06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (3.4)

E agora vamos finalmente ao que interessa nesta sub-serie (os outros posts "3.x" foram apenas preâmbulos, acerca de pontos circunstanciais). Continuando com Ricardo Dias de Sousa:

Depois do fracasso no controlo de meios de produção dos marxistas-leninistas, os novos marxistas passaram a querer controlar as atitudes e os valores da sociedade. Com excepção do ambientalismo (que é um movimento conservador-fascista), propõem à sociedade as velhas aspirações liberais de justiça, direitos e liberdades individuais. A sua ideologia pode ser identificada como fascismo-liberal. Ao contrário da maioria dos velhos liberais, que queriam que o Estado não interferisse, pretendem que estes valores sejam, mais que garantidos, validados pelo regime. Assim, por exemplo, não basta que os homossexuais tenham o direito a viver com quem querem, é necessário que o Estado reconheça essa união. Não chega que as mulheres não sejam proibidas de exercer determinadas profissões, é preciso que o Estado obrigue as empresas a contratá-las. Não é suficiente que os emigrantes possam trabalhar livremente num país, é fundamental que o Estado legalize a sua situação. ‘Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”; Mussolini não diria melhor. O fascismo, que sempre esteve dormente na sociedade, afinal volta em força pela mão dos autodenominados anti-fascistas e dos idiotas úteis, que julgam que os valores liberais se podem defender através do Estado.
Deixando de lado o ponto do ambientalismo (que tem muito que se lhe diga - há algum tempo que estou a pensar num post em que abordarei isso; pode ser que o escreva algum dia), para começar dividiria os pontos de Ricardo Dias de Sousa em dois grupos; por um lado o "Assim, por exemplo, não basta que os homossexuais tenham o direito a viver com quem querem, é necessário que o Estado reconheça essa união. (...) Não é suficiente que os emigrantes possam trabalhar livremente num país, é fundamental que o Estado legalize a sua situação."; por outro o "Não chega que as mulheres não sejam proibidas de exercer determinadas profissões, é preciso que o Estado obrigue as empresas a contratá-las." Acho que isso são duas categorias bastante diferentes que Ricardo Dias de Sousa mete no mesmo saco, pelo que vou tratá-las separadamente:

Considerar legalizar as uniões entre homossexuais ou os imigrantes como aumento do poder do estado é uma posição que nos últimos anos se tem tornado muito popular entre aqueles liberais que (suspeito que largamente por razões afetivas) fazem o possivel para reduzir ao mínimo as diferenças com os conservadores; mas não faz grande sentido - a partir do momento em que o estado tem leis sobre o casamento ou sobre a imigração, a existência dessas leis prejudica as pessoas que são excluidas delas; por exemplo, os imigrantes que estão ilegalmente num país em regime de "é proibido mas pode-se fazer" (isto é, toda a gente faz vista grossa à sua existência) estão pior do que estariam num estado que não tivesse qualquer leis sobre a imigração - mesmo que ninguém os deporte, a necessidade de viver numa existência semi-clandestina (e sempre sujeitos a que um dia venha um governo dizer "as leis são para se cumprir - vamos deportar os ilegais") prejudica-os (em comparação com o que seria a sua situação num país que praticasse de jure uma política de portas abertas); assim, legaliza-los mais não é que o estado remover os incómodos que previamente lhes colocou.

O mesmo para os casamento entre homossexuais - eu sinceramente não percebo muito bem porque as pessoas se casam, mas se muitas pessoas optam por se casar, alguma vantagem isso terá (provavelmente embutidas num zilião de leis dispersas sobre impostos, heranças, férias, autoridade para tomar decisões médicas, etc, etc.); a partir do momento em que há esse zilião de leis distinguindo entre "casados" (ou algo equivalente) e "não-casados", dar a algumas uniões a possibilidade de se "casar" e a outras não, significa que o estado está a prejudicar as outras (de novo, em comparação com uma situação em que não houvesse qualquer legislação referindo casamentos).

Ainda no caso do casamento homossexual, há quem diga que o que está em questão é apenas o simbolismo; mas mesmo que seja isso, o que digo atrás aplica-se: das duas uma, ou o reconhecimento legal pelo estado de determinados tipos de união sentimental tem impacto sobre os valores morais dominantes, ou não tem; se considerarmos que não tem (e que portanto o estado passar a reconhecer casamentos homossexuais não vai fazer a sociedade ser mais tolerante face à homossexualidade), o efeito de reconhecer o casamento homossexual será nulo (logo não será verdadeiramente um aumento do poder do estado); mas se considerarmos que tem impacto (uma espécie de nudge?), isso quer dizer que o estado reconhecer os casamentos heterossexuais mas não os homossexuais contribuirá para que, pelo menos "na margem", algumas pessoas sejam mais "homofóbicas" do que seriam se o estado não reconhecesse união nenhuma (logo, de novo, a legalização do casamento homossexual irá neutralizar os efeitos de uma intervenção prévia do estado).

