejam quais forem as razões invocadas,  deverá primar sobre as considerações do João equivale a sustentar que é mais importante derrotar o Syriza do que fazer recuar a austeridade, ou a privilegiar a defesa do KKE em detrimento da sorte dos trabalhadores e cidadãos comuns gregos.

15/06/12

O golpe judicial/militar no Egipto (V)

Al Jazeera - SCAF formally disbands Egypt parliament:
 Egypt's military rulers have formally dissolved the lower house of parliament and barred MPs from entering, according to a state newspaper.

Friday's move comes one day after the supreme court issued two controversial rulings, one of which declared the parliament unconstitutional.

Riot police surrounded the building, backed by the military, according to Al Ahram, and the ruling Supreme Council of the Armed Forces (SCAF) sent the People's Assembly a formal order to disband.

Politicians were not allowed to return to the parliament building.

The Muslim Brotherhood, whose Freedom and Justice Party (FJP) controls the largest bloc in parliament, has said it will not immediately accept the court's ruling.

Saad al-Katatni, the parliament speaker, plans to hold a session next week to discuss the decision.

SCAF's move raises tensions just hours before Egypt's presidential runoff is scheduled to begin. But Cairo was mostly calm on Friday, with only a few dozen protesters gathered in Tahrir Square.

(...)

The next president will take office without a clear mandate, there is no constitution spelling out the powers of the president, and without an elected legislature.

SCAF announced on Thursday that it would assume lawmaking powers after parliament's dissolution.

On Friday, the generals said they would manage the budget as well, according to Al-Ahram.

Earlier this week, the justice ministry issued a decree allowing the military to arrest civilians for a range of crimes, further empowering the military and raising comparisons with the country's recently scrapped emergency law..

"I think that in the coming days, weeks, SCAF will issue what we call a supplementary constitutional declaration by which it will try to further specify the powers of the new president," said Mazen Hassan, a legal scholar at Cairo University.

Many Egyptians have taken to calling the events of the last week a "coup."

Mohamed ElBaradei, the Nobel Prize-winning former diplomat and onetime presidential hopeful, called the situation a travesty.

"Electing a president in the absence of [a] constitution and parliament is electing an emperor with more powers than [the] deposed dictator," he said on Twitter

Ainda o golpe judicial egipcio

Cairo’s Judicial Coup, por Nathan J. Brown (Foreign Policy):
In March 2011, I paid a visit to Egypt's Supreme Constitutional Court (SCC), located on the banks of the Nile in the Cairo suburb of Maadi. Two things immediately struck me. First, there was a tank parked outside of a structure that hardly seemed to be a military site. Second, the court was a beehive of activity. Since at the time Egypt had no constitution, I could not figure out why the employees were so busy.

Now it is clear that I was too quick to dismiss what I saw both inside and outside the building. The SCC's actions today, occurring in the context that they do, reshape Egypt's transition process -- so much so that some Egyptians will likely wonder if they are in any "transition process" at all. That concern is justified. The "process" part was already dead. Now the "transition" part is dying.

Golpe judicial/militar no Egipto? (III)

Golpe judicial no Egipto? (II)

Golpe judicial no Egipto?

O Supremo Tribunal dissolveu o parlamento (e ontem a junta militar havia reestabelecido a lei marcial).

13/06/12

Merkel põe as cartas na mesa

A chanceler alemã Angela Merkel admitiu abertamente que o programa de austeridade imposto à Grécia era necessário para dar um exemplo aos outros países da zona euro — e, na mesma reunião de democratas-cristãos do seu país, deixou também claro que era esse o ponto fundamental, e não o êxito ou o acerto das medidas ditadas como condição do resgate.

Estas palavras não só confirmam que o resgate e o momento do resgate no caso de Espanha, bem como a anunciada intervenção em Itália, obedecem à mesma lógica preventiva, mas deixam prever também que, após os resgates em cadeia, a etapa seguinte será a imposição da austeridade pelo seu valor intrínseco nos próprios países centrais da UE, com o propósito de consolidar "constitucionalmente" uma repartição do produto e um regime político que garantam um governo directo e explícito da oligarquia financeira.

