29/12/15

Ainda o Rendimento Básico Incondicional (II)

Agora vamos à outra questão - se é possível um RBI financiado por algo que não "especulação financeira"; realmente suspeito que é muito mais fácil implementar um RBI quando este é financiado por rendimentos gerados a partir de bens/recursos propriedade do Estado/município/tribo/etc. (como no citado caso do Alasca, ou então das tribos índias norte-americanas que também têm uma espécie de RBI, financiado, nuns caso também por petróleo, e noutros por lucros de casinos) do que por impostos, por duas razões:

- por um lado, o RBI é mais fácil de "vender" assim; é difícil convencer as pessoas a pagarem impostos para "dar dinheiro a quem não faz nenhum", mas, pelo contrário, a ideia de os lucros dos bens que são "de todos" serem divididos igualitariamente por todos já é mais intuitiva

- por outro, mesmo economicamente faz mais sentido: lançar impostos para financiar um RBI (ou outra coisa qualquer, já agora) tem o problema de desincentivar a atividade económica (a exceção serão impostos sobre atividades nocivas, como a poluição, em que "desincentivar" é mesmo a ideia; mas, por outro lado, impostos sobre a poluição também podem ser vistos como uma forma peculiar de "rendimentos gerados a partir de bens propriedade pública"); esse problema já não existe quando se trata de rendimentos não-fiscais que, de qualquer maneira, o Estado já está a receber e o que é preciso é apenas decidir onde os gastar

É verdade que um RBI financiado por rendimentos gerados a partir de bens propriedade pública não implica forçosamente investimentos especulativos, mas há uma grande proximidade entre as duas coisas; sobretudo, nos casos de rendimentos derivados de recursos naturais finitos (como o petróleo), os tais investimentos especulativos são quase inevitáveis - desde o principio que é sabido que essa fonte de receita vai acabar um dia, logo é necessário re-investir os lucros noutras coisas e viver, não com os lucros iniciais, mas com os lucros dos lucros. Mas eu diria que isso não é tanto um problema do RBI, mas um problema geral de uma economia petrolifera e/ou  mineira, tenha ou não RBI (poderá quando muito parecer um problema do RBI por uma espécie de ilusão derivada de se calhar ser mais provável uma economia mineira/petrolífera vir a ter RBI) - já agora, um exemplo do que pode acontecer a uma economia mineira quando as reservas se acabam e os investimentos correram mal.

Ainda a respeito da ideia de um RBI financiado por impostos sobre a poluição (ou, mais exatamente, pela venda de quotas para poluir), eu em tempos fiz umas contas, e cheguei à conclusão que daria 800 euros/ano por pessoa; mas entretanto conclui que deveria haver algum erro nesses cálculos, porque vi contas parecidas para os EUA dando valores muito menores (mais exatamente, dando uma receita total de 80 mil milhões de dólares, o que daria uns 250 dólares/ano - cerca de 225 euros - por pessoa).

Ainda o Rendimento Básico Incondicional

Numa discussão no Facebook sobre o RBI, um amigo dizia que simpatizava com a ideia, mas só a defenderia quando lhe demonstrassem que era viável com um valor que não fosse miserável nem financiado por "especulação financeira".

Um pouco de contexto - a referência ao valor miserável tinha a ver com a ideia que eu tinha sugerido de um RBI de 200 euros por adulto e 100 por menor; a referência à especulação financeira tinha a ver com o exemplo do Alasca, cujo RBI é financiado pelos rendimentos dos investimentos feitos com os direitos de exploração petrolífera.

Vou tentar responder a essas questões aqui, quer porque comentários do Facebook não são o meio mais adequado para exposições aprofundadas, quer porque isto pode ser de interesse para mais gente do que apenas para quem estava a ler a conversa (penso que o meu amigo não se vai importar).

Primeiro, a questão do "valor miserável" - o valor de 200 euros (um pouco mais que os 178,15 euros do RSI, um pouco menos que os 201,53 euros da pensão não contributiva) será assim tão pouco? Imagine-se uma família com um pai, uma mãe (ambos com um ordenado de 600 euros) e um filho; 200 euros por adulto mais 100 euros por criança levaria a que o rendimento mensal desta família passasse de 1200 para 1700 euros - não me parece um salto assim tão pequeno (se calhar é quase a diferença entre estar na "classe baixa" ou na "classe média"). Bem, a minha ideia era a implantação do RBI ser acompanhada pela abolição do RSI, das pensões não contributivas, do abono de família e talvez do valor mínimo da dedução especifica do IRS, pelo que o aumento do rendimento desta família não iria ser bem 500 euros (iriam perder 26,5 euros do abono de família, e talvez pagar mais - em conjunto - 88 euros de IRS por mês).

Eu suponho que a referência a "valor miserável" resulta do que eu penso ser um equívoco à volta do RBI - que a ideia seria dar a cada pessoa um rendimento que lhe permitisse deixar de trabalhar se assim o entendesse (e o "incondicional" tem vindo a ser interpretado sobretudo como "mesmo que não faça nada" - e a crescente tendência para apresentar o RBI como solução para o problema imaginário do desemprego supostamente causado pela automatização imaginária vai nesse linha), e efetivamente seria difícil alguém viver só com 200 euros por mês (ou uma família de 3 pessoas com 500 euros); mas a ideia não é (ou, pelo menos, não era) essa - de certa maneira, é (era?) quase a oposta: criar uma prestação social que abranja também quem trabalha e não apenas os desempregados e "excluídos" (como, seja por decisão explícita - como no subsídio de desemprego - ou por resultado implícito - como no RSI - acaba por acontecer com os subsídios atualmente existentes), e sem os desincentivos a procurar trabalho que tendem a ocorrer nos sistemas atuais (ou seja, a ideia implícita no "incondicional" até era mais "recebes sempre, mesmo que até tenha um bom emprego com um bom ordenado" e não tanto "recebes sempre, mesmo que a única coisa que faças na vida seja tocar guitarra na Rua do Comércio").

Adenda: admito que a minha caracterização do que "é" ou "não é" a ideia do RBI possa ser um pouco uma espécie de versão da falácia do escocês

28/12/15

Um argumento a evitar na defesa do Rendimento Básico Incondicional

Com sabem, eu simpatizo com a ideia de um rendimento básico incondicional (RBI); no entanto, cada vez mais tenho visto ser usado em defesa do RBI um argumento que não acho muito forte: a de que o RBI seria a melhor solução para o problema da falta de empregos causada pela automatização (ver, p.ex., este post do João Vasco Gama).

