30/11/13

L’honneur des gueules noires



Caros amigos,

Se tiverem 52 minutos, e souberem francês, convido-vos a ver este pequeno documentário realizado o ano passado, sobre uma belíssima história judiciária :


O filme é também uma homenagem a Tiennot Grumbach, que faleceu no verão passado. Mas acima de tudo, trata-se de um hino à resistência e à luta pelos valores da esquerda. Vê-lo faz um bem incrível, nesta época rendida aos dogmas idiotas do capitalismo de sangue puro e selvagem, que no fundo sempre sonhou com a mesma panaceia : trabalho caído do céu, gratuito, sem trabalhadores que dêem nas vistas.

Abraços fraternos

29/11/13

Vivemos num "Estado de direito", mas uns têm mais direito a levar porrada do que outros

Muito fica dito quando um deputado constrói a sua defesa e critica a acção da polícia partindo da sua condição de deputado, como se esse “estatuto” agravasse o significado duma agressão policial ou, por outro lado, como se a agressão a um cidadão "comum" fosse mais legítima, aceitável ou compreensível. Muitas vezes, as críticas aos deputados ou às instituições políticas “tradicionais”, como os partidos ou sindicatos, podem ser confundidas (até porque o são efectivamente) com má vontade, desonestidade, facciosismo ou com uma atitude persecutória, visando mais uma condição (a de deputado, político, etc.) do que uma atitude ou acção concreta. Tornam-se, então, numa espécie de moralismo superficial, mais do que num argumento político. Não é este o caso (e tento que nunca seja esse o caso quando escrevo sobre tais instituições ou figuras), não só porque não gosto de fazer julgamentos ou proferir sentenças, mas, acima de tudo, porque as palavras raramente são tão inequívocas como neste exemplo. É pelo seu significado político particular que merecem que se olhe para elas e se teçam dois ou três comentários, e não, obviamente, para entrar na moda corrente de malhar em deputados, partidos e sindicatos apenas por o serem. Até porque se é verdade que "nem todos são iguais" estas palavras também demonstram que há certas atitudes e lógicas – no mínimo pouco democráticas – que são partilhadas por membros de todas as bancadas parlamentares (e mesmo que possam ser mais comuns numas do que noutras, não se tornam menos assinaláveis por isso, antes pelo contrário).

As declarações em questão podem ser ouvidas neste vídeo e foram feitas num piquete de greve dos CTT pelo deputado do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, depois da polícia ter sido "chamada a intervir". Citando directamente o deputado (pode ser ouvido a partir do minuto 3:50), que começa por afirmar estar a falar em nome de todos, “em primeiro lugar, houve aqui um desrespeito por deputados da assembleia da república. Foram levados à frente duma polícia de choque, algo que não é aceitável numa sociedade de direito democrático e num estado de direito.” Em segundo lugar, vem então a questão da brutalidade aplicada à multidão “anónima” feita dos “homens e mulheres que estão a defender os seus postos de trabalho”.

Os tais comentários. Por muito paradoxal que pareça, estas palavras expõem alguns dos aspectos que levam algumas figuras com poder, com lugares de responsabilidade ou “somente” uma posição privilegiada, a ser tão tolerantes para com as autoridades e as leis e tão hesitantes na altura de agir de acordo com o que entendem por justiça. Se consideram que um dado estatuto lhes dá mais autoridade – seja para criticar as atitudes duma qualquer autoridade, seja simplesmente para estarem acima das restantes pessoas – percebe-se por que é que noutras circunstâncias não estão interessadas em questionar a autoridade em si mesma. Suponho que sintam que ao fazê-lo estarão, eventualmente, a questionar-se a eles próprios e a colocar a sua posição em xeque. É claro que fazê-lo não teria necessariamente qualquer consequência directa e não implicaria sequer que deixassem de ser deputados. É óbvio. Mas é precisamente esta evidência que torna ainda mais surpreendente essa incapacidade de questionar a autoridade e, acima de tudo, de questionarem a sua própria condição.

Outra forma de olhar para essa incapacidade, e para a sua ligação com a tolerância e atitude “moderada” para com as atitudes da polícia ou das autoridades – tão característica dos nossos “radicais” institucionais” –, está na importância que atribuem ao papel que heroicamente assumem desempenhar (deixemos, para outra altura, o facto de os próprios ambicionarem alcançar um lugar que não dispensa o monopólio da violência). Neste caso, como já ouvi, podem dizer em sua defesa: "nós não gostamos particularmente da autoridade, nem pensamos ser superiores a ninguém, mas esta posição é uma arma que temos (uma das poucas) e, por isso mesmo, temos não apenas que usá-la como defendê-la". A lógica viciada deste raciocínio é clara. Mas talvez mais importante é aquilo que está implícito nesse papel auto-atribuído e que fica por problematizar: a suposta inevitabilidade ou necessidade de liderar as massas e conduzir as lutas, tornando consequentes os anseios, o desespero, a revolta daqueles que dizem representar (o que é dizer, agindo como tradutores institucionais, usando uma linguagem que lhes é própria, enquanto intermediários entre a “rua” e o poder).

Tudo isto me lembra, infelizmente, como muita gente (interlocutores potencialmente interessantes para uma luta comum, entenda-se) insiste em permanecer alheada daquilo que os tempos que vivemos nos gritam constantemente: a necessidade de repensar radicalmente o que existe e a urgência de criar algo novo que o supere – sempre na direcção de uma sociedade mais igualitária. Em vez disso, continuam a refugiar-se num abrigo que perdeu o telhado e as paredes há muito tempo, pelo menos para a maioria das pessoas: aquilo a que chamam, e julgam ainda existir, uma "sociedade de direito democrático" ou um "estado de direito" Neste sentido, aliás, o que descrevi parece-me ainda mais problemático pelo contexto em que acontece. Os CTT representam o que de melhor, em termos de igualdade, pode representar um serviço público. A capacidade de entregar uma carta, uma encomenda ou seja o que for em qualquer parte do território nacional, mesmo no local mais remoto, e por um preço que não muda consoante o local para onde vai ou de onde parte, é algo apenas possível por um serviço público assente numa lógica antagónica àquela que se hegemoniza e que leva à sua destruição. Como tal, a luta contra a privatização dos CTT não é somente a defesa dos CTT, é muito mais do que isso. E, precisamente por essa razão, esta luta em particular podia servir para nos ajudar a pensar para além do que existe, mais do que se limitar a defender a conservação eterna duma entidade ou o regresso a um estado de coisas menos mau.

24/11/13

Há 20 anos - 24 de novembro de 1993

Confesso que não me lembrava desta data, mas este artigo de Mariana Avelãs (via Joana Lopes) lembrou-me.

Ao contrário de muita gente, acho que o principio do fim do cavaquismo não foi com a ponte 25 de Abril, foi mesmo na manifestação anti-propinas de 24 de novembro de 1993.

Há um facto curioso acerca dessa manifestação: é que até estava menos gente que o costume (um amigo meu até comentou "Isto é melhor é deixar-se de fazer manifestações"). Mas, de repente, a policia de choque carrega sobre os manifestantes, descendo a escadaria e os jardins da Assembleia da República - foi um erro fatal: por um lado, o facto de os estudantes terem sido concentrados nos passeios da Praça de S. Bento, só por si, fazia-nos parecer mais; e, mais importante, logo no próprio dia 24, os estudantes das faculdades de Lisboa, ao saberem das noticias da carga policial, dirigiram-se espontaneamente à Praça de S. Bento (ao melhor, às ruelas dos arredores - a praça estava ocupada pelo Corpo de Intervenção) e ao ISEG, que fica ali ao lado.

Quando saí da Praça e fui jantar à cantina do ISEG, aquilo estava a abarrotar de gente, sobretudo alunos da Faculdade de Letras (inclusivamente uma pessoa que eu não me lembrava de ter alguma vez ter visto na vida mas que me perguntou "És o Miguel, não és? A gente brincava juntos quando vivias em Paderne"; eu vivi em Paderne até aos 4 anos de idade...) - quase de certeza que, ao fim do dia e à noite esteve lá muito mais gente do que na manifestação propriamente dita.

Conclusão: uma manifestação que até nem tinha sido das melhores, graças à carga policial, tornou-se o ponto de viragem da luta anti-propinas, com manifestações quase diárias nas semanas seguintes.

Conclusão da conclusão: muitas vezes, a "repressão policial" não é apenas "terrorismo oficial"... é burrice!