Resta-nos esperar — e fazer por isso — que os cidadãos comuns dos diferentes países e regiões da Europa saibam responder e contra-atacar perante esta explícita reabertura da questão social, cujas cartas Merkel — reconheça-se-lhe esse mérito —já não hesita em pôr na mesa.

Eleições, essa maçada


Quando Manuela Ferreira Leite lançou a boutade da suspensão da democracia por seis meses, ninguém levou nem a mal nem a sério. A senhora teve direito a mais 15 minutos de infâmia, atenuados pela idade, pela propensão para a incontinência verbal, etc. Depois, a doutrina revelou-se séria e abrangente. Governos “técnicos”, com economistas bem comportados ao leme, começaram a irromper como cogumelos vorazes na Europa dos aflitos. A sério: quem se lembraria de dar voz ao povo quando este se sente esmagado, ofendido, acuado? Pois. Ninguém quer por aí uma alcateia de Syrizas, com poder a sério. 
Mas esta doutrina ainda precisava de um porta-voz boçal e cândido q.b. para a expor sem vergonha. Eis que entra em cena Rui Rio. O autarca/merceeiro não teve pejo em exibir o que lhe vai na alminha: “As câmaras endividadas não deviam ter eleições, mas sim uma comissão administrativa para a gestão corrente.” Podia até ser um pedido de demissão encapotado; mas conhecendo a cepa da criatura, ninguém aposta nisso. E repare-se que não se trata de um “fascista”; ali o autoritarismo saloio da censura no portal da CMP, o despejo da Es.Col.A ou o apoio às cegadas do La Féria são apenas coisas de criatura pequenina, azeda por ter perdido o avião para voos mais altos, birras de tiranete paroquial que acaba por dar razão, com a sua permanência no poder eleito, aos maldizentes do sistema. 
A bem da verdade, o Porto já se entregou a uma “comissão” de mangas de alpaca. Mesmo com eleições.


Também publicado aqui.

Actualidade


12/06/12

Sobre o Resgate em Espanha

Ao contrário do que sugerem numerosos comentadores e dão a entender forças políticas, além do próprio governo espanhol, para nos ficarmos por estes exemplos, a verdade é que a "ajuda" a Espanha, longe de ser uma "conquista", um "triunfo negocial" de Rajoy, uma medida de auxílio em condições favoráveis e sem agravamentos austeritários como contrapartida, é de facto uma imposição e uma reiteração da austeridade, uma medida disciplinar preventiva, visando reafirmar a força do poder político do capital financeiro na UE e restaurar nas ruas e nos espíritos, a ordem abalada pela revolta e propostas alternativas que os acontecimentos na Grécia puseram na ordem do dia.

A este respeito, o artigo de Vicenç Navarro  e de Juan Torres López no Público.es é efectivamente esclarecedor, ao mesmo tempo que demonstra cabalmente, talvez para além até das intenções conscientes dos seus autores, como a alternativa ao governo "implícito" ou "explícito" da troika nos diversos paises da Europa é ao nível desta, e da sua transformação institucional, que deve ser posta. Aqui fica um excerto e o convite à sua leitura:

