31/08/10
Mas onde é que páram os meus comentários?
por
Luis Rainha
Há uns anos, comentei um post num blogue onde também escrevia, o 5Dias. Depois, dou com esse meu comentário num outro blogue, o Jugular. Agora, nova mudança involuntária e abusiva, para um outro estaminé. Resultado: o tal comentário só não existe no local onde o depositei mesmo.
Mas esta gente não terá nem um bocado de noção do ridículo? Mudar de blogue e levar a tralha toda atrás, incluindo contributos de leitores que podem nada querer ter a ver com os sítios onde hoje os seus comentários jazem? Ainda por cima, usa-se este estratagema alucinado para alimentar fantasistas listagens dos textos "Mais Comentados". E dizem que são os estalinistas que gostam de remodelar o passado...
Mas esta gente não terá nem um bocado de noção do ridículo? Mudar de blogue e levar a tralha toda atrás, incluindo contributos de leitores que podem nada querer ter a ver com os sítios onde hoje os seus comentários jazem? Ainda por cima, usa-se este estratagema alucinado para alimentar fantasistas listagens dos textos "Mais Comentados". E dizem que são os estalinistas que gostam de remodelar o passado...
Mea culpa de Fidel
por
Luis Rainha
Também é sinal de grandeza admitir erros. Como Fidel, ao assumir a responsabilidade pela homofobia reinante em Cuba nos anos sessenta. Agora, imagine-se o que por cá os fiéis diriam se alguém acusasse o mesmíssimo Fidel de tal crime...
Protestos a propósito dos ciganos: mais uma sinistra manobra yankee
por
Luis Rainha
Até na mais revolucionária toalha cai a nódoa da aquiescência aos planos do imperialismo. O camarada Renato Teixeira vem agora convidar-nos a embarcar em mais uma manobra tendente a branquear a iminente invasão do Iraque. Queriam os esbirros da turba islamófoba que fossemos protestar contra a recente expulsão de ciganos de França. Como se não nos lembrássemos do papel de destaque que este país teve ao criticar e denunciar a sangrenta intervenção americana no Iraque. Agora, claro que importa aos estrategas do Pentágono diminuir o papel moral dos franceses, associando-os publicamente a um atentado aos direitos humanos. Claro. Já todos vimos esta cortina de fumo antes. E já todos sabemos que embarcar na fantochada é apressar a chuva de fósforo branco sobre Teerão. Ou a chegada dos invasores marcianos; a que ocorrer primeiro, pronto.
Do Irão até à França
por
Miguel Cardina
Não se fosse dar o caso de estar em Braga no fórum de debate que o Bloco de Esquerda anualmente promove, é muito provável que tivesse rumado a Lisboa para me juntar a quem, no sábado passado, fez ouvir o seu grito de indignação contra a condenação à morte por lapidação da iraniana Sakineh Ashtiani. Pode acontecer que não tenham sido tantos quanto se desejava ou que a posição colectiva dos manifestantes seja insuficiente para inverter o caminhar das coisas. Mas não partilho o cinismo de alguma esquerda - a direita é outro campeonato - que vê na manifestação um apoio diferido a um hipotético ataque americano ao Irão. Sabemos que o humanitarismo tem servido muitas vezes como cobertura ideológica da aventura armada do Império, mas convém entender as pessoas como algo mais do que joguetes de estruturas político-económicas omnipotentes. Aposto que se um ataque americano acontecesse amanhã, a maioria das pessoas que conheço e que estiveram no Largo Camões seriam contrárias a essa invasão e mesmo capazes de desfilar o seu protesto.
Senti, porém, que um certo sentimento de desconfiança se apoderou dos organizadores de maneira algo estranha ainda antes da concentração. Se o silêncio do governo português é uma realidade, se a esquerda da suspeita existe e tem alguma expressão, se a direita estava ainda em férias ou a inventar a boutade do referendo securitário, não deixa de desconcertar a maneira como se enumerou quem estava e quem não estava, lançando um anátema implícito aos faltosos. Espero sinceramente que a Fernanda Câncio se mantenha coerente com este raciocínio e apareça no próximo sábado, frente à Embaixada de França, para se manifestar contra a expulsão de ciganos em curso no país, sob pena de poder ser considerada, com injustiça, uma defensora da medida.
Senti, porém, que um certo sentimento de desconfiança se apoderou dos organizadores de maneira algo estranha ainda antes da concentração. Se o silêncio do governo português é uma realidade, se a esquerda da suspeita existe e tem alguma expressão, se a direita estava ainda em férias ou a inventar a boutade do referendo securitário, não deixa de desconcertar a maneira como se enumerou quem estava e quem não estava, lançando um anátema implícito aos faltosos. Espero sinceramente que a Fernanda Câncio se mantenha coerente com este raciocínio e apareça no próximo sábado, frente à Embaixada de França, para se manifestar contra a expulsão de ciganos em curso no país, sob pena de poder ser considerada, com injustiça, uma defensora da medida.
Um queirosiano (não) vai ao cinema
por
Luis Rainha
Causa um compreensível sobressalto patriótico lobrigar a marca de Eça de Queiroz num blockbuster americano, em que um casal é presenteado com uma caixa que pode causar o seu enriquecimento, tendo como dano colateral a morte de um desconhecido. «O filme chama-se "The Box"; eu não vi nem conto ir ver, mas já li o livro: chama-se "O Mandarim" e foi escrito há mais de cem anos por um tal de José Maria Eça de Queirós.»
Pois, António; mas umas dezenas de anos antes do bravo Eça ter composto a inteligente parábola, já François-René Chateaubriand imaginara tal dilema, precisamente com um chinês como involuntária vítima. Mas duvido que o nosso romancista escrevesse a sua novela com o esbulho em vista; ao ficcionar um mandarim, tornou a citação/homenagem bastante óbvia. E, aliás, já Balzac tinha pegado no tema, em Le Père Goriot, embora atribuindo a autoria do mesmo a Rousseau.
Pois, António; mas umas dezenas de anos antes do bravo Eça ter composto a inteligente parábola, já François-René Chateaubriand imaginara tal dilema, precisamente com um chinês como involuntária vítima. Mas duvido que o nosso romancista escrevesse a sua novela com o esbulho em vista; ao ficcionar um mandarim, tornou a citação/homenagem bastante óbvia. E, aliás, já Balzac tinha pegado no tema, em Le Père Goriot, embora atribuindo a autoria do mesmo a Rousseau.
Boa malha
por
João Tunes
Francisco Lopes é o melhor candidato presidencial que o PCP podia indicar. Não mete, politicamente, uma unha de pé fora das instalações da colectividade posta em sossego paroquiano, enquanto, para fora, o PCP decidiu mandar o país trabalhar e produzir (a Bem da Nação). Logo, se não adianta, também não atrapalha. E feita a primeira volta da campanha, facilita as adaptações normais e impostas pela lógica da bipolaridade própria das segundas voltas.
(publicado também aqui)
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Legionários copiados
por
João Tunes
Uma farda militar, se bem ataviada e melhor ainda se bem decorada com galões, condecorações e continências, é coisa bonita de se ver e assenta bem a quem a veste se o utilizador estiver em uso de legítimo direito castrense.
Feias são as fardas militares postas numa dúzia de magalas (incluindo alguns generais) trauliteiros e ressabiados porque perderam três guerras coloniais três e que, imitando os legionários barrigudos de 1965 que então assaltaram a Sociedade Portuguesa de Escritores por causa de um prémio literário, ameaçam agora “dar porrada” num escritor desafecto à “limpeza patriótica” em marcha sobre a versão das guerras que estes magalas perderam.
(publicado também aqui)
Feias são as fardas militares postas numa dúzia de magalas (incluindo alguns generais) trauliteiros e ressabiados porque perderam três guerras coloniais três e que, imitando os legionários barrigudos de 1965 que então assaltaram a Sociedade Portuguesa de Escritores por causa de um prémio literário, ameaçam agora “dar porrada” num escritor desafecto à “limpeza patriótica” em marcha sobre a versão das guerras que estes magalas perderam.
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Et tu, Rui?
por
Luis Rainha
Acho sempre imensa graça aos debates pós-eleitorais em que se discute acaloradamente o que é que "o povo" quis ou não quis "dizer". Este é uma espécie de pensamento mágico, que personaliza milhões, dando-lhes um só corpo, uma só cabeça e, claro, uma só forma de decidir o seu voto. Imaginaria eu que não é preciso um doutoramento em sociologia para perceber que o voto popular representa uma agregação de incontáveis comportamentos individuais, produtos de outras tantas atitudes, motivações e posturas políticas – que naquele momento se combinaram de uma dada forma, produzindo aqueles resultados. Querer personalizar eleitorados só serve mesmo para caricaturas.
Por isso, muito me espantei ao ver o Rui Tavares a dedicar-se ao mesmo exercício divinatório: «os portugueses não gostam de mais que uma reeleição (Soares que o diga), tal como não gostam de dinastias políticas (João Soares que o diga), tal como não gostam de ver candidaturas "do partido" em eleições pessoais (o PCP e o BE que o digam)». Presumo que este floreado tenha em vista um fim preciso (justificar como ganhadora e do agrado "dos portugueses" a candidatura de Alegre), pois de resto não faz lá muito sentido. Tirar grandes lições sobre o psicologismo de uma entidade que nem sequer existe enquanto pessoa, gabando e analisando a inteligência do "bom povo", parece-me mais coisa de José Hermano Saraiva do que do Rui.
Por isso, muito me espantei ao ver o Rui Tavares a dedicar-se ao mesmo exercício divinatório: «os portugueses não gostam de mais que uma reeleição (Soares que o diga), tal como não gostam de dinastias políticas (João Soares que o diga), tal como não gostam de ver candidaturas "do partido" em eleições pessoais (o PCP e o BE que o digam)». Presumo que este floreado tenha em vista um fim preciso (justificar como ganhadora e do agrado "dos portugueses" a candidatura de Alegre), pois de resto não faz lá muito sentido. Tirar grandes lições sobre o psicologismo de uma entidade que nem sequer existe enquanto pessoa, gabando e analisando a inteligência do "bom povo", parece-me mais coisa de José Hermano Saraiva do que do Rui.
Welcome, Charles Reeve! For he is a red-and-black good fellow & já fazia cá falta para animar a malta
por
Miguel Serras Pereira
Boas Vindas, Jorge Valadas
por
Anónimo
É tempo de dar as boas vindas a um novo viajante de facto, Jorge Valadas de seu nome, português de origem, há muito exilado em França e habituado a correr o mundo. O Jorge já nos visitava há algum tempo (e alguns de nós a ele), pelo que nos pareceu agora oportuna a ocasião para lhe dar as chaves da casa, de maneira a que nela possa entrar sempre que lhe apetecer e para o que julgar conveniente. Dele chegarão, seguramente, notícias frescas ou reflexões oportunas sobre a situação em França, em Portugal, na Europa, ou nas restantes partidas do mundo que o seu olhar alcança. Será por isso um prazer acompanhar aquilo que, de agora em diante, ele virá partilhar com a nossa estimada freguesia. Porque bem preciosa é a sua lucidez e demasiado rara tamanha frontalidade, para que a sua colaboração deixe de ser saudada como a auspiciosa notícia que é.
Crónica de fora, identidades e ódios
por
Jorge Valadas
Convidaram-me, o Miguel Serras Pereira e o Ricardo Noronha, para participar no Vias de Facto. Que eu já conhecia e ia acompanhando com preguiça. Porque não é assim meu hábito acompanhar fielmente a vida dos blogs. A minha primeira reacção foi de hesitação… Como escrever constantemente em reacção ao que acontece, ao que não acontece, ao que poderia ter acontecido, ao que disse fulano e não disse sicrano ? Ter opinião sobre tanta coisa é tarefa que me parece extenuante. Acabei por aceitar, à experiência, como um desafio, uma participação irregular, uma maneira de manter um elo mais directo com uma sociedade da qual estou geograficamente afastado há mais de quarenta anos. Mas só geograficamente…
Ora aqui está um excelente assunto para iniciar a minha colaboração.
O leitor a quem estas reflexões pareçam sem interesse é cordialmente convidado a fazer uso da solução tecnológica radical do « delete ». Permito-me enfim de prevenir que eu não assinei o novo acordo ortográfico luso-brasileiro e que o leitor terá de praticar o ritmo do meu frantuguês.
O que significa sentir-se perto de uma sociedade que já não é aquela em que vivemos mas que continua a fazer parte de nós próprios ? Como podemos reflectir no que se passa lá dentro, partindo do que vivemos cá fora ? O que motiva esse olhar de fora para dentro ?
Veio-me tudo isto ao pensamento, quando li uma entrevista do Hans Magnus Enzensberger (Télérama, 14 julho 2010). Na qual o conhecido autor do inesquecível Le bref été de l’anarchie, La vie et la mort de Buenaventura Durruti, e do recente muito falado romance histórico, Hammerstein ou l’intransigeance, une histoire allemande, aborda esta problemática, as dificuldades e as vantagens do olhar crítico de quem está fora.
Na Alemanha, diz o Magnus E., a culpabilidade histórica impregnou de tal forma as gerações do imediato pós-guerra que o ódio da sociedade produziu muitas vezes o ódio de si-próprio. Magnus E. dá como exemplo a vida e o trabalho do seu amigo, o grande escritor W.G. Sebald. O qual, lembrava recentemente o Luis Rainha no Vias de facto (A literatura como veneno, 18-08), se desolava da « ausência de um grande banho de culpa que lavasse » a sociedade alemã do horror do nazismo. Magnus E. explica, por seu lado, que foi « vivendo fora da Alemanha (que) evitei o ódio de mim próprio ». Finalmente, sugere ele, um ponto de ruptura nestas situações é sempre o da rejeição da servidão voluntária. Acto de liberdade que permite, como ele diz, « não estar em fase com o momento que se vive », abrir o espírito à crítica do estado dito « normal » das coisas. O acto de rejeição será assim « uma migração no tempo que ajuda a melhor viver a época ».
Esta migração, forçada ou voluntária, permitirá de melhor encarar de frente as coisas, como o diz Magnus E. ? E em que medida a rejeição da servidão voluntária, em momentos da história de uma sociedade, pode revelar-se um antídoto ao ódio contra uma sociedade e também contra si próprio ?
Foi a partir de aqui que o discurso do Magnus E. começou a interrogar o meu passado. Que partilhei com milhares, centenas de milhares de outras pessoas, que saíram deste país no fim dos anos sessenta do século passado para não participar num momento particular da violência de Estado, a guerra colonial. Sem dúvida, as barbaridades da história recente da Alemanha e as da história recente de Portugal não têm o mesmo peso universal. Mesmo se é impossível separar o colonialismo da geneologia dos genocídios modernos, como bem o mostrou, entre outros, Enzo Traverso no seu livro La violence nazie, une généalogie européenne. Contabilidade do horror posta de lado, a questão é de saber como viver com as barbaridades de uma sociedade, seja a inquisição, o colonialismo, o nazismo, o genocídio, a guerra, mundial ou colonial.