Já à partida, noto que outro argumento que costuma ser usado para defender o RBI é que desincentiva menos o trabalho que outros mecanismos de proteção social; logo o facto de umas pessoas serem a favor do RBI por estimular mais as pessoas a trabalhar (comparando com sistemas alternativos) e outras acharem que é a melhor solução para o problema de não haver empregos disponíveis leva-me a pensar que alguém deve estar enganado aqui (as duas posição não são propriamente contraditórias, mas penso que há uma clara tensão entre elas).

E qual é a meu principal problema com o argumento "destruição dos empregos por causa da automatização"? É que, se formos, não ler os artigos de opinião sobre o futuro da economia e/ou da tecnologia (onde a conversa da destruição de empregos por via da nova revolução tecnológica tem vindo a ganhar popularidade), mas ver as estatísticas, essa revolução-tecnológica-que-vai-destruir-montes-de-empregos-por-causa-da-automatização, simplesmente... não existe!

A melhor maneira de medir a automatização talvez seja pela evolução da produtividade do trabalho - a produtividade é calculada dividindo a produção total pelo número de trabalhadores (ou pelo número de horas trabalhadas - mas as duas metodologias não costumam dar resultados muito diferentes), logo quanto maior a automatização, maior a produtividade.

Um gráfico do Bureau of Labor Statistics norte-americano com a evolução da produtividade nos EUA nas últimas décadas:



Atualmente o crescimento da produtividade até é substancialmente menor ao que foi no período de 47-73 (que até foi talvez a época em que o mundo ocidental esteve mais próximo do pleno emprego). Logo, se a automatização maciça que as estatísticas indicam que terá ocorrido nos anos 50/60 não provocou nenhum desemprego por aí além, não há de ser a automatização insignificante (mesmo o período recente de maior crescimento da produtividade, de 2000 a 2007, não chegou ao ritmo de 47/73) que está a ocorrer hoje em dia que o vai provocar. É verdade que a crise económica pode ter contribuído para esse baixo crescimento da produtividade (porque muitas vezes as empresas, mesmo com menos encomendas, não despedem trabalhadores, ficando à espera que as coisas melhores, o que diminui a produção por trabalhador), mas duvido que seja só por causa disso.

[Já agora, uma nota sobre o conceito de "produtividade do trabalho" - ou, mais exatamente, de "produtividade aparente do trabalho": como disse, trata-se apenas de um rácio matemático, sem nenhuma ligação necessário com se trabalhar "bem" ou "mal", "muito" ou "pouco"; digo isto porque por vezes parece-me que este aspeto se perde nalgumas discussões, nomeadamente no clássico "os trabalhadores portugueses têm baixa produtividade; mas quando vão para fora toda a gente diz que são muito bons", como se a produtividade do trabalho fosse, não o tal rácio matemático, mas uma característica do trabalhador]

Claro que se poderá dizer que, mesmo com uma taxa de crescimento menor, a produtividade hoje em dia é maior do que era há 40 anos (e ainda maior do que há 300 anos...), logo temos a tal automatização, mas parece-me que para isto é mais relevante o nível de variação do que propriamente o valor absoluto (senão em cada ano teríamos uma revolução tecnológica sem precedentes, com um nível de produtividade nunca visto até então na história).

E, se olharmos em volta, nomeadamente para o trabalho mais "físico" e/ou menos qualificado, vemos alguma automatização por aí além comparando com, digamos, os anos 90? Olhe-se para uma loja, um restaurante, um estaleiro de construção civil, uma exploração agrícola, um hotel, uma traineira de pesca, etc; será que usam significativamente mais máquinas e menos pessoas do que há 20 anos? Pelo que vejo (e admito que é mais fácil "ver" nuns sectores do que noutros), não me parece - por exemplo, o barbeiro onde eu vou desde os 6 anos cortar o cabelo parece-me igualzinho. Ok, no caso das lojas, admito que haja uma automatização "invisível" - uma loja "física" (seja de que produto for) tem mais ou menos o mesmo pessoal e tecnologia que uma loja de há 20 anos, mas agora há também as lojas virtuais, que suponho tenham muito menos pessoal (mas até que ponto o menos pessoal no atendimento ao cliente não é compensado por mais pessoal a entregar encomendas é discutível). De qualquer maneira, parece-me que nesses sectores as grandes inovações tecnológicas poupadoras de trabalho ocorreram nos anos 50, 60, 70, um pouco nos 80 (sobretudo em Portugal, em que demoramos um bocado a adotar tecnologias que já estavam generalizadas noutras países), e que hoje em dia o que há é inovações aqui e ali, mas nenhuma revolução tecnológica digna desse nome (e muitas das inovações poupadoras de trabalho parecem-me ser, não via automatização, mas simplesmente pôr os clientes a fazer o trabalho que antes era feito pelos empregados).

Veja-se, aliás, a popularidade que, na banda desenhada e/ou na ficção cientifica, o robot antropomórfico (ou pelo menos com braços e algo similar a pernas) tinha nos anos 50-60-70, desde o "Lampadinha" (um personagem criado em 1956) até aos robots da Guerra da Estrelas (1977) ou os cylons da Gallactica (1978), enquanto hoje em dia parece-me que quase só aparece em obras que são continuações de obras anteriores (como as séries Guerra das Estrelas/Star Wars ou Exterminador Implacável) - provavelmente o sinal de uma época em que a expetativa era de que o trabalho físico fosse ser quase todo feito por máquinas.

Nos dias de hoje, o grande progresso tecnológico parece-me sobretudo centrado num sector especifico - o trabalho mental não-criativo, como empregos "de escritório" e afins, que é o género de trabalho que é facilmente feito por computadores (nem o trabalho físico nem o trabalho criativo parecem-me muito adequados a serem feitos por computadores) - e, voltando ao tema da cultura popular, parece-me que nas últimas décadas o computador tem ganhado grande terrenos ao robot como protagonista de filmes e livros (um indicio que ultimamente a automatização tem sido sobretudo ao nível do trabalho mental em vez do físico?). Mas talvez seja por isso que entre as classes intelectuais é popular a ideia que está a haver uma grande destruição de empregos por causa da automatização: a automatização até não é muita no conjunto da economia, mas está a ocorrer ao pé deles (não tanto nos seus trabalhos, mas nos trabalhos de pessoas muitas vezes nos mesmos edifícios).

Leituras recomendadas, que podem parecer não ter nada a ver com o assunto, mas acho que até têm:
America, the Boastful, por Paul Krugman (1998)
- The Skill Content of Recent Technological Change: An Empirical Exploration [PDF], por David H. Autor, Frank Levy e Richard J. Murnane

27/12/15

O apoio de Corbyn a Costa

Uma boa notícia, a confirmar-se. Este é o tipo de influência política a que o PS tem sido militantemente avesso. Na entrevista ao Morning Star, Corbyn refere-se a um apoio ao Governo de Portugal e às suas políticas anti-austeritárias.