Desde que la crisis se inició en 2007, la población española ha estado sometida a toda una serie de políticas públicas que han significado un gran recorte de sus derechos laborales y sociales, que han afectado de una manera muy notable al bienestar social y a la calidad de vida de las clases populares. Hemos visto durante estos años de crisis la congelación y pérdida de la capacidad adquisitiva de las pensiones, el retraso de la edad de jubilación, la reducción del gasto público en las transferencias y servicios del Estado del bienestar (con recortes muy acentuados de la sanidad pública, de la educación pública, de los fondos y servicios a las personas con dependencia, de las escuelas de infancia -erróneamente definidas como guarderías-, de los fondos para la prevención de la pobreza y de la exclusión social, de los servicios sociales, de las viviendas sociales, del nivel de cobertura de los seguros de desempleo y de las ayudas a la integración de los inmigrantes). Y hemos sufrido las reformas del mercado laboral, que se han llevado a cabo con el objetivo de reducir los salarios y la capacidad de negociación de los trabajadores. Y a todas esas medidas se han añadido la reducción del empleo público y de los salarios a tales empleados públicos. (…) Tales recortes se han justificado siempre como imprescindibles para reducir el déficit del Estado y el tamaño de su deuda pública, algo necesario, según se ha dicho siempre, para ganar la confianza de los mercados financieros y de esta manera poder conseguir dinero prestado para pagar los gastos del Estado. Tanto el gobierno de Zapatero primero y ahora el de Rajoy han insistido constantemente en realizar esos recortes por encima de todo por el miedo a que no pudiéramos recuperar la famosa confianza de los mercados financieros y entonces fuésemos intervenidos por la llamada Troika, la Comisión Europea, el Banco Central Europeo y el Fondo Monetario Internacional (FMI). Pero ahora resulta que a pesar de que se han llevado a cabo todos esos recortes, a pesar de que se han ejecutado una tras otra las imposiciones de los mercados, expresadas a cada momento muy claramente por esa Troika, España ha sido intervenida por esas tres instituciones. (…) La realidad que el gobierno y los apologistas del rescate quieren ocultar es que éste no es sino únicamente el instrumento mediante el cual la troika gobernará la política fiscal y macroeconómica española para seguir imponiendo reformas y recortes y para asegurar la prioridad de cobro de la deuda que los bancos españoles tienen con la banca europea, y principalmente alemana. Por tanto, hay que decirlo claramente: el rescate constituye un auténtico golpe de Estado bajo la apariencia de ayuda a la banca. A partir de ahora, el gobierno Rajoy hará lo que digan la Troika y el gobierno alemán. El federalismo de Merkel (“queremos más Europa… y los Estados tendrán que ceder soberanía”) es una manera amable de definir una relación colonial en la que a España le toca ahora ser la colonia. (…) La razón, entonces, de que haya sido justamente ahora cuando se ha producido el rescate es otra, y como siempre, no aparece en los medios. Es el temor de la Troika a que en las próximas elecciones griegas gane la izquierda, y se cuestionen con mucha más fuerza las políticas de austeridad que han llevado a Grecia (y a España) al desastre. Es por eso que la Troika quiere tener la sartén por el mango y forzar la continuación de tales políticas, porque sabe que es muy probable que tras las elecciones del próximo fin de semana (y a pesar de las injerencias constantes que están realizando para influir sobre la libre voluntad de los electores griegos) sea mucho más difícil defenderlas. Así de claro. En definitiva, hay que denunciar el intento de ocultar la verdadera naturaleza del rescate, que está bien clara en el comunicado del Eurogrupo y en los informes del FMI: - quieren rescatar a los banqueros despreciando y por encima del bienestar de la inmensa mayoría de las personas. - se ha acordado ya, y se va a producir materialmente cuando se selle la letra pequeña del acuerdo, un auténtico golpe de Estado, porque a partir de ese momento España ya no estará implícitamente intervenida, como hasta ahora, sino expresa y visiblemente por funcionarios extranjeros que impondrán las líneas de gobierno a las que se habrán de ajustar las políticas económicas: nuevos recortes, privatizaciones y reformas institucionales encaminadas a desarmar de derechos políticos y mecanismos de representación a la ciudadanía. (…)

11/06/12

O que é que isto quer dizer exactamente?

Declarações do Ministro da Defesa do governo provisório grego, o general Frangoulis Fragos:
“I wish the Democracy functions and I will directly deliver [the mandate] to the elected Minister of Defense,” Frangos said during a memorial ceremony in Marasia at the prefecture of Evros, NE Greece.

“But I want to tell you something” he added. “Do not doubt about the capacities of the Greek Army. I repat again. Yes, it is an averting force, but strong, silent military force that will make a deafening noise if necessary”.

Quem foi realmente o responsável pelo massacre de Houla?

Syrian Rebels Responsible For Houla Massacre? (Outside the Beltway):
Rosenthal also makes note a report from Dutch sources that cite eyewitness accounts from members of the Monastery of St. James in Qara that appear to corroborate the claims that the Houla attack was carried out by rebels and directed at Alawite and Shia minority communities.