O tratamento, aconselhado pelas autoridades e funcionários competentes à normalização social, já se sabe, é o do esquecimento histórico. Deste ponto de vista, o caso português actual é de uma límpida exemplaridade, caracterizado pela ausência de debate sobre o conteúdo bárbaro da história do pequeno Estado-Nação, pela inexistência de culpabilidade e nevrose social, nacionalista ou antinacionalista. Neste país não se correra o risco de banhos de culpa, aqui só há banhos de praia ! Finalmente, durante cinco séculos não se passou nada. Como se história deste país tivesse sido só uma história. Quando ela integra plenamente o processo universal do colonialismo, a globalização do comércio de seres humanos, a escravatura. O que não é pouco ! Se a Primeira Républica e o salazarismo transformaram este processo num mito civilizador, a democracia do 25 Novembro preocupou-se de lavar o passado. Mais do que isso, ela tudo fez para esconder o passado. Esta democracia do esquecimento foi mais um sintoma da doença, e, como todo sintoma, ela continua a dissimular a doença, diria o Freud. De facto, o silêncio de pedra que se vive nestas paragens apenas traduz o estado doentio da sociedade. Que se reflecte não somente na pobreza franciscana da vida política institucional (o que não é específico ao caso português) mas também na falta de vitalidade da conflitualidade criadora da vida social. Vive-se um estado comatoso que o Secretariado nacional de turismo vende como folclore local. A lobotomizaçao histórica oferece os seus benefícios aos doentes, nos meios do poder ele permitiu a passagem de muita gente do estatuto de « contra » ao de « situacionista » nova vaga. Para o povo houve também uns pequenos brindes. As migalhas de emprego oferecidas pela nova classe dirigente das ex-colónias a alguns coitados da Lusitânia constituem hoje as ultimas rendas históricas da grande epopeia colonial. Como não pensar na formula do Antero, quando ele dizia que a única industria do país foi a Índia, resumindo assim o conteúdo de toda a história portuguesa e o seu desastre final.
Voltemos a esta estranha equação que sugere o Magnus E. falando do caso alemão : o ódio do país que leva ao ódio de si próprio ! Segundo ele, « a quantidade de heróis numa dada população é reduzida » em períodos de ditadura, a maioria dos indivíduos vivendo com hesitações e ambiguidades, adaptando-se, conformando-se, enfim, não se posicionando. Evidentemente, o conceito de herói é aqui tomado no sentido da oposição à ditadura. E, nesse sentido, a resignação ao salazarismo ilustrou perfeitamente o que acaba de ser dito. Mas o conceito é sem interesse, por demais ambíguo, reivindicado tanto por ditaduras como por democracias, pois que a atitude de herói esta associada à submissão ao medo e à ordem dominante. Os heróis são um ingrediente essencial dos sistemas totalitários et dos seus horrores, como o provou a distribuição massiva de medalhas quando da guerra colonial. Da mesma maneira, a lei da maioria silenciosamente hesitante não se alterou no Portugal democrático ou na Alemanha do após-guerra. A maioria silenciosa, o conformismo da norma, parecem ser uma base comum destes dois sistemas. Mais uma prova que alguma filiação haverá entre eles.
Por tudo isto, parece-me mais fértil retomar a ideia da rejeição da « servidão voluntária », através da qual se assume voluntariamente, afirmativamente, « não estar em fase com o momento que se vive ». Em circunstâncias diferentes das que menciona Magnus E., ela levou-me, a mim e a muitos outros, a não participar no que era então o projecto « normal » da sociedade portuguesa, a defesa do sistema colonial. Sómente a partir desta atitude negativa se pode começar a desmontar a construção da culpabilidade histórica, do nazismo ou do colonialismo, da guerra, da barbárie. É também a partir desta rejeição da servidão voluntária, que se pode ultrapassar o sentimento de ódio a uma sociedade e a lógica que equaciona o ódio de uma sociedade com o ódio de si próprio.
Volto aqui a fazer referência à minha/nossa experiência. Foi esta rejeição, a consequente necessidade de migração/exílio, que nos afastou do ódio do país e da sociedade portuguesa, consequentemente do ódio de nós próprios. O acto negativo transformou-se em dinâmica positiva. Permitindo - não necessariamente e nem para todos - passar da compreensão da nossa condição individual para compreensão de uma situação global. Que a guerra colonial constituía um momento revelador de todo o horror da chamada « História de Portugal ». O momento extremo do projecto histórico sobre o qual assentou a identidade Estado-Nação da sociedade portuguesa. Como o parece provar a crise desta ancestral identidade que se esvaziou com o desmoronar do sistema colonial. A crítica do conteúdo nacionalista desta identidade mostrou que os interesses da classe dominante eram impostos à maioria do povo como sendo o interesse de toda a sociedade. A revolta contra a guerra colonial, que se exprimiu primeiro de forma subterrânea para depois se tornar um dos dois motores do movimento social do após-25 Abril (o outro sendo a aspiração à auto-emancipação social), veio confirmar que este interesse nacional associado ao colonialismo não era partilhado por toda a sociedade. Que havia na sociedade outra identidade, antagónica, outra cultura, outros valores, associados às classes dominadas, exploradas. Embora ocultada sistematicamente pelos dominadores, esta outra identidade marcou a sua presença na história cada vez que se rompeu o consenso interclassista.
Foi assim, a partir deste processo real de antagonismos e de rupturas, que fomos, alguns, imunizados contra a identidade nacional, o ódio da sociedade e, évidentement, o ódio de si próprio. Deitados fora os lixos do patriotismo e outros acessórios fúteis, pudemos assim restabelecer um elo novo, não com uma sociedade tomada como um todo, mas com sectores dessa sociedade que preservavam, por vezes de maneira disfarçada, valores universais de emancipação social. Nunca é demais lembrar, para além das revoltas populares e messiânicas contra os dominadores que perturbaram várias vezes a rota « normal » da história oficial, a vitalidade do movimento anarco-sindicalista do princípio do século vinte (sem o qual a implantação da República não teria vingado…) e, claro está, os dois anos de agitação social após a intervenção militar do 25 de Abril contra o regime totalitário. Experiências, bem entendido, que estão hoje, e pelas mesmas razoes, fechadas no cofre da memória esquecida, lado a lado com a terrível história do colonialismo. O meu recente livrito, A Memória e o fogo, mais não pretende ser que uma modesta contribuição incitando à abertura do cofre.
No fim da sua conversa diz o Magnus E. a propósito da chamada « questão alemã ». « Todos os países têm a sua questão. Na Alemanha, nós fomos, durante o período nazi, os campeões do pior. Depois, nós tivemos a vontade de ser os campeões do bem : pacifistas, democratas, ecologistas, uma nação modelo. Finalmente, a Alemanha é hoje um país igual aos outros países europeus. (…) Com a mesma mediocridade da vida política – pela qual é difícil de se apaixonar.»
E a « questão portuguesa »? Obviamente, também este pequeno país é igual, na sua essência, a todos os outros. Com as suas diferenças específicas. Sem culpabilidade social do passado histórico não houve aqui nevrose de compensação, muito menos ainda pretensão de de passar do pior ao melhor. Sem memória crítica do passado, continua a dominar a dificuldade de afrontar o presente, impõe-se a fatalidade do pior. Assim, a submissão à ordem democrática autoritária do 25 Novembro acabou por restabelecer a continuidade com a « servidão voluntária dos brandos costumes ». Variedade lusitana a qual parece hoje reduzir-se hoje o conteúdo da identidade nacional. Esta é a « questão portuguesa », hoje administrada por uma classe politica, medíocre como todas as outras de que fala Magnus E., tanto mais arrogante e prepotente quanto confiante na apatia dos vencidos de sempre.
Uma aposta que comporta, obviamente, os seus riscos. Vamos nós apostar nos riscos, único futuro possível.
Ora aqui está um excelente assunto para iniciar a minha colaboração.
O leitor a quem estas reflexões pareçam sem interesse é cordialmente convidado a fazer uso da solução tecnológica radical do « delete ». Permito-me enfim de prevenir que eu não assinei o novo acordo ortográfico luso-brasileiro e que o leitor terá de praticar o ritmo do meu frantuguês.
O que significa sentir-se perto de uma sociedade que já não é aquela em que vivemos mas que continua a fazer parte de nós próprios ? Como podemos reflectir no que se passa lá dentro, partindo do que vivemos cá fora ? O que motiva esse olhar de fora para dentro ?
Veio-me tudo isto ao pensamento, quando li uma entrevista do Hans Magnus Enzensberger (Télérama, 14 julho 2010). Na qual o conhecido autor do inesquecível Le bref été de l’anarchie, La vie et la mort de Buenaventura Durruti, e do recente muito falado romance histórico, Hammerstein ou l’intransigeance, une histoire allemande, aborda esta problemática, as dificuldades e as vantagens do olhar crítico de quem está fora.
Na Alemanha, diz o Magnus E., a culpabilidade histórica impregnou de tal forma as gerações do imediato pós-guerra que o ódio da sociedade produziu muitas vezes o ódio de si-próprio. Magnus E. dá como exemplo a vida e o trabalho do seu amigo, o grande escritor W.G. Sebald. O qual, lembrava recentemente o Luis Rainha no Vias de facto (A literatura como veneno, 18-08), se desolava da « ausência de um grande banho de culpa que lavasse » a sociedade alemã do horror do nazismo. Magnus E. explica, por seu lado, que foi « vivendo fora da Alemanha (que) evitei o ódio de mim próprio ». Finalmente, sugere ele, um ponto de ruptura nestas situações é sempre o da rejeição da servidão voluntária. Acto de liberdade que permite, como ele diz, « não estar em fase com o momento que se vive », abrir o espírito à crítica do estado dito « normal » das coisas. O acto de rejeição será assim « uma migração no tempo que ajuda a melhor viver a época ».
Esta migração, forçada ou voluntária, permitirá de melhor encarar de frente as coisas, como o diz Magnus E. ? E em que medida a rejeição da servidão voluntária, em momentos da história de uma sociedade, pode revelar-se um antídoto ao ódio contra uma sociedade e também contra si próprio ?
Foi a partir de aqui que o discurso do Magnus E. começou a interrogar o meu passado. Que partilhei com milhares, centenas de milhares de outras pessoas, que saíram deste país no fim dos anos sessenta do século passado para não participar num momento particular da violência de Estado, a guerra colonial. Sem dúvida, as barbaridades da história recente da Alemanha e as da história recente de Portugal não têm o mesmo peso universal. Mesmo se é impossível separar o colonialismo da geneologia dos genocídios modernos, como bem o mostrou, entre outros, Enzo Traverso no seu livro La violence nazie, une généalogie européenne. Contabilidade do horror posta de lado, a questão é de saber como viver com as barbaridades de uma sociedade, seja a inquisição, o colonialismo, o nazismo, o genocídio, a guerra, mundial ou colonial.
O tratamento, aconselhado pelas autoridades e funcionários competentes à normalização social, já se sabe, é o do esquecimento histórico. Deste ponto de vista, o caso português actual é de uma límpida exemplaridade, caracterizado pela ausência de debate sobre o conteúdo bárbaro da história do pequeno Estado-Nação, pela inexistência de culpabilidade e nevrose social, nacionalista ou antinacionalista. Neste país não se correra o risco de banhos de culpa, aqui só há banhos de praia ! Finalmente, durante cinco séculos não se passou nada. Como se história deste país tivesse sido só uma história. Quando ela integra plenamente o processo universal do colonialismo, a globalização do comércio de seres humanos, a escravatura. O que não é pouco ! Se a Primeira Républica e o salazarismo transformaram este processo num mito civilizador, a democracia do 25 Novembro preocupou-se de lavar o passado. Mais do que isso, ela tudo fez para esconder o passado. Esta democracia do esquecimento foi mais um sintoma da doença, e, como todo sintoma, ela continua a dissimular a doença, diria o Freud. De facto, o silêncio de pedra que se vive nestas paragens apenas traduz o estado doentio da sociedade. Que se reflecte não somente na pobreza franciscana da vida política institucional (o que não é específico ao caso português) mas também na falta de vitalidade da conflitualidade criadora da vida social. Vive-se um estado comatoso que o Secretariado nacional de turismo vende como folclore local. A lobotomizaçao histórica oferece os seus benefícios aos doentes, nos meios do poder ele permitiu a passagem de muita gente do estatuto de « contra » ao de « situacionista » nova vaga. Para o povo houve também uns pequenos brindes. As migalhas de emprego oferecidas pela nova classe dirigente das ex-colónias a alguns coitados da Lusitânia constituem hoje as ultimas rendas históricas da grande epopeia colonial. Como não pensar na formula do Antero, quando ele dizia que a única industria do país foi a Índia, resumindo assim o conteúdo de toda a história portuguesa e o seu desastre final.
Voltemos a esta estranha equação que sugere o Magnus E. falando do caso alemão : o ódio do país que leva ao ódio de si próprio ! Segundo ele, « a quantidade de heróis numa dada população é reduzida » em períodos de ditadura, a maioria dos indivíduos vivendo com hesitações e ambiguidades, adaptando-se, conformando-se, enfim, não se posicionando. Evidentemente, o conceito de herói é aqui tomado no sentido da oposição à ditadura. E, nesse sentido, a resignação ao salazarismo ilustrou perfeitamente o que acaba de ser dito. Mas o conceito é sem interesse, por demais ambíguo, reivindicado tanto por ditaduras como por democracias, pois que a atitude de herói esta associada à submissão ao medo e à ordem dominante. Os heróis são um ingrediente essencial dos sistemas totalitários et dos seus horrores, como o provou a distribuição massiva de medalhas quando da guerra colonial. Da mesma maneira, a lei da maioria silenciosamente hesitante não se alterou no Portugal democrático ou na Alemanha do após-guerra. A maioria silenciosa, o conformismo da norma, parecem ser uma base comum destes dois sistemas. Mais uma prova que alguma filiação haverá entre eles.
Por tudo isto, parece-me mais fértil retomar a ideia da rejeição da « servidão voluntária », através da qual se assume voluntariamente, afirmativamente, « não estar em fase com o momento que se vive ». Em circunstâncias diferentes das que menciona Magnus E., ela levou-me, a mim e a muitos outros, a não participar no que era então o projecto « normal » da sociedade portuguesa, a defesa do sistema colonial. Sómente a partir desta atitude negativa se pode começar a desmontar a construção da culpabilidade histórica, do nazismo ou do colonialismo, da guerra, da barbárie. É também a partir desta rejeição da servidão voluntária, que se pode ultrapassar o sentimento de ódio a uma sociedade e a lógica que equaciona o ódio de uma sociedade com o ódio de si próprio.
Volto aqui a fazer referência à minha/nossa experiência. Foi esta rejeição, a consequente necessidade de migração/exílio, que nos afastou do ódio do país e da sociedade portuguesa, consequentemente do ódio de nós próprios. O acto negativo transformou-se em dinâmica positiva. Permitindo - não necessariamente e nem para todos - passar da compreensão da nossa condição individual para compreensão de uma situação global. Que a guerra colonial constituía um momento revelador de todo o horror da chamada « História de Portugal ». O momento extremo do projecto histórico sobre o qual assentou a identidade Estado-Nação da sociedade portuguesa. Como o parece provar a crise desta ancestral identidade que se esvaziou com o desmoronar do sistema colonial. A crítica do conteúdo nacionalista desta identidade mostrou que os interesses da classe dominante eram impostos à maioria do povo como sendo o interesse de toda a sociedade. A revolta contra a guerra colonial, que se exprimiu primeiro de forma subterrânea para depois se tornar um dos dois motores do movimento social do após-25 Abril (o outro sendo a aspiração à auto-emancipação social), veio confirmar que este interesse nacional associado ao colonialismo não era partilhado por toda a sociedade. Que havia na sociedade outra identidade, antagónica, outra cultura, outros valores, associados às classes dominadas, exploradas. Embora ocultada sistematicamente pelos dominadores, esta outra identidade marcou a sua presença na história cada vez que se rompeu o consenso interclassista.
