16/12/20

A verdadeira história da formiga e da cigarra

"A cigarra, cujo canto longo e agudo enche os dias do Verão, tem uma probóscida libadora comprida como um estilete, com a qual consegue perfurar a casca das árvores e sugar a seiva. Outros insectos, mais mal equipados, acabam por se aproveitar da faculdade da cigarra. Enquanto ela bebe, congregam-se à sua volta formigas, vespas e moscas, que recolhem os minúsculos fiozinhos que escorrem da ferida feita na árvore"
 
David Attenborough, "O Primeiro Éden", pg. 44
 
[Post publicado no Vento Sueste; podem comentar lá]

03/12/20

Covid-falcões, covid-pombas e os "falsos positivos"

Uma coisa que tenho notado é que, comparado com o início da pandemia, parece ter havido uma quase total inversão de posições entre covid-falcões* e covid-pombas* sobre a questão dos eventuais "falsos positivos". 

Ao principio, eram os covid-pombas que diziam que as estatisticas estavam a ser distorcidas por não se estar a contar com os assintomáticos (e com as pessoas com sintomas leves) e por isso a taxa de mortalidade parecia muito maior do que era efetivamente; inicialmente o grande exemplo dos covid-pombas era o Diamond Princess, onde o facto de se te testado toda a gente permitia, segundo eles, ter uma ideia da verdadeira taxa de mortalidade. E, sobretudo, quando se começaram a fazer testes serológicos, alguns indicando que percentagens relativamente altas da população já teriam tido covid, eram os covid-pombas a embandeirar em arco com esses estudos (de novo, dizendo que isso significava que a verdadeira taxa de mortalidade era muito menor), e eram os covid-falcões a desvalorizá-los, exatamente dizendo que uma pequena probabilidade de falsos positivos poderia afetar bastante os resultados (dando a entender que muito mais gente teria tido covid do que na realidade)

A partir de certa altura houve uma inversão, e passaram a ser os covid-pombas a insistir na questão dos falsos positivos (a inversão não é total, porque há uma subtil diferença: parece-me que os covid-falcões insistiam mais nos falsos positivos nos testes serológicos - que supostamente vêm ser a pessoa já teve covid - enquanto os covid-pombas falam sobretudo nos falsos positivos nos testes PCR - que supostamente vêm se a pessoa tem, neste momento, covid); diga-se que, sinceramente, essa ênfase dos covid-pombas nos falsos positivos me parece um bocado irracional - a mim parece-me que, se existirem efetivamente muitos falsos positivos, isso significa que a situação é mais grave do que parece, já que

a) a taxa de mortalidade será maior do que as estatisticas dizem (já que o denominador estará inflacionado) 

b) estamos mais longe da imunidade comunitária do que se julga 

 c) se calhar quer dizer que o ritmo de crescimento da doença é maior do que se julga (este último ponto não tenho tanta certeza, mas dá-me a ideia que, quanto menos gente estiver realmente infetada, maior será a proporção de falsos positivos entre os "diagnosticados"; um corolário disso prece-me ser que se o número de realmente infetados estiver a crescer, os falsos positivos farão o crescimento percentual dia-a-dia parecer menor do que o crescimento real) 

[Atenção que estes pontos só são relevantes para quem acredita que, ainda que com muitos falsos positivos, a covid-19 existe realmente; para quem ache que a covid-19 nem sequer existe e que todos os casos são falsos positivos, estas objeções que apresento realmente não se aplicam] 

Dito isto, tenho esperança que a maioria dos assintomáticos sejam verdadeiros assintomáticos e não falsos positivos, por uma razão - se fossem sobretudo falsos positivos, já teríamos tido muito mais casos de aparentes reinfeções, nas variantes "falso positivo antes - falso positivo depois", "falso positivo antes - verdadeiro positivo depois" ou "verdadeiro positivo antes - falso positivo depois"; no entanto as reinfeções parecem ser bastante raras (e normalmente são consideradas noticia de jornal, de tão raras que são); ou será que há alguma política de só em casos limite fazer testes a ex-infetados (o que faria haver menos supostas "reinfeções")? 

*para quem não perceba bem esta terminologia, com "covid-falcões" refiro-me ao que os covid-pombas normalmente chamam "covideiros", e com "covid-pombas" refiro-me ao que os covid-falcões normalmente chamam "covidiotas"

[Post publicado no Vento Sueste; podem comentar lá]

03/11/20

As votações de hoje nos EUA

Como os leitores deste blogue já estão fartos de saber, nos dias das eleições norte-americana, há sempre uma porção de referendos. Para hoje temos, entre outros:

01/11/20

"Os valores da República"

  Entretanto, em França, está na forja uma lei dizendo que "as liberdades académicas são exercidas em conformidade com os valores da República".

28/10/20

O Rendimento Básico Incondicional: o problema das experiências-piloto

É frequente os defensores do RBI falarem muito das experiências-piloto, seja para sugerir que sejam feitas para ver se resulta, seja usando o exemplo das já realizadas para argumentar que o RBI funciona.

A mim, não me parece que essas experiências-piloto sejam assim tão relevantes - porque o problema principal de um RBI não é o subsídio em si: é mais ou menos "Economia Neoclássica 101" que um subsidio uniforme (portanto, sem aquele efeito "se aceitar este emprego, perco o subsidio e fico ainda pior do que estava") não tem efeitos distorcedores na economia, portanto não há nada de particularmente surpreendente nessas experiências que aparentemente demonstram que o RBI "funciona". 
 
O problema do RBI são os impostos necessários para o financiar, que, esses sim, podem ter custos económicos significativos - e para avaliar esses efeitos as experiências-piloto normalmente não interessam muito, já que (exatamente pela sua natureza de experiências-piloto) não implicam nenhum aumento significativo da despesa pública nem da carga fiscal (aliás, muitas, nomeadamente em países pobres, até são financiadas por instituições privadas), portanto nunca chegam a experimentar a parte realmente perigosa do RBI.

20/10/20

Os filmes/séries policiais na "bússola política"


Algo que me ocorreu, ainda pensando nisto.

O "Inspetor Harry" na direita autoritária não tem grande dúvida, acho.

O "Zé Gato" na esquerda autoritária admito que já seja mais forçado, mas é o melhor que arranjei - muitos episódios (e a música do genérico) têm o tom "os criminosos escapam porque são ricos e influentes e mexem cordelinhos para a polícia não lhes poder tocar", que será a mensagem que se espera de um filme policial de esquerda autoritária (enquanto a direita autoritária preferirá "os criminosos escapam por culpa dos advogados, desses leis fofinhas que fizeram e dos jornalistas que estão sempre contra a polícia"); fala também muito da pobreza e da forma como esta leva ao crime, o que reforça a parte do "esquerda"; admito que a parte do "autoritário" é discutivel - se por um lado tem a mensagem de "os bandidos safam-se sempre" e o protagonista frequentemente entra em modo "policia durão", por outro nalguns episódios os seus inimigos são grupos de "vigilantes" ou polícias que perseguem e chantageam ex-reclusos (mas por aí também o "Inspector Harry" safava-se...). Provavelmente é difícil fazer um policial "esquerda autoritária" puro: não é muito fácil conciliar as ideias "é preciso mão pesada" e "as injustiças sociais do capitalismo contribuem para o crime"; bem, é a ideia do slogan blairista "duro com o crime e com as causas do crime", mas acho difícil usar isso como inspiração artística (demasiado complexo e com demasiada nuance). Uma alternativa seriam filmes a mostrar o antigo bloco de leste a ser infestado por criminosos em consequência do fim do comunismo (eu nunca vi o "Inferno Vermelho", mas tenho a ideia que parte do enredo gira à volta da ideia que a perstroika estaria a causar criminalidade galopante na URSS - talvez este servisse como exemplo?).

"Os Anjos de Charlie" na direita libertária porque uma ideia-base da série (a começar pela narrativa do genérico) parece ser de que pessoas de grupos historicamente discriminados (como mulheres) terão mais hipóteses no mercado livre do que no setor público; e o perfil de "Charlie" (rico e com um estilo de vida libertino) também encaixa bem aí (mesmo a sua natureza de "jiggle show" parece-me algo que a direita libertária verá melhor que qualquer dos outros três quadrantes). Para reforçar a componente "libertária", junte-se alguns episódios do tipo (pegando num género bastante popular nos anos 70...) "as detetives infiltram-se em prisões para mulheres em que as reclusas são mal-tratadas pela administração". E tenho a ideia que num episódio uma das detetives até diz algo como "o Charlie não nos vai despedir porque teria que pagar mais a quem nos fosse substituir", o que parece o Gary Becker a falar da discriminação.