Efeitos secundários: com a demissão de Couto dos Santos, uma semana depois, e a sua substituição por uma Secretária de Estado, isto foi também o principio do "ManuelaFereirraLeitismo"

O que escrevi acima baseia-se num post meu de 2005; algumas observações adicionais:

- A minha geração ainda foi a única a ganhar alguma coisa com a luta anti-propinas: com a substituição de Couto dos Santos por Ferreira Leite, as sanções para os boicotadores foram endurecidas - em vez de uma simples multa, a sanção passou a ser a não atribuição a licenciatura a quem não pagasse as propinas; mas isso abriu um curioso vazio legal: devido ao principio da não-retroatividade das leis, essa sanção não se poderia aplicar às propinas que já estavam em dívida; e como a lei anterior foi revogada, também não podíamos ser multados. Ou seja, os estudantes que boicotaram as propinas no ano lectivo de 1992-93 safaram-se sem as pagar (tivemos que pagar as dos anos seguintes, mas essas não); inclusivamente, nas RGAs era frequente aparecerem alunos que em 92-93 não tinham feito boicote a reclamarem que a Associação de Estudantes não estava a fazer nada para eles recuperarem o dinheiro das propinas (e creio que realmente nunca mais o viram...).

- A referência ao "ManuelaFerreiraLeitismo" é completamente datada (quem era mesmo essa mulher?)

23/11/13

Mais um referendo suiço para limitar os vencimentos dos gestores

Amanhã, dia 24, vai a votos na Suiça uma proposta determinando que os administradores de uma empresa não possam ganhar mensalmente mais do que o trabalhador mais mal pago da empresa ganha por ano.

Tudo indica que a proposta irá ser rejeitada, mas, de qualquer forma, uma proposta destas (reduzir o leque salarial para 12:1, num país em que é comum o 100:1) conseguir o apoio de quase 40% dos eleitores (como indicam as sondagens) já é alguma coisa.

Resultado final: a proposta foi derrotada, por 65,3% contra 34,7% .

22/11/13

Da polícia e da política

Os acontecimentos da manifestação das polícias ocorrida hoje não teriam nada de muito surpreendente não fosse o que nos dizem (ou melhor, recordam) acerca da esquerda (institucional e não-institucional) que temos em Portugal. Historicamente ignorante e politicamente ingénua (perdoem-me a arrogância), continua a agir como se algo como um simples gesto de desobediência civil fosse já, em si, a expressão de um fenómeno altamente disruptivo, o último passo antes de se resvalar para o descontrolo social, para o caos absoluto ou para a temida revolução (sim, por vezes a revolução parece causar mais pesadelos à esquerda do que à direita, a julgar pela ânsia com que insiste em atirá-la para o horizonte mais longínquo possível). Quem é polícia parece revelar maior lucidez a este respeito, tal como demonstra não só o acto de invasão da escadaria mas também a opção de não irem mais longe – o mais curioso, nesta última opção, é que a polícia (quer a manifestante, quer a de serviço) agiu contrariamente a um dos dogmas basilares da psicologia de massas de qualquer manual policial: aquele que sublinha constantemente a imprevisibilidade da multidão, em particular o facto de esta ser tomada por uma irracionalidade colectiva com enorme facilidade, alcançando rapidamente um ponto de não retorno, como uma avalanche que avança e inevitavelmente cresce até ser parada por uma força maior.

E, por falar em imprevisibilidade, estes acontecimentos lembram-nos ainda outra coisa quando olhados em comparação com a esquerda e os protestos que esta tão gentilmente nos tem proporcionado: até a polícia parece perceber que a imprevisibilidade é indissociável da política. O esforço que os organizadores das manifestações ditas inorgânicas (como lhes chamam aí pelos jornais) dedicam a controlar cada um dos gestos, passos e gritos dos manifestantes, diz muito sobre o seu entendimento da política e da sociedade (e também, porque não, sobre as pretensões de muitos dos seus membros). A tentativa de controlar totalmente um sujeito e de lhe impor uma ordem (seja esse sujeito colectivo ou individual) é a negação total da política; é, paradoxalmente, a substituição da política pela polícia. É, por isso, curioso constatar que a maioria das manifestações à esquerda tem tido “polícias” (tanto a organizá-las como a participar nelas) muito mais eficazes do que os próprios polícias profissionais.

Nenhuma destas aparentes contradições na acção da polícia (contradições que ajudam a expor o carácter anedótico das “nossas” manifestações) causaria qualquer perplexidade se não fosse uma espécie de tabu, para muita gente, aceitar que a polícia é a primeira a recorrer a meios de acção ilegais quando isso lhe é conveniente. E fá-lo sistematicamente, isto é, por lógicas derivadas do seu próprio funcionamento, o que é dizer que o recurso à ilegalidade não é algo que só acontece excepcionalmente (por exemplo, na conjuntura de “crise” em que vivemos) mas mesmo em tempos de suposta “estabilidade social”. Se é verdade que esse recurso à ilegalidade é em momentos como este mais evidente (e evidente para mais gente), é certo que ele acontece sempre.

A ausência de uma reflexão acerca do monopólio da violência pelo Estado e do funcionamento do seu aparelho repressivo permite que, entre outras coisas, se continue a criticar a violência ou a defender o pacifismo nas manifestações ao mesmo tempo que se aceita – mais ou menos plenamente – o recurso à violência por parte das forças da autoridade (ignora, desde logo, que o simples acompanhamento duma manifestação pela polícia já é em si uma forma de violência, pela demonstração de força que representa e sem a qual esta seria obsoleta).

O que aconteceu hoje sublinha, ainda, outra coisa igualmente tabu acerca da polícia (talvez ainda mais ignorada do que o resto), expressa geralmente no argumento de “que eles são pessoas como nós”. Se a frase em si é um truísmo, pois quem veste a farda da polícia é uma pessoa, a verdade é que acaba por esconder outros elementos fundamentais (e talvez o faça com tanta eficácia precisamente por ser algo aparentemente óbvio). Antes de mais, e ainda em jeito de anedota, neste caso particular coloca-nos a seguinte questão: se eles são como “nós” por que é que “nós” temos, e insistimos em ter, tanta dificuldade a fazer o que eles fizeram, i.e., desobedecer? Num registo mais sério, se é verdade que quem veste a farda de polícia é uma pessoa como “nós”, também temos que saber ver as particularidades de se ser polícia e aceitar que um polícia não é uma pessoa como outra qualquer. Tal como o controlo absoluto (ou a sua tentativa) é a negação da política e a sua substituição pela polícia, o polícia é, enquanto sujeito, a negação de toda a subjectividade política. Ser polícia é uma condição profissional derivada dum treino específico e altamente rigoroso que tem a obediência como seu ponto fundamental. Se a inculcação do sentido de obediência falhar na formação de um polícia, esta falha completamente e torna-se ineficaz enquanto instituição. Mais uma vez, a situação de hoje demonstra-o com clareza, ao revelar o peso dessa “condição profissional” sobre o sujeito, ou por outras palavras, demonstrando o peso que a farda tem (na medida em que, quando um polícia "veste a farda" e está a exercer a sua actividade profissional, é capaz de bater ou mesmo matar alguém que esteja a fazer algo que compreende ou até corresponde àquilo que ele próprio gostaria ou quereria estar a fazer; basta ser ordenado a fazê-lo). Um dos maiores paradoxos desta democracia (e um daqueles que a expõe como farsa) é precisamente o de a sua ordem ou regularidade funcional depender duma força construída com base no princípio da obediência, ou seja, algo que é a negação da própria democracia, da individualidade e do espírito crítico.

Finalmente - mas isto já não devia ser novidade para ninguém -, as manifestações e o recurso à desobediência por parte dos manifestantes não indiciam per se, como é óbvio, nada de revolucionário num sentido emancipatório e igualitário. Que uma entidade repressiva e autoritária - uma "força da ordem" - tenha sido aquela que mais rapidamente recorreu à desobediência numa manifestação, devia servir precisamente para nos chamar a atenção para a elevada probabilidade de qualquer transformação social poder resvalar para um pesadelo ainda maior do que aquele que vivemos. E digo isto não só pelo sentido de alerta que devia surgir em quem deseja e luta por um mundo melhor, mas, especialmente, porque esse pesadelo parece um cenário mais provável do que qualquer outro.

21/11/13

A estratégia dos gestores

Numa perspectiva muito próxima à que o Miguel aborda no seu texto, o Passa Palavra publicou o primeiro de cinco artigos colectivos sobre a estratégia dos capitalistas europeus. Como ideia-forte deste primeiro artigo ressalto o hiato que existe entre a compreensão estratégica das classes dominantes europeias dos seus objectivos económicos e políticos e a esquerda que apenas sabe apegar-se ao nacionalismo.