None of this is to downplay the brutality of the Assad regime, which has been responsible for most of the violence that has occurred over the past year or so. However, it is a strong indication that the world needs to be exceedingly careful about both becoming too involved in the Syrian conflict, and becoming too closely involved with rebels who may turn out to be no better than Assad himself.
Abermals Massaker in Syrie ( Frankfurter Allgemain Zeitung):
A challenged street called control units of the Syrian army to help the 1,500 meters maintains a military base and promptly sent reinforcement. In the battle of hula, which should have lasted 90 minutes, dozens of soldiers and rebels were killed. During the fighting, the three villages of Hula were sealed off from the outside world.
 
According to the eyewitnesses to the massacre had occurred during this period. Had been killed almost exclusively families and the Alawite minority Shiite Hulas, which is more than ninety percent are Sunni. Thus, several dozen members of a family were slaughtered, which had in recent years by Sunni converted to Shiite Islam. Killed were also members of the Alawite family Shomaliya and the family of a Sunni member of parliament, because this was considered a collaborator. Immediately after the massacre, the perpetrators would have filmed their victims, they issued a Sunni victims and spread the videos via the Internet. Although representatives of the Syrian government confirmed this version, but pointed out that the government had agreed not to speak publicly of Alawites and Sunnis. President Bashar al Assad is a member of the Alawites, the opposition is supported mainly by the Sunni majority. 
[tradução do Google]

09/06/12

Suspender a democracia (por quantos meses?)

Rui Rio: "As câmaras endividadas não deviam ter eleições"

A realidade banida por decreto?


A Carolina do Norte tem uma costa baixa e plana. É assim especialmente vulnerável à subida do nível do mar, que, de acordo com um vasto consenso entre os especialistas, atingirá pelo menos um metro até ao fim do século. Problema bicudo. Solução miraculosa de algumas autoridades locais? Proibir qualquer avaliação desta subida que leve em conta o seu aceleramento nos anos recentes; só serão aceites por lei medições que se baseiem em resultados históricos. 
 Continuem pois a construir à vontade nas zonas ameaçadas, que o mar vai ser proibido por decreto de vos alagar o soalho. Como crianças a erguer castelos de areia na maré vazia; também elas não prevêem a desgraça, mas não haverá birra que a impeça. 
Se até as ciências a sério estão sujeitas aos caprichos de fanáticos com poder, pobres das ciências sociais como a Economia. Aqui, a magia e a superstição campeiam: “O Governo entende que a austeridade na despesa do Estado, sujeita a modelos de eficiência, virá a constituir, a prazo, uma alavanca para a melhoria da produtividade, para o incremento do potencial de crescimento e para a criação de emprego.” É escusado continuar a ler o programa do nosso governo em busca de provas, argumentos, lógica sólida. “Entendeu-se” que será assim e pronto. 
Na Carolina do Norte, quando o pior acontecer será aprovada uma lei para obrigar os cidadãos a desenvolver guelras. Em Portugal, já se recomendou às vítimas da cegueira ideológica que emigrem. Admitir que a realidade afinal não nos obedece? Nunca.

08/06/12

Merkel não quer que a Espanha seja a Grécia

A viragem recente do governo de Merkel, que agora reclama maior integração orçamental e política na zona euro, é-lhe em parte imposta pela alteração das condições políticas na UE — que se verificam graças à luta pró-europeia mas anti-austeritária encetada na Grécia, e também na sequência da derrota do sarkozysmo em França e do alastrar cada vez mais agravado da crise em Espanha, na Itália, etc. — e corresponde, por outro lado, a uma manobra hábil, visando assegurar os mesmos interesses fundamentais, através de uma integração política que, operando-se à margem de uma carta constitucional europeia que garanta a todos os cidadãos da UE as mesmas liberdades e direitos, visa manter — e, para manter, absolutizar — o poder do capital financeiro na região através de um directório mais ou menos burocraticamente cooptado.  Outra maneira de dizer a mesma coisa: Merkel mostra-se disposta a condescender até certo ponto com as reclamções de Rajoy e da banca espanhola, porque não quer ceder às reivindicações de democratização da Europa que se intensificam na  Grécia, nem abandonar a consagração por via da austeridade do governo financeiro da UE.