[Eu já tinha começado a escrever este post quando vi um episódio em que as detetives foram ajudar um xerife de uma pequena cidade que tinha sido proibido de se aproximar de um suspeito porque o tinha agredido, ou coisa assim (não cheguei a perceber bem); isso era apresentado como um erro de que o xerife estava sinceramente arrependido, mas mesmo assim pensei se não poria em causa as credenciais "libertárias" da série; mas logo num episódio pouco depois desse "os maus" eram policias que plantavam provas para incriminar suspeitos e as detetives tiveram grandes dúvidas de consciência se deveriam denunciar alguém aparentemente envolvido em crimes sem vítima, portanto mantive a qualificação]


"Jogo de Audazes" na esquerda libertária - um grupo de vigaristas, que são contratados por pessoas que foram vigarizadas ou prejudicadas por indivíduos ricos e poderosos para os vigarizar a eles; e ainda por cima no episódio final o golpe é roubar informação secreta sobre os banqueiros responsáveis pela crise de 2008. Fundamentalmente, uma série no modelo "bons fora-da-lei que defendem os fracos contra os ricos e poderosos"; com o bónus da maior parte da série passar-se em Portland, Oregon (uma espécie de capital "antifa"?) e pelo menos alguns dos heróis parecerem-me ter um típico estilo de vida hipster.

"Rookie" - eu pus no centro, mas onde eu o associo mesmo é aquele centro-esquerda casal Clinton-Joe Biden-Kamala Harris, ao mesmo tempo culturalmente "progressista" e pró-"lei e ordem" - os bons são o departamento da polícia, mas dizendo explicitamente que a polícia é "diversa" (com muitas mulheres e minorias étnicas, e nalguns episódios refere-se mesmo o contraste entre esta nova polícia e os defeitos da velha polícia quase só de homens brancos) e por vezes até é dito que as testemunhas, mesmo que sejam imigrantes ilegais, não têm que ter medo de falar com a polícia porque é uma cidade-santuário e portanto não correm o risco de ser deportadas. E o episódio em que o personagem principal mata um suspeito é exemplar - ele é suspenso enquanto dura a investigação, os colegas comportam-se de maneira totalmente profissional com ele durante o inquérito (nem com grandes solidariedades nem grandes condenações) e no fim o inquérito concluiu que ele teve razão em disparar, acaba a suspensão e continua a sua carreira - é mensagem é claramente "a polícia moderna de Los Angeles tem um protocolo adequado e rigoroso para estas situações - nem se toleram abusos por parte dos agentes, nem os impedimos de fazer o seu trabalho"; compare-se com o típico filme/série de direita autoritária (em que o agente que teve que disparar seria apresentando como uma vítima dos advogados, da imprensa e/ou de agitadores, e os responsáveis da investigação interna apareceriam como uns cobardes que iriam, só por razões políticas, dizer que o polícia era culpado ) ou de esquerda libertária (em que os policias iriam aparecer como uma quadrilha, a se protegerem uns aos outros e até a adulterarem provas para safar o colega). E atendendo que é uma série recente (começou em 2018), aposto que estes fios narrativos não estão lá por acaso, e que a ideia é mesmo fazer uma série com polícias como heróis mas que não surja como "trumpista".

A dada altura, e pegando na ligação "Jogo de Audazes"-Portland, ocorreu-me se também não haveria uma ligação natural entre Los Angeles tanto com a "direita libertária" de "Os Anjos de Charlie" como com o "centro-esquerda" de "Rookie", na medida em que penso que é uma cidade culturalmente progressista (tipicamente californiana), mas sem o radicalismo político associado a São Francisco ou Berkeley. Mas depois lembrei-me que os filmes do inspetor Harry passam-se em São Francisco (e não, p.ex., no Texas...) portanto este determinismo geográfico não fará grande sentido, acontecendo simplesmente grande parte do audiovisual dos EUA ser produzido na costa Oeste.

Mas, mesmo assim, continua a parecer-me um sitio como a Califórnia dos anos 70 (que votou tanto em Reagan e na proposta 13 como em Jerry Brown para governador e ainda com muitos ecos da contra-cultura e da "New Age") era mesmo o local ideal para produzir uma série como "Os Anjos de Charlie".

19/10/20

MAS vence eleições bolivianas

Aparentemente, o candidato do MAS venceu as eleições com maioria absoluta - muito mais do que lhe atribuíam as sondagens durante a campanha eleitoral (mas atenção que ainda estamos também a falar de sondagem à boca das urnas, não do resultado final - mas é provavelmente impossível haver uma reviravolta e a atual presidente não-eleita já saudou Arce, o candidato do MAS, como vencedor).

16/10/20

Os heróis das séries policiais - polícias ou detetives privados?

Li em tempos no Twitter algo em que nunca tinha pensado, mas realmente parece ter alguma verdade - que as séries policiais dos anos 70/80 tinham como heróis detetives privados, e agora é tudo alguma variante de um departamento oficial da polícia. O autor até associava isso ao clima pós-Guerra do Vietname, em que por um lado havia uma desconfiança face às autoridades, e por outro "ex-combatente" era um background realista para os detetives privados.

Bem, pelo que eu me lembro, mesmo nos anos 70/80 a maior parte das séries policias eram tendo a polícia ou algo parecido como heróis ("Columbo", "Força de Intervenção", "Automan" - embora aí fosse um polícia largamente agindo à margem da organização, e que acho que nem tinha autorização para investigar - "Balada de Hill Street", "Miami Vice", "Os Profissionais", "Dempsey e Makepeace", "Crónica do Crime" e os nossos "Zé Gato" e "Uma Cidade como a Nossa"); mas também havia muitas à volta de detetives privados, como "Os Anjos de Charlie", "Devlin Connection", "Crime, Disse Ela", "Wolf", os "clássicos" ("Sherlock Holmes", "Poirot", os telefilmes do Perry Mason) ou os muito peculiares "Modelo e Detetive" e "Duarte e Cª".

Hoje em dia as séries policiais parecem andar todas à volta de polícias profissionais ("CSI", "NCIS", "Rookie", "Comissário Montalbano") ou então a variante (que já me parece um género em sim mesmo) "homem civil um bocado excêntrico ajuda mulher-polícia nas suas investigação, frequentemente com UST à mistura" ("Castle", "Perception", "Einstein", "Harrow", "Forever"), em que de qualquer maneira os heróis trabalham para a policia, com ou sem distintivo. A única série que me ocorre em que os heróis são algo parecido com detetives privados é "The Catch"* (em que, na minha opinião pessoal, os "maus" parece-me muito mais carismáticos que os "bons", mas enfim...).

A respeito disso, alguém comentou no meu Facebook que a "era dos detetives privados é anterior. Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Raymond Chandler. Os 70 já são um período de transição com os polícias rebeldes, Dirty Harry e Shaft à cabeça." (já agora, eu diria que o Zé Gato também tenta assumir esse papel), mas isso não afeta muito o sentido da transformação, apenas os detalhes da cronologia (mas já põe em causa a teoria da ligação ao Vietname).

Ou seja, nessa área não parece haver grande hegemonia ideológica neoliberal (a menos que sigamos a, aparentemente contra-intuitiva, teoria do Mises segundo a qual a glorificação do detetive privado face à polícia oficial seria resultado da mentalidade anticapitalista).

O ponto original da discussão no Twitter, ocorrida no auge das grandes manifestações de maio/junho nos EUA contra o racismo e a brutalidade policial, era que as séries televisivas atuais, ao porem os policias "oficiais" (em vez de detetives privados) como heróis, contribuíam para que o público não contestasse abusos de autoridade feitos pela polícia (e começou com alguém a sugerir que se fizesse uma série tendo defensores oficiosos como heróis - o mais parecido com isso é capaz de ter sido o "Perry Mason"). Mas eu suponho que isso não acontecerá muito com as séries que seguem o modelo do "whodunnit" (como "CSI" ou "Castle"), em que ao longo do episódio vão surgindo suspeitos que tudo indica que são os culpados e minutos depois descobre-se que são inocentes e o suspeito principal passa a ser outro - afinal, se alguma coisa, acho que essas séries até tenderão a reforçar nos espetadores a ideia que todos devem ser considerados inocentes até prova em contrário, e a ter pouca simpatia por ideias como "dar-lhe umas chapadas para ele confessar".

* Entretanto lembrei-me também do "Sherlock", mas isso é para aí um episódio por ano...




14/10/20

O Bloco, o PCP e o orçamento

As notícias dos últimos dias parecem indicar que estão a ser mais difíceis as negociações do governo com o Bloco do que com o PCP, no que diz respeito ao orçamento; ainda é demasiado prematuro para se poder concluir isso, mas mesmo que assim seja, também não me parece surpreendente - mas muita gente parece estar surpreendida com isso (veja-se, p.ex. este artigo no ZAP: "No meio deste impasse, o PCP admite todos os cenários, manifestando uma postura mais aberta a um sim e um discurso bem menos bélico do que o do Bloco, ao contrário do que seria de esperar").

Por qualquer razão (décadas de propaganda da Guerra Fria?), parece-se ter criado a "sabedoria convencional" de que o PCP é sectário, radical, etc.

Mas olhe-se para o historial das alianças de esquerda envolvendo os Comunistas - tanto na Frente Popular espanhola (leia-se Orwell, p.ex.) como na Unidade Popular chilena, eram os respetivos PCs que representavam o papel de "adultos da sala", e o parceiro radical normalmente era algum partido de "esquerda alternativa" (num nicho similar ao que o BE hoje ocupa em Portugal), como o POUM em Espanha ou o Movimento de Ação Popular Unitária no Chile (e não era raro mesmo sectores dos respetivos PSs ultrapassarem os Comunistas pela esquerda; p.ex., em França com o comunista Thorez em 1936 a dizer "é preciso saber acabar uma greve" e do outro o então socialiste Maurice Pivert a dizer que "tudo é possivel aos audaciosos").