Foi assim, a partir deste processo real de antagonismos e de rupturas, que fomos, alguns, imunizados contra a identidade nacional, o ódio da sociedade e, évidentement, o ódio de si próprio. Deitados fora os lixos do patriotismo e outros acessórios fúteis, pudemos assim restabelecer um elo novo, não com uma sociedade tomada como um todo, mas com sectores dessa sociedade que preservavam, por vezes de maneira disfarçada, valores universais de emancipação social. Nunca é demais lembrar, para além das revoltas populares e messiânicas contra os dominadores que perturbaram várias vezes a rota « normal » da história oficial, a vitalidade do movimento anarco-sindicalista do princípio do século vinte (sem o qual a implantação da República não teria vingado…) e, claro está, os dois anos de agitação social após a intervenção militar do 25 de Abril contra o regime totalitário. Experiências, bem entendido, que estão hoje, e pelas mesmas razoes, fechadas no cofre da memória esquecida, lado a lado com a terrível história do colonialismo. O meu recente livrito, A Memória e o fogo, mais não pretende ser que uma modesta contribuição incitando à abertura do cofre.
No fim da sua conversa diz o Magnus E. a propósito da chamada « questão alemã ». « Todos os países têm a sua questão. Na Alemanha, nós fomos, durante o período nazi, os campeões do pior. Depois, nós tivemos a vontade de ser os campeões do bem : pacifistas, democratas, ecologistas, uma nação modelo. Finalmente, a Alemanha é hoje um país igual aos outros países europeus. (…) Com a mesma mediocridade da vida política – pela qual é difícil de se apaixonar.»
E a « questão portuguesa »? Obviamente, também este pequeno país é igual, na sua essência, a todos os outros. Com as suas diferenças específicas. Sem culpabilidade social do passado histórico não houve aqui nevrose de compensação, muito menos ainda pretensão de de passar do pior ao melhor. Sem memória crítica do passado, continua a dominar a dificuldade de afrontar o presente, impõe-se a fatalidade do pior. Assim, a submissão à ordem democrática autoritária do 25 Novembro acabou por restabelecer a continuidade com a « servidão voluntária dos brandos costumes ». Variedade lusitana a qual parece hoje reduzir-se hoje o conteúdo da identidade nacional. Esta é a « questão portuguesa », hoje administrada por uma classe politica, medíocre como todas as outras de que fala Magnus E., tanto mais arrogante e prepotente quanto confiante na apatia dos vencidos de sempre.
Uma aposta que comporta, obviamente, os seus riscos. Vamos nós apostar nos riscos, único futuro possível.
30/08/10
A Batalha do Lazer
por
Zé Neves
Antes que me denunciem, devo confessar que, apesar de apoiar todos os esforços para combater a lapidação, e apesar dos esforços que fiz e que possa fazer nesse sentido, no sábado à tarde estive a ler um livro sobre ordoliberais, em seguida dei um passeio pelo bairro e ao fim da tarde vesti-me a rigor para ir apoiar o Benfica ao Estádio da Luz. Éramos só 36 mil e podem crer que sei quem estava e quem não estava de vermelho ao peito. O que me leva a outra sugestão aos organizadores do protesto: tentarem que alguns jogadores de futebol declarem a sua oposição à lapidação e, de caminho, mobilizá-los para uma campanha contra a violência doméstica. Também não é idiota, acrescente-se, um dia ir distribuir panfletos à porta dos estádios. No caso da Guerra do Iraque, ou do Afeganistão, organizámos, na ATTAC, uma distribuição que não correu nada mal. A faixa dizia "Põe a Guerra em Fora de Jogo" e, sendo pueril, fazia algum sentido.
E pronto, é a minha última dica activista do dia. (O título é roubado à história do PCP, se não estou em erro).
E pronto, é a minha última dica activista do dia. (O título é roubado à história do PCP, se não estou em erro).
Menos boas maneiras, se quiser, Fernanda Câncio, mas um pouco mais de vergonha, por favor
por
Miguel Serras Pereira
Qual é, já agora, a ideia deste seu post, Fernanda Câncio?
Olhe, como saberá, defendi diariamente a campanha contra a lapidação um pouco por vários posts e caixas de comentários da blogosfera. Estou autorizado a continuar a ser contra a lapidação sem seguir o chefe de um governo que deporta ciganos, ou tenho de subscrever e adoptar o apelo de Sarkozy para alinhar como você acha que dever ser?
Não subscrevo — e apelo a que os interessados na democratização do Irão e na revogação da sua sharia não o façam — qualquer apelo cuja iniciativa pertença a Sarkozy, Lula da Silva (o amigo do Führer de Teerão), José Sócrates ou outros governantes. Mas subscrevo antecipadamente qualquer apelo de cidadãos exigindo aos governos da UE pressões diplomáticas que possam salvar a vida de Sakineh e contribuir para a conquista de garantias políticas e judiciais pelos cidadãos do Irão.
Você está a tentar competir com o Renato Teixeira na distorção do sentido da campanha em que participou (o que me levou, como a outros, diga-se de passagem, a defendê-la de ataques descabelados ou caluniosos)? O que é que você quer? É que esta campanha seja apropriada pelo PS? Ou nos ponha todos a reboque de alguns dos governos mais reaccionários da UE — como o francês e o da nossa região? Quer dar razão aos que dizem que a campanha contra a lapidação é inseparável da defesa dos interesses geoestratégicos das oligarquias "ocidentais"?
Será, pelos vistos, essa a sua tese e, se o é, defenda-a, proclame-a, argumente-a, mas não queira fazer dela critério ou filtro da campanha. Tenha menos boas maneiras, se quiser, mas um pouco mais de vergonha, por favor.
Olhe, como saberá, defendi diariamente a campanha contra a lapidação um pouco por vários posts e caixas de comentários da blogosfera. Estou autorizado a continuar a ser contra a lapidação sem seguir o chefe de um governo que deporta ciganos, ou tenho de subscrever e adoptar o apelo de Sarkozy para alinhar como você acha que dever ser?
Não subscrevo — e apelo a que os interessados na democratização do Irão e na revogação da sua sharia não o façam — qualquer apelo cuja iniciativa pertença a Sarkozy, Lula da Silva (o amigo do Führer de Teerão), José Sócrates ou outros governantes. Mas subscrevo antecipadamente qualquer apelo de cidadãos exigindo aos governos da UE pressões diplomáticas que possam salvar a vida de Sakineh e contribuir para a conquista de garantias políticas e judiciais pelos cidadãos do Irão.
Você está a tentar competir com o Renato Teixeira na distorção do sentido da campanha em que participou (o que me levou, como a outros, diga-se de passagem, a defendê-la de ataques descabelados ou caluniosos)? O que é que você quer? É que esta campanha seja apropriada pelo PS? Ou nos ponha todos a reboque de alguns dos governos mais reaccionários da UE — como o francês e o da nossa região? Quer dar razão aos que dizem que a campanha contra a lapidação é inseparável da defesa dos interesses geoestratégicos das oligarquias "ocidentais"?
Será, pelos vistos, essa a sua tese e, se o é, defenda-a, proclame-a, argumente-a, mas não queira fazer dela critério ou filtro da campanha. Tenha menos boas maneiras, se quiser, mas um pouco mais de vergonha, por favor.
Anos de Luta
por
Zé Neves
Sem ponta de ironia, juro, mesmo, agradeço o esforço dos organizadores do protesto de Sábado no Largo Camões. Quem nunca organizou uma manifestação ou um protesto ou uma greve ou um abaixo-assinado, dificilmente compreenderá um certo fervor messiânico que de nós se apodera nessas circunstâncias. E de como esse fervor é bom e atinge o cúmulo da alegria quando nos empurra para a frente, normalmente na fase de colagem de cartazes a anunciar a iniciativa. Mas, depois, após o dia d, e quando as coisas nem sempre correram como esperávamos, podendo até nem correr mal mas ficando, ainda assim, a sensação de que nos falta qualquer coisa que redima o entusiasmo com que estivemos a lutar contra o que consideramos injusto (e peço desculpa se isto começa a soar a Fernando Nobre), quando é assim, há sempre um risco de tornar o fervor militante em revolta acumulada. Em lugar de continuarmos na senda da revolta, canalizando a experiência para renovar e repensar os termos em que se travou a luta, constituindo-se uma tradição sempre renovada de experiências de luta, acabamos por acumular. E começamos então a zurzir nos outros e a responsabilizá-los pela sua ausência. Esta responsabilização, é claro, não só incorre num perigo de moralismo, como é discutível que venha a dar bons resultados, perdoem-me o desvio eficacionista. Nos tempos em que militei no PCP, a cada luta universitária mal parida sucedia sempre uma tentação de culpar os estudantes pela "apatia" e pelo "conformismo" e a "televisão" e o "consumo" e mais não sei o quê. Felizmente, muita experiência acumulada nos quadros do partidão fazia com que, lá de cima (e deixemos por um momento de lado o problema desta hierarquização da coisa), alguém sempre recordasse à malta cá de baixo que tudo isso são dados do jogo e ou nos viramos contra ele e damos uma ou de reformistas ou de terroristas ou, então, bebemos um capilé, comemos uma sandes de queijo, relaxamos, e aprendemos a jogar o dito jogo. Talvez, não sei, mas não também não levem a mal, faça falta aos organizadores da concentração do Largo Camões recolherem alguma das experiência de tratamento do pós-luta junto dos quadros sindicais que andam por este país. Aliás, talvez não fizessem mal se, para além de andarem a recolher depoimentos de bispos, o que é sempre louvável, é claro, procurassem obter uma declaração do secretário-geral da CGTP a condenar a lapidação. Não deve ser difícil. Mas, pronto, não quero dar conselhos a ninguém.
29/08/10
Resposta a dois comentários da Joana Lopes
por
Miguel Serras Pereira
A Joana Lopes, a propósito deste meu post La Dame Patronesse — uma Canção de Brel para f., publicou estes dois comentários:
1. Miguel, Eu gostei deste post da Fernanda e destaquei-o, já há umas horas, nas «sugestões» do Brumas. «Dame patronesse» me sinto, portanto, na tua apreciação. E registo o tom machista deste teu post, que não esperava de ti; 2. Acabo de ler este post do Rui Bebiano. Dedicas-lhe a mesma canção?
Segue-se a minha resposta:
Joana,
vamos lá ver se nos entendemos.
Em primeiro lugar, creio que os posts e comentários que tenho deixado por aí a propósito desta campanha não dão margens para dúvidas sobre a minha tomada de posição. Só me faltava que, depois das denúncias dos adeptos da "resistência islâmica" e do fascista Vidal, tivesse agora de ouvir a crítica de que apoio, sim, a campanha contra a legislação religiosa e a ditadura, mas não com a sensibilidade ou a correcção devota devida. Para mim, a solidariedade aqui não é do tipo assistencial ou "amai-vos uns aos outros", releva antes da legítima defesa e da causa própria.
Assim, lembrando-te o que escrevi aqui perante acusações descabeladas feitas à Fernanda Câncio, pergunto-te eu se achas que não tenho o direito de discordar dos termos e do tom em que ela analisa a manifestação de ontem ("muito atenta aos silêncios e às ausências", como quem prepara uma lista negra, ou diz: "Para mim, estás marcado"). Se tu tens o direito de incluir o post da FC nas "sugestões" do teu blogue — como de retirar da tua lista de "inevitáveis" o nome do Vias de Facto —, não terei eu o direito de ver as coisas de outro modo, por razões que formulo no post que citas e noutras intervenções?
A tua acusação de "machismo" raia o ininteligível e/ou o fundamentalismo, pois não vejo que outra base lhe possas dar excepto a de eu criticar uma mulher. Assim, é muito fácil, ganhas sempre: até, dada a tua condição feminina, já ganhaste esta também, uma vez que, para tanto, te bastará repetir a acusação de "machismo". Mas aqui fica o desafio: indica-me, sem "galambizar", uma palavra ou uma frase machista naquilo que escrevi no post maldito.
O post do Rui Bebiano merece o meu acordo geral, e usa, em boa medida, no estilo que é o dele, muitos argumentos semelhantes aos que eu próprio utilizei nestes últimos dias. Talvez eu não formulasse tudo da mesma maneira — na medida em que entendo que a manifestação é só um dos meios de expressão de solidariedade com Sakineh Ashtiani, havendo outros igualmente legítimos (petição da AI, etc.) que alguns têm o direito de preferir. O que não pega, como o Rui concordará, é acusar as campanhas que denunciam o regime iraniano, o seu sistema e práticas judiciais bárbaros, de serem manobras imperialistas contra o Irão, confundindo este com a oligarquia islâmica que o oprime — a exemplo, de resto, do que faz esta última e aplicando os mesmos critérios. (Mas também não pega, ainda que venha de uma mulher, aparecer na caixa de comentários de um certeiro post do Miguel Madeira a exibir a superioridade que se gosta de ostentar em matéria de competência linguística, sem dizer uma palavra sobre o fundo da questão, ou ostentar, num post de balanço da manifestação de ontem, a intimidade que se tem com a "Juju" ou outras relações mundanas…).
Espero ter respondido às tuas perguntas. Mas, se assim não foi, serás tu a ter de te explicar melhor sobre tudo isto. O que talvez te ajude a arrumar as ideias e a discutir comigo mais de igual para igual.
1. Miguel, Eu gostei deste post da Fernanda e destaquei-o, já há umas horas, nas «sugestões» do Brumas. «Dame patronesse» me sinto, portanto, na tua apreciação. E registo o tom machista deste teu post, que não esperava de ti; 2. Acabo de ler este post do Rui Bebiano. Dedicas-lhe a mesma canção?
Segue-se a minha resposta:
Joana,
vamos lá ver se nos entendemos.
Em primeiro lugar, creio que os posts e comentários que tenho deixado por aí a propósito desta campanha não dão margens para dúvidas sobre a minha tomada de posição. Só me faltava que, depois das denúncias dos adeptos da "resistência islâmica" e do fascista Vidal, tivesse agora de ouvir a crítica de que apoio, sim, a campanha contra a legislação religiosa e a ditadura, mas não com a sensibilidade ou a correcção devota devida. Para mim, a solidariedade aqui não é do tipo assistencial ou "amai-vos uns aos outros", releva antes da legítima defesa e da causa própria.
Assim, lembrando-te o que escrevi aqui perante acusações descabeladas feitas à Fernanda Câncio, pergunto-te eu se achas que não tenho o direito de discordar dos termos e do tom em que ela analisa a manifestação de ontem ("muito atenta aos silêncios e às ausências", como quem prepara uma lista negra, ou diz: "Para mim, estás marcado"). Se tu tens o direito de incluir o post da FC nas "sugestões" do teu blogue — como de retirar da tua lista de "inevitáveis" o nome do Vias de Facto —, não terei eu o direito de ver as coisas de outro modo, por razões que formulo no post que citas e noutras intervenções?