«os capitalistas têm plena consciência dos desafios económicos, financeiros e políticos que estão em cima da mesa na actual conjuntura europeia. Pelo contrário, a esquerda e a classe trabalhadora não têm tido consciência clara da substância da crise económica. A recorrente recusa em pensar a integração dos mercados financeiros no seio da economia capitalista só existe no plano ideológico e ilusório da esquerda. No caso dos capitalistas, a situação não podia ser diferente. E, no quadro dos conflitos sociais, quem percebe de onde vieram e para onde vão as coisas tem logo uma imensa vantagem política. O que o voluntarismo da esquerda chama de teoricismo é, inversamente, o pragmatismo da classe dominante a tomar as rédeas do processo económico».

De facto, à esquerda têm prevalecido duas noções politicamente nocivas acerca da natureza da actual crise e das subsequentes respostas a dar.

Por um lado, tem vingado a ideia à esquerda de que não haveria democracia no euro. Fazendo a ponte com a crítica certeira do Miguel Serras Pereira ao panfletarismo irresponsável e nacionalista do texto de Nuno Ramos de Almeida, importa lembrar a incongruência da premissa exposta por este último. Segundo Ramos de Almeida, a saída do euro corresponderia à exigência de um «direito democrático das populações de controlarem as grandes decisões económicas e exige o controlo também da política monetária». A exigência de Ramos de Almeida é pobre e facilmente rebatida. Como se nalgum Estado nacional - dos EUA à Venezuela, do Irão e de Cuba à China - os trabalhadores tivessem qualquer tipo de controlo sobre a emissão monetária... A bem da verdade, e por muito que isso choque a esquerda, em Cuba e na Venezuela não há maior controlo da população sobre a política monetária do seu Banco Central do que o que sucede na zona euro relativamente ao BCE. Então em comparação com o caso venezuelano, com as históricas taxas de inflação sempre acima dos 30% (e que, neste momento, já vai nos 50%!), até o BCE consegue praticar uma política monetária muito menos onerosa. Não há mais democracia num Estado nacional do que numa federação de Estados. Ou melhor, esse critério por si só pouco define. E entre um Estado nacional que conferiu poderes ilimitados ao seu Presidente por um ano e uma federação europeia de democracias liberais, só acha que existe menos democracia no segundo caso quem, no fundo, defende uma via política aproximada com o caso despótico venezuelano.


E isto leva-me para o implícito da proposição defendida por Ramos de Almeida (e por parte significativa da esquerda): a tese de que bastaria emitir moeda quase indefinidamente para compensar défices orçamentais e, dessa forma, pagar a dívida pública. Pena que quem defende esta via não diga quais seriam as consequências. A saber, uma inflação galopante, fruto do crescimento da massa monetária muito acima do crescimento da produtividade; a desvalorização salarial; o aumento colossal do preços de matérias-primas, medicamentos, combustíveis e maquinaria importados; o colapso do sistema bancário e o esfumar das poupanças e depósitos dos trabalhadores, etc.




Por outro lado, tem vingado uma segunda noção à esquerda. A de que as classes dominantes portuguesas, espanholas e europeias se orientariam de acordo com uma mundividência eticamente reprovável. Nas palavras de João Rodrigues, estas classes dominantes teriam como leitmotiv para a sua acção: «o mesmo egoísmo, a mesma miopia, a mesma arrogância, os mesmos complexos do bom aluno e a mesma atitude moralista imoral depois da crise rebentar». Em boa verdade, a acção dos gestores europeus tem-se orientado totalmente em torno de princípios socioeconómicos e não porque moralmente seja egoísta e arrogante. A moralização da discussão política critica os capitalistas unicamente no plano secundário e superficial dos comportamentos. Se tal fosse verdade, ou seja, se fosse verdade que os efeitos comportamentais e morais prevalecessem sobre os princípios socioeconómicos, então bastaria mudar uma parte da classe dominante (tida por parasitária e imoral) e substituí-la por governantes bondosos e honrados. Entretanto, o princípio estrutural de organização da sociedade que caracteriza o monopólio das decisões políticas e económicas num grupo social minoritário (fosse ele uma tecnocracia clássica ou um governo dito de esquerda) manter-se-ia intacto. Espantosamente toda a esquerda não tem sequer pensado minimamente em formas de tentar confrontar este princípio central que organiza de alto a baixo as sociedades contemporâneas.
Mas voltando aos gestores, importa referir que tem sido em torno desses princípios estruturais - e não apenas morais/comportamentais - que a integração europeia se tem desenvolvido. Como evidencia o artigo do Passa Palavra, «a concentração da crítica em figuras e em pessoas, para além de ser uma fulanização fascizante, apaga os vestígios da pegada estrutural do capitalismo na determinação total das práticas que modelam a vida dos trabalhadores».

Ancorado em pesquisa empírica sobre o que realmente a tecnocracia tem dito sobre o assunto, e não sobre o que os economistas da moda pensam que a realidade deveria ser, o artigo do Passa Palavra termina com um breve desenho da actual encruzilhada política e económica:
«a evolução recente da crise das dívidas soberanas na zona euro parece confirmar a necessidade de, num mesmo processo, desalavancar a banca europeia e articular a expansão económica no plano transnacional. Isso significa que, ao contrário do catastrofismo vigente na esquerda nacionalista, a integração europeia vai prosseguir. Enquanto a esquerda cimenta posições nacionalistas, no plano económico e político os capitalistas estão a prosseguir a sua resposta institucional aos desafios que a complexificação do capitalismo lhes tem colocado. Esse até poderá ser o papel da maioria da esquerda oficial: atrelar as camadas mais rebeldes de trabalhadores precários a falsas saídas políticas, regulando assim o desespero social com as medidas de austeridade. Enquanto a esquerda dos gestores se diverte a canalizar a revolta dos trabalhadores contra alvos ilusórios, os gestores tecnocratas podem pacificamente reorganizar as instituições europeias. Para quem tem ilusões sobre o papel da esquerda dos gestores na salvação e na regulação do capitalismo, a actual conjuntura deveria deitá-las abaixo».
Se não houver nenhum cataclismo económico a curto prazo, a integração europeia vai avançar, os capitalistas estarão ainda mais unidos, e essa coisa que se intitula de esquerda vai ajudar a fragmentar ainda mais os trabalhadores que vivem na Europa... Não tenho muitas dúvidas de que, consciente ou inconscientemente, essa esquerda funciona como um importante meio de manter os trabalhadores fragmentados nacionalmente. É essa a sua função dentro (e não fora) do actual sistema de organização social. É essa a sua função de propagandear projectos nacionalistas: favorecer a criação de uma mundividência nacional dos trabalhadores de cada país em vez de cultivar um espírito de solidariedade à escala europeia. Os capitalistas agradecem.

Tolerâncias de Ponto

A propósito das tolerâncias de ponto recém-anunciadas, há muito que me ocorre que uma forma de "greve" que era capaz de fazer mossa ao governo era uma "contra-greve" a uma tolerância de ponto, isto é, os funcionários públicos, como "forma superior de luta" contra as politicas do governo, irem trabalhar a um dia a que o governo desse tolerância (seria um caso extremo de "greve por bom trabalho"). Em termos de efeitos sobre a opinião pública (o objectivo, em ultima instância, de qualquer greve no sector público) seria muito mais positivo que uma greve clássica, e nem poderia ser minimizada com argumentos do género "fizeram greve só porque quiseram um dia de descanso!". Os inconvenientes eram que: a) duvido que algum sindicato declarasse um "contra-greve" dessas; b) se, mesmo assim, um sindicato apelasse à "contra-greve", muito sinceramente, duvido que alguém a fizesse; e c) como as tolerâncias costumam (não foi o caso desta!) ser anunciadas com poucos dias de antecedência, dificilmente haveria tempo para decidir e organizar uma acção dessas, mesmo que se quisesse.