Ou seja, não me parece haver nenhuma razão para "ser de esperar" que um acordo seja mais fácil com o BE de que com o PCP.

06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (1)

Parece ser o que Ricardo Dias de Sousa alega neste artigo no Observador, "Agora somos todos fascistas".

A mim parece-me que ele está simplesmente usando "fascismo" quase como uma palavra genérica para dirigismo estatal (ou pelo menos, para dirigismo estatal mantendo a propriedade privada dos meios de produção), o que, a ser assim, se calhar tornaria "fascistas" a maioria das sociedades existentes nos últimos milhares de anos, com um hiato no século XIX e princípios do XX (bem, excluindo, a ter existido, o "modo de produção asiático", já que aí o estado também era suposto ser o proprietário das terras; mas o chamado "MPA" provavelmente nunca foi mais do que a mesma coisa que o feudalismo europeu visto por um prisma "orientalista").

Um aparte (que não tem diretamente a ver com o texto de Ricardo Das de Sousa, mas acho que acaba por ter indiretamente): porque é que, quando se fala de Mussolini, cita-se muito mais vezes o "tudo no estado, nada contra o estado, nada fora do estado" do que o "abaixo o estado em todas as suas formas e encarnações: o estado de ontem, o de hoje e o de amanhã; o estado burguês e o estado socialista" ou "Nós somos liberais em economia mas não somos liberais em política"? Se se dizer que é porque a primeira (de 1925) é posterior à segunda (de 1920) ou à terceira (de 1921), isso não impede muita gente de ir buscar coisas ainda mais antigas (como o programa dos "Fascios" de 1918 ou a sua militância socialista até 1915) para fazer a exegese do fascismo....

O texto de Ricardo Dias de Sousa parece conter duas teses: a primeira é de que a planificação europeia no pós-guerra teria sido, na sua essência, "fascista"; a segunda é que no final dos anos 60 terá aparecido um novo tipo de marxistas, e que na sua rejeição do marxismo ortodoxo e do establishment do pós-guerra, acabar por, à sua maneira, ser também "fascistas".

Somos e fomos todos fascistas? (4)

Concluindo esta conversa, eu diria que há efetivamente alguma coisa em comum entre o fascismo e os estados sociais da Europa pós-guerra, nomeadamente a defesa de alguma espécie de estado social, a busca de um sistema menos liberal que o capitalismo do século XIX mas menos intervencionista (e mantendo a propriedade privada dos meios de produção) que o marxismo, e a colaboração entre o estado, os sindicatos e o patronato - mas diferem radicalmente na questão do líder autoritário versus democracia bastante negociada, e largamente também na do conforto material versus vida heróica e gloriosa.

Se comparada com as versões mais extremas da "nova esquerda", o fascismo tem algumas semelhanças na parte de um certo anti-materialismo (os esquerdistas dizem que são contra o "consumismo" e não contra o "materialismo", mas isso é em parte semântica) - uns em nome das virtudes heróicas e militares, outros em nome do trabalho criativo e da auto-expressão (parece muito diferente - ou talvez o oposto, para quem esteja habituado a filmes com o argumento "o pai quer que o filho vá para os fuzileiros, mas ele quer seguir Belas-Artes" - mas ambas as atitudes têm em comum a ideia de que a atividade humana deve ser motivada por algo "superior" a ganhar dinheiro e de recusa da supostamente monótona vida "burguesa"), mas a oposição é ainda maior no que diz respeito a questões de respeito pela autoridade ou por hierarquias (que a nova esquerda tendia a rejeitar ainda mais do que os democratas do pós-guerra), ou do pessimismo histórico dos fascistas (que tendem a ver a civilização sempre à beira do colapso e a necessitar de ser salva por heróis) versus o utopismo da nova esquerda (dada a acreditar que a sociedade sem qualquer espécie de opressão ou frustração está ao virar da esquina).

Agora, eu há muito tempo que ando a pensar numa teoria (em parte uma versão alterada e aprofundada do "gráfico de Pournelle"), que um dia hei de pôr num post, dum esquema bi-dimensional, sendo uma dimensão romantismo vs. iluminismo (sim, sim, esta oposição é muito contestável), e a outra coletivismo vs, individualismo (outra oposição muito contestável...), havendo uma grande tendência para alianças na diagonal (iluminismo-coletivismo e romantismo-individualismo de um lado, romantismo-coletivismo e iluminismo-individualismo do outro); neste esquema, o fascismo é uma variante de romantismo coletivista, o estado social de iluminismo coletivista e a "nova esquerda" já entra um bocado no romantismo individualista (o liberalismo fica no iluminismo individualista). E por isso quem for especificamente à procura, consegue encontrar semelhança do fascismo tanto com o estado social-democrata como com a "nova esquerda".

Somos e fomos todos fascistas? (3.4)

E agora vamos finalmente ao que interessa nesta sub-serie (os outros posts "3.x" foram apenas preâmbulos, acerca de pontos circunstanciais). Continuando com Ricardo Dias de Sousa:

Somos e fomos todos fascistas? (3.3)

Continuando com o artigo de Ricardo Dias de Sousa, falando, parece-me, da "nova esquerda":
Não eram conscientes que ao rejeitar o modelo soviético, abraçavam o socialismo fascista.
No contexto, fico sem perceber muito bem se ele se está a referir explicitamente aos grupos terroristas que refere atrás, ou à "nova esquerda" em geral. Se se está a referir aos primeiros, eu confesso que alguns nem percebo muito bem se, em termos de modelo de sociedade, tinham alguma diferença face ao modelo soviético. Mas, se se está referir à "nova esquerda" em geral, nomeadamente à que rompeu mais coerentemente com o modelo soviético, também não me parece que tivessem muito a ver com o "socialismo fascista".

Somos e fomos todos fascistas? (3.2)

Continuando com o artigo de Ricardo Dias de Sousa, na parte do novo marxismo dos anos 60:
Surgem na Europa vários grupos terroristas de esquerda como as Brigate Rosse em Itália, o Baader-Meinhof na Alemanha, o Provisional IRA na Irlanda, ou a ETA em Espanha. A componente nacionalista nestes grupos é evidente.

Somos e fomos todos fascistas? (3.1)

Agora vamos ao segundo ponto do artigo de Ricardo Dias de Sousa - a sua caracterização da esquerda surgida nos anos 60.

Para começar, vou pegar num ponto que até não tem exatamente a ver com a questão do "fascismo", mas é uma questão que até me interessa particularmente:
A partir de finais da década de 60, os intelectuais marxistas a Ocidente, confrontados com a falência definitiva do modelo soviético em Praga, deixaram de se interessar tanto pelos escritos da madurez do autor – o Marx materialista – para redescobrir os escritos da juventude – o Marx idealista, o Marx hegeliano, romântico, alemão.

Somos e fomos todos fascistas? (2.5)



Somos e fomos todos fascistas? (2.4)

Ainda pegando no artigo de Ricardo Dias de Sousa,
As diferenças eram tão ténues, que o paradigma do Estado do Bem-Estar, o modelo austro-escandinavo, foi implementado na Escandinávia por sociais-democratas e na Áustria por democratas-cristãos. Ambos com mais esqueletos fascistas na administração do que gostariam de admitir.

Somos e fomos todos fascistas? (2.3)

Um ponto especifico que Ricardo Dias de Sousa refere de semelhança entre os estados sociais do pós-guerra e o fascismo é "lugares nos conselhos de administração para sindicatos"; isso pode efetivamente ter sido parte do programa de 1919 dos "Fascios Italianos de Combate", mas pouco ou nada disso foi na prática implementado durante o tempo em que Mussolini esteve no poder (talvez nos 2 anos finais, na "República Social Italiana" - a "República de Saló" -, tenha havido algumas medidas nesse sentido, mas na prática é duvidoso que algo tenha ocorrido, até porque a "República Social Italiana" era largamente uma fantasia).

Somos e fomos todos fascistas? (2.2)

Continuando o post anterior, a maior semelhança aparente entre o fascismo e os estados sociais da Europa do pós-Guerra parece ser mesmo a política de concertação social (e, pelo menos no caso dos democratas-cristãos, essa politica talvez possa ter algum ADN comum com o corporativismo fascista, no sentido de em ambos se poder encontrar alguma influência do catolicismo social, e também do "nacionalismo integral" estilo Ação Francesa, que valorizavam as associações profissionais e a negação da luta de classes), de pôr o estado, os sindicatos e as associações patronais à mesma mesma para negociarem salários, férias, reformas, etc.

No entanto, há uma diferença fundamental, que nalguns aspetos até inverte o significado real de processos que formalmente parecem similares: o autoritarismo fascista, com a arbitragem obrigatória (ou algo muito parecido com isso) e a proibição das greves (não digo que isso por vezes também não acontecesse nalguns casos da Europa do pós-guerra, mas numa versão muito mais branda). E porque isso muda tudo? Porque um sistema de concertação social com direito à greve e em que sindicatos e associações patronais têm longas negociações até chegar a um acordo muito provavelmente dá mais poder ao "trabalho" do que teria num mercado livre; em compensação, num sistema em que as greves estão proibidas, e em que as negociações entre sindicatos e patrões funcionam mais na base de cada parte apresentar as suas exigências, e se não chegarem rapidamente a acordo, o representante do estado decide como vai ser, até pode dar à parte patronal mais poder que num mercado livre (se conseguirem que o estado se ponha do lado deles - mas há vários aspetos do sistema fascista que, por mais acima das classes digam que sejam, os acabam por levar mais para o lado do "capital" do que do "trabalho") - para um exemplo de como a política laboral da Alemanha nazi desequilibrou as relações laborais a favor do capital, ver o post de "pseudoerasmus" Nazi political economy.