Já outro caso é nas leis anti-discriminação, quotas, etc., em que aí se trata mesmo de criar leis onde antes não havia nenhumas (em vez de substituir um tipo de leis por outras), e portanto é efetivamente um aumento do poder do estado. Já agora, é interessante que ultimamente, há um assunto em que parece ter havido uma inversão, com as pessoas que normalmente são contra as leis de discriminação positiva a serem agora os maiores defensores da ideia que o estado deve intervir para proteger os indivíduos das decisões empresariais discriminatórias - as redes sociais.

Mas será esse aumento "fascista"? Se calhar até poderá ser argumentado que mais não é que o típico "socialismo"; afinal, já nos anos 60, a dada altura o anarco-capitalista Murray Rothbard defendia  a teoria que o socialismo era um movimento centrista, entre o conservadorismo, à direita, e o liberalismo, à esquerda, que usava meios conservadores para atingir fins liberais (ver, p.ex., Left and Right: The Prospects for Liberty: "Socialism, like Liberalism and against Conservatism, accepted the industrial system and the liberal goals of freedom, reason, mobility, progress, higher living standards the masses, and an end to theocracy and war; but it tried to achieve these ends by the use of incompatible, Conservative means: statism, central planning, communitarianism, etc." ); o que quero dizer com isto, a ir chamar uma teoria de há quase 60 anos (e que aposto que o autor já não defenderia uns anos mais tarde) é que usar o poder do estado para atingir objetivos liberais é algo extremamente corriqueiro, não é só de agora, e se formos chamar "fascismo" a isso, então o termo "fascista" torna-se mesmo completamente irrelevante.

Mas eu iria mais longe - isso de usar o poder do estado para promover objetivos "liberais" mais não é que uma continuaçã do tradicional.... liberalismo, aquelas das "revoluções liberais" do século XIX (há quem diga que mais o "liberalismo francês" do que o "inglês", mas nem isso estou certo). Recapitulando o que escrevi há uns anos (O que foi historicamente o "liberalismo"?):
Por vezes em certos sectores faz-se uma oposição entre um "liberalismo inglês" (que se preocuparia sobretudo em limitar o poder do Estado) e um "liberalismo francês" (disposto a usar o poder do Estado central para libertar os indivíduos das opressões locais), e entre alguns liberais de hoje em dia parece haver algo muito próximo de uma renúncia ao liberalismo "continental" do século XIX  (...). [Mas] uma coisa que sempre me fez ter reservas à teoria do "liberalismo inglês" vs. "francês" é que hoje em dia é exatamente no mundo de língua inglesa que a palavra "liberal" é mais usada como algo parecido com o que era suposto ser o significado "francês" (dois artigos (...) sobre a diferença entre as duas tradições liberais, mas aparentemente sem atribuir nenhuma a países específicos).

[Atenção que esta alegada diferença entre dois tipos de liberalismo não é a diferença entre as chamadas liberdade "negativa" e "positiva"; mesmo nos que defendiam o recurso ao Estado central para combater as opressões locais, pode-se considerar que era de restrições à liberdade "negativa" - como direitos feudais, regulamentos corporativos, etc. - que se tratava. No entanto, creio que a posição de defender a intervenção do Estado central contra as autoridades locais mais facilmente pode degenerar numa posição de defender a liberdade "positiva" do que a posição de simplesmente querer limitar o poder do Estado: de achar que o Estado deve libertar os camponeses do senhor feudal até achar que o Estado deve proteger os trabalhadores do poder do industrial que é o maior empregador da aldeia vai um saltinho...

Aliás, num dos textos que linko acima até é dito que «two strands running through the liberal tradition, strands differentiated by their attitudes toward "intermediate groups" (that is, groups intermediate between the individual and the centralized state), a category in which Levy includes "churches and religious groups, ethnic and cultural groups, voluntary associations, universities," and the family, but also "levels of government below the center—towns and cities, or the provinces and states of a federation." Levy justifies including governmental and private groups in the same category on the grounds that the dispute he's tracing tends to do so as well.» - negrito meu: ou seja, há mesmo uma tendência para os que vêm o poder central como o defensor da liberdade individual contra os governos locais o verem também como o defensor dessa liberdade - eventualmente contra as dependências sociais ou económicas - contra o poder social de instituições como famílias, religiões, e se calhar também empresas]

(...)