07/06/12

Intervenção de Slavoj Zizek no comício do Syriza (legendado em português)



Nem tudo o que Zizek diz é ouro — a concepção do papel e da "representatividade" do "partido, a referência ao "Estado moderno", etc. —, mas vale a pena ouvir esta intervenção e tomá-la como ponto de partida para outras que, numa perspectiva democrática, são indispensáveis à acção.

"Para uma História Social da Repressão" — Seminário Organizado pelo Grupo de Estudos do Trabalho e Conflitos Sociais do Instituto de História Contemporânea (FCSH-UNL)


Seminário: Para uma História Social da Repressão 


11 de Junho 2012



Local: FSCH-UNL, Avenida de Berna, nº26, Edifício de I&D, Piso 4, Sala Multiusos 3. 

Organização: Grupo de Estudos do Trabalho e Conflitos Sociais do Instituto de História Contemporânea (FCSH-UNL)





Parece inegável o papel determinante desempenhado pela repressão no contexto dos conflitos sociais que moldaram o nosso tempo.Sem menosprezar a sua dimensão política e cultural, o objectivo deste seminário é abordar o tema a partir das formas de resistência e de acção colectiva desenvolvidas por grupos e classes sociais subalternas.

Tratar-se-á de identificar linhas de continuidade e de ruptura durante um tempo longo, atravessando regimes políticos distintos e destacando o papel do aparelho repressivo do Estado na configuração das correlações de forças entre os diversos sujeitos do conflito social ao longo do século XX. Partindo de abordagens de estudos de caso e problemáticas específicas, pretende-se aqui identificar e desenvolver elementos para uma história social da repressão. A entrada é livre e o seminário está aberto à participação de todos os interessados, dentro e fora do meio universitário.


14h-  Abertura 


Ricardo Noronha (IHC/FCSH-UNL)  
Uma história de violência - Estado e conflitos sociais em Portugal no século XX

14h30   I República

Joana Dias Pereira (IHC/FCSH-UNL)
» Difusão e repressão na dinâmica de contestação política da década de 1910

Diogo Duarte (IHC/FCSH-UNL)
» Apontamentos para uma história do movimento anarquista na sua relação com Estado

15h30 Estado Novo e colónias 


João Madeira (IHC/FCSH-UNL)
»Padrões repressivos e conflito social nos campos do sul, anos 50

Miguel Pérez   (IHC/FCSH-UNL)
»O movimento operário português (1968-1974)


Dalila Cabrita Mateus (IHC/FCSH-UNL)
» Repressão dos conflitos sociais nas colónias portuguesas


17h30    II República 


José Nuno Matos (ICS-UL)
» 1982: da greve geral à madrugada sangrenta

João Jordão (IHC/FCSH-UNL)
» Urbanismo, território e repressão: «os bairros problemáticos»

18h30 Conferência de encerramento 


Felipe Demier (Instituto Latino-Americano de Estudos Sócio-Econômicos)
» Conflitos sociais e regimes políticos no mundo contemporâneo

Comentário de Gilberto Calil (UNIOESTE)


06/06/12

Soluções e não

Queixamo-nos da iniquidade e desmandos do governo, e temos razão. Dizemos que é preciso um governo melhor, com outras soluções, que desfaçam os males de que nos queixamos, e enganamo-nos. A menos que, reclamando esse governo melhor, reivindiquemos ser nós, regularmente e em comum, a exercê-lo, e saibamos que as soluções terão de ser proposta nossa, e nossas a sua deliberação e decisão.

Já que já não há sondagens gregas...

Vou-me dedicar a um tema que não tem tido muita atenção:

Sondagem para as eleições holandesas (marcadas para 12 de setembro), realizada a 2 de junho de 2012:


% deputados previstos
VVD (direita liberal) 21,0% 32
Partido Socialista (esquerda radical) 17,6% 27
Partido do Trabalho (social-democrata) 15,3% 24
PVV (extrema-direita) 14,1% 22
Democratas 66 (esquerda liberal) 9,7% 15
CDA (democrata-cristão) 9,4% 14
Esquerda Verde 3,7% 5
União Cristã (conservadora cristã) 3,4% 5
Partido dos Animais 2,3% 3
SGP (fundamentalista calvinista) 1,6% 2
50 + (reformados) 0,8% 1

Para uma das mais sólidas economias europeias, talvez não esteja (politicamente) tão longe da Grécia como seria de esperar.