A tua acusação de "machismo" raia o ininteligível e/ou o fundamentalismo, pois não vejo que outra base lhe possas dar excepto a de eu criticar uma mulher. Assim, é muito fácil, ganhas sempre: até, dada a tua condição feminina, já ganhaste esta também, uma vez que, para tanto, te bastará repetir a acusação de "machismo". Mas aqui fica o desafio: indica-me, sem "galambizar", uma palavra ou uma frase machista naquilo que escrevi no post maldito.
O post do Rui Bebiano merece o meu acordo geral, e usa, em boa medida, no estilo que é o dele, muitos argumentos semelhantes aos que eu próprio utilizei nestes últimos dias. Talvez eu não formulasse tudo da mesma maneira — na medida em que entendo que a manifestação é só um dos meios de expressão de solidariedade com Sakineh Ashtiani, havendo outros igualmente legítimos (petição da AI, etc.) que alguns têm o direito de preferir. O que não pega, como o Rui concordará, é acusar as campanhas que denunciam o regime iraniano, o seu sistema e práticas judiciais bárbaros, de serem manobras imperialistas contra o Irão, confundindo este com a oligarquia islâmica que o oprime — a exemplo, de resto, do que faz esta última e aplicando os mesmos critérios. (Mas também não pega, ainda que venha de uma mulher, aparecer na caixa de comentários de um certeiro post do Miguel Madeira a exibir a superioridade que se gosta de ostentar em matéria de competência linguística, sem dizer uma palavra sobre o fundo da questão, ou ostentar, num post de balanço da manifestação de ontem, a intimidade que se tem com a "Juju" ou outras relações mundanas…).
Espero ter respondido às tuas perguntas. Mas, se assim não foi, serás tu a ter de te explicar melhor sobre tudo isto. O que talvez te ajude a arrumar as ideias e a discutir comigo mais de igual para igual.
A realidade segue dentro de momentos
por
Ricardo Noronha
Empenhado noutros afazeres e com pouca disponibilidade para seguir atentamente os argumentos esgrimidos de forma persistente ao longo dos últimos dias, quero apenas partilhar aqui a minha estupefacção pelo vigor imprimido a esta polémica. Eu estava, à hora a que decorreu a concentração, a comer lagostins e a beber Bordéus (juro) em casa de gente amiga, vingando-me em tão fidalgo repasto da condição proletária que me calhou em sorte. Mas se soubesse que a vida de uma mulher no Irão (ou a possibilidade de uma invasão/ataque militar àquele país) dependia apenas e exclusivamente da minha presença no Largo Camões, seguramente não teria faltado.
Simplesmente, e não consigo deixar de me espantar por ter de o relembrar, o apedrejamento não foi convocado para aquela praça nem consta que a dita senhora (ou a próxima a quem calhar semelhante destino na rifa) esteja detida nas imediações. Se assim fosse, nenhum esforço seria demasiado para a libertar (o que é um pouco diferente de exigir a sua libertação). Como assim não é, houve em tudo isto qualquer coisa de "banco alimentar contra a fome" e "dê uma moeda contra o cancro" que o meu cinismo não autoriza. Mas se o convívio de tantos e tão distintos e distintas democratas serviu para lhes tranquilizar as consciências, então estou certo de que a iniciativa cumpriu plenamente com os seus propósitos. Que estão para a fortuna de Sakineh como a caridade cristã para o estômago dos pobres. A uma distância suficientemente confortável para que nada disto tenha demasiada importância.
La Dame Patronesse — uma Canção de Brel para f.
por
Miguel Serras Pereira
Deixe-me dizer-lhe que, graças à sua activa militância, no jugular as coisas vão de mal a pior, Fernanda Câncio. É desolador — e a campanha contra a lapidação, a pena de morte como punição do adultério, a ditadura iraniana e o seu sistema judicial confessional e sanguinário, é muito mal servida por posts deste teor: quem estava e não estava em tom de maledicência de dame patronesse (ou dama de caridade) à hora do chá.
O Brel sabia bem do que falava nesta canção. Embora quando referia os "socialistas", os "vermelhos" (les rouges), não pensasse propriamente nos de plástico - variante à lusa moda da "terceira via", que tem vindo a prevalecer no jugular.
Uma ou duas perguntas a Ana Vidigal
por
Miguel Serras Pereira
Prezada Ana Vidigal,
uma vez que tem fechada a caixa de comentários deste seu post, não leve a mal que lhe ponha aqui a questão seguinte - e logo se verá, depois, se é, ou não, possível alguma discussão de jeito.
Não lhe parece que o balanço em vista de novas acções de uma campanha contra uma legalidade assassina como a que oprime o povo iraniano exige coisa menos melodramática do que a pia indignação policial virtuosa de um título ou post assim (é ao texto que me refiro: Onde estavas tu às 18 horas de 28 de Agosto de 2010?, e não às imagens — que, sem desprimor, não aquecem nem arrefecem)?
Ou, por outras palavras, e mais cruamente: será só devido a incapacidade minha de ler mais longe ou melhor que neste seu post surpreendo uma entoação de catequista do tempo da "outra senhora" — reciclada embora a terminologia segundo o politicamente correcto do momento —, intimando os pecadores ao exame de consciência e ao acto de contrição, e recorrendo para isso a uma apóstrofe evocativa da voz superegóica de Iavé a sair das nuvens do céu de Lisboa, como num super-moralizador, e não menos super, efeito de sonoplastia pimba, para ditar ao rebanho a compungida devoção conveniente?
Questões de forma, dirá você. Mas tem a certeza de que não tocam o fundo?
Seu leitor insatisfeito e atento
msp
uma vez que tem fechada a caixa de comentários deste seu post, não leve a mal que lhe ponha aqui a questão seguinte - e logo se verá, depois, se é, ou não, possível alguma discussão de jeito.
Não lhe parece que o balanço em vista de novas acções de uma campanha contra uma legalidade assassina como a que oprime o povo iraniano exige coisa menos melodramática do que a pia indignação policial virtuosa de um título ou post assim (é ao texto que me refiro: Onde estavas tu às 18 horas de 28 de Agosto de 2010?, e não às imagens — que, sem desprimor, não aquecem nem arrefecem)?
Ou, por outras palavras, e mais cruamente: será só devido a incapacidade minha de ler mais longe ou melhor que neste seu post surpreendo uma entoação de catequista do tempo da "outra senhora" — reciclada embora a terminologia segundo o politicamente correcto do momento —, intimando os pecadores ao exame de consciência e ao acto de contrição, e recorrendo para isso a uma apóstrofe evocativa da voz superegóica de Iavé a sair das nuvens do céu de Lisboa, como num super-moralizador, e não menos super, efeito de sonoplastia pimba, para ditar ao rebanho a compungida devoção conveniente?
Questões de forma, dirá você. Mas tem a certeza de que não tocam o fundo?
Seu leitor insatisfeito e atento
msp
Pronto, confesso: eu paguei a falsa manif.
por
Luis Rainha
Uma dezena de cartazes fotocopiados, dois figurantes, 38 e-mails. Saiu-me tudo a 11,76€. Sou o rei do astroturfing. Agora, só espero que os tipos da Mossad não se queixem da factura que lhes vou apresentar. Se reclamarem muito, posso sempre pedir a esta malta que pague a conta.
Sobre a história recente do Irão
por
Miguel Serras Pereira
O conhecido órgão da CIA/Mossad que dá pelo nome de Passa Palavra — e que conta entre os seus colaboradores da região portuguesa espiões e ideólogos a soldo do capitalismo global tão notórios como, por exemplo, João Bernardo, Jorge Valadas ou Ricardo Noronha (este último também uma daz vozes desta Rádio Miami) — inicia hoje a publicação de uma série de quatro interessantes artigos sobre a história social e política do Irão das últimas décadas, assinados por Paul Hampton e originalmente publicados em livro pela Alliance for Workers’ Liberty.
Eis a apresentação da série pelo Passa Palavra: A revolução iraniana de 1978-79 foi um dos acontecimentos mais importantes do séc. XX, rico de ensinamentos para os trabalhadores socialistas. É uma história de luta de classes, de emancipação das mulheres e de despertar de minorias nacionais. Os trabalhadores iranianos foram a força decisiva que esteve por trás do derrube do odiado regime de Mohammed Reza Shah. Todavia este movimento foi esmagado pela teocracia que tomou o lugar da monarquia. O Estado islâmico dirigido pelos sacerdotes foi uma catástrofe para os trabalhadores, para as mulheres e para os oprimidos em geral. Os acontecimentos tiveram enormes repercussões em toda a política do Médio-Oriente e do mundo.
Eis a apresentação da série pelo Passa Palavra: A revolução iraniana de 1978-79 foi um dos acontecimentos mais importantes do séc. XX, rico de ensinamentos para os trabalhadores socialistas. É uma história de luta de classes, de emancipação das mulheres e de despertar de minorias nacionais. Os trabalhadores iranianos foram a força decisiva que esteve por trás do derrube do odiado regime de Mohammed Reza Shah. Todavia este movimento foi esmagado pela teocracia que tomou o lugar da monarquia. O Estado islâmico dirigido pelos sacerdotes foi uma catástrofe para os trabalhadores, para as mulheres e para os oprimidos em geral. Os acontecimentos tiveram enormes repercussões em toda a política do Médio-Oriente e do mundo.
Assim é que não, Renato Teixeira
por
Miguel Serras Pereira
Como ontem passei aqui alguns minutos a reflectir em voz alta sobre o que considerei uma atitude pedante e maternalista da Fernanda Câncio, penso ser necessário separar as águas e dizer que não, como dizia o Cesariny, "nunca fui adepto das comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais delicadas da matéria", e que não, não vale tudo contra a pessoa da Fernanda Câncio ou seja de quem for, quando se discorda dela (ainda por cima por péssimas razões). Por isso transcrevo aqui o comentário que acabo de enviar para a caixa dos mesmos do seguinte post do Renato Teixeira, marcadamente regressivo de qualquer ponto de vista conceptual, ético e político:
Sem mais - até mais ver.
Renato,
pode-se discordar da Fernanda Câncio em muita coisa: é social-democrata tendência Terceira Via, cai no sentimentalismo como numa vala, tem tiques de catequista, auto-sabota o seu notável sentido da prosa com cedências à retórica de magazine, engana-se apostando na multiplicação das migalhas dos direitos identitários fracturantes contra a cidadania republicana que pretende defender, tem um salão mundano mortalmente enfadonho, brinca aos jantarinhos no/na Jugular – enfim, o que quiser. Mas nada disso a impede de ter razão neste caso, como nada disso impede que seja inadmissível insinuar que ela é paga ou que a manifestação que apoiou contra a lapidação como punição do adultério seja uma iniciativa paga e lucrativa. Assim, não é possível discutir seja o que for. Tome atenção, Renato: você deve lembrar-se da revolta que causou aos seus camaradas mais velhos serem acusados por certa gente, não de defenderem posições erradas (ou seja, no caso, as de Trotsky), mas de serem agentes da CIA ou, numa fase anterior, da Gestapo, e financiados pela administração norte-americana ou, anteriormente, pela Alemanha nazi. O que você está a fazer, sem se dar conta disso, é a utilizar contra a Fernanda Câncio, a mesma lógica cínica dos que acusavam os “nazis-trotskistas”, não de terem ideias diferentes sobre a “construção do socialismo”, mas de banditismo político e terrorismo contra-revolucionário.
Acha mesmo que a Fernanda Câncio foi paga pelos serviços secretos sionistas? E, já agora, foi caso isolado? Ou a fotografia que ilustra o post do Nuno Ramos de Almeida intitulado “Indesculpável” foi também fornecida pelos americanos da CIA, tal como, sempre segundo a mesma lógica, alguém deve ter financiado o computador em que o Zé Neves escreveu o que você leu ontem no Vias? Isto, para não falar de mim, que, desde que traduzi as blasfémias anti-maometanas do Rushdie, tenho sido pago pelos serviços secretos ocidentais através de editoras-fantasma e só em divisas.
Ora, Renato, se estávamos a tentar falar e discutir politicamente um tema importante, como julguei que você achava que valia a pena e era possível, para quê uma inversão de marcha tão acelerada, manobra sempre de alto risco para o condutor, sem que nada na estrada por onde íamos o tenha justificado?
pode-se discordar da Fernanda Câncio em muita coisa: é social-democrata tendência Terceira Via, cai no sentimentalismo como numa vala, tem tiques de catequista, auto-sabota o seu notável sentido da prosa com cedências à retórica de magazine, engana-se apostando na multiplicação das migalhas dos direitos identitários fracturantes contra a cidadania republicana que pretende defender, tem um salão mundano mortalmente enfadonho, brinca aos jantarinhos no/na Jugular – enfim, o que quiser. Mas nada disso a impede de ter razão neste caso, como nada disso impede que seja inadmissível insinuar que ela é paga ou que a manifestação que apoiou contra a lapidação como punição do adultério seja uma iniciativa paga e lucrativa. Assim, não é possível discutir seja o que for. Tome atenção, Renato: você deve lembrar-se da revolta que causou aos seus camaradas mais velhos serem acusados por certa gente, não de defenderem posições erradas (ou seja, no caso, as de Trotsky), mas de serem agentes da CIA ou, numa fase anterior, da Gestapo, e financiados pela administração norte-americana ou, anteriormente, pela Alemanha nazi. O que você está a fazer, sem se dar conta disso, é a utilizar contra a Fernanda Câncio, a mesma lógica cínica dos que acusavam os “nazis-trotskistas”, não de terem ideias diferentes sobre a “construção do socialismo”, mas de banditismo político e terrorismo contra-revolucionário.
Acha mesmo que a Fernanda Câncio foi paga pelos serviços secretos sionistas? E, já agora, foi caso isolado? Ou a fotografia que ilustra o post do Nuno Ramos de Almeida intitulado “Indesculpável” foi também fornecida pelos americanos da CIA, tal como, sempre segundo a mesma lógica, alguém deve ter financiado o computador em que o Zé Neves escreveu o que você leu ontem no Vias? Isto, para não falar de mim, que, desde que traduzi as blasfémias anti-maometanas do Rushdie, tenho sido pago pelos serviços secretos ocidentais através de editoras-fantasma e só em divisas.
Ora, Renato, se estávamos a tentar falar e discutir politicamente um tema importante, como julguei que você achava que valia a pena e era possível, para quê uma inversão de marcha tão acelerada, manobra sempre de alto risco para o condutor, sem que nada na estrada por onde íamos o tenha justificado?
msp
Sem mais - até mais ver.
As virtudes da auto-suficiência - clarificação
por
Miguel Madeira
Neste post, talvez não tenha ficado muito claro o que eu queria dizer com "estes meus argumentos a favor da auto-suficiência não me parecem escaláveis do nível individual para o nível de um país"; é que isto é capaz de poder ser interpretado de duas maneiras:
A - "haver vantagens em um individuo ser auto-suficiente não quer dizer que haja vantagens em todos os indivíduos de um país serem auto-suficientes"
B - " haver vantagens em um individuo ser auto-suficiente não quer dizer que haja vantagens em um país ser auto-suficiente"
É verdade que um pais de indivíduos auto-suficientes é um país auto-suficiente, mas a inversa não é verdadeira; e se pensarmos em termos relativos e não absolutos, a diferença ainda é mais clara - podemos ter um país em que cada habitante é largamente auto-suficiente, mas as (poucas) trocas comerciais que tem até são com o estrangeiro (p.ex., pode ter importado a cana de pesca e o machado com que cortou as árvores com que construiu a casa); e podemos ter um pais auto-suficiente, mas em que cada individuo praticamente não produza nada para consumo próprio.