Somos e fomos todos fascistas? (2.1)

Vamos então por partes, começando pela primeira tese de Ricardo Dias de Sousa:
"Quando a velha ordem democrática liberal foi restabelecida, o liberalismo já estava morto. Os americanos insistiram em eleições e a Igreja Católica aceitou o repto, patrocinando os partidos democratas-cristãos. Os partidos políticos, esses, organizaram-se em torno de velhos liberais, como Adenauer, Churchill, Blum, ou De Gaspieri. Eram homens nascidos noutro século, insuspeitos de simpatias fascistas, mas que lideravam hordas de jovens planificadores sem grande empatia pelo liberalismo dos seus maiores. A democracia salvou as aparências. Era o grande atestado de não-fascismo dos novos regimes. As opções políticas com chances de vitória nas urnas eram, essencialmente, duas: sociais-democratas à esquerda e democratas-cristãos à direita. Curiosamente, os resultados eleitorais seguiram, grosso modo, as velhas linhas divisórias do Tratado de Vestfália: os democratas-cristãos venceram nos países católicos e os sociais-democratas nos protestantes. Ambos, esquerda e direita, protestantes e católicos, brandindo os tais programas de planificação centralizada a que o eleitorado se acostumou antes da guerra. As diferenças eram tão ténues, que o paradigma do Estado do Bem-Estar, o modelo austro-escandinavo, foi implementado na Escandinávia por sociais-democratas e na Áustria por democratas-cristãos. Ambos com mais esqueletos fascistas na administração do que gostariam de admitir." (...)

"A partir da década de 80, quando finalmente [os socialistas]começaram a ganhar, decidiram, também eles, refugiar-se no intervencionismo fascista: Miterrand, Craxi, González, Soares e Papandreou, de quem se esperavam revoluções quando eleitos, rapidamente meteram o socialismo na gaveta. Os partidos socialistas converteram-se na primeira barreira  contra o comunismo na Europa Ocidental. A amnésia de uns europeus que preferiam olhar para o futuro fez o resto. No processo, as pessoas foram convenientemente esquecendo que o fascismo era o Estado intervencionista."

"Na vertente económica, a principal diferença entre as duas planificações socialistas, a fascista e a comunista, era a obsessão comunista com quotas de produção. [negrito meu - M.M.] Os fascistas perceberam o fracasso soviético. Criaram grandes empresas públicas, mas grande parte da economia era gerida indirectamente, através de agências de supervisão e intervenção. Depois da guerra, o ímpeto planificador e intervencionista ganhou alento, embora com diferentes matizes: a França, mais influenciada por socialistas e comunistas, nacionalizou as principais indústrias, a Alemanha deixou a produção essencialmente em mãos privadas e o Reino Unido, que chegou tarde à febre planificadora através do governo trabalhista, foi o que mais se aproximou da planificação soviética. Como consequência, ali, o racionamento durou até meados da década de 50 para muitos bens essenciais."

04/10/20

Representações

É frequente em eleições legislativas dizer-se "Votem no partido X para Fulano ir para o parlamento, porque é preciso lá alguém da nossa cidade/sub-região/região/etc. para defender os nossos interesses específicos (e ele é o único num lugar potencialmente elegível)".

Mas parece que isso já não vale para outros agregados que não os geográficos.

29/09/20

Como se calcula a mortalidade da gripe

O que se conclui logo daqui é que aquelas comparações que frequentemente se fazem entre o número de pessoas que morreram "de Covid" e o número de pessoas que morreram "de gripe" é um bocado comparar alhos com bugalhos; a contagem dos mortos "de gripe" não é uma contagem feita pessoa a pessoa, como com os mortos "de Covid"; é uma estimativa feita no fim do ano, comparando a evolução da mortalidade total e a evolução do número de casos de gripe ao longo do ano.

Programa Nacional de Vigilância da Gripe Relatório da época 2018/2019 (páginas 63-65, PDF):
Durante a época de gripe 2018/2019 o nú- mero de óbitos por todas as causas esteve acima do esperado entre a semana 02/2019 e a semana 7/2019 (Figura 27 e Figura 28) 40. Aplicando um método de regressão cíclica foram construídas linhas de base que correspondem à mortalidade esperada sem o efeito de fatores externos e que permitem estimar os excessos de mortalidade por todas as causas pela diferença entre a mortalidade observada e a linha de base. Este cálculo foi efetuado para a população geral e estratificado por sexo, grupo etário e região de saúde. No total, estimou-se um excesso de 2.844 (IC95%: 2.229 a 3.459) óbitos em relação ao esperado, o que corresponde a uma taxa de 28 óbitos por cada 100.000 habitantes e a um excesso relativo à linha de base de 19 % (IC95%: 17 a 22 %). O excesso de mortalidade atingiu o seu valor máximo na semana 4 de 2019 (excesso relativo de 25 %).

(...)

Durante o período de excesso de mortalidade ocorreram dois eventos que podem explicar este aumento do risco de morrer. Nomeadamente, a epidemia de gripe sazonal cujo período epidémico decorreu entre as semanas 01/2019 e 09/2019, com um pico na semana 03/2019, e períodos com temperaturas mínimas abaixo do normal nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 (Figura 30). Para estimar a mortalidade atribuível à epidemia de gripe e às temperaturas extremas, aplicou-se um modelo de regressão de Poisson de forma a modelar a taxa de mortalidade observada em função do índice Goldstein (taxa de incidência de síndrome gripal multiplicada pela percentagem de casos de síndrome gripal positivos para o vírus da gripe) e das temperaturas extremas, ajustada para a tendência e sazonalidade (Figura 31). Esta metodologia foi desenvolvida no grupo de trabalho FluMOMO 41 do projeto Europeu EuroMOMO 42.

Com base nesta abordagem, e considerando um histórico desde a semana 40/2013 até à semana 20/2019, estimaram-se 3.331 (IC95% 3.115 a 3.552) óbitos atribuíveis à gripe e 397 óbitos (IC95% 315 a 489) atribuíveis às temperaturas extremas.

26/09/20

Trump quer sabotar as eleições? Duvido muito.

Nos últimos tempos tem-se tornado quase um dogma da fé em certos meios que Trump, caso perca, se estará a preparar para "roubar" as eleições; como disse aqui, eu duvido muito desses cenários.

Atendendo que toda a carreira de Trump, desde pelo menos os anos 80, tem assentando no primado da imagem sobre o conteúdo (hum, será que acidentalmente acabei também por descrever os anos 80 no geral?), eu suspeito que o grande desejo dele não é tanto permanecer na presidência, mas poder dizer (e ter muita gente a acreditar) que é o presidente, e todas essas conversas dele a pôr em causa o processo eleitoral se destinam, não a preparar o terreno para um "autogolpe", mas a preparar o terreno para, se perder, poder passar 4 anos a apresentar-se aos seus convidados em Mar-a-Lago como "o verdadeiro Presidente dos EUA", vítima das conspirações do "deep state" (em vez de ser um "looser" que não conseguiu a reeleição). Até imagino facilmente daqui a uns anos uma gravação dele dizendo "When you’re the President - the real President-, they let you do it. You can do anything. Grab ’em by by the pussy. You can do anything."

O problema aqui é se parte da base Republicana (incluindo as milícias armadas e grande parte do corpo policial) leva o show dele a sério e tenta por sua iniciativa um "contragolpe" contra os "golpistas" no poder.

Já agora, ver este post de Noah Smith no Twitter e respetiva thread, onde ele sugere um cenário parecido (e muita gente acha que é mesmo o cenário mais provável).

16/09/20

"OK, Boomer"

Esta sequência de posts no twitter de Noah Smith, dizendo que afinal os maiores apoiantes de Trump não são os "boomers" (nascidos algures entre 46 e 64), mas sim a ala conservadora da "Geração X" (nascidos para aí entre 65 e 80), fez-me lembrar algo que há muito tempo estava a pensar escrever (este post estava nos rascunhos desde dezembro, ou seja, comecei a escrevê-lo ainda antes dos "boomers" entrarem na lista de espécies ameaçadas da WWF; depois deixei-o de molho exatamente porque o assunto tinha largamente sido abandonado).

É que desde para aí uns dois anos,  parecia ter havido uma inversão quase total dos estereótipos ideológicos tradicionalmente associados à geração "boomer".
Isto é, de há uns tempos para cá, surgiu a ideia que os "boomers" seriam uma geração particularmente conservadora (exemplo) - quando eu passei toda a minha juventude a ouvir falar que a "geração de 60" (a geração de Gloria Bunker e Michael Stivic, e também a de Steven e Elyse Keaton) era A GERAÇÃO PROGRESSISTA por excelência, não apenas mais progressista que as anteriores (o que é normal) mas até que as posteriores (era esse o ponto da série "Quem sai aos seus..." - o contraponto entre a progressista "geração de 60" e a conservadora "geração de 80").