I had a very useful meeting with the prime minister of Portugal on Thursday and he has invited me and John McDonnell to go there and hold meetings in support of their programme of anti-austerity.

Vamos esperar para ver, mas, a confirmar-se seria uma boa notícia. Não há neste momento uma personagem política de esquerda, na Europa, com a dimensão de Corbyn. A sua vitória na liderança do Labour foi mesmo um dos mais importantes acontecimentos políticos do ano, senão o mais importante, pelo poder de transformação da política europeia que ele potencialmente encerra. Tomar por dentro o pilar esquerdo do neoliberalismo, o conservador Labour de Blair e Brown, e mudar o sentido e a forma de fazer a política, foi um feito político com um enorme potencial transformador. O facto de  pretender mudar a Europa e apostar na união de forças para permitir essa mudança é um sinal. A sua referência regular a partidos como o Podemos e o Syriza e às organizações sindicais, no contexto europeu, mostram que ele opera numa lógica que ultrapassa os limites tradicionais dos exaustos partidos socialistas.
Mas, mais importante do que isso é o facto de Corbyn defender que são os cidadãos os actores da política. É o medo que esse posicionamento provoca que, segundo ele, justifica a campanha tão insistente contra a sua liderança.

It’s because we are doing a different form of politics, which is a mass movement of ordinary people for the first time getting involved

Esse facto novo de chamar os cidadãos ao lugar central da construção das políticas rompe com a despolitização do dia a dia dos cidadãos, que levou à irrelevância da social-democracia europeia. Corbyn quer cidadãos-políticos e não os clássicos cidadãos-consumidores - alimentados a crédito - com a barriga cheia e a cabeça vazia.
Corbyn defende, e prevê, uma radical democratização de todos os aspectos da vida na Inglaterra. A primeira eleição - eleição intercalar em Oldham - recentemente realizada, que muitos anteviam catastrófica, parece mostrar que as pessoas estão do seu lado. Não admira.



"Médicos com salários de 50 mil euros" - o Correio da Manhã mente

Hoje, o Correio da Manhã faz capa indo buscar aos arquivos uma noticia de há para aí uns quatro anos - "Médicos com salários de 50 mil euros" (para a partir daí alegarem que os cortes na saúde foram uma consequência desses elevados pagamentos).

Lá dentro, referem que o Tribunal de Contas terá detetado, numa auditoria realizada há uns anos atrás, descontrolo no pagamento de horas extraordinárias em vários hospitais, e que num determinado mês, um oftalmologista do Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio terá ganho 50 mil euros com as horas extraordinárias (o médico até está reformado há vários anos, mas o CM achou a notícia atual).

Bem, eu trabalho no então chamado Centro Hospital do Barlavento Algarvio, na altura dos acontecimentos trabalhava do Serviço de Vencimentos, a duas mesas ao lado de quem processava esses vencimentos, e por vezes até era eu que os conferia. E (dentro dos limites da confidencialidade profissional, que vou tentar não ultrapassar neste post) posso assegurar que essa notícia é mentira (e se eu fosse ao médico e aos administradores do CHBA da altura levantava um processo ao CM por calúnias).

Sim, houve meses em que o oftalmologista em questão recebeu esses valores, mas não foi de horas extraordinárias, mas sim de SIGIC - Sistema Integrado de Gestão para Inscritos para Cirurgia. Bem, e, perguntarão vocês, na prática o que é que isso muda?

O SIGIC é um programa do Ministério da Saúde para recuperar listas de espera - doentes que estão há muito para serem operados num hospital podem ser operados noutro; nesse caso, tanto o Hospital como a equipe clínica que fazem a operação recebem um pagamento à peça (tanto por operação) do Ministério da Saúde (em principio, o doente até pode ser operado num hospital particular se assim o preferir; nesse caso, o Ministério da Saúde passa-lhe uma espécie de "cheque").

O que se passou é que o hospital em questão fez uma carrada de operações oftalmológicas dentro desse sistema, e o tal médico recebeu, simplesmente, o valor correspondente a essas operações; não há aqui nenhuma decisão discricionária nem nada disso - ele fez "x" operações, e recebeu tanto por operação, pronto.

Poderemos questionar o valor que o estado pagou para essas operações, mas penso que é um valor definido num diploma qualquer (ou seja, não houve aqui nada de obscuro ou secreto).

Veja-se como é diferente do que seria se estivéssemos a falar de horas extraordinárias - ai poderia discutir-se se realizar esse trabalho extraordinário era mesmo necessário, se essas horas teriam mesmo sido feitas, se o preço/hora não teria sido exagerado, etc., etc. Mas aqui não se aplica nada disso - trata-se de um pagamento à peça proporcional à produção (tanto por operação), pago por uma tabela definida pelo Ministério da Saúde - acho que só poderemos falar aqui de "abusos" ou "falta de controlo" se estivermos a advogar um sistema em que o médico fosse proibido de fazer mais que tantas operações por mês ("O CHBA está a produzir demais! Demasiadas pessoas estão a ser tratadas às cataratas e a voltar a ver! Levantem já um processo disciplinar a essa gente toda!").

E penso que a maior ironia disto é que até resultou de um sistema remuneratório (pagamento à peça) que, com mais ou menos cambiantes ("prémios de produtividade", "remuneração de acordo com os resultados", "premiar o mérito", etc.), acho que até costuma ser defendido pelos defensores dos cortes.

[Há umas semanas, falou-se de um projeto para os médicos das urgências serem pagos pelo número de doentes atendidos; independentemente dos vantagens e desvantagens que isso possa ter, a primeiro coisa que me ocorreu foi "se esse sistema for implementado, o médico que ganhar mais dinheiro com isso - e matematicamente quase de certeza que haverá algum a ganhar mais que os outros - ao fim de alguns anos vai ser denunciados pelos jornais"]

Uma proposta para o novo ano

Na cidade de Utrecht, junto com 19 outros municípios holandeses, discute-se a possibilidade de passar a pagar a todos os cidadãos caídos no desemprego um salário garantido de 660€ mensais. Este salário garantido será acumulável com os rendimentos que as pessoas possam entretanto auferir através do trabalho, a tempo inteiro ou parcial. A ideia é possibilitar a quem está numa situação de desemprego um nível de rendimento que permita uma mais adequada procura de uma nova ocupação. Pretende-se romper com os actuais sistemas de pagamento e de gestão dos desempregados que se revelam muito caros - pelo custo da burocracia que gere o sistema, não tanto pelos rendimentos eventualmente elevados dos desempregados -  e ineficazes (o facto de os desempregados serem compelidos a aceitarem propostas de emprego desajustadas, devolve-os rapidamente ao desemprego). Uma proposta com algo de revolucionário, e claramente em contraciclo, nestes tempos marcados pela supremacia do neoliberalismo.