De qualquer maneira, o que eu queria dizer era a "opção B" (sobretudo, lendo esta resposta do Rui Botelho Rodrigues, fiquei na dúvida se ele teria percebido exactamente o que eu quis dizer).
A - "haver vantagens em um individuo ser auto-suficiente não quer dizer que haja vantagens em todos os indivíduos de um país serem auto-suficientes"
B - " haver vantagens em um individuo ser auto-suficiente não quer dizer que haja vantagens em um país ser auto-suficiente"
É verdade que um pais de indivíduos auto-suficientes é um país auto-suficiente, mas a inversa não é verdadeira; e se pensarmos em termos relativos e não absolutos, a diferença ainda é mais clara - podemos ter um país em que cada habitante é largamente auto-suficiente, mas as (poucas) trocas comerciais que tem até são com o estrangeiro (p.ex., pode ter importado a cana de pesca e o machado com que cortou as árvores com que construiu a casa); e podemos ter um pais auto-suficiente, mas em que cada individuo praticamente não produza nada para consumo próprio.
De qualquer maneira, o que eu queria dizer era a "opção B" (sobretudo, lendo esta resposta do Rui Botelho Rodrigues, fiquei na dúvida se ele teria percebido exactamente o que eu quis dizer).
28/08/10
Malhas que o império tece
por
Luis Rainha
Quem ouve pela primeira vez um noticiário radiofónico em Luanda sobressalta-se mal chega a secção desportiva. Resultados da primeira liga portuguesa são transmitidos com tanta naturalidade e tão escassos prolegómenos que nos dão a ilusão do regresso inopinado. Agora, o divertido reverso da medalha: bebidas angolanas anunciadas na Luz como se afinal as distâncias se apagassem mesmo no brilho catódico da globalização dos espectáculos e dos mercados.
Um Censor (Auto)Censurado?
por
Miguel Serras Pereira
Estava eu a ponderar se valeria a pena ou não ocupar-me da leitura por escrita própria de mais um post de Carlos Vidal prometedoramente intitulado Sobre a criação de um Índex de comentadores (e uma curiosidade que tal pode legitimar) quando este desapareceu do 5dias. Se clicarem aqui, poderão ver ainda o título do post, mas pouco mais: a data, a hora e as palavras que enquadram o título:
O post em causa documentava bem a deriva fascista do seu autor, bem como as afinidades electivas entre o registo político totalitário e o registo psíquico paranóico e megalomaníaco. Mas nada trazia de novo, quando muito explicitava a fúria censória e o ódio à democracia habituais no ideólogo. Apesar de tudo, sendo pouco usual o desaparecimento de um post sem mais nem porquê, dificilmente cada um de nós se deixará de interrogar sobre o sucedido. Acidente informático, puro e simples? Intervenção do sionismo global, disfarçada de acidente informático? Ou, hipótese mais verosímil: acto de auto-censura do censor Vidal, querendo demonstrar que o seu inegociável ódio à liberdade de expressão não recua perante as suas próprias produções geniais? Se foi esse o caso, talvez haja para aí quem se disponha a fazer notar ao pobre fascista de combate que o excesso de zelo comprometeu o efeito pretendido e que teria sido preferível adoptar o bom velho método — que nada tem de comunista, ao contrário do que muitos ainda julgam - da auto-incriminação dos processos de Moscovo na segunda metade dos anos 30 a recorrer a uma censura que, só porque não ousa dizer o seu nome e sacrifica a preconceitos democráticos residuais, faz desaparecer as provas e, com elas, o excelso exemplo do seu próprio exercício.
cinco dias » Sobre a criação de um Índex de comentadores (e uma ...
28 ago. 2010 ... Sobre a criação de um Índex de comentadores (e uma curiosidade que tal pode legitimar). 28 de Agosto de 2010 por Carlos Vidal ...
5dias.net/.../sobre-a-criacao-de-um-index-de-comentadores-e-uma- curiosidade-que-tal-pode-legitimar/
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O post em causa documentava bem a deriva fascista do seu autor, bem como as afinidades electivas entre o registo político totalitário e o registo psíquico paranóico e megalomaníaco. Mas nada trazia de novo, quando muito explicitava a fúria censória e o ódio à democracia habituais no ideólogo. Apesar de tudo, sendo pouco usual o desaparecimento de um post sem mais nem porquê, dificilmente cada um de nós se deixará de interrogar sobre o sucedido. Acidente informático, puro e simples? Intervenção do sionismo global, disfarçada de acidente informático? Ou, hipótese mais verosímil: acto de auto-censura do censor Vidal, querendo demonstrar que o seu inegociável ódio à liberdade de expressão não recua perante as suas próprias produções geniais? Se foi esse o caso, talvez haja para aí quem se disponha a fazer notar ao pobre fascista de combate que o excesso de zelo comprometeu o efeito pretendido e que teria sido preferível adoptar o bom velho método — que nada tem de comunista, ao contrário do que muitos ainda julgam - da auto-incriminação dos processos de Moscovo na segunda metade dos anos 30 a recorrer a uma censura que, só porque não ousa dizer o seu nome e sacrifica a preconceitos democráticos residuais, faz desaparecer as provas e, com elas, o excelso exemplo do seu próprio exercício.
Uma Campanha contra a França?
por
Miguel Serras Pereira
E os ciganos, camaradas, sim, são oprimidos e gostaríamos de ver derrubada a opressão que pesa sobre eles, como internacionalistas que somos - é claro que sim, mas, atenção, não troquemos uma luta justa por uma campanha contra a França, não temos o direito de interferir nos seus assuntos internos ou de violar a sua independência nacional, e sobretudo, camaradas, não aceitemos que esse bastião do capitalismo global que é a UE exerça pressões contra a França ou ponha em causa o direito do seu governo a dizer quem pode e não pode — e segundo que critérios, independentes do cosmpolitismo pró-sionista de Bruxelas — residir no país.
Um anti-imperalismo sem danos colaterais
por
Zé Neves
Esta resposta do Renato Teixeira à Fernanda Câncio e à Inês Medeiros, em que pelo meio me acusa de ser uma pessoa respeitável, incorre neste vício: o Renato reduz os argumentos de quem critica a argumentos de índole emocional e responde-lhes em nome da racionalidade. Diz que não é por a situação ser penosa (o Renato não gosta de ver mulheres serem lapidadas) que agirá assim ou assado, que ele, Renato, não se deixa enganar por emocionalismos e coisas do género. Mas o que este argumento do Renato quer dizer, simplesmente, é que o Renato entende que a sua razão, fundada no seu superior conhecimento das leis geopolíticas que governam a história, é infalível, e que a razão da Inês de Medeiros e da Fernanda Câncio é equívoca. O Renato deveria perguntar a si próprio, talvez, porque precisa ele deste subterfúgio argumentativo, que passa por desqualificar a racionalidade de quem critica, e a resposta talvez esteja na dificuldade que ele Renato terá em assumir que o seu argumento não é simplesmente racional, mas é feito daquela racionalidade que ele próprio abominaria por princípio, racionalidade instrumental de acordo com a qual se diz: a senhora será lapidada, sim senhor e é uma pena, mas a lapidada é um dano colateral no quadro da luta contra o imperialismo.
A mim, por isso, cumpre-me apenas recapitular os termos do problema que se coloca à malta que não quer ver as mulheres iranianas serem lapidadas e que não quer ver Teerão ser bombardeada, partindo do pressuposto que todos os intervenientes neste post estão neste barco. E os termos do problema são estes: todos devemos saber que as campanhas humanitárias fazem parte da geopolítica internacional e ninguém deve ser ingénuo em relação às dinâmicas das mesmas, de tal modo que não é possível refugiarmo-nos no simples campo dos princípios quando discutimos estas coisas, até porque injustiças é o que não falta por aí e convém a turba não abandonar a sua agenda de protesto à aleatoriedade das coisas, aleatoriedade que nunca é aleatória, por certo; mas se parece sensato que o Renato pretenda alertar o povo ignaro para os malefícios da ingenuidade e do tontismo humanitarista, conviria, porém, altertar o Renato para um risco que não é menor: o da redução da história a um mecanicismo determinista, que tem mais de policial do que de político, do género "se és contra o governo de um país então és a favor do governo do país estrangeiro".
Os posts do Renato sobre este assunto mostram, na verdade, como o nacionalismo anti-imperialista (que tem no anti-americanismo uma das suas expressões mais acabadas) continua a ser um dos principais problemas de uma esquerda revolucionária. Sabemos que existe no PS e no PSD um certo fascínio pela modernização económica e pelo ocidentalismo reinantes e que esse fascínio continua a fazer dos EUA o seu referencial, mas, à esquerda do PS, por vezes, temos mais ou menos a mesma coisa só que ao contrário. O que dá em anti-americanismo e não digo primário porque me parece redundante. Os males do anti-americanismo são vários e penalizam sobretudo a hipótese de uma política internacionalista comunista, hipótese que, creio, seduz o Renato, o que, diga-se, faz com que eu e ele tenhamos à partida alguma coisa em comum. Mas vamos lá aos malefícios do anti-americanismo, que é o que aqui me interessa. Em primeiro lugar, com o anti-americanismo não perguntamos o que significa o facto da lógica anti-americanista ser simplesmente oposta – e por isso formalmente idêntica – à lógica americanista. Em segundo lugar, e passando do abstracto ao concreto, com o anti-americanismo tendemos a não compreender as ocultações que dele resultam; não reparamos que ao dizer “o” Irão e “os” iranianos deixamos de poder dizer algo relativo à conflituosidade social no Irão, secundarizando o conflito entre islâmicos e ateus, entre fundamentalistas islâmicos e islâmicos, entre homens e mulheres, entre proletários e burgueses, etc. Em terceiro lugar, e por consequência do antes exposto, com o anti-americanismo não vemos as dinâmica a-nacionais, anti-nacionais, transnacionais e pós-nacionais (como queiram) que fazem muitos desses conflitos. Em quarto e último lugar, com o anti-americanismo não vemos que a oposição Irão/EUA igualmente coloca na sombra a conflituosidade social nos EUA. Quando se diz “os” americanos ou "o" Irão, não se está longe de fazer o mesmo que os primeiros-ministros entusiastas, como Sócrates, e os cronistas decadentistas, como Pulido Valente, que dizem “os” portugueses isto e aquilo. Entre a ciência marxista-leninista e as espertezas da psicologia étnica, por vezes, a distância reduz-se de modo assustador.
A mim, por isso, cumpre-me apenas recapitular os termos do problema que se coloca à malta que não quer ver as mulheres iranianas serem lapidadas e que não quer ver Teerão ser bombardeada, partindo do pressuposto que todos os intervenientes neste post estão neste barco. E os termos do problema são estes: todos devemos saber que as campanhas humanitárias fazem parte da geopolítica internacional e ninguém deve ser ingénuo em relação às dinâmicas das mesmas, de tal modo que não é possível refugiarmo-nos no simples campo dos princípios quando discutimos estas coisas, até porque injustiças é o que não falta por aí e convém a turba não abandonar a sua agenda de protesto à aleatoriedade das coisas, aleatoriedade que nunca é aleatória, por certo; mas se parece sensato que o Renato pretenda alertar o povo ignaro para os malefícios da ingenuidade e do tontismo humanitarista, conviria, porém, altertar o Renato para um risco que não é menor: o da redução da história a um mecanicismo determinista, que tem mais de policial do que de político, do género "se és contra o governo de um país então és a favor do governo do país estrangeiro".
Os posts do Renato sobre este assunto mostram, na verdade, como o nacionalismo anti-imperialista (que tem no anti-americanismo uma das suas expressões mais acabadas) continua a ser um dos principais problemas de uma esquerda revolucionária. Sabemos que existe no PS e no PSD um certo fascínio pela modernização económica e pelo ocidentalismo reinantes e que esse fascínio continua a fazer dos EUA o seu referencial, mas, à esquerda do PS, por vezes, temos mais ou menos a mesma coisa só que ao contrário. O que dá em anti-americanismo e não digo primário porque me parece redundante. Os males do anti-americanismo são vários e penalizam sobretudo a hipótese de uma política internacionalista comunista, hipótese que, creio, seduz o Renato, o que, diga-se, faz com que eu e ele tenhamos à partida alguma coisa em comum. Mas vamos lá aos malefícios do anti-americanismo, que é o que aqui me interessa. Em primeiro lugar, com o anti-americanismo não perguntamos o que significa o facto da lógica anti-americanista ser simplesmente oposta – e por isso formalmente idêntica – à lógica americanista. Em segundo lugar, e passando do abstracto ao concreto, com o anti-americanismo tendemos a não compreender as ocultações que dele resultam; não reparamos que ao dizer “o” Irão e “os” iranianos deixamos de poder dizer algo relativo à conflituosidade social no Irão, secundarizando o conflito entre islâmicos e ateus, entre fundamentalistas islâmicos e islâmicos, entre homens e mulheres, entre proletários e burgueses, etc. Em terceiro lugar, e por consequência do antes exposto, com o anti-americanismo não vemos as dinâmica a-nacionais, anti-nacionais, transnacionais e pós-nacionais (como queiram) que fazem muitos desses conflitos. Em quarto e último lugar, com o anti-americanismo não vemos que a oposição Irão/EUA igualmente coloca na sombra a conflituosidade social nos EUA. Quando se diz “os” americanos ou "o" Irão, não se está longe de fazer o mesmo que os primeiros-ministros entusiastas, como Sócrates, e os cronistas decadentistas, como Pulido Valente, que dizem “os” portugueses isto e aquilo. Entre a ciência marxista-leninista e as espertezas da psicologia étnica, por vezes, a distância reduz-se de modo assustador.
Re: Pornografias
por
Miguel Madeira
João Pereira Coutinho escreve:
[Via 31 da Armada]
Em primeiro lugar, já houve, noutros países, vários casos de condenados à lapidação que foram salvos devido provavelmente aos protestos internacionais.
E, em segundo (e deixando de lado a tautologia "esses regimes só caem por intervenção externa a menos que sejam derrubados por dentro"), como é que as intervenções externas resolvem essas situações? No Afeganistão, a sharia continua em vigor; no Iraque, a intervenção externa derrubou um regime secular abrindo caminho às milícias xiitas e sunitas (para não falar das seitas não-muçulmanas, que não são propriamente secções locais da Amnistia Internacional).
Eis o programa para a tarde de hoje, em Lisboa: umas dezenas de ‘humanistas’ vão protestar contra a lapidação de uma mulher no Irão. Para que servem estes cortejos? Para travar a barbárie? Duvidoso. Estas selvajarias, recorrentes no Islão ‘pacífico’, só se travam pelo fim dos regimes teocráticos que reinam por lá. E a menos que haja um milagre interno (uma vitória da oposição; um movimento ‘iluminista’ dentro do Islão; o repúdio expresso da herança Khomeini; e etc.), o fim destes regimes consegue-se por intervenção externa. Estarão os manifestantes desta tarde interessados em repetir as aventuras do cowboy Bush?