[Remake de um texto publicado em 2006]

20/11/13

O Rendimento Básico Incondicional e a Esquerda

Nestes últimos dias, tem havido uma interessante discussão sobre o Rendimento Básico Incondicional (RBI). As objeções levantadas pela Raquel Varela já tiveram resposta aqui e aqui, por exemplo. E o Miguel Madeira já explicou claramente, aqui e aqui, como é absurdo afirmar que a existência dum RBI pressiona os salários para baixo. Aliás, até acho que o Miguel se engana quando afirma que tal pressão é ainda menor no caso do RSI. A questão é muito simples: a um desempregado é proposto um trabalho em troca dum salário de X euros; todos concordamos que a sua recusa ajuda a manter o nível salarial dos trabalhadores que já executam tal trabalho, por esse salário ou superior; portanto, em que condições é que essa recusa é dada com maior probabilidade? Parece-me óbvio que tal probabilidade é tanto maior quanto maior for o rendimento que essa pessoa já possuir, pois terá menos necessidade de rendimento extra para atender ao que considera serem as suas necessidades. Dito de outra maneira, quanto maior o rendimento prévio, mais baixa será a prioridade das necessidades que este não consegue atender com tal rendimento, donde menor será a motivação que alguém terá para aceitar um trabalho (pelo mesmo salário que lhe seria oferecido na presença dum rendimento prévio inferior).

Note-se que já existem diferentes tipos de rendimento básico garantido atribuídos por vários Estados, inclusivé pelo Estado Português. Por exemplo, o acesso garantido a cuidados de saúde através do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um tipo de, ou equivale a um, rendimento garantido. Aliás, uma das estratégias que o Estado Português tem seguido, apoiado pela chamada Troika de credores, para tentar diminuir os salários em Portugal, consiste na diminuição das prestações sociais, quer monetárias (por exemplo, RSI ou subsídio de desemprego) quer em espécie (por exemplo, SNS e Escola Pública, colocando e aumentando taxas de acesso e degradando a qualidade dos serviços prestados). Tal diminuição coloca pressão acrescida sobre os trabalhadores para que estes arranjem rendimento adicional, de modo a ter acesso aos mesmos bens e serviços, não só do mesmo género mas também com a mesma qualidade, que antes obtinham através desses tipos de rendimentos garantidos, em particular aceitando salários que antes não aceitariam. Portanto, ser contra o RBI devido às implicações que poderá ter sobre o nível salarial implica, na prática e em coerência, ser contra a existência de qualquer rendimento garantido, mesmo quando atribuído em espécie, como o SNS ou a Escola Pública. O único aspecto que poderá levar alguém a apoiar a existência do SNS, por exemplo, e não do RBI, é o facto do SNS ser simultaneamente um rendimento atribuído e um serviço prestado pelo Estado, enquanto que o RBI tem em comum com o SNS apenas o primeiro aspecto. Ou seja, o RBI permite o acesso a bens e serviços que não são prestados pelo Estado. Portanto, quem ache que deve ser o Estado a providenciar (todos os) bens e serviços, pode achar que a existência dum RBI diminui a exigência para que tal aconteça, porque "basta o RBI para as pessoas terem acesso a tudo o que precisam". Obviamente, tal diminuição dependerá da magnitude do RBI. No entanto, o argumento em favor da revolução igualitária não é "permitir o acesso a tudo o que as pessoas precisam", mas antes "todo o rendimento deve ser igualmente distribuído por todos". Sublinho o todo. Portanto, a preocupação anterior só é válida para quem acredite que uma versão regulada do Capitalismo é o melhor sistema, ou de que a necessidade revolucionária desaparecerá assim que "as pessoas sintam que têm acesso a tudo o que precisam". Não me revejo no primeiro ponto, nem acho que seja verdade o segundo ponto (ver comentários a este texto do Miguel Serras Pereira). Por outro lado, e aqui há quem discorde de mim à Esquerda, não acho que o Estado seja necessariamente a melhor opção para providenciar (todo o tipo de) bens e serviços. Muitos poderão (e deverão) ser providenciados (também) por associações auto-geridas de trabalhadores, e adquiridos por outros cidadãos através do recurso (também) ao RBI.

19/11/13

O euro e as tarefas da democratização

O Nuno Ramos de Almeida escreve na sua última crónica no i: "Aquilo que hoje se depara à esquerda é que, na impossibilidade clara de alterar a política europeia neoliberal, só é possível salvar a democracia e o Estado social num quadro que coincida com o da decisão democrática. Para isso é necessário apostar na autodeterminação das pessoas e na democratização da economia. A política deve definir a economia, as pessoas têm de ter uma palavra a dizer nessa matéria. Ora isso só é possível num espaço que salvaguarde o direito democrático das populações de controlarem as grandes decisões económicas e exige o controlo também da política monetária. Só é possível democracia sem euro".

Se, deixando para outra altura a discussão dos equívocos da palavra de ordem " salvar (…) o Estado social", é fácil dar-lhe razão no que se refere à ideia de que só reforçando a participação democrática e conquistando para a acção política dos cidadãos comuns (o Nuno escreve "as pessoas", mas não me parece que a precisão terminológica que sugiro altere grande coisa no seu raciocínio) o poder governante — o poder de deliberar e decidir — usurpado pelas burocracias governamentais e pelos aparelhos económicos,  já não se compreende o que quer o Nuno dizer com a "impossibilidade clara de alterar a política europeia neoliberal", ao mesmo tempo que afirma, não menos claramente, a possibilidade dessa alteração no quadro mais restrito de cada Estado-nação, nem por que diabo de razão "o direito democrático das populações de controlarem as grandes decisões económicas" é impossível com uma moeda única.

Com efeito, se o Nuno não souber explicar claramente porque é que em Portugal, com o regresso ao escudo, passará a ser possível a democratização de que fala, e porque é que esta é impossível na Europa, o mais razoável será pensar que a grande maioria dos cidadãos portugueses e a grande maioria dos cidadãos europeus tudo teriam a ganhar com a democratização da UE, e que é essa a tarefa que, para garantirem e alargarem os seus direitos e liberdades, terão de levar a cabo, conjugando e coordenando os seus esforços sem se deixarem tolher por fronteiras ou interesses nacionais. E se é evidente que nem o euro, nem tão-pouco a integração fiscal, orçamental e política significam, por si sós, mais democracia, não é menos evidente que serão consequências e condições de desenvolvimento de qualquer democratização efectiva na região.


18/11/13

Rui Tavares, o LIVRE e a "esquerda da esquerda"

O Miguel Madeira já chamou a atenção para o "vale tudo" que parece ser a palavra de ordem dos paladinos do PCP e outros sectores da "esquerda à esquerda do PS" contra Rui Tavares e o LIVRE.  Mas talvez seja instrutivo tentarmos reflectir um pouco mais sobre tanta sanha. Não serei eu quem negue que o projecto LIVRE merece críticas severas. Esquematizando muito, direi que, entre os seus pontos mais fracos, se contam a incapacidade de pensar o poder político e o seu exercício sob formas alternativas ao modelo do Estado; o privilegiar das respostas "governamentais", no quadro das relações de poder existentes, na identificação e formulação das questões e objectivos polítcios imediatos; a  falta de clareza, para dizer o mínimo, em matéria de democratização económica; a perpetuação da lógica representativa e a sua consagração acima da participação igualitária dos governados no seu próprio governo; e, noutro plano, mas também da maior importância, a insistência, por vezes caricata dadas as circunstâncias, na necessidade de "unir a esquerda", sem formulação inequívoca de uma plataforma e uns quantos princípios mínimos que a justifiquem (ou seja: trata-se de unir que "esquerda", porquê, para quê e como, ou em torno de que objectivos e métodos ou formas de acção?). Não é pouco, embora se pudesse avançar bem mais, mas para o efeito dispenso-me de desenvolver os pontos já referidos e outros que a eles se ligam. Dito isto, convém ter presente que não são estas objecções que, de um ponto de vista democrático se podem apontar ao novo projecto, a razão de ser da campanha em curso contra ele e contra Rui Tavares. A razão é que, boas ou más, e deixando muito a desejar, o LIVRE tenta apresentar algumas ideias e defendê-las, ao passo que os seus detractores, tanto das bandas do PCP como do BE, não têm, por um lado, qualquer alternativa convincente a opor-lhes, e, por outro, receiam que o novo partido contagie de indisciplina os seus eleitores e fiéis, ou lhes arrebate uma parte dos "descontentes com o PS" que gostariam de mobilizar sob as suas bandeiras.