23/12/15

Amnésia e falácia classista

Henrique Raposo choca-se numa crónica do Expresso, escrevendo e puxando para título da crónica: "Os médicos ganham menos do que os maquinistas do Metro". Faz por esquecer o compadecido Raposo — e procura aplicar-nos, por meio da sua falácia classista, a mesma amnésia —A que os médicos beneficiaram de estudos mais prolongados e de uma formação que lhes dá acesso a uma variedade mais ampla de áreas vocacionais, além de terem gozado de apoios sociais — directos ou não — mais avultados. Por mim, não digo que a solução seja os médicos ganharem menos do que os maquinistas ou do que as caixeiras dos supermercados, mas parece-me que a justiça possível em matéria de remunerações não pode deixar de passar por menos choradinho acerca da pouca retribuição dos que beneficiaram de uma formação superior — e por mais políticas de igualização radical de salários e rendimentos.

22/12/15

A esquerda e a banca

A respeito do caso Banif (que talvez faça este governo ser tão curto com o anterior), uma coisa que me ocorre é que, atrás das aparências, a esquerda não tem tido uma posição muito clara sobre o problema da banca.

Sim, há muito que PCP e BE defendem a nacionalização, ou pelo menos o "controlo público", da banca, criticam os "lucros privados e prejuizos públicos", dizem que se anda a "salvar bancos" enquanto se corta em tudo o resto, etc.

Mas algo que não me parece que tenham tido uma posição clara é o que fazer a partir do momento em que os bancos privados realmente existentes (e não os bancos públicos que deveriam existir) vão à falência: salvá-los de qualquer maneira? Deixá-los falir (e arrastando os obrigacionistas e grandes depositantes pelo caminho)?

Na questão do Banif o PCP parece estar contra o negócio decidido anteontem, mas não percebo muito bem o que propôem em alternativa (talvez nas próximas horas se torne mais claro); já no caso do BES, a esquerda (talvez mais o PS do que a esquerda propriamente dita) parece-me ter andando com os "lesados" (isto é, os capitalistas "passivos") ao colo.

A economia mundial à beira do abismo?

Uma tradução livre duma breve reflexão sobre o rumo da economia mundial. Apertem os cintos. Durante o próximo ano poderemos assistir ao colapso de várias economias da periferia, e a instabilidade crescente no núcleo da economia mundial.

"Ao mesmo tempo que a Reserva Federal dos EUA elevava as taxas de juros na semana passada pela primeira vez em 10 anos, em resposta ao que disse ser a força da economia dos EUA, os preços das mercadorias mais sensíveis à economia, como os metais para uso industrial e o petróleo bruto, atingem recordes mínimos.

Ou os preços dessas mercadorias estão prestes a virar a esquina, em resultado da força renovada da economia dos Estados Unidos - o maior comprador de mercadorias junto com a China - ou a Reserva Federal dos EUA está a interpretar mal as folhas de chá e a quebra nos preços dessas mercadorias sinaliza uma economia mundial e dos EUA em perigo.

Analistas de mercado gostam de dizer que o cobre é o metal com um Ph.D. em economia. Por causa do papel central do cobre na economia moderna, este frequentemente prevê de forma confiável a direção da economia. Desde que o preço do cobre atingiu o seu pico no início de 2011, acima de US $ 4,50 por libra, diminuindo para perto de US $ 3 em 2011, coincidindo com o pico da crise na Europa, saltou de volta para perto de US $ 4 assim que a crise abateu, estabelecendo-se acima de US $ 3 em meados de 2013, onde essencialmente permaneceu até este ano. No entanto, desde Maio que o seu preço está a decrescer, atingindo $ 2,05 por libra na semana passada, apenas três centavos acima do mínimo para o ano registrado a 23 de Novembro.

21/12/15

Velhos problemas com as soluções do costume

Já se sabe de outras aventuras: a opção que cada Governo toma em cada momento passa sempre por os contribuintes assumirem a conta. Chamou-se a isto, no ínicio do processo austeritário, socializar os prejuízos. Prejuízos, na actividade opaca a que os bancos se dedicam, pode ser o sinónimo de ganância, cupidez, ausência de escrupulos e um total sentimento de impunidade.
António Costa, e o seu Governo, não fugiu à regra. Tal como Passos já dissera, e  Sócrates antes dele, a solção escolhida é a que "melhor defende o interesse nacional". Será a única e será mesmo aquela que melhor defende o interesse nacional?
Esta crise do BAnif aterrou com estrondo na política portuguesa - de onde nunca chegara a levantar voo - para mostrar duas coisas: 1º - a política, no que ao essencial diz respeito, continua a fazer-se "by the book". Quem escolhe a bibliografia não é de todo o Governo e a maioria que o suporta; 2º - para os novos tempos que aí vêem são válidas todas as velhas fórmulas que julgaríamos estarem mortas e enterradas. Não estão, longe disso.
Dito isto apetece-me perguntar. Quanto custava ao Estado Português absorver o Banif através da CGD? Mais de 2,25 mil milhões de euros? Ou quanto custaria indemnizar os depositantes? Menos de 2,25 mil milhões de euros.
Apetece-me, também, dar um cartão amarelo/alaranjado ao Governo de António Costa. Triste País, sempre vergado ao peso de tantas e tão mesquinhas inevitabilidades. Triste País em que os que ganham e os que perdem são sempre os mesmos, os do costume.

PS - o anterior Governo sabia deste buraco na sua total dimensão. São os responsáveis pelas opções que tomaram em particular a injecção de 700 milhões de capital no banco, através de uma tomada de posição accionista. Deviam ser responsabilizados. Mas, isto não é um jogo de pingue-pongue em que de um lado e do outro da rede se envia a bola - das responsabilidades - para o campo adversário, gritando altíssimo: o culpado foram vocês.

20/12/15

Podemos e as eleições em Espanha.

O resultado do Podemos excede as melhores expectativas de quem acompanhava estas eleições. Depois de quase ter naufragado, arrastado pelas ondas de choque que varreram a situação na Grécia, o Podemos reune a confiança de mais de 5 milhões de cidadãos e ultrapassa largamente a formação da direita emergente, o Ciudadanos, que durante semanas fez o papel de futuro grande vencedor das eleições.
Lá como cá a direita mais conservadora, e mais pró-austeritária, mantem o estatuto de partido mais votado, mas revela-se incapaz de formar Governo. Perdem quase quatro milhões de votos em quatro anos. Admite-se que Rajoy tenha pudor e não faça como cá, passando a exigir em cada esquina o direito a governar.
Lá como cá os socialistas, apesar de estarem na oposição, perdem um milhão e meio de votos desde 2011. O PS espanhol, como o Português, revelou-se incapaz de conquistar o poder, sobretudo porque foi incapaz de romper com a austeridade e com as políticas que flagelaram os espanhóis. O problema do PS espanhol é que apareceu uma força política que é quase do seu tamanho e que disputa parte do seu espaço político: o Podemos.
O problema político espanhol é que não existe nenhuma coligação razoável que permita suportar um Governo com apoio maioritário. O apelo vai fazer-se no sentido de PP e PSOE se unirem. Para o PSOE seria o passo seguro para o abismo. Não sendo assim, um Governo PSOE+ Podemos poderia governar com a abstenção do Ciudadanos. Não parece viável.
Haverá eleições gerais mais cedo do que tarde. Mas, os espanhóis deram um passo de gigante para começar a mudar a Europa: o bipartidarismo morreu.