Já agora, cá em Portugal eu passei a minha adolescência com as escolas secundárias dominadas pela JSD, e na primeira campanha eleitoral que dei nota, o liceu estava a abarrotar de autocolantes "P'rá Frente Portugal" - embora em Portugal houvesse a peculiaridade que a geração "progressista" não era tanto a dos nosso pais, mas sim  mas sim um misto de tios mais novos, primos afastados mais velhos e professores no principio de carreira (o pessoal na casa dos 30 anos, que tinha sido jovem nos nossos "anos 60" - 1974 e 1975; pelo menos uma prima afastada minha, então com 30 e tal anos, consta que ex-simpatante do PRP e típica "progressista nos costumes", era fã de uma série que havia na altura que era "Os Trintões" e dizia que representava bem a geração dela; essa série era por vezes descrita como o contraponto a "Quem sai aos seus...").

Sinais da mitificação da "geraçao de 60": ainda me lembro de há muitos anos (para aí em 1990) ter lido um artigo (penso que do João Martins Pereira, o já falecido ex-marido da Fátima Bonifácio... - ou será que mesmo isto é um exemplo da mudança do que se espera dum boomer?) que algures dizia "todos as pessoas entre os 30 e os 60 anos tendem a descrever-se como da geração de 60, grande abrigo anti-sismico mais seguro que as de 50 e de 70"; e alguém se lembra de por volta de 1973 ter surgido (com o impacto que teve) algum filme similar a "Os amigos de Alex", mas a evocar os anos 50? (o mais parecido seria o American Graffiti, mas muito longe - nem que seja porque o período que evoca é já o principio dos anos 60).

Isto talvez seja uma especificidade da chamada "Geração X", mas nós crescemos a ouvir associar a geração de 60 à geração dos contestatários e dos progressistas (sempre que havia um protesto de estudantes nos anos 80, alguém falava em "regresso aos anos 60?"), pelo que agora me dá alguma dissonância cognitiva a conversa do "OK Boomer"; por outro lado, també é verdade que "boomer" não é sinónimo de "geração de 60" - se adotarmos a definição de "nascido entre 1946 e 1964", isso incluirá também muitos dos então tão atacados yuppies dos anos 80 (mesmo o Alex P. Keaton era suposto, in-universe, ter nascido em 1965, logo só não seria um boomer por um ano).


Nota 1: suspeito que nestas coisa de conservadorsmo versus progressismo por gerações, há também 
uma grande mistura entre a função e a derivada, ou talvez até a segunda derivada...

Nota 2: tenho também uma ainda maior desconfiança face ao conceito de "geração X" (tenho também um post nos rascunhos sobre isso), que em Portugal abrangeria tanto a geração "Prá Frente Portugal" como a "geração rasca", largamente opostas; eu suspeito que há uma diferença marcada entre as pessoas da minha idade ou mais velhas (a típica geração de 80), e as mais novas que eu (a "geração rasca", e também a do grunge e, em Portugal, do rap).

08/09/20

Palavras com e sem género

Porque é que as pessoas que mais se esforçam por arranjar palavras ou expressões sem género (ver a questão do "Cartão de Cidadão" e "Cartão de Cidadania"), o que não é fácil numa língua latina, são normalmente também as que querem pôr género numa das única palavras portuguesas sem género?

06/09/20

Cidadania e Desenvolvimento - Ano 2030

Na sequência da reportagem da CMTV revelando que muitas crianças de famílias imigrantes não frequentam a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, André Ventura, líder da coligação CHEGA/PSD/CDS, exige que essas famílias percam acesso a subsídios (ou que sejam mesmo deportadas nos casos mais graves) e que os candidatos à naturalização tenham que fazer um exame com os conteúdos dessa disciplina, a fim de averiguar o seu grau de integração nos valores da sociedade portuguesa.

Também o Observador e o Expresso publicam vários artigos de opinião sobre o caso, marcando a importância de um chão comum de valores para a manutenção de uma sociedade livre e democrática, e como isso está a ser ameaçado pelo multiculturalismo relativista e pela balcanização identitária (como escreve um dos articulistas do Expresso "são estas situações, que toda a gente conhece mas a imprensa dita de referência e os bem-pensantes do Bairro Alto fingem ignorar, que levam as pessoas comuns, que cumprem as regras mas veem-se abandonadas pelo sistema, a votarem no Ergue-te").

Em contraponto, um investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em entrevista à RTP, apresenta a sua visão de que a filosofia estruturante da disciplina deriva de um paradigma iluminista-mecanicista, que apresenta como factos objetivos fenómenos e mundividências que só existem realmente numa perspetiva de intersubjetividades e de construções identitárias mediatizadas culturalmente, e que como tal é problemática, porque essa ideia de que é possível definir uma verdade objetiva independente das subjetividades e representações sociais é intrinsecamente ocidentalocentrica e (mesmo que alguns conteúdos até possam parecer "feministas") masculinocentrica; assim, considera que seria boa ideia suspender a cadeira (ou pelo menos todos os seus efeitos na avaliação) e repensá-la numa perspetivas de tornar a escola numa multi-escolas, genuinamente aberta aos várias saberes e culturas. No dia seguinte, aparece um post no Blasfémias divulgando todas as ligações entre o investigador e o Bloco de Esquerda.

Entretanto, um grupo de jovens de uma comuna ao pé da Almirante Reis divulgam (tanto por panfletos como por um texto viral na net) um manifesto apelando ao fim da escola ("A forma-valor começa na forma-escola"); do outro lado do espectro político e social, uma feminista de direita ex-NeverTrumper anuncia no Twitter que vai participar num novo projeto, junto com os seus antigos colegas de blogues do principio do século.

04/09/20

Drama e horror nas aulas de Cidadania

A grande devassa da vida privada nas aulas da tal disciplina - um exercício em que se pergunta o que é que os pais faziam nos tempos livres quando eram crianças.

Se a Helena Matos soubesse o exercício que o nosso professor de economia nos mandou fazer no 10º ano (perguntar às nossas mães quantas horas por semana gastavam na lida da casa e depois multiplicar pelo salário/hora de uma mulher a dias para ver quanto dava)…

Já agora, diga-se que eu tenho realmente grandes dúvidas face ao principio geral da obrigatoriedade de assistir a aulas, seja de que disciplina forem (eu tenho alguma simpatia pelo modelo Summerhill), mas quando há uns anos se falou em acabar com os chumbos por faltas isso deu uma enorme polémica e tiveram que voltar atrás.

01/09/20

As aulas de Cidadania e Desenvolvimento

Palpita-me que a questão da objeção de consciência às aulas de Cidadania e Desenvolvimento ainda vai dar muitas voltas (sobretudo se conjugada com a imigração) - ainda vamos ver os que são a favor serem contra e os que são contra serem a favor.

22/08/20

"Trabalho comunitário" versus "emprego garantido"

Uma coisa que tenho pensado é até que ponto aquelas ideias à André Ventura de "trabalho comunitário para quem está no RSI" e a ideia do "job guarantee" ("emprego garantido") que tem entrado na moda na esquerda anglo-saxónica (defendido, p.ex., pela Alexandra Ocasio-Cortez) não serão mais parecidos do que ambos os lados gostariam de admitir.

Para quem não sabe, o "job guarantee" consiste em o estado disponibilizar empregos a quem os queira, o que significa que ninguém ficaria involuntariamente desempregado, e por outro lado alguém que estivesse descontente com o seu emprego no sector privado teria sempre a hipótese de ir para um desses "empregos garantidos", o que aumentaria o poder negocial dos trabalhadores face aos patrões.

A grande diferença, claro, é o valor da remuneração - um subsidio mínimo na proposta de "trabalho comunitário", e um salário provavelmente ao nível do salário mínimo no "emprego garantido", mas mesmo isso talvez não seja assim tão líquido: imagino facilmente um governo de direita a baixar os salários e/ou agravar as condições de trabalho dos "empregos garantidos" para os tornar em algo parecido com o "trabalho comunitário"; e também imagino muito facilmente um governo de esquerda a equiparar o subsidio do trabalho comunitário ao salário de uma profissão equivalente na admnistração pública, com o argumento "trabalho igual, salário igual" (diga-se que também imagino um governo de esquerda a chegar ao poder e a integrar extraordinariamente essas pessoas na função pública, talvez naquelas vagas a "extinguir quando vagar").

Ainda sobre o "emprego garantido" (e sem concordar com tudo o que ele diz), recomendo esta perspetiva crítica de Scott Alexender, Basic Income, Not Basic Jobs: Against Hijacking Utopia.

10/08/20

E, para quem já esteja farto de simbolos matemáticos, um questão em linguagem verbal

Quanto é metade de um bilião?

Já agora, quanto é que é 2,343 + 5.777 ?

2+2=5?

Parece que anda por aí uma polémica sobre se é possível 2+2=5.

Bem, desde pequeno que eu sei que 1+1 pode ser igual a 10 (em código binário). Da mesma forma, num sistema de numeração de base 3, teremos que 2+2=11, e num sistema de base 4 será 2+2=10.