Pelos dez anos da sua morte


Ao abrigo de uma festividade festivaleira que escorre entre as bandas do Casino Estoril e a capital, e sob a batuta do incansável empreendedor Paulo Branco, aliaram-se as aspas do "cinema" às aspas da "literatura" e outros demais resíduos das "animações culturais" e vá de promover uma " leitura de poemas" do João César Monteiro (sem água-vai ao filho do mesmo que é quem detém os direitos autorais do poeta-cineasta).
O esbulho, à sorrelfa, até terá tido sua razão de ser: a haver pedido de autorização para aquele " momento de arte", a resposta consistiria apenas numa palavra: Não. E assim é, ou foi, que a desfaçatez ganhou direito sobre a decência e o direito.
Mas o pior está para vir. É que no rol dos "eventos" que complementam o barulho das  luzes "cinematográficas"', insiste-se no ítem João César Monteiro – à laia de "homenagem" pelos 10 anos decorridos sobre o seu falecimento – agora com um ministro, rodeado por numeroso séquito hemicílico, a ler uma carta do César a um organismo estatal e sabe-se lá mais o quê de igual jaez e esperta solicitude. Que "eles" comem tudo, está na canção e na sabedoria popular, por (forçada) experiência própria. Mas "que não deixam nada", já é de contestar. Porque deixam: deixam um rasto repulsivo, que soma ao abuso puro e duro o intuito subjacente de branquear, neutralizar, festivalar o furor interventivo, manifestamente Anti-Sistema, do cineasta, assim posto à mercê de tais canibais homenageantes.
A tempo, seria caso de apelo à vergonha-na-cara dos responsáveis pela coisa, levando-os a cancelar o vilipêndio e ficarem muito quietinhos a ver fitas.
Mas não há que esperançar. Com o concurso de um ministro-e-tudo, o evento lá se levará a termo, sem que o vento o leve.
Que fique no entanto expresso, por este meio, a par da elementar indignação, o nosso mais vincado repúdio face a uma operação "política" a todos os títulos repugnante.
Manoel de Oliveira, Herberto Helder, Manuel Gusmão, Pedro Tamen, Maria Velho da Costa, Armando Silva Carvalho, Manuela de Freitas, José Mário Branco, Alberto Seixas Santos, Pedro Costa, João Queiroz, Rui Chafes, João Fernandes, Vitor Silva Tavares, Margarida Gil, João Pedro Monteiro Gil

O RBI pode fazer baixar os salários? (II)

Na Rubra, Rivania Moura publica o artigo "Defendemos que as pessoas vivam com o mínimo possível?" (via Raquel Varela), em resposta ao meu post anterior sobre o RBI.

A respeito dos pontos 1, 2 e 5 (sobretudo do 2), parece-me que Rivania Moura está a argumentar que o RBI é pior para os interesses dos trabalhadores (e dos que gostariam de ser trabalhadores mas não conseguem...) do que outras politicas que poderiam ser seguidas. Mas o meu ponto é que, se tudo o resto for igual, o RBI fará subir (ou não minimo, não fará descer) os salários. Claro que se formos comparar um mundo com RBI e uma politica orçamental de austeridade e contração da economia com um mundo alternativo sem RBI com uma politica orçamental expansionista visando o pleno emprego, provavelmente os trabalhadores viverão melhor e os salários acabarão por ser mais altos no segundo do que no primeiro; mas acho que o que faz sentido é analisar os méritos de uma proposta politica comparando-a com o que aconteceria se essa proposta não fosse implementada, não tanto com o que aconteceria se, em vez dessa proposta, fosse implementada outra (ainda mais tratando-se de propostas que não são incompativeis entre si).

É verdade que, de certa forma, há um potencial conflito entre o RBI e outras politicas alternativas - o tempo dos militantes e ativistas de esquerda é um recurso limitado, e portanto cada minuto, post, manifestação, conferência, panfleto, etc., feita a defender o RBI poderá significar menos um feito a defender politicas melhores. Logo, por esse caminho, a defesa do RBI poderia levar a uma má situação para os trabalhadores (pelo efeito da "energia" gasta pelos ativistas pró-RBI deixar de ser utilizada na luta por causas mais vantajosas). Mas duvido que na prática esse efeito seja significativo.

A respeito do ponto 3, de que um subsidio pago por igual a todos não redistribui rendimentos - efetivamente, pode-se dizer que um subsidio igualitário por si só não redistribui rendimento; mas o dinheiro para esse subsídio tem de vir de algum lado. Tem sido propostas várias fontes de financiamento para um RBI, mas o mais provável é que este fosse financiado via impostos - basta esses impostos serem progressivos ou mesmo proporcionais para haver redistribuição (já que os que mais têm vão pagar mais para um bolo que depois vão ser dividido igualitariamente).

Finalmente vamos ao ponto 4, o mais relevante do meu ponto de vista:
O RBI fará baixar os salários todos, mesmo não sendo discriminatório como é o RSI (rendimento mínimo actual) ou o Bolsa família, ou o Cesta Básica da Argentina. Vejamos um exemplo. Imaginem que se fixava em Portugal o RBI a 200 euros. Ora, se existem trabalhadores a ganhar um salário de 500 euros e outros trabalhadores desempregados e sem salário, o rendimento acrescido de 200 euros fará que o primeiro passe a ter um rendimento de 700 euros enquanto o segundo terá de viver com 200 euros. Portanto, esse sistema continua a manter a concorrência entre os trabalhadores pelo emprego e continua a pressionar os salários para baixo.
De novo, não se paercebe qual o mecanismo pelo qual o RBI fará baixar os salários - Rivania Moura escreve (provavelmente com razão) que o RBI continua a manter a concorrência entre os trabalhadores; mas para o RBI fazer os salários baixar (ou seja, fazer com que sejam menores do que seriam se não houvesse RBI), não basta que a concorrência se mantenha; para o RBI originar uma baixa de salários, seria necessário que fizesse aumentar a concorrência entre os trabalhadores. Ora, não estou a ver porque a concorrência para ganhar 700 em vez de 200 há-de ser mais aguerrida do que a concorrência para ganhar 500 em vez de zero (será mais de esperar o contrário, porque 500 euros adicionais fazem mais diferença a quem não tem nada do que a quem já tem 200 euros)

17/11/13

Zwarte Piet


San Nicolás, el venerable obispo de Mira (Anatolia, hoy Turquía) llegado todos los años a Holanda desde España para repartir regalos entre los niños, ha desfilado este domingo por Ámsterdam con más pajes que nunca. Esta vez han sido unos 600 ayudantes, que llevan tradicionalmente la cara pintada de negro, labios carmesí, peluca oscura rizada y atuendo morisco. Se llaman Zwarte Piet (Negro Pedro) y su condición de sirvientes estereotipados ha provocado un debate nacional capitalizado por el populista Geert Wilders. Él reclama que no se sacrifique un símbolo de identidad nacional en nombre de la corrección política, y lo hace con más fuerza que nadie. La defensa de la identidad nacional es precisamente uno de los mantras que repiten por toda Europa los grupos populistas.
Las críticas sobre el aparente inmovilismo de una sociedad que se llama tolerante, pero jalea una figura salida del colonialismo, han llegado hasta el Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Derechos Humanos. Uno de sus equipos investiga ahora el supuesto racismo de la tradición.

Estas notícias que nos chegam dos Países Baixos talvez mereçam alguma reflexão. Com efeito,
não parece que negar que houve escravatura e que a cor da pele pôde ser um estigma imposto a seres humanos para os explorar e discriminar seja a melhor maneira de prevenir que a escravatura se repita ou de combater a discriminação racial. Muito pelo contrário, os que se recusam a recordar correm o risco de repetir o que excluem da memória. Correm e fazem-nos correr o risco de sucumbir perante uma possibilidade que tratam como se fosse um impossível — ou seja, como se nunca tivesse existido. Fazem pior: negando a legitimidade da representação encenada — seja nas ruas, nos livros, nos museus, nas conversas do dia a dia — da escravatura e do racismo, entregam a encenação e a interpretação desse passado aos racistas e nacionalistas do momento, oferecem-lhes o monopólio da reconstrução e do reconhecimento da realidade do passado, bem como do seu sentido presente. Negam a sua actualidade e renunciam a transformar a sua eficiência, ao mesmo tempo que a realidade e a actualidade das acções políticas e dos combates de ideias que venceram (incompletamente ainda e, por isso, até mais ver) a escravatura e o racismo.

Os ataques a Rui Tavares

Eu não faço qualquer tenção de alguma vez vir a votar ou apoiar o partido "LIVRE", e nem me parece que sequer haja espaço para ele. No entanto, as campanhas de ataques pessoais contra o Rui Tavares, que já chegaram à montagem de fotografias falsas, parecem-me inadmissivies, e próprias de quem prefere discutir pessoas a ideias. E quanto às acusações de "divisionismo", quando vindas de bloquistas, têm um travo irónico - afinal, o PCP acusa (ou acusava) o Bloco exatamente disso. Portanto camaradas, se o mal é estar a "dividir a esquerda", abandonem o BE e dirijam-se ao "centro de trabalho" do PCP mais próximo (é verdade que o Rui Tavares também se pôs a jeito, quando disse que um nos motivos para criar a nova organização era contribuir para "unir a esquerda", ou coisa parecida).