19/12/15

Sondagem feita aos eleitores Republicanos nos EUA



Os mais favoráveis ao bombardeamento parecem ser os apoiantes de Donald Trump (41%), mas entre os apoiantes de quase todos os candidatos há mais a favor do que contra (detalhes na página 16).

17/12/15

Se lá chegar

Há um problema político grave com as eleições presidenciais: a esquerda apresenta-se muito dividida e favorece, de uma forma masoquista, uma eleição, à primeira volta, do candidato da direita. Digamos que estas eleições Presidenciais decorrem num contexto que ainda não parece reconhecer as virtualidades do acordo de Governo celebrado entre as esquerdas. Podem dar-se sobre isto as mais variadas explicações. Esta é apenas uma delas. Não será a mais feliz, já que faz depender a avaliação das opções políticas presentes de hipotéticos resultados futuros.

16/12/15

A Revolução segundo Errico Malatesta

Revolução é a criação de novas instituições vivas, novos grupos, novas relações sociais; é a destruição de privilégios e monopólios; é um novo espírito de justiça, de fraternidade, de liberdade, que deve renovar toda a vida social, o nível moral e as condições materiais das massas, chamando-as a providenciarem, através da sua acção directa e consciente, para o seu próprio futuro.

Revolução é a organização de todos os serviços públicos por aqueles que neles trabalham, no seu próprio interesse, bem como no interesse do público.

Revolução é a destruição de todos os laços coercivos; é a autonomia dos grupos, das comunidades, das regiões.

Revolução é a federação livre provocada por um desejo de fraternidade, por interesses individuais e coletivos, pelas necessidades da produção e defesa.

Revolução é a constituição de inúmeros agrupamentos livres baseados em ideias, desejos e gostos de todos os tipos que existem entre as pessoas.

Revolução é a formação e dissolução de milhares de corpos, representativos, distritais, comunitários, regionais e nacionais que, sem ter qualquer poder legislativo, servem para tornar conhecido e para coordenar os desejos e interesses dos povos próximos e distantes e que agem por meio de informações, conselhos e exemplo.

A revolução é liberdade demonstrada no cadinho dos fatos - e dura tanto tempo como a liberdade dura, isto é até outros, aproveitando o cansaço que avassala as massas, as decepções inevitáveis ​​que se seguem a esperanças exageradas, os erros prováveis ​​e falhas humanas, têm sucesso na constituição de um poder, que apoiado por um exército de conscritos ou mercenários, estabelece a lei, detém o movimento no ponto em que chegou, e, em seguida, inicia a reação.

Errico Malatesta (1853-1932)

13/12/15

Foi o "grande centro" que levou Hitler ao poder ou foi o facto de não se ter entendido que lhe possibilitou a chancelaria?

Pergunta Henrique Monteiro no Expresso.

De certeza que o problema na Alemanha de Weimar não foi o "grande centro" não se ter entendido - durante os anos 20, o SPD, o Partido Democrático Alemão (DDP, liberal de esquerda, um dos antepassados do atual FDP) e o Partido do Centro (católico, em larga medida antepassado da atual CDU) frequentemente governavam em coligação. A partir de 1930, o sistema de governo parlamentar deixou de funcionar na Alemanha, mas não porque os partidos do centro não se tivessem entendido - simplesmente deixaram de ter deputados suficientes para formar um governo: em 1930, o SPD, o Centro e o DDP elegeram 231 (143 + 68 + 20) deputados em 577; mesmo juntando o Partido Popular Alemão (DVP, liberal de direita, o outro antepassado do FDP), com 30 deputados, e o Partido Popular Bávaro (BVP, o partido-irmão bávaro do Partido do Centro, mas mais à direita, conservador, regionalista e com simpatias monárquicas; em larga medida o antepassado da atual CSU), com 19 deputados (esses dois partidos não eram bem a favor da República de Weimar, mas também não eram totalmente contra, e frequentemente eram adicionados à coligação governamental, já que raramente os três partidos centristas/republicanos tinham a maioria), daria só 280 deputados (menos 9 que a maioria).

Com esse resultado, a Alemanha passou a ser ter o que chamaríamos "governos de iniciativa presidencial", dependentes do poder que presidente alemão tinha para legislar por decreto.

Daí em diante é só a descer - em julho de 1932, o SPD, o Partido do Centro e o Partido do Estado Alemão (o anterior Partido Democrático) elegem 212 deputados (133 + 75 + 4) em 608; mesmo juntando o BVP (24 deputados) e o DVP (7 deputados), não daria nada parecido com uma maioria - ou pondo as coisas de outra maneira: nessas eleições, os partidos abertamente anti-regime, como o Partido Nacional-Socialista (230 deputados), o Partido Comunista (89 deputados) e o Partido Nacional-Popular (o partido tradicional da aristocracia militar prussiana, herdeiro dos conservadores de Bismark, com 37 deputados) tinham em conjunto a maioria do parlamento, o que quer dizer que era matematicamente impossível um governo "moderado" (ou os comunistas ou os nazis eram necessários para haver uma maioria).

Finalmente, em novembro de 1932, nas últimas eleições livres, a situação mantêm-se: os nazis elegem 196 deputados (em 584), os comunistas 100 e os nacionais-populares 51; apesar da queda eleitoral dos nazis (que baixaram de 37% para 33%), continua a haver uma maioria de deputados eleitos pelos partidos "extremistas" (logo o "grande centro" podia-se entender à vontade que não conseguiriam nada sem o apoio de algum desses "extremistas"). E o resto é história...

11/12/15

A cidade não é para todos!!! O mercado de arrendamento enlouqueceu.

A ausência de uma política de habitação é, sempre, uma prova evidente e irrefutável da ausência de uma política de cidade. Quer isto dizer que, nesses casos, a cidade fica entregue ao Mercado e podemos, seguramente, temer o pior. Uma cidade elitista, uma cidade não inclusiva e não democrática.
Em Lisboa o mercado de arrendamento parece ter enlouquecido. Os valores praticados são injustificáveis na capital de um País como Portugal. Injustificáveis numa cidade democrática que se preocupa com a vida dos seus cidadãos.