05/06/12

O "dia da libertação dos impostos"

Onteotem, assinalou-se o "dia da libertação dos impostos", calculando multiplicando por 365 dias a percentagem do PIB que vai para impostos; assim, supostamente, teriámos que "cada trabalhador português teve de exercer atividade durante 155 dias, em média, para gerar rendimento suficiente para cumprir com todas as suas obrigações para com o Fisco".

Como já escrevi noutro sitio, esse cálculo é largamente uma mistificação - imagine-se duas pessoas, o Fernando, ganhando 1.000 euros/mês e pagando 20% de impostos e o Mario, ganhando 500 euros/mês e pagando 10% de impostos. Assim, o Fernando trabalha 73 dias por ano para pagar os impostos (365*20%) e o Mario 36,5 dias, ou seja, em média trabalham 55 dias por ano para pagar impostos.


Agora, vamos aplicar a metodologia do "DLI": pegamos nos impostos totais (3.000=200*12+50*12), divide-se pelo rendimento total (18.000=1.000*12+500*12) e multiplica-se por 365 dias e temos o resultado de 60 dias.

Ou seja, com um sistema fiscal progressivo os contribuintes, em média, trabalham menos dias "para o Estado" do que o valor calculado para o DLI.

Também podemos fazer o raciocinio inverso: imagine-se um sistema fiscal em que todos os contribuintes pagassem o mesmo, à maneira da malograda "poll tax" de Tatcher (um caso extremo de regressividade) - assim, se tanto o Fernando como o Mario pagassem 125 euros/mês de imposto, o Fernando iria trabalhar 46 dias para impostos e o Mario 91 dias, ou seja, em média trabalhariam 68 dias (mas o cálculo do DLI continuaria a indicar 60 dias). Assim, com um sistema regressivo os contribuintes trabalham mais dias "para o Estado" do que o DLI indica.

Ou seja, o DLI é apresentado como sendo o número de dias que, em média, os portugueses têm que trabalhar para pagar os impostos, mas na realidade não é nada disso (num sistema fiscal progressivo os contribuintes trabalham em média menos dias do que o DLI e num regressivo trabalham mais).

Ainda acerca do DLI (no contexto dos EUA): Still taxing the truth: the Tax Foundation and the "Tax Freedom Day", do Center on Budget and Policy Priorities

04/06/12

Um herói é isto



 Praça de Tiananmen, 5 de Junho de 1989.

Notícias da Síria

A isto:


“Había hombres atados en los pasillos, a radiadores y tuberías, antes y después de haber sido torturados con descargas eléctricas y también apaleados”, rememora su estancia por Homs. “Se torturaba en cadena, algunos agonizaban en el pasillo, otros en las celdas”. “Tras la tortura estaban desfigurados, eran irreconocibles”. (…) “También se oían gritos de celdas contiguas durante toda la noche”, prosigue su relato. “El olor, mezcla de sangre, sudor, orina y excrementos era tremendo” (…) Trasladado a Homs, al barrio de Qazzaz, le hicieron esperar, antes de interrogarle, en un despacho en cuya mesa había “agujas, tenazas, sangre y uñas”. Después le condujeron a otro en el que el un ordenador aparecían fotos que había tomado con los rebeldes en Talbiseh. Le acusaron de ser un espía francés encargado de estudiar la ayuda logística que necesitan los rebeldes. (…) “Me golpearon y también fui sometido a alguna que otra descarga eléctrica de menor intensidad”, asegura Piccinin. “Pero, comparado con lo que padecían los demás detenidos sería indecente afirmar que me torturaron”, añade.

— há quem, como esta testemunha, chame tortura, e há também, já agora, quem lhe chame terrorismo de Estado, e ao regime que o pratica ditadura antipopular, policial e classista. Outros há que preferem falar, saudando o massacre, de resistência anti-imperialista, defesa da independência nacional, afirmação de soberania. Mas convém não esquecer que a atrocidade e a infâmia são as mesmas, e que são a vida, a dignidade e a integridade — para já não falarmos da cidadania e da independência — dos súbditos a sofrer.