16/11/13

O RBI pode fazer baixar os salários?

A Raquel Varela deu uma entrevista à Dinheiro Vivo onde, entre outras criticas ao chamado "Rendimento Básico Incondicional" (termo que parece ter ganho a melhor sobre o meu "Rendimento Universal Garantido...), argumenta que este "ia de facto actuar como um RSI pressionando os salários de Todos para baixo".

Não me parece que isso (tanto a respeito do RBI, como mesmo do RSI) faça grande sentido - qual poderá ser o mecanismo que faria o RBI baixar os salários?

Em principio (assumindo as condições técnicas, como a produtividade, como um dado) o valor dos salários depende da facilidade ou dificuldade dos patrões em arranjarem trabalhadores: se for fácil contratar e se para cada empregado tiverem dois desempregados a pedir emprego, podem baixar os salários; se for difícil contratar e as vagas na empresa ficarem muitas vezes desertas, têm que subir os salários para atrair trabalhadores.

Assim, para o RBI fazer baixar os salários, teria que aumentar a quantidade de pessoas que andam à procura de emprego, e assim permitir aos patrões baixar os salários. Ora, há alguma razão para pensar que, com o RBI, houvesse mais gente a querer trabalhar e estar empregada? Creio que não - na verdade, um RBI permitiria a alguma pessoas manterem o seu atual padão de rendimento trabalhando menos (p.ex., se eu ganho 1373 euros trabalhando 35 horas por semana, e passasse a receber 100 euros de RBI, poderia passar a trabalhar apenas 32 horas e meia, passando a ganhar apenas 1275 euros de ordenado, e com mais os 100 euros continuava a ganhar o que ganhava antes*). Assim, com algumas pessoas a querer trabalhar menos, o efeito disso sobre os salários seria para fazer subir, não para os fazer baixar.

O que admito que provavelmente faria baixar os salários seria algo parecido ao EITC norte-americano, em que o estado subsidia os trabalhadores com baixos salários, mas não quem não tenha salário. Ai sim, os trabalhadores têm mais incentivo para aceitar empregos, porque aí a diferença entre aceitar ou não o emprego corresponde não apenas ao salário mas ao salário mais o subsidio.

Para explicar melhor o meu raciocinio, vamos comparar quatro situações, em que é proposto a um trabalhador um emprego a ganhar 500 euros (em 3 delas há um subsidio estatal de 100).

Sem subsidios nenhuns:

Se o trabalhador aceitar o emprego: ganha 500 euros
Se recusar: ganha 0 euros

Com subsidios estilo RSI

Se aceitar: ganha 500 euros (ordenado)
Se recusar: ganha 100 euros (subsidio)

Com subsidios estilo RBI:

Se aceitar: ganha 500 euros (ordenado) + 100 euros (subsidio)
Se recusar: ganha 100 euros (subsidio)

Com subsidios estilo EITC:

Se aceitar: ganha 500 euros (ordenado) + 100 euros (subsidio)
Se recusar: ganha 0 euros

A mim parece-me que a situação em que o trabalhador tem mais a perder se recusar um emprego é o modelo EITC, depois o modelo sem subsidio, depois o modelo RBI e finalmente o modelo RSI. Assim, creio que podemos concluir que tanto o RBI como o RSI diminuem a pressão para os trabalhadores arranjarem emprego, contribuindo para alterar a relação de forças entre o trabalho e o capital de forma relativamente mais favorável ao primeiro.

*Isto é um simplificação, já que, no mundo real, o trabalhador normalmente não decide a quantidade de horas que vai trabalhar - é-lhe apresentada uma proposta "pegar ou largar" de "ou aceitas trabalhar X horas ou nada feito". Mas há montes de situações em que o trabalhador pode escolher, em certo ponto, a quantidade de horas de trabalho (a opção entre arranjar ou não um segundo emprego, a opção por fazer horas extraordinárias, ou mesmo as situações em que o trabalhador pode optar por trabalhar a tempo inteiro ou em part-time), o que, no agregado, levará a que um RBI reduza a oferta global de trabalho (atenção que com "oferta de trabalho" refiro-me a "trabalhadores oferencedo-se para vender a sua força de trabalho", embora na linguagem coloquial "oferta de trabalho" seja frequentemente usado ao contrário)

15/11/13

A insurreição global




Hoje, tem início a conferência Global Uprisings, em Amesterdão, Holanda. As várias palestras e painéis de discussão previstos prometem aprofundar a reflexão sobre as insurreições que recentemente tiveram, e continuam a ter, lugar um pouco por todo o mundo. Mais importante ainda, será a troca de experiências, e a criação de canais de comunicação que potenciem as próximas insurreições. É preciso tornar a instabilidade mais virulenta, criando condições para que, (ainda) mais facilmente, insurreições locais/nacionais se propaguem globalmente, inflamando outras.

Pelo que percebo, algumas das palestras e discussões serão transmitidas pela internet. Estejam atentos à informação aqui colocada. O Ricardo Noronha (The Euro Crisis: Reports on Crisis and Revolt - sábado, 13.00-14.30) e o Luhuna Carvalho (Networking Resistance in the Mediterranean - sábado, 15.30-17.00) vão intervir, partilhando a sua percepção do que se passa em Portugal.

Num recente e interessante texto de opinião, Mehmet Döşemeci, contrasta os movimentos contestatários das últimas décadas com a mais recente vaga insurreccional. Onde antes havia (literalmente) movimento, que rapidamente se dissipava sem chegar a colocar em causa a legitimidade do Estado, aliás frequentemente tinha como objectivo obter concessões do Estado; agora existe (tentativa de) permanência, em claro desafio à autoridade do Estado, em particular sobre o espaço físico e os fluxos que por ele passam. Ainda mais fundamental, nos recentes processos insurreccionais tem-se procurado também demonstrar que é possível, supremo sacrilégio, viver em sociedade sem um Estado, revelando no processo a verdadeira natureza deste: um aparelho repressivo e manipulador cujo objectivo é perpetuar a dominação por uma oligarquia.

P.S. Transmissão ao vivo pela internet.

13/11/13

O "pacifismo zoológico" e a sua diplomacia


A Joana mostra bem neste post como aquilo a que Castoriadis chamava o "pacifismo zoológico" inspira  a imbecilidade diplomática dos oligarcas do Ocidente. Mas, se não me engano muito, haverá na "esquerda" mais rubra quem veja nisto uma derrota, não da liberdade, mas do imperialismo — ainda mais preciosa e mobilizadora por ter por teatro a "Europa decadente".

As fotografias mostram um baixo-relevo no Palácio das Nações Unidas em Genebra, («A criação do homem», uma obra onde é representado um homem nu), tal como é, e tapado antes da chegada da delegação do Irão a uma reunião dos membros permanentes do Conselho de Segurança, para não chocar aquela delegação.

E, no entanto, se eu quiser desembarcar em Teerão, terei de o fazer de cabeça tapada – razão pela qual, até hoje, resisti a visitar um país que todos dizem ser lindíssimo.

O Ocidente rastejando, vá lá saber-se com que vantagens e para quem.

Futebol, religião e política

Um artigo muito interessante do Alex Hilsenbeck, onde a partir do caso concreto das claques do Corinthians, aborda as contradições em torno da relação entre futebol e participação popular. Pode ser lido na íntegra aqui no Passa Palavra.



«As torcidas de futebol estão envolvidas numa imagem contraditória de, por um lado, uma unidade popular e, de outro lado, de unidade fascista de classes que as fragmenta em relação ao time que se torce. Podendo, assim, servir como meio de organização e contestação às estruturas sociais, bem como de contenção das revoltas e reprodução sistêmica. Desse modo, os torcedores, ainda que pertencentes a uma mesma classe e possuírem origem territorial periférica, sofrendo das mesmas mazelas, colocam-se em conflito pela cor (não da pele, mas da camisa), reproduzindo a fragmentação e individualização de “cada um, cada um”, própria do sistema capitalista.
O futebol ainda serve como reforço no senso comum da fábula do sucesso individual através da estetização e exploração publicitária da pobreza, da história do menino com carências sociais que graças ao futebol alcança a rápida ascensão econômica».