[Via 31 da Armada]
Em primeiro lugar, já houve, noutros países, vários casos de condenados à lapidação que foram salvos devido provavelmente aos protestos internacionais.
E, em segundo (e deixando de lado a tautologia "esses regimes só caem por intervenção externa a menos que sejam derrubados por dentro"), como é que as intervenções externas resolvem essas situações? No Afeganistão, a sharia continua em vigor; no Iraque, a intervenção externa derrubou um regime secular abrindo caminho às milícias xiitas e sunitas (para não falar das seitas não-muçulmanas, que não são propriamente secções locais da Amnistia Internacional).
Fazer graçolas a propósito de execuções não tem graça
por
Luis Rainha
O Jay Leno e o Sérgio Lavos já deram por isso. Graça continua a ter a leitura da sandice em estado quase puro: há quem não tenha percebido o que leva alguns a gritar "anti-americanos" a todos os que protestam por Mumia e outros a urrar "anti-semitas!" a quem se atreve a criticar mais um crime de Israel. O mecanismo é o mesmo: se protestam contra um acto dos nossos amigos, só podem albergar sinistros ódios e ominosas motivações ulteriores. Claro.
Tenho alguma pena é de não ter acesso ao texto que Inês Medeiros escreveu para o Público; é capaz de ser mais um belo exemplo de humor involuntário; se alguém o puder enviar para estas paragens, agradeço.
PS: decepção profunda. Afinal, o textinho de IM é só uma chocha redacção escolar, insistindo em banalidades ou em imprecisões, como a questão da condenação apenas por adultério ou a ausência no Corão de tal pena (ela é sim contemplada numa hadith de Umar ibn al-Khattab).
Tenho alguma pena é de não ter acesso ao texto que Inês Medeiros escreveu para o Público; é capaz de ser mais um belo exemplo de humor involuntário; se alguém o puder enviar para estas paragens, agradeço.
PS: decepção profunda. Afinal, o textinho de IM é só uma chocha redacção escolar, insistindo em banalidades ou em imprecisões, como a questão da condenação apenas por adultério ou a ausência no Corão de tal pena (ela é sim contemplada numa hadith de Umar ibn al-Khattab).
Um caldeirão de Freud
por
Miguel Serras Pereira
Alguns utilitaristas desenvoltos têm povoado a blogosfera de intervenções que opõem a sorte de Sakineh Ashtiani à do Irão, dizendo que não podemos reivindicar a sua vida e liberdade nem a abolição do direito islâmico em vigor no país, o qual é uma das peças fundamentais da ditadura, se isso for um gesto contra o Irão. Os mesmos que exigem - e bem — sanções internacionais contra o regime israelita insurgem-se singularmente contra a ideia de manifestações e campanhas que, em seu entender, correspondam a pressões internacionais pondo em causa a soberania do Irão e os seus direitos à independência nacional (ainda que a soberania da nação se exerça, em primeiro lugar, como é o caso, à custa dos direitos e garantias do povo iraniano).
Mas, jogando por um momento o seu jogo — aceitando provisoriamente os termos em que põem a questão -, vemos que as dúvidas se multiplicam, abrindo campo às seguintes interrogações ou outras semelhantes:
1. O que é ser contra o Irão?
2. Defender a abolição da lei islâmica em todos os países que a adoptam e combater o islamismo político em todos os países que o praticam é ser contra o Irão?
3. Querer ver derrubada a ditadura iraniana é ser contra o Irão?
4. Querer, para todos e cada um dos cidadãos iranianos, a liberdade e a igualdade que queremos para nós é ser contra o Irão?
Enfim, não preciso de me alongar mais para dizer que parece evidente que, sem se definir bem o que é (e porquê) defender ou atacar o Irão, não será possível qualquer discussão séria do problema.
Por fim, é preciso acrescentar que certos comentadores hostis às interferências na política interna dos outros países (ou de alguns outros países) usam a lógica do "caldeirão de Freud" (este, para ilustrar certos registos de funcionamento psíquico, serve-se da história de alguém que protesta junto de um amigo ao qual emprestara um caldeirão que esse amigo lhe teria devolvido furado, obtendo por resposta os três desmentidos seguintes: 1. Nunca me emprestaste um caldeirão; 2. Já to devolvi intacto; 3. O caldeirão já estava furado quando mo emprestaste). Ou seja, no fundo, a sua argumentação equivale a dizer:
1. Nunca houve lapidações no Irão de 1979 em diante, ao contrário do que pretendem a CIA e seus sequazes;
2. As lapidações no Irão acabaram em 2002, apesar de a CIA ocultar esse facto;
3. As lapidações no Irão e o termo da moratória de 2002 foram promovidos por agentes da CIA infiltrados no aparelho judicial iraniano, responsáveis também tanto pela comutação, através do recurso ao enforcamento, de numerosas sentenças de lapidação punindo crimes de adultério, como pela manutenção e incremento das sentenças de morte e execuções capitais punindo diversos tipos de infracções (em matéria de costumes, como a homossexualidade, ou de natureza política, entre outros casos).
Mas, jogando por um momento o seu jogo — aceitando provisoriamente os termos em que põem a questão -, vemos que as dúvidas se multiplicam, abrindo campo às seguintes interrogações ou outras semelhantes:
1. O que é ser contra o Irão?
2. Defender a abolição da lei islâmica em todos os países que a adoptam e combater o islamismo político em todos os países que o praticam é ser contra o Irão?
3. Querer ver derrubada a ditadura iraniana é ser contra o Irão?
4. Querer, para todos e cada um dos cidadãos iranianos, a liberdade e a igualdade que queremos para nós é ser contra o Irão?
Enfim, não preciso de me alongar mais para dizer que parece evidente que, sem se definir bem o que é (e porquê) defender ou atacar o Irão, não será possível qualquer discussão séria do problema.
Por fim, é preciso acrescentar que certos comentadores hostis às interferências na política interna dos outros países (ou de alguns outros países) usam a lógica do "caldeirão de Freud" (este, para ilustrar certos registos de funcionamento psíquico, serve-se da história de alguém que protesta junto de um amigo ao qual emprestara um caldeirão que esse amigo lhe teria devolvido furado, obtendo por resposta os três desmentidos seguintes: 1. Nunca me emprestaste um caldeirão; 2. Já to devolvi intacto; 3. O caldeirão já estava furado quando mo emprestaste). Ou seja, no fundo, a sua argumentação equivale a dizer:
1. Nunca houve lapidações no Irão de 1979 em diante, ao contrário do que pretendem a CIA e seus sequazes;
2. As lapidações no Irão acabaram em 2002, apesar de a CIA ocultar esse facto;
3. As lapidações no Irão e o termo da moratória de 2002 foram promovidos por agentes da CIA infiltrados no aparelho judicial iraniano, responsáveis também tanto pela comutação, através do recurso ao enforcamento, de numerosas sentenças de lapidação punindo crimes de adultério, como pela manutenção e incremento das sentenças de morte e execuções capitais punindo diversos tipos de infracções (em matéria de costumes, como a homossexualidade, ou de natureza política, entre outros casos).
Eleição ou Tiragem à sorte? A propósito das próximas eleições presidenciais
por
Miguel Serras Pereira
A democracia, em sentido próprio, é o governo dos cidadãos e não a eleição dos governantes. Esta última pode, sem dúvida, limitar o poder dos aparelhos de governo de uma sociedade oligárquica e reduzir a "liberdade do Estado", sempre, como dizia o outro, "inversamente proporcional" à dos cidadãos. Mas não equivale nem à igualdade nem à liberdade democráticas.
Dito isto, o autogoverno democrático dos cidadãos poderá ter delegados cujo mandato seja por definição revogável, mas não representantes permanentes, legitimados ou não por via eleitoral, que reproduzam a divisão do trabalho político — do qual a direcção da economia é parte essencial — entre governantes e governados.
Como, em 1995, dizia Castoriadis (cf. Diálogo Seguido de Post-Scriptum Sobre a Insignificância, Lisboa, Fim de Século, 2004): a democracia dita representativa não é uma verdadeira democracia. Os seus representantes representam muito pouco aqueles que os elegem. Em primeiro lugar, representam-se a si próprios ou representam interesses particulares, lobbies, etc. E, ainda que não fosse este o caso, dizer que alguém me vai representar durante cinco anos de modo irrevogável equivale a dizer que me despojo da minha soberania enquanto povo. Rousseau já o dissera: os ingleses julgam que são livres porque elegem representantes de cinco em cinco anos: são-no no dia das eleições. E nem mesmo isso é verdade: a eleição está viciada, não por "chapeladas" nas urnas, mas porque as opções foram de antemão definidas. Ninguém perguntou ao povo sobre o que ele quer votar. O que se diz é: "Votem a favor ou contra Maastricht", por exemplo. Mas quem fez Maastricht? Não fomos nós. À pergunta: "Quem é cidadão?", Aristóteles dava uma resposta maravilhosa: "É cidadão aquele que é capaz de governar e ser governado". Não há quarenta milhões de cidadãos em França, neste momento? Porque não seriam capazes de se governar? Porque toda a vida política visa precisamente desensinar-lhes o que é governar. Visa convencê-los de que há especialistas aos quais os seus assuntos devem ser confiados. Quer dizer, que existe, portanto, uma contra-educação política. Em vez de se habituarem a exercer toda a espécie de responsabilidades e a tomar iniciativas, as pessoas habituam-se a seguir opções que outros lhes apresentam ou a votar por elas (…) numa espécie de apatia política.
Na mesma ordem de ideias, uma república democrática exclui a existência de qualquer coisa como um "chefe de Estado". Pode, para certos efeitos — fundamentalmente simbólicos e estritamente limitados —, designar um "Presidente da República". Mas não há qualquer razão para que este seja eleito, de preferência a tirado à sorte. A eleição de chefes e dirigentes é, por um lado, um princípio mais oligárquico do que democrático, e o facto de adoptar a votação como procedimento, não deveria levar-nos a confundi-la com a votação como modo de tomada de decisões ou adopção de medidas políticas. Em suma, uma intervenção democraticamente alternativa nas eleições presidenciais que aí vêm deveria preocupar-se menos com assegurar a vitória deste ou aquele candidato à chefia do Estado como empreender, no teatro eleitoral e contra ele, a crítica radical desse "órgão de soberania" e do conjunto da arquitectura da ordem instituída, oligárquica e classista, da qual a "chefia do Estado" faz parte. O que acima fica limita-se a sugerir alguns temas — desprofissionalização igualitária da política, tiragem à sorte versus eleição, universalização do exercício governante versus representação e direcção oligárquicas, etc. — de uma campanha que valeria a pena fazer.
Dito isto, o autogoverno democrático dos cidadãos poderá ter delegados cujo mandato seja por definição revogável, mas não representantes permanentes, legitimados ou não por via eleitoral, que reproduzam a divisão do trabalho político — do qual a direcção da economia é parte essencial — entre governantes e governados.
Como, em 1995, dizia Castoriadis (cf. Diálogo Seguido de Post-Scriptum Sobre a Insignificância, Lisboa, Fim de Século, 2004): a democracia dita representativa não é uma verdadeira democracia. Os seus representantes representam muito pouco aqueles que os elegem. Em primeiro lugar, representam-se a si próprios ou representam interesses particulares, lobbies, etc. E, ainda que não fosse este o caso, dizer que alguém me vai representar durante cinco anos de modo irrevogável equivale a dizer que me despojo da minha soberania enquanto povo. Rousseau já o dissera: os ingleses julgam que são livres porque elegem representantes de cinco em cinco anos: são-no no dia das eleições. E nem mesmo isso é verdade: a eleição está viciada, não por "chapeladas" nas urnas, mas porque as opções foram de antemão definidas. Ninguém perguntou ao povo sobre o que ele quer votar. O que se diz é: "Votem a favor ou contra Maastricht", por exemplo. Mas quem fez Maastricht? Não fomos nós. À pergunta: "Quem é cidadão?", Aristóteles dava uma resposta maravilhosa: "É cidadão aquele que é capaz de governar e ser governado". Não há quarenta milhões de cidadãos em França, neste momento? Porque não seriam capazes de se governar? Porque toda a vida política visa precisamente desensinar-lhes o que é governar. Visa convencê-los de que há especialistas aos quais os seus assuntos devem ser confiados. Quer dizer, que existe, portanto, uma contra-educação política. Em vez de se habituarem a exercer toda a espécie de responsabilidades e a tomar iniciativas, as pessoas habituam-se a seguir opções que outros lhes apresentam ou a votar por elas (…) numa espécie de apatia política.
Na mesma ordem de ideias, uma república democrática exclui a existência de qualquer coisa como um "chefe de Estado". Pode, para certos efeitos — fundamentalmente simbólicos e estritamente limitados —, designar um "Presidente da República". Mas não há qualquer razão para que este seja eleito, de preferência a tirado à sorte. A eleição de chefes e dirigentes é, por um lado, um princípio mais oligárquico do que democrático, e o facto de adoptar a votação como procedimento, não deveria levar-nos a confundi-la com a votação como modo de tomada de decisões ou adopção de medidas políticas. Em suma, uma intervenção democraticamente alternativa nas eleições presidenciais que aí vêm deveria preocupar-se menos com assegurar a vitória deste ou aquele candidato à chefia do Estado como empreender, no teatro eleitoral e contra ele, a crítica radical desse "órgão de soberania" e do conjunto da arquitectura da ordem instituída, oligárquica e classista, da qual a "chefia do Estado" faz parte. O que acima fica limita-se a sugerir alguns temas — desprofissionalização igualitária da política, tiragem à sorte versus eleição, universalização do exercício governante versus representação e direcção oligárquicas, etc. — de uma campanha que valeria a pena fazer.
As virtudes da auto-suficiência
por
Miguel Madeira
[A respeito deste post d'O Insurgente]
Eu vejo pelo menos duas boas razões para um individuo tentar ser o mais auto-suficiente economicamente (isto é, ser ele a produzir grande parte dos bens e serviços que consome) possível.
A primeira é que um individuo vivendo em regime de autoconsumo não está sujeito ao perigo de desemprego nem é afectado pelas crises económicas (pelo menos, da forma que existem actualmente); no caso extremo de alguém que viva numa cabana nas montanhas (construída por ele), cultivando o seu quintal, caçando nos bosques vizinhos e pescando no ribeiro, e tecendo as suas próprias roupas, sem vender ou comprar nada ao resto do mundo, o PIB pode descer 10% e o desemprego pode duplicar que nada lhe acontece a ele (basicamente, o problema do desemprego só existe por causa... do problema do emprego; alguém que não precise de procurar emprego não está sujeito ao desemprego); no caso (mais realista) de alguém que tenha um emprego mas que costume ir à pesca no fim-de-semana, tenha uma horta onde cultive verduras e faça a maior parte das obras e arranjos eléctricos lá em casa, ele continua a poder ser afectado pelas crises económicas, mas menos que alguém que todo o rendimento real esteja dependente do mercado (se for para o desemprego continua a ter acesso aos bens e serviços que ele próprio produz).
Aliás, quase todas as teorias explicativas das crises económicas (keynesianismo, monetarismo, "escola austríaca"...) explicam-nas a partir da moeda (seja porque os agentes querem acumular mais moeda que a que têm, ou porque a quantidade de moeda diminuiu, ou porque aumentou...); assim, podermos concluir que numa economia sem moeda não haveria este género de crises (embora pudesse haver outras).