Mas 2+2=5 já é mais complicado; no entanto é possível - aí implica alterar não apenas a base usada para representar os números, mas o significado dos algarismos - afinal, não é por alguns magrebinos medievais terem convencionado que o símbolo "2" representa a quantidade que em português é representada pela palavra "2" e que o simbolo "5" representa a quantidade que em português é representada pela palavra "cinco", não é obrigatório que assim o seja  - afinal, os árabes do Médio Oriente usam um símbolo muito parecido com "7" para representar aquilo a que chamamos "seis", e um símbolo parecido com "0" para representar aquilo a que chamamos "cinco" ; e há povos que usam a vírgula para separar os milhares e o ponto para separar a parte inteira da parte decimal, ao contrário do que nós fazemos (e quem não se lembra do ZX Spectrum, em que "zero" era representando pelo simbolo "Ø", que na linguagem matemática convencional singifica o conjunto vazio? Já agora, o uso de "*" para multiplicação só não causa estranheza porque já está interiorizado) . Se usarmos o simbolo "5" para designar a quantidade "quatro" (e continuarmos a usar o símbolo "2" para designar a quantidade "dois"), 2 + 2 passa efetivamente a ser igual a 5.

Claro que se poderá dizer que isso é jogar com os números, e que quando se pergunta se é possível "2+2=5", o que se está a perguntar é se a adição de dois com dois pode dar cinco (ou seja, assumindo que "2", "+", "=" e "5" têm o significado que lhe é atribuído na matemática convencional); possivelmente, mas quase que aposto que 90% das pessoas que acham que não há dúvida que 2+2=5, não é por terem rejeitado a hipótese alternativa (de se estar a atribuir diferentes significados aos símbolos matemáticos) mas porque nem pensaram nela.

29/07/20

O abate de animais em canis

Agora é moda atacar a lei de 2016 que proíbe o abate de animais saudáveis em canis - mas uma coisa que noto é que as pessoas que criticam essa lei (normalmente dizendo "é preciso primeiro criar condições") só começaram a reclamar em 2018, quando ela entrou em vigor - como exemplo temos o João Miguel Tavares, que pelos vistos se orgulha de em 2018 ter falado do assunto (se estava tão preocupado, porque é que não falou logo em 2016?); este post da Helena Matos também parece confirmar isso (dizendo que "quando da aprovação da legislação urbano-fofinha sobre a proibição do abate de animais nos canis  foram vários os veterinários e associações do sector que explicaram a inviabilidade da aplicação desta lei", mas depois linkando para artigos de... 2018).

Ora, se numa lei aprovada em 2016 mas com um prazo de 2 anos de preparação para entrar em vigor, só quando acabou o prazo é que toda a gente se lembrou que afinal não podia ser, isso quer dizer que na altura ninguém se preocupou realmente em adaptar os canis para deixarem de funcionar numa lógica de abate, porque se o tivessem das duas uma:

a) Iam pensar que adaptações teriam que fazer nos canis, concluído que não as conseguiam fazer em 2 anos e reclamado logo na altura

b) Ou então teriam concluído que se conseguiria mesmo por os canis a funcionar em 2 anos e não haveria problema nenhum

Claro que há  a hipótese de ter havido um erro generalizado de perceção, em 2016 os responsáveis locais terem todos ficado convencidos que 2 anos seria suficiente para reestruturar os canis e afinal não terem sido; é possível - mas quase que aposto que o que aconteceu foi nessa altura toda a gente ter pensado "ah, isso é daquelas coisas que fazem lá em cima em Lisboa mas depois não é para se aplicar" e só quando chegou o ano de 2018 é que perceberam realmente que a lei era suposto ser aplicada - ou seja, se a lei tivesse dado um prazo de 50 anos para entrar em vigor, em 2066 teríamos à mesma toda a gente a dizer "ainda não há condições!" .

O problema da conversa de que só se pode acabar com os abates de animais em canis quando "houver condições" é que o "houver condições" é em parte endógeno, não exógeno - isto é, se os canis poderem abater animais para não ficarem sobrelotados, claro que o incentivo para ampliar canis ou arranjar donos para os animais que lá estão é menor do que se não os poderem abater.

Um exemplo simples - há tempos, no Algarve, alguns imbecis tiveram a ideia de acabar com os canis municipais e fazer um mega-canil regional em Alcoutim; creio que esse projeto foi abandonado, mas no novo quadro legal não faria sentido nenhum (por isso é que digo que os seus autores são imbecis): se o destino dos animais em canis já não é o abate mas sim a adoção, os canis têm que estar relativamente ao pé das localidades; ora, alguém está a ver este diálogo numa família de Faro ou Portimão?

Filho - "Quero um cão pelos anos";

Pai - "Está bem; no fim de semana, vamos fazer uma viagem de duzentos ou mais quilómetros, ida e volta, por uma estradas sinuosas na serra algarvia, para irmos ao canil de Alcoutim buscar um cão."

Claro que não - se já hoje em dia são raras as pessoas que vão buscar cães e gatos a canis, ainda menos as seriam assim (declaração de interesses - nem o Pantufa nem a Íris vieram de algum gatil; foram-me dados por pessoas que os acharam na rua); isso é indicativo que os decisores até há muito pouco tempo não pensavam nos canis como locais de adoção mas de abate, o que significa que sem uma lei ou algo parecido proibindo os abates, os canis continuariam a ser construídos a pensar no abate, e ficaríamos num ciclo vicioso sem solução (em que nunca se poderia acabar com os abates porque ainda não havia condições).

[Eu digo "uma lei ou algo parecido" porque poderá haver aqui efetivamente uma questão sobre se isto deverá ser decidido por uma lei da Assembleia da República para o país todo ou por regulamentos aprovados pelas Assembleias Municipais; o meu ponto é que, sem alguma decisão política de acabar com os abates - independentemente do nivel a que seja tomada - dificilmente haverá condições técnicas para isso]

Quanto há conversa do "é por causa desta lei que aqueles cães em Santo Tirso morreram", é um bocado aquela conversa do "tivemos que a destruir para a salvar" (a respeito da destruição de aldeias na Guerra do Vietname); basicamente o que essas pessoas estão a dizer é que, se aqueles cães (ou outros no lugar deles) tivessem antes sido abatidos, não teriam morrido agora no incêndio - é discutível que essa seja uma grande vantagem; eu imagino que o raciocínio implícito é que é melhor morrer eutanasiado do que queimado, e até é verdade, mas a alternativa não é entre 73 animais serem eutanasiados ou queimados vivos; é entre 73 animais queimados vivos e uns 10.000 eutanasiados por ano.

Um aparte - espero que os canis não andem a recolher gatos vadios; se estão assim tão cheios, não faz sentido recolherem um animal que (ao contrário dos cães) praticamente não representa perigo para os humanos e cuja população pode ser controlado pela método de captura-esterilização-libertação.

Finalmente, algumas pessoas dirão que é uma incoerência ser contra a eutanásia de animais saudáveis mas a favor da legalização da eutanásia em humanos; a respeito disso, eu pessoalmente nem me incomodaria se voltasse a haver abates em canis se feitos de acordo com os trâmites dos projetos de eutanásia que foram apresentados no parlamento (como este-pdf): p.ex., se o cão fizesse um pedido por escrito (revogável a qualquer momento), fosse avaliado por um médico que confirmasse que ele estava consciente no momento do pedido (e eventualmente também por um psiquiatra animal), depois fosse a uma comissão que confirmasse que se verificavam todas as condições previstas na lei, e só depois disso o cão fosse eutanasiado (podendo o cão, como já disse, desistir do processo a qualquer momento). Ok, isto que eu estou a dizer neste parágrafo não faz grande sentido, mas é só para mostrar que a analogia que alguns tentam fazer entre a eutanásia em humanos e a eutanásia em animais também não faz sentido (são duas coisas bastante diferente com o mesmo nome, um pouco como "com o empréstimo que pedi ao Novo Banco, comprei um novo banco para a cozinha").

25/07/20

A crise política na Guiana

Um país que pouco se fala mas parece estar à beira do abismo (culpa de se ter descoberto petróleo?):
David Granger lost his bid to be reelected as president of Guyana. The ruling party appeared to manipulate the initial vote counting process. The recount monitored by observers showed an opposition victory. The president lost the appeal to the Caribbean Court of Justice. All of this comes after Granger manipulated the system to delay the election for over a year following a no-confidence vote that should have forced swift new elections.

The OAS, which had an observer mission in the country for the election, declared that the incumbent party lost and a power transition to President-elect Irfan Ali of the PPP/C should begin. Caricom has called for Granger to step down. The US has imposed sanctions on the Granger administration to pressure the president to accept his loss.