10/12/15

ROAR



ROAR é um colectivo nascido há 5 anos com o objectivo de "criar uma plataforma online onde activistas de todo o mundo pudessem reunir-se para partilhar perspectivas de base na luta global para uma democracia mais efectiva". Já aqui chamei a atenção para vários excelentes artigos por eles publicados. Há uns dias atrás re-inauguraram a sua plataforma online, e disponibilizaram o número zero da sua (nova) revista (trimestral), online e em PDF. O índice desta edição, sobre "Building Power", é o seguinte

1. Building Blocks, ROAR Collective
2. No, No, No, John Holloway
3. Chronicles of a Defeat Foretold, Theodoros Karyotis
4. Bookchin’s Revolutionary Program, Janet Biehl
5. Towards a New Anti-Capitalist Politics, Jerome Roos
6. Why We Still Love the Zapatistas, Leonidas Oikonomakis
7. Building Power in a Crisis of Social Reproduction, Manuela Zechner & Bue Rübner Hansen
8. Recuperating Work and Life, Marina Sitrin
9. Spaces for the Left, Michael Hardt
10. Theses on a Unionism Beyond Capitalism, Erik Forman
11. The Potential of Debtors’ Unions, Debt Collective
12. Rebel Cities and the Revanchist Elite, Carlos Delclós
13. Ending Anti-Black State Violence, Opal Tometi
14. After the Water War, Oscar Olivera
15. Reopening the Revolutionary Question, Amador Fernández-Savater
16. Consolidating Power, David Harvey

09/12/15

As Distopias da direita radical: o regresso à escravatura.

A direita que nos governou e que governa grande parte da Europa  aspira a uma sociedade em que as condições para a acumulação de riqueza, nas mãos de alguns poucos, seja maximizada. Para isso é condição sine qua non um crescente aumento da exploração dos trabalhadores. Nalguns casos, apesar da "legalidade de papel" o proibir, violando todas as regras que presidem à vida em sociedade. A noticia seguinte é elucidativa dessa "cultura".

http://www.theguardian.com/business/2015/dec/09/how-sports-direct-effectively-pays-below-minimum-wage-pay

07/12/15

Herege: quem professa ideias contrárias às geralmente admitidas

Uma excelente e imperdível entrevista, que vem de encontro ao que recentemente defendi nestes comentários. Alguns extractos:

"Por um lado, a tradição intelectual e racional do islão foi marginalizada nas sociedades muçulmanas por volta do século XIV, XV. Por exemplo, toda a ideia de teologia racional, que o dogma devia relacionar-se com a razão, que devemos justificar através do pensamento racional aquilo em que acreditamos, estas ideias foram mais ou menos abandonadas por uma técnica a que chamamos ‘fechar as portas da itjihad' [raciocínio independente]. Estas ‘portas’ não foram fechadas do dia para a noite, aconteceu ao longo de um par de séculos. Para além disso, houve muitos califas que não gostavam do pensamento racional, os estudiosos de então questionavam a autoridade, eram o que hoje chamamos dissidentes. Um califa muito conhecido, Al-Qhadir, do império Abássida, criou o “credo Qhadir’, que proibia que se colocassem perguntas racionais. Saber se o Corão foi criado, por exemplo, era muito debatido. Esta era uma pergunta muito racional, se foi criado, foi criado na História, e então tem um contexto histórico e precisa de ser interpretado à luz da História."

"A maioria dos muçulmanos pensa que a sharia é divina, mas na verdade é uma construção humana na História. É uma lei construída no século IX, quase 250 anos depois da morte do Profeta. O que é interessante é que até aí havia racionalismo na cultura muçulmana, não havia sharia, não havia hadiths [conjunto de ditos de Maomé], eles estavam a reuni-los nessa altura. E nesse período clássico inicial, a sociedade islâmica fervilhava de ideias, pensamento e aprendizagem. Quando a sharia foi formulada, os teólogos inventaram uma espécie de truque para aumentar a confiança nestas regras, sugerindo que a sharia era divina. Mas a maior parte da sharia vem dos ditos do Profeta, que são fabricados."

"Sim, são uma espécie de dogma manufacturado. Isso pode ser demonstrado muito claramente. Por exemplo, a sharia diz que um apóstata [alguém que abandona a religião] deve ser morto, mas o Corão diz que não há pertença compulsiva ao islão. A sharia diz que a mulher tem um estatuto inferior e deve cobrir-se, mas o Corão diz que homem e mulher são iguais. Há muitos aspectos da sharia que estão em completa contradição com o Corão. Afirmar que a sharia é divina é totalmente ridículo e grande parte do fundamentalismo vem de aceitar a sharia como lei divina."

Porque será que estas opiniões são tão pouco divulgadas? Uma importante razão para tal compreende-se ao ler o resto da entrevista... 

06/12/15

O racismo e a xenofobia vencem primeira volta das Regionais em França

A Frente Nacional tornou-se hoje o partido mais votado em França. O contributo da governação do Presidente Hollande, e do seu primeiro-ministro Valls, para este terrivel acontecimento foi inestimável. A deriva securitária e belicista de Hollande na reacção aos atentados de Paris, não mudou o sentido da História. O projecto político do PS francês - que defraudou as aspirações de milhões de franceses, submetendo-se às orientações da senhora Merkell - está em completa desagregação. Deixará uma França liderada pelos herdeiros dos derrotados na Segunda Guerra Mundial. Uma França racista e xenófoba, submetida ao medo e à recusa do Outro.

05/12/15

Recomendação de leitura: "Pray for the left ― ou as perigosas opiniões da esquerda" no Passa Palavra

Apesar de tomar como referência meios e ideias, com alguns traços peculiares, que remetem para um contexto brasileiro, o artigo do Coletivo Loukanikos, publicado no Passa Palavra, reveste-se também da maior pertinência para a região portuguesa. Senão veja-se esta breve amostra:

É justa a indignação contra a hipocrisia e seletividade da imprensa capitalista e dos chefes de Estado. Porém, fazer contorcionismos eufemísticos que no fim legitimam os atentados já não é justo. Combater os estereótipos, dizendo que nem todo islamita é terrorista, e que a grande maioria deles repudia atos terroristas como o ocorrido, também é justo. Porém, reforçar o estereótipo de que todo europeu é opressor e racista, desconsiderando que grande parte é contra a guerra empreendida pelos seus Estados, é pensar na mesma lógica, mas do outro lado. Combater o silêncio da imprensa capitalista em relação ao terrorismo de Estado nas periferias, bem como à tragédia em Minas Gerais, ou à guerra no Oriente Médio e às calamidades em África também é justo, ainda mais que se aproveitam do sensacionalismo em relação aos atentados em Paris para jogarem para debaixo do tapete aquelas tragédias. Porém, desmerecer as vítimas e o peso dos atentados, que estão contextualizados em um conflito mundial de grandes proporções, também é pensar na mesma lógica, só que do outro lado. Na verdade, nesses casos a lógica é a mesma, só o conteúdo e os alvos que são trocados.