12/11/13

«Cuidado com eles»

O 5 dias anda num corropio. A propósito das posições dos trotsquistas sobre o Álvaro Cunhal, os membros daquele blogue que se identificam como militantes do PCP ou partem dali para fora ou ficam amuados com as críticas, respondendo com saraivadas de bla bla blás sem nenhuma substância política. Verdade seja dita que a crítica do Renato Teixeira, que desencadeou a crise naquele espaço, é relativamente frágil mas toca num ponto complicado na história do Partido Comunista: a vida durante a clandestinidade e a relação do PCP com as restantes forças da extrema-esquerda.

De facto, a crítica do Renato é frágil na medida em que responde numa linha rigorosamente simétrica à que Cunhal fez no seu famoso escrito "Radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista". Centrar a crítica política no atirar de chavões sobre o maior ou menor reformismo ou o maior ou menor carácter revolucionário de uma organização tende a passar por uma disputa do tipo "o meu clube é melhor do que o teu". Por outro lado, parece-me que o Renato aborda as questões do ponto de vista da busca da organização que melhor possa dirigir as massas. Ora, o problema em 74 e 75, como hoje e sempre, não é o de se atingir o nirvana da organização política mais oleada e pura mas, pelo contrário, auxiliar a que a diferença entre as vanguardas e a classe se esbata. E que seja o conjunto dos trabalhadores que tome os destinos da sociedade nas suas mãos, tomando colectiva e democraticamente as decisões e sem terem de esperar pelo comunicado de um qualquer Comité Central que lhes ilumine o caminho... Nesse sentido, a legítima crítica do Renato situa-se na mesma plataforma de pensamento da acção política do PCP.

Retirado daqui
Jornal Avante!, nº349, VI série, 1964 - Dezembro

Curiosamente, em toda a polémica gerada recentemente no 5 dias ninguém ligado ao PCP é teoricamente capaz de responder à crítica do Renato. Como sempre fazem com quem não concordam, o que lhes interessa é o insulto gratuito e a transformação de críticas políticas em ataques ad hominem. Isso revela que, na geração nascida após 74, quase ninguém no PCP conhece puto de história, inclusive do seu próprio partido político. Esse comportamento típico do crente irracional só demonstra o quanto a adesão da maioria das pessoas a organizações de esquerda se baseia unicamente no desejo de partilha identitária e de afeição sentimental a um ideal político. Claro que não existe política sem sentimentos, mas estruturar a acção política na base da emoção costuma dar merda. Primeiro, isso significa que a adesão de mais pessoas para a luta política se vai encarreirar numa via moralista, fomentando assim o desconhecimento completo de como funciona o capitalismo. Segundo, quando o irracionalismo e o voluntarismo guiam a prática política, então fácil se torna ver como a esquerda pode alimentar vectores que comunicam com a direita mais extrema. Os mesmos que hoje insultam o Renato, são os mesmos que primem o gatilho quando alguém critica algum aspecto da linha política do PCP.



Ora, isto leva a colocar uma interrogação que toda a esquerda exterior ao PCP tem de colocar. Se por causa de um texto meramente de polémica bloguista  e se, como mostrei acima, esse mesmo texto até se insere dentro de uma visão do mundo relativamente análoga (mudando apenas a camisola do clube), os militantes do PCP desatam a insultar e a tentar assassinar o carácter de alguém, então o que fariam os PCPistas se estivessem no poder. Esta é uma lição, pelos vistos raramente aprendida, para os que pensam que basta uma organização política se assumir contra a troika para que se possa fazer uma aliança política e na luta da rua. Quem é que ainda acha possível realizar alianças e acordos com gente herdeira das piores práticas políticas do século XX?

Lumpen burguesia

O ministro de economia defendeu hoje que o empreendedorismo deveria ser uma disciplina do ensino obrigatório. A ideia, do ponto de vista de alguém que defende o empreendedorismo (não é o caso da pessoa que escreve este post) é estúpida. Enquanto forma de governo da conduta do indivíduo, o empreendedorismo deve ser ensinado sem que o conceito surja muitas vezes mencionado, sempre na base do conselho e nunca da autoridade (como acontece, precisamente, numa sala de aula). Deve fazer parte de todas as disciplinas da escola e não apenas de uma. Deve atravessar todos os momentos da vida de uma pessoa e não uma horas por semana.

Isto para dizer que estamos perante uma boa notícia. Obrigar os putos a ter que estudar e fazer testes sobre empreendedorismo será, provavelmente, a melhor maneira de os levar a odiar a coisa. 


Da falta de paciência

Que seria da esquerda portuguesa sem as discussões fundamentadas cíclicas birras no Cinco dias?


(não era um objectivo meu iniciar a minha participação no vias de facto a maldizer; mas, enfim, foi para o que me deu hoje.)

09/11/13

Que Rendimento Básico Incondicional? A propósito de um post do Pedro Viana sobre o mesmo tema

O texto que o Pedro Viana aqui publicou sobre o "rendimento básico incondicional" merece reflexão e discussão sérias. Para ajudar a pôr em andamento um debate sobre o assunto, transcrevo aqui alguns excertos de um texto que escrevi em 1999 (e do qual publiquei uma versão no número 1 da revista Abril em Maio desse mesmo ano). O meu texto constitui uma análise crítica da proposta de um "rendimento de cidadania" formulada em 1995 por Jean-Marc Ferry, muito semelhante, no essencial, à que o Pedro hoje aqui retoma, embora, creio, a partir de pressupostos políticos diferentes. Em todo o caso, as questões que procurei levantar a propósito da proposta de "alocação universal" de J.-M. Ferry (cf. L'Allocation universelle. Pour un revenu de citoyenneté, Paris, Cerf, 1995) parecem-me valer mutatis mutandis para boa parte do que o Pedro escreve ou cita. Aqui fica, portanto, o meu balanço da questão em 1999.

(…) A alocação universal (allocation universelle) é definida como um "rendimento social primário distribuído igualitariamente de modo incondicional", e entendida como "rendimento de cidadania", ou, por outras palavras "como um 'direito-crédito' do cidadão frente à sua comunidade". Este rendimento seria "distribuído de modo igualitário e incondicional aos cidadãos maiores da União Europeia", e a sua percepção pelos indivíduos não dependeria, portanto, da sua situação social (empregados ou desempregados, grandes proprietários ou serventes da construção civil, por exemplo). No entanto, sendo o abono universal um rendimento primário, o seu montante bruto integrar-se-ia de parte inteira no rendimento eventualmente tributável dos contribuintes. Assim, só disporiam, de facto, da totalidade desse montante os indivíduos cujos rendimentos (incluindo o abono) não atingissem o primeiro escalão inferior tributável, ao mesmo tempo que o mesmo quantitativo seria "tanto mais largamente amputado pelo imposto quanto mais elevados fossem os rendimentos a que se adicionasse" — ou seja: alguns disporiam da totalidade do abono universal, outros seriam tributados num valor que poderia ser próximo, igual ou superior ao da totalidade do montante respectivo.

Dito isto, J.-M. Ferry pensa que, num primeiro tempo, a título provisório e visando essencialmente a adopção do princípio do "rendimento de cidadania", o montante deste deveria situar-se "em torno de uma linha de 15 por cento dos PNB  (…)

(…) Seja como for, o que conta aos olhos de J.-M. Ferry é sobretudo a possibilidade de a alocação universal servir como meio de desenvolvimento daquilo a que ele chama um "sector quaternário de actividades autónomas pessoais e não-mecanizáveis", cuja existência deverá ser apoiada por medidas políticas e protecções fiscais. Este sector é-nos também apresentado como sector potencialmente crítico e reflexivo, tendo por vocação promover o avanço de uma economia social e da participação, segundo as inclinações e as prioridades de cada um, nos mais diversos movimentos sociais (luta contra a exclusão, intervenções em defesa do ambiente, animação cultural comunitária, por exemplo). Assim, J.-M. Ferry escreve: "não milito pelo abono universal em si mesmo, mas  visando as finalidades de participação e de integração social", às quais o sector quaternário abrirá caminho, tanto mais que o rendimento de existência (combinado com o reforço dde certos dispositivos como o "salário mínimo") permitirá uma maior independência dos indivíduos frente ao mercado de trabalho. Ao contrário, de resto, daquilo que vale no que se refere à definição dos outros sectores (primário/produção agrícola; secundário/indústria; terciário/serviços…), o sector quaternário não se define pelo que produz, mas "pelo facto de as suas actividades serem actividades pessoais e autónomas".