The international community’s willingness to turn against Granger is a sign of how unquestionable the loss is. Granger was clearly the preferred candidate for foreign businesses that want to invest in the country. Prior to this year, Granger had been an ally of the Lima Group and the US on Venezuela - the region’s biggest democracy challenge. If there was any question over the validity of the election, Granger would have allies supporting his effort to remain in power. He does not. [Latin America Risk Report, por James Bosworth]
Financial Times - Guyana’s long election deadlock stirs fears of civil war:
Four months after the most important election in Guyana’s history, there is still no officially recognised winner. The paralysis is hitting the country’s fledgling oil industry and there are worries the tiny South American country might slide into a racially charged civil war.
Para terem uma ideia da política da Guiana, podem ter uma olhada nos artigos da Wikipedia sobre o atual partido do governo e sobre o partido da oposição (que tudo indica ganhou as eleições, mas o presidente aparentemente derrotado recusa-se a deixar o cargo) - não me parece haver grandes diferenças ideológicas entre os dois (embora durante a Guerra Fria o primeiro tivesse uma reputação de mais pró-ocidental e o segundo de mais pró-soviético), mas sobretudo uma divisão étnica (um mais assente na comunidade negra, outra na de origem indiana).

18/07/20

Trump começa a preparar a lei marcial?

Pelo menos em Portland (Oregon), onde agentes não-identificados em carrinhas descaracterizadas andam a prender manifestantes nas ruas:
Aparentemente, a combinação entre as leis aprovadas contra o terrorismo após o 11 de setembro e as leis recentemente aprovadas para combater a pandemia Covid-19 tornam isso possível.

A respeito disso, Noah Smith (um economista de centro-esquerda) escreve "Ironically, all the 1990s right-wing libertarians who were paranoid about the power of federal agents turned out to be right. They were just 25 years too early, and wrong about who would be targeted!".

15/07/20

As criticas às criticas a Riccardo Marchi

Eu não gostei de parte do tom daquele misto de artigo e abaixo-assinado a criticar uma entrevista televisiva de Riccardo Marchi (e implicitamente o seu livro sobre o CHEGA) - um tom demasiado normativo (e no último parágrafo muito para o pós-modernista); mas de qualquer maneira fazem criticas fundamentadas, ponto por ponto, ao que Marchi disse (e não disse).

Já a maré de artigos que têm sido escritos nestes últimos dias a criticar esse artigo são ainda piores: do que tenho lido, aí é que são críticas mesmo 100% normativas, ignorando completamente os pontos que são levantados (sem sequer os tentar refutar), e limitando-se a dizer algo como "os subscritores do artigo são maus!".

02/07/20

Monitorizar o "discurso de ódio"

Vigiar o "discurso de ódio" na internet implica puder-se vigiar TUDO o que é dito na internet, já que só se sabe se o que alguém publicou é "discurso de ódio" depois de se ler o que foi publicado.

O fim do CHOP/CHAZ

Algo que mereceria uma reflexão: porque será que enquanto Christiania (Copenhaga), as squatts de Amsterdão ou Berlim, ou até mesmo de certa maneira Exárquia (Atenas) duram ou duraram décadas, o CHOP/CHAZ de Seattle acabou em poucas semanas (e mesmo antes de ter sido desmantelado pela polícia, parece que já era uma grande confusão, pelas notícias que surgiam)?

Será que os Boomers eram mesmo melhores do que os Zoomers a criar e manter "zonas autónomas"?

[Diga-se que em muitos aspetos, o CHOP/CHAZ era mais uma manifestação glorificada, à maneira da "acampada do Rossio", do que uma verdadeira zona autónoma, estilo Christiania - mas, se alguma coisa, acho que isso até a tornaria mais fácil de funcionar]

01/07/20

Re: Verdade inconveniente sobre o racismo e sexismo dos Democratas nos EUA (II)

No post anterior, em resposta a Cristina Miranda, argumentei que durante grande parte do século passado havia grandes diferenças ideológicas entre o Partido Democrático do Sul dos EUA e o Partido Democrático do "resto", e que o moderno Partido Democrático deriva largamente do "resto" (enquanto muitos Democratas sulistas tradicionais se passaram para os Republicanos).

Mas nos EUA é díficil (e no século passado ainda mais dificil era) associar partidos a ideologias; como um Republicano disse em 1923, "Any man who can carry a Republican primary is a Republican. He might believe in free trade, in unconditional membership in the League of Nations, in states' rights, and in every policy that the Democratic Party ever advocated; yet, if he carried his Republican primary, he would be a Republican." Talvez mais relevante do que ver as posições dos partidos (que nos EUA pouco mais são que linhas num boletim de voto, sem grande estrutura real por detrás), é ver a de movimentos ideológicos mais homogéneos; nomeadamente do chamado "conservadorismo", que quase que se pode dizer que foi inventado nos anos 50 para nas décadas seguintes ter tomado o controlo do Partido Republicano (de tal forma que hoje em dia os dois conceitos às vezes são usados quase como sinónimos). E qual era a posição do movimento conservador que se desenvolveu a partir dos anos 50 sobre a questão sulista?

Re: Verdade inconveniente sobre o racismo e sexismo dos Democratas nos EUA (I)

No Blasfémias, a Cristina Miranda descobriu a pólvora e refere que nos EUA o Partido Democrático foi quem mais defendeu a escravatura, e, depois da Guerra da Secessão, a segregação racial nos estados do Sul.

Em primeiro lugar, esclareço desde já que se fosse norte-americano (com as mesmas ideias que tenho, o que provavelmente não seria o caso) seria provavelmente apoiante dos Verdes, ou talvez do Libertarian Socialist Caucus dos Democratic Socialists of America.

Regressando ao post da Cristina Miranda, o que ela diz é verdade (como imagino que toda a gente saiba, mas talvez esteja enganado; por outro lado, se tradicionalmente o racismo vinha mais dos Democratas, a xenofobia vinha mais dos Republicanos e dos seus antecessores), mas esqueceu-se de falar de muitas coisas - a principal que muitos Democratas sulistas, a partir dos anos 60, passaram para o Partido Republicano.


A "prova A" é o senador Strom Thurmond, um segregacionista do Sul, governador Democrata da Carolina do Sul de 1947 a 1951, candidato presidencial em 1948 (pela ala sulista do Partido Democrata, que nesse ano apresentou uma candidatura autónoma em vez de apoiar Truman, descontentes com a sua política de acabar com a segregação racial no exército), senador da  Carolina do Sul, pelo Partido Democrata de 1956 até 1964 e pelo Partido Republicano de 1964 até 2003 (até agora, o único senador que exerceu o cargo até aos 100 anos de idade); em 2002, na festa do seu 100º aniversário, o então líder de bancada Republicano, o senador do Mississipi Trent Lott, declarou "I want to say this about my state: when Strom Thurmond ran for president, we voted for him. We're proud of it. And if the rest of the country had followed our lead, we wouldn't have had all these problems over the years, either".

Mas a lista de Democratas conservadores sulistas que passaram para o Partido Republicano é longa: para começar, temos logo o referido Trent Lott, que até 1972 era Democrata. Mais:

[atenção que esta lista não pretende implicar que qualquer das pessoas abaixo tenha sido segregacionista; muitos até são relativamente novos  - nomeadamente os que mudaram de partido já neste século - e nem passaram por essa época; o meu ponto em que grande parte do Partido Republicano do Sul veio do Partido Democrático]

30/06/20

Propriedade privada versus liberdade de expressão e manifestação

De certa forma isto



é o equivalente virtual disto



(casal tentando impedir uma manifestação de atravessar a rua privada onde vivem)

25/06/20

Jogos de tabuleiro

Para quem ache que os mais tradicionais glorificam o capitalismo ou o imperialismo:

- Trot Wars (o site oficial do jogo já não está a funcionar, mas não parece difícil fazer-se o download das instruções e das cartas e fazer uma versão DIY)

- Commonspoly (outro que também se pode fazer simplesmente o download e imprimir)

- Anti-Monopoly (um clássico na verdade ainda mais antigo que o clássico)

- Bolo'Bolo

- A versão "Revolta Camponesa" do  xadrez (possíveis objecções a este - além dos rebeldes continuarem a ter um rei, provavelmente só ganham se alguns camponeses se tornarem nobres, pelo que no fundo pode ter um espírito de "meet the new boss, same as the old boss"; por outro lado, é muito provável que uma vitória rebelde agrade ao sector anti-JK Rowling)

15/06/20

"Racismo sistémico" e "discriminação estatística"

Uma coisa que tenho pensado é que aquilo que os anti-racistas chamam "racismo sistémico" e os anti-anti-racistas chamam de "não é racismo, é discriminação estatística" se calhar são dois nomes diferentes para a mesma coisa: um processo emergente em que os indivíduos, sem serem pessoalmente racistas, são levadas a tomar decisões que, no agregado da sociedade, produzem resultados que beneficiam uma raça face a outra.

[Sobre formas como o funcionamento da sociedade pode ser racista sem os indivíduos serem pessoalmente racistas, há dias Chris Dillow fez um post sobre o assunto - Racism as Emergence]

13/06/20

Sugestão para história de ficção científica

Há uns tempos que penso num possível enredo para uma história de ficção científica - um físico (politicamente de direita) desenha uma máquina do tempo e vai fazer uma viagem ao passado acompanhado de um historiador; no entanto, o historiador à ultima hora não pode ir, mas no departamento de ciências sociais, embora não haja historiadores disponíveis, arranja-se um sociólogo (politicamente de esquerda, como aliás o historiador) com alguns conhecimentos de história para o acompanhar na viagem.