04/12/15

A Cidade à mercê do Mercado.

A venda dos terrenos da Feira Popular sofreu mais um contratempo. Pelos vistos a hasta pública marcada para ontem ficou deserta e a venda ficou adiada para melhores dias. Lisboa tem um problema grave de povoamento com implicações terríveis. Ao longo de trinta anos a cidade perdeu mais de 300 mil habitantes. Sucessivas Câmaras e sucessivos Governos revelaram-se incapazes de inverter este processo de desertificação da cidade, acompanhada por uma forte segregação social e espacial. O crescimento da população de alguns concelhos limítrofes, a sul e a norte do Tejo, e o aumento constante das deslocações pendulares baseadas no transporte individual, são uma das faces dessa moeda. A outra face é o aumento brutal do número de Condomínios Privados e a guetização - para muito ricos, mas uma efectiva guetização - de bairros inteiros da cidade, com uma suposta renovação urbana, e a aposta desenfreada no turismo, a criar as condições para a sua elitização.
Sempre que a autarquia tem a possibilidade de vender terrenos municipais é confrontada com a possibilidade de inverter este processo. Depara-se com duas opções, a saber: continuar a entregar nas mãos do Mercado a condução do processo, conferindo-lhe, dentro de limites por si definidos, total liberdade, ou, mudar de paradigma, liderando ela o processo de urbanização e recuperando os melhores exemplos da história da cidade.
A opção tem sido sempre pela primeira hipótese. Há alibis vários que a justificam.  Consultores estratégicos que defenderão esta opção com o Estado da Arte das ciências urbanas. Mas é de uma opção política que se trata. Com resultados visíveis, mensuráveis: uma cidade cada vez menos inclusiva.
Neste caso a autarquia parece estar a falhar na "adivinhação" do que  o Mercado quer. Pelo que se diz na notícia o Mercado acha que há pouca habitação autorizada. Menos de 35 por cento da área total de construção. Parece, assim à primeira vista, que o Mercado tem razão. Trinta e cinco por cento parece próprio de uma cidade - e de um bairro na cidade - em que faltem comércio e serviços e abunde habitação. Uma cidade ao contrário de Lisboa. Porque não cinquenta por cento de habitação? Porque não setenta e cinco por cento de habitação?
Mas, mesmo que fossem esses os limites fixados, ficaria sempre a necessidade de responder a outro tipo de questões. De que tipo de habitação está o Mercado a falar? Para quem e a que custos? Com que nível de segmentação?
Bom, isso é entrar em teorias socialistas, ideias radicais, velharias dos anos setenta do século passado. Estes são outros tempos. Os tempos da modernidade, da internacionalização da capital, da sua competitividade. Deixemos o Mercado tratar da cidade. A sua competência tem sido evidente. Os resultados estão à vista. Assim os poderes públicos fossem igualmente competentes a abrir vias rápidas para os cada vez maiores e mais distantes dormitórios nas periferias. É preciso optimizar a entrada e a saída da cidade daqueles que só cá fazem falta para ... produzir. É preciso investimento público. Precisamos de autarcas capazes de perceberem cada vez melhor aquilo que o Mercado quer. Sem hastas públicas desertas.





CDS acusa: afinal há mesmo um acordo do PS com o BE e o PCP

Governo é "um projeto radical social-comunista".

01/12/15

Os exames do ensino primário

Imagino que grande parte dos comentadores que são a favor nos exames na escola primária tenham idades não muito diferentes da minha (com "não muito diferentes" estou até a incluir os que tenham mais dez anos que eu), logo em princípio não tiveram exames na primária; devo então deduzir que esses comentadores se consideram o fruto de um sistema de ensino facilitista (se calhar alguns até já se voluntariaram para voltar a fazer a quarte classe, porque têm noção que a que fizeram provavelmente não valeu nada e precisam de verdadeiras bases).

28/11/15

Humilhação e violência

A edição de hoje do jornal Público contém um artigo extremamente útil para perceber o que realmente motiva aqueles que se juntam ao Estado Islâmico (EI) com o intuito de executar actos de violência, seja onde for. A conclusão do artigo é clara: aqueles que o fazem, vêm na violência um exercício de catarse da sua raiva interior, auto-justificada com a pretensa defesa do "Islão". Colam-se à etiqueta EI para auto-engrandecerem os seus actos. Percebendo isto torna-se evidente o erro em que incorrem todos aqueles que perante actos de violência cometidos em nome do "Islão/EI", pressupõem que a motivação desses actos é o fanatismo ou fundamentalismo religioso.

É sempre a raiva, o ódio, que alimenta o exercício da violência. Mas a raiva, o ódio, nunca são gerados apenas pela percepção da existência do Outro. Esta pode, no máximo, gerar desconforto, medo, sentimentos negativos, mas defensivos nas acções que desencadeiam, ou seja, levam ao retraimento, podem originar uma fuga. A raiva, o ódio, resultam antes, na maior parte das vezes, de um dos sentimentos mais poderosos que um ser humano pode sentir: a humilhação. Neste outro artigo discute-se como a humilhação, sentida por todas as partes envolvidas num conflito, alimenta a espiral de violência. Ora, a humilhação quotidiana é uma parte integral da esmagadora maioria das sociedades existentes neste planeta. Está presente em todas as sociedades onde existem hierarquias impostas, seja através do uso da força, seja pelo condicionamento cultural e social. Em particular, as sociedades assentes no modo de produção capitalista são pródigas na diversidade dos meios utilizados para induzirem humilhação, que vão desde as acções perpetradas pelos agentes do Estado, passando pelas relações de produção/trabalho, pela valorização da propriedade e associada desvalorização de tudo o que não é quantificável, e portanto que não é passível de mercantilizar. Vale a pena ler este artigo, onde se exemplifica com um caso concreto, como a humilhação sentida em resultado do embate com o Capitalismo levou à raiva, que também neste caso se transmutou num pretenso "radicalismo religioso".

Erradicar a humilhação que produz a raiva que alimenta o conflito e a violência só é possível a partir do momento em que nos vejamos verdadeiramente como iguais, como igualmente merecedores de respeito. Uma sociedade assente neste princípio só pode ser radicalmente democrática e comunista.

França : a quém serve a guerra deles ?