Outra vantagem é que a maior parte das pessoas nas sociedades modernas são trabalhadoras assalariadas, ou sejam, trabalham sob a direcção de outras. Assim, passar uma hora, digamos, a afinar o motor do seu próprio carro tem uma vantagem face a passar mais uma hora no emprego a ganhar o dinheiro para pagar a uma oficina - no primeiro caso, é ele próprio que dirige o seu trabalho, que pode executar no hora e local que lhe dá mais jeito, quiçá até com a roupa com que se sente mais à vontade, etc., enquanto na hora passada no trabalho formal está submetido à disciplina organizacional.
Diga-se, desde já, que estes meus argumentos a favor da auto-suficiência não me parecem escaláveis do nível individual para o nível de um país: ao contrário do que se passa com os indivíduos, não é por um país ser auto-suficiente que deixa de estar sujeito a ciclos económicos, nem menos sujeito à tal "disciplina organizacional" (até há quem diga o oposto - que o proteccionismo favorece a concentração dos grupos económicos). Esta observação pode ter alguma importância porque me dá a ideia que muitas discussões sobre a auto-suficiência individual usam-na sobretudo como metáfora para a questão da auto-suficiência nacional, seja a favor ou contra.
Sugestão de leitura adicional - O Direito ao Desemprego Criador, de Ivan Illich
Eu vejo pelo menos duas boas razões para um individuo tentar ser o mais auto-suficiente economicamente (isto é, ser ele a produzir grande parte dos bens e serviços que consome) possível.
A primeira é que um individuo vivendo em regime de autoconsumo não está sujeito ao perigo de desemprego nem é afectado pelas crises económicas (pelo menos, da forma que existem actualmente); no caso extremo de alguém que viva numa cabana nas montanhas (construída por ele), cultivando o seu quintal, caçando nos bosques vizinhos e pescando no ribeiro, e tecendo as suas próprias roupas, sem vender ou comprar nada ao resto do mundo, o PIB pode descer 10% e o desemprego pode duplicar que nada lhe acontece a ele (basicamente, o problema do desemprego só existe por causa... do problema do emprego; alguém que não precise de procurar emprego não está sujeito ao desemprego); no caso (mais realista) de alguém que tenha um emprego mas que costume ir à pesca no fim-de-semana, tenha uma horta onde cultive verduras e faça a maior parte das obras e arranjos eléctricos lá em casa, ele continua a poder ser afectado pelas crises económicas, mas menos que alguém que todo o rendimento real esteja dependente do mercado (se for para o desemprego continua a ter acesso aos bens e serviços que ele próprio produz).
Aliás, quase todas as teorias explicativas das crises económicas (keynesianismo, monetarismo, "escola austríaca"...) explicam-nas a partir da moeda (seja porque os agentes querem acumular mais moeda que a que têm, ou porque a quantidade de moeda diminuiu, ou porque aumentou...); assim, podermos concluir que numa economia sem moeda não haveria este género de crises (embora pudesse haver outras).
Outra vantagem é que a maior parte das pessoas nas sociedades modernas são trabalhadoras assalariadas, ou sejam, trabalham sob a direcção de outras. Assim, passar uma hora, digamos, a afinar o motor do seu próprio carro tem uma vantagem face a passar mais uma hora no emprego a ganhar o dinheiro para pagar a uma oficina - no primeiro caso, é ele próprio que dirige o seu trabalho, que pode executar no hora e local que lhe dá mais jeito, quiçá até com a roupa com que se sente mais à vontade, etc., enquanto na hora passada no trabalho formal está submetido à disciplina organizacional.
Diga-se, desde já, que estes meus argumentos a favor da auto-suficiência não me parecem escaláveis do nível individual para o nível de um país: ao contrário do que se passa com os indivíduos, não é por um país ser auto-suficiente que deixa de estar sujeito a ciclos económicos, nem menos sujeito à tal "disciplina organizacional" (até há quem diga o oposto - que o proteccionismo favorece a concentração dos grupos económicos). Esta observação pode ter alguma importância porque me dá a ideia que muitas discussões sobre a auto-suficiência individual usam-na sobretudo como metáfora para a questão da auto-suficiência nacional, seja a favor ou contra.
Sugestão de leitura adicional - O Direito ao Desemprego Criador, de Ivan Illich
Ainda e sempre, a voz do dono
por
Luis Rainha
A propósito da história do fulano que se fazia passar por médica e enfermeira, levando as suas vítimas a masturbarem-se ao telefone, por vezes durante horas, lembrei-me de um célebre caso, já com uns anos. Mais uma vez, fica à mostra o respeitinho que a autoridade sempre nos causa, mesmo que transmitida via telefone e em circunstâncias absolutamente inverosímeis.
O que podem ver na peça jornalística acima é quase inacreditável. Mas aconteceu. Em Abril de 2004, a gerente de um McDonald’s algures no Kentucky recebeu um telefonema de alguém que se anunciou como agente da polícia. Este convenceu a gerente de que uma sua funcionária era suspeita de furtos a clientes. Louise Ogborn, de 18 anos, viu-se assim atirada para um pesadelo que iria durar três horas: as instruções do “polícia” levaram a que ela fosse despida, agredida, humilhada e por fim forçada a um acto sexual com o namorado da gerente. Tudo porque uma voz sem corpo, mas investida do poder da autoridade, deu ordens nesse sentido.
Soube-se depois que este fora apenas o culminar de uma série de dezenas de casos similares, ocorridos ao longo de uma década e tendo sempre como alvo funcionários de cadeias de fast food. Porquê esta preferência? Simplesmente porque tais restaurantes são comandados por hierarquias rígidas e por manuais de conduta inflexíveis e omniscientes: as batatas são fritas x minutos, as mãos lavadas y vezes por hora. Qualquer fuga à rotina prevista deixa os dependentes do manual sem referências, ansiosos por ordens superiores que façam regressar a normalidade o mais depressa possível. Ademais, a conhecida experiência de Milgram já demonstrara que são poucos os que recusam cumprir ordens que fazem sofrer terceiros; a voz do dono fala mais alto do que a da consciência.
O que podem ver na peça jornalística acima é quase inacreditável. Mas aconteceu. Em Abril de 2004, a gerente de um McDonald’s algures no Kentucky recebeu um telefonema de alguém que se anunciou como agente da polícia. Este convenceu a gerente de que uma sua funcionária era suspeita de furtos a clientes. Louise Ogborn, de 18 anos, viu-se assim atirada para um pesadelo que iria durar três horas: as instruções do “polícia” levaram a que ela fosse despida, agredida, humilhada e por fim forçada a um acto sexual com o namorado da gerente. Tudo porque uma voz sem corpo, mas investida do poder da autoridade, deu ordens nesse sentido.
Soube-se depois que este fora apenas o culminar de uma série de dezenas de casos similares, ocorridos ao longo de uma década e tendo sempre como alvo funcionários de cadeias de fast food. Porquê esta preferência? Simplesmente porque tais restaurantes são comandados por hierarquias rígidas e por manuais de conduta inflexíveis e omniscientes: as batatas são fritas x minutos, as mãos lavadas y vezes por hora. Qualquer fuga à rotina prevista deixa os dependentes do manual sem referências, ansiosos por ordens superiores que façam regressar a normalidade o mais depressa possível. Ademais, a conhecida experiência de Milgram já demonstrara que são poucos os que recusam cumprir ordens que fazem sofrer terceiros; a voz do dono fala mais alto do que a da consciência.
27/08/10
Solidariedade e Legítima Defesa
por
Miguel Serras Pereira
Sobre as nossas cabeças, aqui mesmo, a corrosão e esvaziamento — progressivos, mas persistentes e até ver sem reversão significativa a partir pelo menos de meados da década de 1970 — das liberdades políticas e dos direitos sociais conquistados por lutas seculares dos trabalhadores e movimentos radicais configuram a ameaça de sofrermos, a prazo e fatia após fatia, condições como as que sofrem já os ciganos em França, os palestinianos no Médio Oriente ou o povo iraniano sob a ditadura "islâmica" de uma oligarquia burocrático-clerical implacável. Literalmente, por muito que nos seja difícil concebê-lo, somos todos potenciais ciganos deportados, todos potenciais iranianos ou sauditas sentenciados à lapidação, à forca ou à mutilação legal, todos potenciais palestinianos sem terra ou, se se quiser também, potenciais judeus deste ou daquele ghetto reinstaurado. É por isso que a nossa solidariedade com os súbditos do piedoso Führer de Teerão, com os sectores da população que Sarkozy deporta, com os palestinianos que vêem a sua cidadania brutalmente esmagada pelo governo de Israel, com os precários e suspeitos por definição no bairro ao lado ou quase ao lado dos condomínios entremeados de não-lugares estratégicos que humilham e carcomem o que resta de espaço público - essa nossa solidariedade deve ser assumida, não só como dever de assistência em situação de perigo, mas também, ou talvez sobretudo, como legítima defesa e vontade de democracia.
Por outras palavras, como aqui escreveu há pouco o Zé Neves: não se trata (…) de lutar "por quem" vai ser lapidado. Mas de lutar ao lado de quem vai ser lapidado. A distância física, nesse sentido, só o é porque há uma filtragem nacional que a assinala. E essa filtragem, que não deve ser ignorada, não pode, porém, ser um critério táctico. Devemos agir como se não existissem nações (até porque sabemos que elas existem) e como se a lapidação que acontece no Irão fosse uma lapidação que acontece no Irão como poderia acontecer em qualquer outro lado. Ou seja, o combate é o mesmo contra os campos de trabalho e a legislação laboral penitenciária dos mandarins vermelhos da "sociedade harmoniosa" do PC chinês, contra a ditadura religiosa e sexista da oligarquia iraniana, contra os expropriadores dos palestinianos que governam Israel ou o regime policial-criminoso que se instalou na Rússia "liberalizada", etc., etc., e contra os que localmente — no sentido lato: o bloco ocidental — não só combatem todas as tentativas de democratização da ordem política instituída, como visam reformar autoritariamente os actuais regimes em benefício do punhado dos oligarcas de topo da política e da economia governantes.
Por outras palavras, como aqui escreveu há pouco o Zé Neves: não se trata (…) de lutar "por quem" vai ser lapidado. Mas de lutar ao lado de quem vai ser lapidado. A distância física, nesse sentido, só o é porque há uma filtragem nacional que a assinala. E essa filtragem, que não deve ser ignorada, não pode, porém, ser um critério táctico. Devemos agir como se não existissem nações (até porque sabemos que elas existem) e como se a lapidação que acontece no Irão fosse uma lapidação que acontece no Irão como poderia acontecer em qualquer outro lado. Ou seja, o combate é o mesmo contra os campos de trabalho e a legislação laboral penitenciária dos mandarins vermelhos da "sociedade harmoniosa" do PC chinês, contra a ditadura religiosa e sexista da oligarquia iraniana, contra os expropriadores dos palestinianos que governam Israel ou o regime policial-criminoso que se instalou na Rússia "liberalizada", etc., etc., e contra os que localmente — no sentido lato: o bloco ocidental — não só combatem todas as tentativas de democratização da ordem política instituída, como visam reformar autoritariamente os actuais regimes em benefício do punhado dos oligarcas de topo da política e da economia governantes.
E se cheirassem o vosso próprio peidinho?
por
Miguel Cardina
Em França discute-se a possibilidade de retirar a nacionalidade a quem for polígamo. O ministro do Interior falou hoje da criação da figura do "delito de poligamia de facto, burla e abuso de sentimentos". No país que foi de Mitterand, a formulação dá logo vontade de insinuar meia-dúzia de piadas. Mas convém conter o riso porque é notória a inscrição nesta nova leva xenófoba que se iniciou com a expulsão dos ciganos romenos. Mais do que um ataque à poligamia - que julgo ser proibida, como em Portugal - o que está em causa é a tentativa de associação do outro a um comportamento tido como "desviante", mesmo que ele seja claramente minoritário no grupo do qual faz parte (ou se imagina que faz). Antecipemos por um momento o cenário: inspectores a entrar pelas casas de "asiáticos" ou "africanos" para averiguar se vivem ou não com várias mulheres e se, vivendo, mantêm com elas relações sexuais ou têm documentos passados num qualquer país estrangeiro que legitime a perseguição. Só faltava mesmo dar consistência ao que se denomina "poligamia de facto": pôr na mira das autoridades os amantes duradouros, a obra completa da Simone de Beauvoir e aquelas páginas do Antigo Testamento que exaltam Jacó e a forma como deu origem às doze tribos de Israel.
Terão as utopias prazo de validade?
por
Luis Rainha
O Nuno Ramos de Almeida deixou-nos uma excelente reflexão sobre a presença viva e inspiradora das utopias (enquanto lugar não realizável), por oposição à preferência por mudanças incrementais, dentro do horizonte de acontecimentos que são as fronteiras do capitalismo, para lá das quais nada nunca existirá. Temos assim que a «utopia irreal se demonstrou muito mais interessante do que eles achavam», pois «ao caminho dessa alternativa passa mais pela construção de uma ideia da possibilidade de uma ruptura global do que de um conjunto de pequenas reformas ou “utopias possíveis”. Um dos principais passos no sentido de uma emancipação global é recusar os limites do pensável que a ideologia do capitalismo nos impõe.»
Concordo e aplaudo, em termos gerais. Pode o socialismo soviético ter redundado naquilo que se sabe; mas o anúncio da irrupção no plano imaginável de um inimaginável (para acomodar o bom Žižek) actuante e afinal bem real acabou por ter reflexos positivos nas vidas de biliões: do fortalecimento do sindicalismo à descolonização, nunca o pacato mundo capitalista voltou ao que era.
No entanto, tudo isto dá-me vontade de lançar ao Nuno duas ou três provocações:
1- Não sei bem até que ponto é que existirá mesmo uma «ideologia do capitalismo», ou antes uma difusa nuvem de concordâncias e subserviências espalhadas pelo mundo como um continente subterrâneo onde assentam as fundações do “bom-senso” e do “bem-pensar” contemporâneo. Um ambiente discursivo/político/económico que nos enreda numa subtil, mas nunca brutal nem explícita, rede de enquadramentos, prescrições, regulamentos, vigilâncias. Sem que o seu reconhecimento e a anuência que lhes votamos sejam nunca admitidos de outra forma que não a tácita; a eficácia de tais sistemas depende mesmo, e já o sabia Foucault, da forma sub-reptícia e camuflada com que se impõe. E qual a razão por detrás desta vontade de dominar o discurso? Simplesmente porque ele se articula ao longo de significativas dimensões de poder. Capitalismo, uno e indivisível? Ná. Pouco há de comum, sem sairmos da blogosfera nem dos Joões, entre um Miranda e um Rodrigues; mas ambos parecem satisfeitos em operar dentro do tal horizonte de acontecimentos, parecendo até o liberal Miranda bastante mais revolucionário e disposto a aceitar uma mudança de paradigma mais ampla.
2- A opção pelos retoques à infra-estrutura e organização capitalistas não tem tido resultados sempre abomináveis. O capitalismo não se manifesta como uma hidra de cabeças igualmente hediondas e esfaimadas. Da Finlândia a New Orleans, vai um mundo de diferenças, políticas e resultados. Para os cidadãos, em termos do que realmente importa – a liberdade e a busca da felicidade – não há um capitalismo. Há um continuum de sociedades diversas e diferentemente hospitaleiras ao Homem.
