06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (3.3)

Continuando com o artigo de Ricardo Dias de Sousa, falando, parece-me, da "nova esquerda":
Não eram conscientes que ao rejeitar o modelo soviético, abraçavam o socialismo fascista.
No contexto, fico sem perceber muito bem se ele se está a referir explicitamente aos grupos terroristas que refere atrás, ou à "nova esquerda" em geral. Se se está a referir aos primeiros, eu confesso que alguns nem percebo muito bem se, em termos de modelo de sociedade, tinham alguma diferença face ao modelo soviético. Mas, se se está referir à "nova esquerda" em geral, nomeadamente à que rompeu mais coerentemente com o modelo soviético, também não me parece que tivessem muito a ver com o "socialismo fascista".


Portanto, que modelo é que esses novos movimentos marxistas preconizavam, e que diferença tinham face ao modelo soviético?

Alguns, como os maoístas e pró-albaneses, parece-me que se limitavam a uma atitude de "se fossem as pessoas certas a mandar..."; outros, como os castristas/guevaristas, parece-me que nem isso (uma coisa que nunca consegui perceber muito bem foi a admiração por Cuba de muitos críticos do socialismo soviético - quando Cuba era abertamente alinhada com a URSS; parece-me algo comparável, para pior, aquelas amantes de homens casados que fantasiam que ele vai deixar a mulher).

Mas os que defendiam um sistema abertamente em rutura com o "socialismo real", por norma defendiam alguma variante de assembleias plenárias de fábrica/bairro/aldeia, que elegeriam delegados (revogáveis a qualquer instante) a conselhos locais, sectoriais, etc., com alguma espécie de "Assembleia Nacional Popular" (não necessariamente com este nome) no cimo de tudo, e com uma economia combinando o "controlo operário" e a "planificação democrática", algo estilo o "Conselho de Trabalhadores da Industria Conserveira" (com delegados - revogáveis - das várias fábricas) decidir quantas conservas cada fábrica vai produzir, e a assembleia de trabalhadores da fábrica (ou uma comissão de trabalhadores eleita) decidir a organização interna da fábrica e como produzir as conservas. Isso parece-me muito diferente do modelo fascista (há provavelmente um zilião de variantes, mas acho que todas tinham alguma semelhança com isso)

[Para alguns textos, de várias épocas e correntes, descrevendo modelos sociais tipicamente "nova esquerda", teremos "Sobre o Conteúdo do Socialismo", dos anos 50, pelo socialista libertário Cornelius Castoriadis, "Da Greve Selavagem à Autogestão Generalizada", pelo "situationista" Raoul Vaneigen, e "The dictatorship of the proletariat and socialist democracy" e "In Defence of Socialist Planning", dos anos 80, do trotskista Ernest Mandel; imagino que os dois primeiros não apreciariam ser postos no mesmo saco que o terceiro, mas acho que há mais semelhanças do que os próprios gostariam de admitir]

A aí alguém poderá perguntar "Parece-lhe mesmo muito diferente do fascismo? Isso é muito parecido com o que o corporativismo fascista seria se não tivesse patrões privados. P.ex., em ambos os casos temos uma «corporação» ou um «conselho» sectorial a decidir o que cada fábrica vai produzir, e as comissões ou assembleias de fábrica acabam por ter poderes parecidos com as de um empresário privado num sistema corporativo - autonomia para decidir a organização interna e como atingir os objetivos; e a tal «Assembleia Nacional Popular», com delegados revogáveis dos conselhos locais e sectoriais, parece quase uma «Câmara Corporativa»".

Tem, efetivamente, algumas semelhanças - mas também tem diferenças que o tornam... diferente, passe a redundância, como deixar de existir uma classe de capitalistas, e as "assembleias populares" ou "conselhos de trabalhadores" serem o órgão supremo do poder, enquanto as "câmaras corporativas" nos regimes fascistas e afins tinham normalmente funções essencialmente consultivas (veja-se que Hitler, no Mein Kampf, diz explicitamente que órgãos coletivos como parlamentos ou assembleias não devem tomar decisões mas apenas aconselhar os líderes individuais, dizendo até que se deve regressar à origem etimológica da palavra "conselho" - uma organização para aconselhar e não para deliberar). Ou seja, falta toda a parte abertamente elitista e hierárquica do fascismo, como a manutenção de uma divisão entre uma classe de capitalistas e outra de trabalhadores, ou a supremacia do líder individual sobre os órgãos coletivos.

Agora, realmente estas ideias de alguma da "nova esquerda" são, isso sim, muito parecidas (ou se calhar idênticas usando apenas nomes diferentes) com a do sindicalismo revolucionário, que foi uma das fontes do fascismo; mas aí a semelhança é com o sindicalismo revolucionário antes de se transformar em fascismo ou pré-fascismo, antes de adotar o principio da obediência ao chefe a abandonar a luta de classes. Tal como alguém adotar ideias parecidas às de Hegel não o torna um marxista (apesar de Hegel ter sido dos maiores inspiradores de Marx), adotar ideias parecidas às do sindicalismo revolucionário não o torna um fascista (apesar da influência do sindicalismo revolucionário sobre o fascismo).

Em tempos estive para escrever algures que o anarco-sindicalismo é a monarquia feudal sem monarquia nem feudalismo - isto é, recuperando a organização descentralizada em pequenos grupos (comunidades aldeãs, grupos profissionais, cidades - "comunas" - autónomas, etc.), mas sem ter por cima um rei, uma nobreza e uma igreja hierárquica (e pronto, finalmente escrevi). Da mesma maneira, será que o fascismo poderá ser visto como o sindicalismo revolucionário sem sindicalismo nem revolução? Isto é, pegando na ideia de organizar a sociedade com base em associações profissionais, mas tirando-lhe as parte da luta contra os capitalistas e o poder do estado (pondo, pelo contrário, estado, trabalhadores e patrões a, supostamente, "colaborar")?

Já agora, que ainda não o tenha lido, é melhor ler o post 2.3, que é relevante para este.

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