Chegados ao passado,  o sociólogo passa grande parte do tempo criticando as instituições e costumes opressivos que encontram e o físico dizendo que não se pode julgar o passado pelas regras do presente; a dada altura começam a desconfiar que alguma coisa não bate certo e acabam por descobrir que a máquina não funciona como planeado: em vez de terem ido para o passado, foram para outro planeta (que por qualquer razão tem habitantes muito parecidos aos terrestres...). A partir dessa revelação, o físico passa a dizer que os habitantes desse planeta são uns selvagens e o sociólogo que não podemos julgar os outros povos e culturas pelos padrões ocidentalocentricos ou mesmo geocêntricos.

[A minha grande dúvida: se a máquina levasse as pessoas, não para outro lugar nem para outro época, mas sim para outra dimensão, numa espécie de universo paralelo, quem é que iria dizer "não podemos julgar outras dimensões pelos padrões da nossa"? O de direita (como a respeito de outra época) ou o de esquerda (como a respeito de outro lugar)?]

12/06/20

Fomes


["Proved by science: Winston Churchill, not nature, caused 1943 Bengal famine"]

A "neutralidade" das redes sociais

Há uns dias, o presidente dos EUA fez um decreto com a intenção de limitir a possibilidade das redes sociais bloquarem posts ou membros (ou, no caso dele, meterem um link para um factcheck abaixo do post).

Na sequência disso, em certos meios começou a circular a teoria de que as redes sociais, serviços de alojamento de blogs/sites, fóruns, etc. etc. só teriam imunidade legal face ao que é lá postado pelos utilizadores se não exercessem nenhum controlo editorial sobre isso (vi várias pessoas escrevendo isso).

No que diz respeito ao EUA (que é o país que deu origem a essa conversa) estão redondamente enganados.

Vejam a lei dos EUA sobre o assunto:
47 U.S. Code § 230. Protection for private blocking and screening of offensive material

(a) FindingsThe Congress finds the following:

(1) The rapidly developing array of Internet and other interactive computer services available to individual Americans represent an extraordinary advance in the availability of educational and informational resources to our citizens.

(2) These services offer users a great degree of control over the information that they receive, as well as the potential for even greater control in the future as technology develops.

(3) The Internet and other interactive computer services offer a forum for a true diversity of political discourse, unique opportunities for cultural development, and myriad avenues for intellectual activity.

(4) The Internet and other interactive computer services have flourished, to the benefit of all Americans, with a minimum of government regulation.

(5) Increasingly Americans are relying on interactive media for a variety of political, educational, cultural, and entertainment services.

(b) Policy It is the policy of the United States—

(1) to promote the continued development of the Internet and other interactive computer services and other interactive media;

(2) to preserve the vibrant and competitive free market that presently exists for the Internet and other interactive computer services, unfettered by Federal or State regulation;

(3) to encourage the development of technologies which maximize user control over what information is received by individuals, families, and schools who use the Internet and other interactive computer services;

(4) to remove disincentives for the development and utilization of blocking and filtering technologies that empower parents to restrict their children’s access to objectionable or inappropriate online material; and

(5) to ensure vigorous enforcement of Federal criminal laws to deter and punish trafficking in obscenity, stalking, and harassment by means of computer.

(c) Protection for “Good Samaritan” blocking and screening of offensive material

(1) Treatment of publisher or speaker

No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider.

(2) Civil liability No provider or user of an interactive computer service shall be held liable on account of—

(A) any action voluntarily taken in good faith to restrict access to or availability of material that the provider or user considers to be obscene, lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing, or otherwise objectionable, whether or not such material is constitutionally protected; or

(B) any action taken to enable or make available to information content providers or others the technical means to restrict access to material described in paragraph (1).[1]

(d) Obligations of interactive computer service

A provider of interactive computer service shall, at the time of entering an agreement with a customer for the provision of interactive computer service and in a manner deemed appropriate by the provider, notify such customer that parental control protections (such as computer hardware, software, or filtering services) are commercially available that may assist the customer in limiting access to material that is harmful to minors. Such notice shall identify, or provide the customer with access to information identifying, current providers of such protections.

(e) Effect on other laws

(1) No effect on criminal law

Nothing in this section shall be construed to impair the enforcement of section 223 or 231 of this title, chapter 71 (relating to obscenity) or 110 (relating to sexual exploitation of children) of title 18, or any other Federal criminal statute.

(2) No effect on intellectual property law

Nothing in this section shall be construed to limit or expand any law pertaining to intellectual property.

(3) State law

Nothing in this section shall be construed to prevent any State from enforcing any State law that is consistent with this section. No cause of action may be brought and no liability may be imposed under any State or local law that is inconsistent with this section.

(4) No effect on communications privacy law

Nothing in this section shall be construed to limit the application of the Electronic Communications Privacy Act of 1986 or any of the amendments made by such Act, or any similar State law.

(5) No effect on sex trafficking lawNothing in this section (other than subsection (c)(2)(A)) shall be construed to impair or limit—

(A) any claim in a civil action brought under section 1595 of title 18, if the conduct underlying the claim constitutes a violation of section 1591 of that title;

(B) any charge in a criminal prosecution brought under State law if the conduct underlying the charge would constitute a violation of section 1591 of title 18; or

(C) any charge in a criminal prosecution brought under State law if the conduct underlying the charge would constitute a violation of section 2421A of title 18, and promotion or facilitation of prostitution is illegal in the jurisdiction where the defendant’s promotion or facilitation of prostitution was targeted.

(f) Definitions As used in this section:

(1) Internet

The term “Internet” means the international computer network of both Federal and non-Federal interoperable packet switched data networks.

(2) Interactive computer service

The term “interactive computer service” means any information service, system, or access software provider that provides or enables computer access by multiple users to a computer server, including specifically a service or system that provides access to the Internet and such systems operated or services offered by libraries or educational institutions.

(3) Information content provider

The term “information content provider” means any person or entity that is responsible, in whole or in part, for the creation or development of information provided through the Internet or any other interactive computer service.

(4) Access software providerThe term “access software provider” means a provider of software (including client or server software), or enabling tools that do any one or more of the following:

(A) filter, screen, allow, or disallow content;

(B) pick, choose, analyze, or digest content; or

(C) transmit, receive, display, forward, cache, search, subset, organize, reorganize, or translate content.
Digam-me lá onde aí diz que, para estarem abrangidas pela tal regra do "No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider.", as redes sociais, etc não podem execer controlo editorial; e ainda por cima o titulo da secção é "Protection for private blocking and screening of offensive material" e o título do da sub-secção é «Protection for “Good Samaritan” blocking and screening of offensive material».

A única obrigação que essa lei parece impor aos fornecedores de serviço é informarem os clientes que existe software e hardware que pode ser usado para controlo parental (o que me parece completamente irrelevante para o que está a ser discutido).

 Já agora, além do título da secção ser "Protection for private blocking and screening of offensive material" e o título do da sub-secção é «Protection for “Good Samaritan” blocking and screening of offensive material», o nome da lei onde isso aparece é Communications Decency Act"; digam lá - parece-lhes o nome de uma lei feita para a dizer que as empresas da internet não podem apagar conteúdos?

Não tenho certeza disto que vou dizer agora, mas até tenho a ideia que toda essa legislação foi feita por impulso conjunto da direita religiosa e da esquerda soccer moms, cheias de medo que a internet ficasse cheia de "sexo e violência" - como a primeira emenda não permite que o estado proibisse o "sexo e violência", fizeram uma lei que ao menos permitisse aos fornecedores de acesso e aos alojadores de conteúdos bloquear/apagar coisas sem perigo de consequências adversas.

Se o decreto de Trump tiver alguma relevância prática (por algumas coisas que tenho lido, é capaz de ter sido mais um exercício daquilo que noutro contexto os seus apoiantes chamariam de sinalização de virtude), o resultado é que só passaria a haver dois tipos de redes sociais:

- redes sociais em que se pode publicar tudo, sem qualquer restrição (além daquelas que vêm das leis gerais)

e

- redes sociais estilo Stasi, em que tudo o que é publicado é esmiuçado pela plataforma (e provavelmente sujeito a uma moderação prévia antes de ser publicado), para evitar qualquer coisa que possa eventualmente ser ilegal.

Redes sociais como as que existem atualmente, em que existe grande liberdade de se publicar o que se quer, mas em que de vez em quando os donos da rede apagam posts ou expulsam/suspendem comentadores seriam provavelmente impossíveis (mesmo a existência do famoso algoritmo seria problemática).

[dito de outra maneira, as redes sociais passariam, umas a ser anómicas, e outras totalitárias, sem espaço para a "ditabranda" que o Facebook ou o Twitter são atualmente]

Não digo que isso fosse necessariamente mau, mas iria provavelmente ser uma grande mudança face à ordem atual

 Sobre a neutralidade de redes sociais e afins: eu consigo imaginar o Facebook ou o Twitter a serem "neutrais" (e até tenho instalada uma extensão que "neutraliza" um pouco o Facebook, obrigando-o a mostrar os posts por ordem cronológica); já o Youtube parece-me impossível de tornar "neutral", sem passar a ser algo bastante diferente do Youtube (já que a existência de um algoritmo a recomendar vídeos é um aspeto importante do Youtube, e duvido muito que um algoritmo seja compatível com "neutralidade", no sentido de que tem que haver um critério qualquer para decidir que vídeos sugerir).