Em resumo (…) parece-me poder adiantar agora que a criação de uma alocação universal, acompanhada de medidas de protecção e promoção de um sector quaternário, se mostra insuficiente para a inversão da ordem dominante de prioridades no que se refere à articulação entre as dimensões da economia, por um lado, e, por outro, da cidadania. De facto, os cidadãos de uma democracia, enquanto iguais em relação ao poder, devem poder participar de modo também igualitário na definição do lugar e do valor da economia, quer dizer na definição daquilo que a sua economia deve produzir, colocar no mercado, atribuir a cada um como rendimento em função dos recursos disponíveis, fixar-se como fins prioritários. O que implica uma democratização da economia política muito mais profunda que as medidas de "repartição primária social igualitária" de que nos fala o nosso filósofo.

De resto, é de sublinhar o contraste impressionante entre, por um lado, certos passos da análise que J.-M. Ferry nos propõe dos impasses da ordem económica actual e, por outro lado, as suas conclusões programáticas. Num livro de 1992, publicado em 1991 sob o título Les Puissances de l'expérience. Essai sur l'identité contemporaine (Paris, Cerf, 2 vols.), podemos ler que, ao contrário de uma ideia feita muito difundida, "(…) não existe de facto qualquer chave económica (…) de repartição do rendimento global (…) ninguém pode dizer em que é que uma hierarquia dos rendimentos assenta em termos económicos — porque é que (…) o rendimento primário de certa categoria se relaciona com outros rendimentos segundo este ou aquele coeficiente multiplicador", e assim por diante. Dir-se-ia que esta análise dos "absurdos da repartição actual" denunciados pelo autor deveria conduzir-nos a propostas um pouco mais radicais de repolitização democrática da economia — do tipo, por exemplo, das que Castoriadis apresenta (e eu aqui retomo em grande medida) nos dois textos chamados "A 'racionalidade' do capitalismo" e "Que democracia?"(cf. Les Figures du pensable, Paris, Seuil 1999). Por outras palavras, se o critério de repartição dos postos de decisão da actividade económica e dos rendimentos dos cidadãos não pode fazer valer em seu favor nem a objectividade do cálculo económico nem a deliberação explícita do debate democrático, mas, quando muito, certas relações de força mais ou menos institucionalmente cristalizadas, então torna-se necessário democratizar em profundidade todo o campo da economia e definir em novos termos o seu lugar na vida tanto dos indivíduos como da sociedade.

(…)

Mas voltemos às teses de J.-M. Ferry e à dissociação parcial que preconizam entre trabalho e rendimento, tendo em vista a emergência de um sector quaternário. A dissociação faz-se, na realidade, entre rendimento de actividade económica e rendimento de existência, deixando portanto intacta a divisão entre os que se integram no mundo da economia global mundializada, através de um trabalho-emprego e/ou do desempenho de funções de concepção, coordenação e direcção na esfera produtiva, e os que são mais ou menos excluídos desta esfera e cujo rendimento é garantido pela alocação universal e pelas actividades no espaço, economicamente menor, da "economia social".

Este quadro obriga-nos a enfrentar, contudo, a seguinte alternativa: — ou a alocação universal confortará a economia estabelecida, quer dizer a sua autonomização relativamente ao espaço público da deliberação/decisão democrática, a sua racionalidade instrumental, caso em que o sector quaternário será reduzido a funcionar como uma válvula de segurança; — ou o desenvolvimento dos ector quaternário e da economia social entrará em conflito com o funcionamento da grande economia dominante e não poderá deixar de empreender, para o dizermos assim, a sua "quaternarização" generalizada. É evidente que esta segunda hipótese se torna inverosímil a menos que a instauração do abono universal seja acompanhada, desde o início, por medidas e lutas políticas visando "quaternarizar" o conjunto da actividade económica. Bem entendido, quando falo de "quaternarizar" não penso numa esfera produtiva relavando apenas, no seu conjunto, das actividades não-mecanizáveis pessoais e autónomas a que J.-M. Ferry se refere. Tenho antes em vista a dimensão "crítica e reflexiva" em cujos desenvolvimento e extensão, reanimando a participação social e política dos cidadãos, o nosso filósofo também aposta. E tenho igualmente em vista qualquer coisa como essa "autolimitação consciente do domínio reservado à produção e ao trabalho", de que nos fala um texto de Habermas, e que, bem mais radicalmente do que este último parece pensar, nos aponta o caminho daquilo a que chamo aqui uma repolitização democrática (…) da economia política.

Esta repolitização passaria, entre outras coisas e muito esquematicamente, por

— uma democratização das empresas, atribuindo à deliberação dos trabalhadores as normas de gestão e o conjunto da organização das actividades;
— uma democratização do mercado que tornasse o seu modo de funcionamento uma garantia da verdadeira soberania dos consumidores (Se J.-M. Ferry justifica a criação de uma alocação universal como medida comparável à da instituição do sufrágio universal, deveremos ter presente, como de há muito acentuou Castoriadis, que a transposição da lógica "um eleitor, um voto" implica uma igualização sem rodeios dos rendimentos dos que "votam" no mercado);
— a par da democratização dos rendimentos e da consagração de sectores de experimentação/inovação no quadro da actividade económica, uma partilha igualitária do trabalho necessário para satisfazer quer as exigências do mercado quer as necessidades colectivas devidamente avaliadas pelo autogoverno dos cidadãos;
— por fim, em vista da instituição deste autogoverno, e enquanto condição de todos os pontos anteriores, a publicização democrática do exercício do próprio poder político, segundo as grandes linhas atrás delineadas.

Chegado a este ponto, estou bem consciente da objecção quase automática que muitos oporão a esta defesa da repolitização democrática da economia. Com efeito, a ideia de uma autolimitação cosnciente do domínio do trabalho e da produção equivale, segundo o imaginário dominante, a ignorar as leis, ou a destruir as molas reais, da própria economia. Porque, há quem no-lo explique, se confiarmos ao conjunto dos cidadãos o poder de decidir dos limites do domínio da produção e da repartição dos rendimentos, a tendência para a igualização que assim se afirmaria não poderia deixar de levar à destruição do conjunto das motivações e dos incentivos que levam ao trabalho, à inovação, e assim por diante.

No entanto, o argumento não colhe a não ser na medida em que tenhamos por adquirido que a economia estabelecida é a única possível. E é bem verdade que a autolimitação consciente do seu domínio anula o princípio da autonomização da economia — por outras palavras, despoja da sua centralidade a significação imaginária da expansão ilimitada das forças produtivas. Mas, dito isto, não se vê porque é que os seres humanos, na ausência da escala dos rendimentos e do poder de direcção hoje existente, não poderiam sentir-se motivados pela definição de objectivos ligados ao trabalho, à inovação, à investigação, formação e aperfeiçoamento tecnológicos críticos. Destruir a motivação económica hoje instituída e colectivamente investida seria, para cada um de nós, libertar a afirmação de si próprio de uma subordinação redutora, de uma via única de expressão, que a empobrece e nos uniformiza. E por outro lado, o próprio desejo de nos distinguirmos dos outros, com a emulação que esse propósito pode comportar, deixaria reduzir-se a nada por ser vedado fosse a quem fosse fazer deles seus subordinados? Em suma, a recusa com conhecimento de causa da presente hierarquia dos rendimentos e dos estatutos de direcção, essa recusa bem elucidada nas suas razões, não significaria antes uma extensão inédita do papel das satisfações intrínsecas do trabalho e da vocação individual dentro e fora dele, do direito à diferença e da expressão da singularidade de cada um?


E, no imediato, quanto à proposta de um rendimento de cidadania, tal como a formula Jean-Marc Ferry? Pois bem, mantendo todas as críticas até aqui adiantadas, parece-me ser um bom tema de discussão, sobretudo quando temos presente que a ideia de criar uma alocação universal pode não ser apresentada como um fim em si própria, mas como um primeiro passo no sentido da democratização da economia e do poder político que, ao seu nível, se exerce. Por discussão, evidentemente, deve entender-se um debate público e alargado tanto sobre os seus objectivos e pressupostos como sobre o seu montante. Se se trata de instituir um rendimento de cidadnia, é preciso antes do mais dar a palavra aos cidadãos, cabendo a estes pronunciar-se.

Assim, o debate sobre a instauração do abono universal, enquanto medida imediata, poderia talvez contribuir para a emergência de um espaço público alargado e renovado, tendendo a institucionalizar a sua própria legitimidade e a empreender, contra a actual divisão do trabalho político, a criação de formas alternativas que promovam a participação igualitária dos cidadãos no exercício do poder.