3- Quando o Nuno menciona o que um «verdadeiro partido socialista» deve propor, não estará ainda a confiar a sua cidadania ao domínio marcado pelos antigos e omnipresentes «alfa e omega»? Não faz a própria utopia socialista já parte desse universo inescapável de onde cada vez mais indivíduos e colectivos desistem de procurar saídas? Não estará na hora de começarmos a perscrutar novos horizontes, estejam eles onde estiverem? Se queremos mesmo evitar as catástrofes para onde o actual modelo dominante nos está a empurrar, será mesmo boa ideia confiar no seu doppelgänger antitético e igualmente insatisfatório?
Concordo e aplaudo, em termos gerais. Pode o socialismo soviético ter redundado naquilo que se sabe; mas o anúncio da irrupção no plano imaginável de um inimaginável (para acomodar o bom Žižek) actuante e afinal bem real acabou por ter reflexos positivos nas vidas de biliões: do fortalecimento do sindicalismo à descolonização, nunca o pacato mundo capitalista voltou ao que era.
No entanto, tudo isto dá-me vontade de lançar ao Nuno duas ou três provocações:
1- Não sei bem até que ponto é que existirá mesmo uma «ideologia do capitalismo», ou antes uma difusa nuvem de concordâncias e subserviências espalhadas pelo mundo como um continente subterrâneo onde assentam as fundações do “bom-senso” e do “bem-pensar” contemporâneo. Um ambiente discursivo/político/económico que nos enreda numa subtil, mas nunca brutal nem explícita, rede de enquadramentos, prescrições, regulamentos, vigilâncias. Sem que o seu reconhecimento e a anuência que lhes votamos sejam nunca admitidos de outra forma que não a tácita; a eficácia de tais sistemas depende mesmo, e já o sabia Foucault, da forma sub-reptícia e camuflada com que se impõe. E qual a razão por detrás desta vontade de dominar o discurso? Simplesmente porque ele se articula ao longo de significativas dimensões de poder. Capitalismo, uno e indivisível? Ná. Pouco há de comum, sem sairmos da blogosfera nem dos Joões, entre um Miranda e um Rodrigues; mas ambos parecem satisfeitos em operar dentro do tal horizonte de acontecimentos, parecendo até o liberal Miranda bastante mais revolucionário e disposto a aceitar uma mudança de paradigma mais ampla.
2- A opção pelos retoques à infra-estrutura e organização capitalistas não tem tido resultados sempre abomináveis. O capitalismo não se manifesta como uma hidra de cabeças igualmente hediondas e esfaimadas. Da Finlândia a New Orleans, vai um mundo de diferenças, políticas e resultados. Para os cidadãos, em termos do que realmente importa – a liberdade e a busca da felicidade – não há um capitalismo. Há um continuum de sociedades diversas e diferentemente hospitaleiras ao Homem.
3- Quando o Nuno menciona o que um «verdadeiro partido socialista» deve propor, não estará ainda a confiar a sua cidadania ao domínio marcado pelos antigos e omnipresentes «alfa e omega»? Não faz a própria utopia socialista já parte desse universo inescapável de onde cada vez mais indivíduos e colectivos desistem de procurar saídas? Não estará na hora de começarmos a perscrutar novos horizontes, estejam eles onde estiverem? Se queremos mesmo evitar as catástrofes para onde o actual modelo dominante nos está a empurrar, será mesmo boa ideia confiar no seu doppelgänger antitético e igualmente insatisfatório?
Ajuda dos leitores ao blogger
por
Zé Neves
Se alguém conseguir ajudar este vosso historiador, a gerência agradece. Então é assim: há uns anos atrás, num debate, alguém me disse que no início dos anos 70, num jornal onde pululavam oposicionistas, tinha surgido um artigo em que, mais coisa menos coisa, se dizia bem da malta dizer mal dos árbitros porque isso cultivava um certo posicionamento de desconfiança face às figuras de autoridade. Isto diz-vos alguma coisa?
A bondade do candidato a que temos direito
por
Miguel Serras Pereira
Um comentador deste post de Rafael Fortes, publicado no 5dias, João Pais, perde as papas na língua e explica que — ainda que aquilo de que o acusam (sectarismo, ensimesmamento partidário, culto burocrático da hierarquia, carreira de político profissional, etc.) "fosse verdade" — "o candidato do PCP é bom tão simplesmente por isso, é o do PCP".
Deslumbrado com esta formulação da "bondade do candidato a que temos direito", aqui confesso, cidadão João Pais, que me sinto tentado a acrescentar, à laia de recapitulação e revisão mental da matéria dada, algumas variantes auxiliares. Por exemplo: o PCP é bom porque é o PCP; o que o PCP faz é bem feito, ainda que seja mal feito, porque é feito pelo PCP; devemos votar no candidato do PCP porque o candidato do PCP é o melhor, ainda que o não seja, porque o melhor não pode deixar de ser o candidato do PCP, seja ele qual for…
Mas, assim como assim — e sem desvalorizar o alcance pedagógico da repetição ritual, tão cara ao saudoso camarada José Estaline, na apologética da verdade revolucionária —, não me parece necessário prosseguir. O princípio é simples e dele podemos deduzir tudo o resto. O que foi bom ontem, é bom hoje e será bom amanhã. O supremo bem sempre idêntico a si próprio para além das aparências empíricas. Ou não fossem eternas as verdades do socialismo científico, do mesmo modo que infalível o seu único partido verdadeiro. Pelos séculos dos séculos. Amén.
Deslumbrado com esta formulação da "bondade do candidato a que temos direito", aqui confesso, cidadão João Pais, que me sinto tentado a acrescentar, à laia de recapitulação e revisão mental da matéria dada, algumas variantes auxiliares. Por exemplo: o PCP é bom porque é o PCP; o que o PCP faz é bem feito, ainda que seja mal feito, porque é feito pelo PCP; devemos votar no candidato do PCP porque o candidato do PCP é o melhor, ainda que o não seja, porque o melhor não pode deixar de ser o candidato do PCP, seja ele qual for…
Mas, assim como assim — e sem desvalorizar o alcance pedagógico da repetição ritual, tão cara ao saudoso camarada José Estaline, na apologética da verdade revolucionária —, não me parece necessário prosseguir. O princípio é simples e dele podemos deduzir tudo o resto. O que foi bom ontem, é bom hoje e será bom amanhã. O supremo bem sempre idêntico a si próprio para além das aparências empíricas. Ou não fossem eternas as verdades do socialismo científico, do mesmo modo que infalível o seu único partido verdadeiro. Pelos séculos dos séculos. Amén.
O candidato das forças produtivas
por
Zé Neves
Estava - e ainda estou, embora, confesse, sem grande esperança - disponível para votar no candidato designado pelo PCP. Fosse ele qual fosse, até porque a grande vantagem dos candidatos do PCP - e digo-o sem ponta de ironia - é que quanto "piores" forem, "melhores" são. Carvalhas, por exemplo. Sempre foi considerado um líder "fraco" e eu sempre preferi a liderança Carvalhas à liderança "forte" de Cunhal, porque num partido comunista uma liderança "forte" só tem cabimento à custa de um modo democrático de acção e decisão políticas. Estava disponível para votar no candidato do PCP e na rifa saiu Francisco Lopes. Não tenho nada em particular contra a figura, ao contrário de muitos que, justamente, criticam a escolha de Lopes por ser a escolha de alguém que não é conhecido. E, mais ainda, assusta-me a facilidade com que, por vezes, entramos no coro de críticas ao PCP. O sempre opinante Luís Delgado, por exemplo, dizia que era pena o PCP ter optado por um candidato tão velho, sem reparar, por certo, que Lopes é o mais novo dos candidatos que estão no terreno. Já em relação à ortodoxia de Lopes, lamento, mas também não alinho no coro. Não que ele seja ou deixe de ser ortodoxo, mas, sinceramente, o que por regra se entende por ortodoxia é qualquer coisa de demasiado difuso e vago para que a tal crítica se possa aderir sem reservas. Partilho, por exemplo, a crítica da ortodoxia se por ela entendermos a crítica do estalinismo, da ditadura do proletariado, etc. Não partilho se por ela entendermos a crítica do que por vezes se chama jargão ortodoxo e que passa por palavras e conceitos como revolução, luta de classes, comunismo, proletariado. Entretanto, ao ver Francisco Lopes na televisão, em entrevista à TVI, não tive outro remédio que não o de decidir não votar num candidato que, por certo que com a melhor das intençõess, não repara na tristeza que é comparar o valor da vida de homens e de mulheres com o valor do óleo das sardinhas e da força das marés. E foi isso que Francisco Lopes fez quando, perguntado sobre o futuro do país ou outra generalidade do mesmo tipo, respondeu (cito de cor, confesso, mas crendo ser fiel) que o país não é pobre e que tem muitas potencialidades, apontando desde logo a nossa costa cheia de recursos e mais não sei o quê, e, sobretudo, acrescentou ele julgando fazer um grande elogio à espécie humana e aos proletários que o escutavam lá em casa, apontando a grande potencialidade dos homens e mulheres prontos a produzir e cujas energias, diz, estão a ser desperdiçadas com estas políticas de desemprego. Eu sei que não se faz - que parece argumento de autoridade e que isto é feio - mas não resisto a citar o jovem Marx a este respeito: "Para destruir o místico clarão que transfigura a «força produtiva», basta consultar qualquer registo estatístico. Aí se fala de força hidráulica, força do vapor, força humana, cavalo-força. Tratar-se-á de dar ao homem um grande reconhecimento o facto de fazê-lo figurar como «força» ao lado do cavalo, do vapor e da água?".
Os calimeros vermelhos
por
Luis Rainha
Afinal, quem esperava um candidato do PCP que justificasse um voto de protesto e de cansaço com o carrossel que teima em impingir-nos sempre as mesmas cavalgaduras é «imbecil». E apontar a falta de pedalada do candidato que não soube mencionar um só livro lido recentemente ou a sua evidente inabilidade para estas andanças é sacar da «cassete». São todos maus ou ancorados a interesses inconfessáveis. A redenção, a pureza e a transparência só moram nas caves da Soeiro.
O Rafael é apenas mais um dos que lentamente vai corroendo o PCP por dentro, julgando prestar-lhe perseverantes serviços: importa é falar para quem já lá está e virar costas com orgulho a quem nos questiona. Urge é cair no ridículo de falar na «(irritante) insistência em não acreditar em Homens providenciais» do partido, como se alguém pudesse ler isto sem desatar a rir. Toca a invocar "argumentos" como a salvífica natureza operária do candidato ou o facto de não ser «dê-erre» – quando Francisco Lopes é tão licenciado quanto Alegre, sendo político profissional há 36 anos, desde que abandonou o ensino superior.
Claro que os fiéis acorrem em barda a celebrar alucinações como a «juventude» do candidato e o «futuro» que traz na mochila. Se calhar, basta mesmo arrebanhar os militantes.
Eu, como votante ocasional no PCP, repito: fiquem lá com o vosso candidato tão firme e confiante no futuro, que eu fico com o meu voto. Ainda não sei onde irei com ele; mas sei que por aí não vou.
O Rafael é apenas mais um dos que lentamente vai corroendo o PCP por dentro, julgando prestar-lhe perseverantes serviços: importa é falar para quem já lá está e virar costas com orgulho a quem nos questiona. Urge é cair no ridículo de falar na «(irritante) insistência em não acreditar em Homens providenciais» do partido, como se alguém pudesse ler isto sem desatar a rir. Toca a invocar "argumentos" como a salvífica natureza operária do candidato ou o facto de não ser «dê-erre» – quando Francisco Lopes é tão licenciado quanto Alegre, sendo político profissional há 36 anos, desde que abandonou o ensino superior.
Claro que os fiéis acorrem em barda a celebrar alucinações como a «juventude» do candidato e o «futuro» que traz na mochila. Se calhar, basta mesmo arrebanhar os militantes.
Eu, como votante ocasional no PCP, repito: fiquem lá com o vosso candidato tão firme e confiante no futuro, que eu fico com o meu voto. Ainda não sei onde irei com ele; mas sei que por aí não vou.
26/08/10
Socialismo 2010
por
Miguel Cardina
Este fim-de-semana, em Braga, o Bloco de Esquerda terá o seu fórum anual de discussão. Durante dois dias e meio serão debatidos temas tão diversos como o eco-socialismo, a Europa que temos e a Europa que queremos, a economia realmente existente, o trabalho e as lutas associadas, a esquerda perante o SNS ou a geopolítica actual. A história do século XX, o feminismo e a cultura como profissão e como meio de transformação social também terão lugar marcado. Aqui fica o programa e o convite para uma saltada à cidade que durante uns dias não vai ser dos arcebispos.
August Bebel dizia que "o anti-semitismo é o socialismo dos imbecis"…
por
Miguel Serras Pereira
… e do nacionalismo, não poderíamos dizer também que é a democracia dos demagogos — a sua cultura, e o seu culto, de Estado?
Meio ano a engolir sapos?
por
Luis Rainha
Apesar de tudo, saiu a sorte grande ao Bloco. O homem do PCP não conseguirá colocar ainda mais a nu o passo em falso que foi o extemporâneo apoio ao candidato de Sócrates. Francisco Lopes, mais o seu discurso robótico e infectado por uma estranha deriva patrioteira, irá congregar o entusiasmo dos militantes fiéis e pronto. Imagine-se agora alguém menos parecido em tom e catadura com o imperador Palpatine, como Bernardino Soares, a aproveitar meses a fio de vergonha silenciosa do BE para corroer o eleitorado bloquista (isto para nem sonhar com Carvalho da Silva). Safaram-se de boa.
Por mim, era bem capaz de votar naqueles candidatos; agora em Alegre ou neste operário (tinha 19 anos quando passou a funcionário do partido) recém-chegado das catacumbas da Soeiro e terminalmente incapaz de acrescentar uma vírgula ou um sorriso que seja ao que já sabemos e esperamos do PCP... antes deglutir uma dúzia de batráquios.
Por mim, era bem capaz de votar naqueles candidatos; agora em Alegre ou neste operário (tinha 19 anos quando passou a funcionário do partido) recém-chegado das catacumbas da Soeiro e terminalmente incapaz de acrescentar uma vírgula ou um sorriso que seja ao que já sabemos e esperamos do PCP... antes deglutir uma dúzia de batráquios.
25/08/10
Mas em que planeta contratam esta gente?
por
Luis Rainha
Neste preciso momento, está a decorrer um debate, na SIC Notícias, sobre o estado económico da nação. Está ali um senhor comentador que acha que Portugal tem um sistema de protecção social "escandinavo". E outro senhor, um académico de sucesso, concorda.
PS: giro, giro foi ver o tal comentador atirar grande parte da culpa das nossas aflições financeiras para cima das parcerias público-privadas, nomeadamente nos hospitais. Luís Filipe Pereira, presente no debate e antigo ministro da Saúde, não tugiu nem mugiu.
PS: giro, giro foi ver o tal comentador atirar grande parte da culpa das nossas aflições financeiras para cima das parcerias público-privadas, nomeadamente nos hospitais. Luís Filipe Pereira, presente no debate e antigo ministro da Saúde, não tugiu nem mugiu.
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Data: 29 de Agosto de 2010, 8:57