 Pegando nesta distinção (...) entre as dimensões "público vs. privado" e "coercivo vs. não-coercivo" (ou "injusto vs. justo"), dá-me a ideia que o liberalismo "histórico" - fosse ele "inglês" ou "francês" - consistiu sobretudo em diminuir o sector privado "coercivo" - concessionários de monopólios, proprietários senhoriais ou feudais, corporações de artes e ofícios, igrejas "oficiais", comunidades aldeãs, donos de escravos, empresas beneficiárias de protecionismo (embora a associação liberalismo/livre-cambismo e conservadorismo/protecionismo não seja absoluta), etc. - e reforçar simultaneamente o sector privado "voluntário" e o sector estatal (a diferença entre as variantes "inglesa" e "continental" é capaz de ter sido sobretudo uma diferença nas proporções em que o sector privado "coercivo" foi divido pelo estatal e pelo privado "voluntário" - e possivelmente o sector privado "coercivo" seria muito maior no continente, o que também pode ter feito diferença). No fundo, em termos modernos, as "revoluções liberais" foram como se um governo acabasse com as PPPs, nacionalizando parte delas e privatizando/liberalizando totalmente as outras.


E agora vou divagar para um assunto já completamente diferente do tema original:

É frequente dizer-se que o "liberalismo" norte-americano pouco tem a ver com o significado usual da palavra no resto do mundo (e eu, sempre que me refiro aos "liberais" norte-americanos, uso aspas); mas vendo bem, talvez os "liberais" dos EUA não estejam tão longe do liberalismo "histórico" como tudo isso: afinal, dá-me a ideia que a sua ideologia anda muito à volta de usar o poder do governo federal para "proteger" os indivíduos contra os pequenos poderes (dos governos estaduais e locais, das famílias, das empresas, etc.); mesmo na economia, dá-me a impressão que, comparativamente com os socialistas europeus, os "liberais" preocupam-se menos com a igualdade de rendimentos, e mais com assuntos como leis anti-monopólio ou anti-discriminação (que me parecem corresponder a uma visão do mundo mais individualista - como proteger as pequenas empresas das grandes, ou garantir que indivíduos de grupos tradicionalmente marginalizados tenham as mesmas possibilidades de subir na vida). A diferença - diferença esse que provavelmente justifica o uso das aspas - face ao liberalismo "histórico" é que pegaram na ideia do Estado central como protetor dos indivíduos contra os pequenos poderes e alargaram-na aos poderes puramente privados e supostamente "voluntários" (nomeadamente no aspeto económico) - mas, até como referi nuns parágrafos mais atrás, nem é um salto totalmente inédito nem se calhar particularmente difícil de dar.

 Uma coisa que também me parece é que a contra-cultura dos anos 60 integrou-se mais facilmente no Partido Democrata dos EUA (os jovens rebeldes da altura foram se calhar os maiores apoiantes das campanhas de Eugene McCarthy em 1968 e de George McGovern em 1972) do que nos partidos socialistas tradicionais europeus (na Europa, quando o "espírito de 68" se manifestou na política partidária foi sobretudo através de partidos não-tradicionais, como a Democracia Proletária italiana, a Esquerda Socialista dinamarquesa, o PSR português ou os "Verdes" em vários países). A principal razão foi de certeza os incentivos para a integração nos partidos dominantes que existem nos EUA (com o sistema eleitoral maioritário a uma volta e o presidencialismo a tornarem difícil criar 3ºs partidos e ao mesmo tempo com o sistema das primárias a tornar relativamente fácil tentar tomar um partido por dentro); mas interrogo-me (mas isto é capaz de já ser uma especulação arriscada da minha parte) se a ideologia da contracultura, que criticava o capitalismo menos por os trabalhadores serem explorados, e mais por serem alegadamente transformados em meras "peças da máquina" que executam os planos elaborados pelos patrões e gestores, sem espaço para a criatividade pessoal, não teria logo à partida uma afinidade com a tendência dos "liberais" para defenderem o individuo contra as pequenas autoridades.

Em suma, possivelmente a razão estará mais do lado dos paleoconservadores que acham que o moderno "liberalismo" ou "progressismo" deriva do individualismo do liberalismo tradicional do que dos neoconservadores que associam o [moderno] "liberalismo" ao fascismo.
Ou seja, essas leis parecem-me ser nalguns casos a continuação de uma tradição com profundas raízes mesmo no liberalismo tradicional, de usar o estado central para proteger os indivíduos das supostas opressões locais ou sectoriais.

E se nos lembrarmos das origens do fascismo (como uma tentativa de síntese entre o nacionalismo monárquico integralista e o sindicalismo revolucionário) vemos que as "ideologias mães" do fascismo até eram ambas muito defensores dos corpos intermédios (municípios, associações profissionais, sindicatos, etc.) contra o estatismo-individualismo liberal; portanto se calhar, a política de usar o poder do estado para promover principios "liberais", não só tem um vasto pedigree no liberalismo tradicional e não é "fascista", como até é exatamente o oposto do que os antepassados próximos do fascismo defendiam.

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