  Este texto (em francês) que circula nas redes sociais é o mínimo que pode, e deve, ser dito sobre a situação pesada e dificil que vive a sociedade francesa. 
Contribuição para quém não se submete à propaganda de morte do complexo militaro-industriel e dos sinistros chefes politicos que estão ao serviço dos seus interesses, que criaram os Frankenstein que hoje trazem a guerra para casa. Com o Estado de Urgência "socialista" chegou também a repressão social e o governo pelo medo. Entre os discursos de guerra, de vingança, de incitação ao ódio e à religiosidade, um esgoto aberto de irracionalidades, a ordem deles (dixit o Sr. Valls) é clara e sem apelo : "Sobretudo não pensar!" A nossa resposta terá obviamente de ser a recusa desta lógica. Porque o que vivemos é : " A vossa guerra, os nossos mortos".


A qui sert leur guerre ?

Aucune interprétation monolithique, aucune explication mécaniste n’élucidera les attentats. Faut-il pour autant garder le silence ? Beaucoup jugent - et nous les comprenons - que devant l’horreur de l’événement, seul le recueillement serait décent. Mais nous ne pouvons pas nous taire, quand d’autres parlent et agissent pour nous : nous entraînent dans leur guerre. Faut-il les laisser faire, au nom de l’unité nationale et de l’injonction à penser comme le gouvernement ?
Car ce serait la guerre, désormais. Auparavant, non ? Et en guerre pour quoi : au nom des droits de l’homme et de la civilisation ? En réalité, la spirale dans laquelle nous entraîne l’Etat pompier-pyromane est infernale. La France est en guerre continuellement. Elle sort d’une guerre en Afghanistan, lourde de civils assassinés. Les droits des femmes y sont toujours bafoués, tandis que les talibans regagnent chaque jour du terrain. Elle sort d’une guerre en Libye qui laisse le pays ruiné et ravagé, avec des morts par milliers et des armes « free market » qui approvisionnent tous les djihads. Elle sort d’une intervention au Mali. Les groupes djihadistes liés à Al-Qaida ne cessent de progresser et de perpétrer des massacres. A Bamako, la France protège un régime corrompu jusqu’à l’os, comme au Niger et au Gabon. Les oléoducs du Moyen-Orient, l’uranium exploité dans des conditions monstrueuses par Areva, les intérêts de Total et de Bolloré ne seraient pour rien dans le choix de ces interventions très sélectives, qui laissent des pays dévastés ? En Libye, en Centrafrique, au Mali, la France n’a engagé aucun plan pour sortir les populations du chaos. Or il ne suffit pas d’administrer des leçons de prétendue morale (occidentale). Quelle espérance d’avenir peuvent nourrir des populations condamnées à végéter dans des camps ou à survivre dans des ruines ?
La France prétend détruire Daech ? En bombardant, elle multiplie les djihadistes. Les « Rafale » tuent des civils aussi innocents que ceux du Bataclan. Comme en Irak, certains de ces civils finiront par se solidariser avec les djihadistes : ces bombardements sont des bombes à retardement.
Daech est l’un de nos pires ennemis : il massacre, décapite, viole, opprime les femmes et embrigade les enfants, détruit le patrimoine mondial. Dans le même temps, la France vend au régime saoudien, pour des milliards d’euros, des hélicoptères de combat, des navires de patrouilles, des centrales nucléaires; l’Arabie saoudite vient de commander trois milliards de dollars d’armement; elle a réglé la facture des deux navires Mistral, vendus à l’Egypte du maréchal Al Sissi qui réprime les démocrates du printemps arabe. En Arabie saoudite, ne décapite-t-on pas ? N’y coupe-t-on pas les mains ? Les femmes n’y vivent-elles pas en semi-esclavage ? Engagée au Yémen au côté du régime, l’aviation saoudienne a bombardé les populations civiles, détruisant au passage des trésors architecturaux. Bombardera-t-on l’Arabie Saoudite ? Ou bien l’indignation fluctue-t-elle selon les alliances économiques de l’heure ?
La guerre au Djihad, dit-on martialement, se mène en France aussi. Mais comment éviter que ne sombrent des jeunes issus en particulier des milieux populaires, s’ils ne cessent d’être partout discriminés, à l’école, à l’embauche, dans l’accès au logement ou dans leurs croyances ? Et s’ils finissent en prison. En les stigmatisant davantage ? En ne changeant rien à leurs conditions d’existence ? En niant leur dignité revendiquée ? 
Nous sommes ici : la seule manière de combattre concrètement, ici, nos ennemis, dans ce pays devenu le deuxième vendeur d’armes mondial, c’est de refuser un système qui, au nom du profit à courte vue, produit partout plus d’injustice. Car la violence d’un monde que Bush junior promettait, il y a quatorze ans, réconcilié, apaisé, ordonné, n’est pas née du cerveau de Ben Laden ou de Daech. Elle pousse et prolifère sur la misère et les inégalités dont, année après année, les rapports de l’Onu montrent qu’elles s’accroissent, entre pays du Nord et du Sud, et au sein des pays dits riches. L’opulence des uns a pour contrepartie l’exploitation et l’oppression des autres. On ne fera pas reculer la violence sans s’attaquer à ses racines. Il n’y a pas de raccourcis magiques : les bombes n’en sont pas.
Lorsque furent déclenchées les guerres d’Afghanistan et d’Irak, nos mobilisations ont été puissantes. Nous affirmions que ces interventions sèmeraient, aveuglément, le chaos et la mort. Avions-nous tort ? La guerre de F. Hollande aura les mêmes conséquences. Il est urgent de nous rassembler contre les bombardements français qui accroissent les menaces et contre les dérives liberticides qui ne règlent rien, mais contournent et nient les causes des désastres. Cette guerre ne se mènera pas en notre nom.

Signataires :

Ludivine Bantigny, historienne; Emmanuel Barot, philosophe; Jacques Bidet, philosophe; Déborah Cohen, historienne; Laurence De Cock, historienne; Christine Delphy, sociologue; Cédric Durand, économiste; Fanny Gallot, historienne; Eric Hazan, éditeur-écrivain; Sabina Issehnane, économiste; Razmig Keucheyan, sociologue; Marius Loris, historien, poète; Marwan Mohammed, sociologue; Olivier Neveux, historien de l’art; Willy Pelletier, sociologue; Irène Pereira, sociologue; Julien Théry-Astruc, historien; Rémy Toulouse, éditeur; Enzo Traverso, historien.

25/11/15

Um Governo do PS com o apoio da esquerda -II


Finalmente, António Costa foi indicado/indigitado para liderar o próximo Governo e, neste momento, são já conhecidos os ministros que dele farão parte.
A Assembleia da República, que teve já oportunidade de aprovar importante legislação com base na maioria de esquerda aí existente, irá aprovar o programa do Governo e o Orçamento para 2016.
Este novo Governo é um Governo do PS, como aqui referi, apoiado pela esquerda parlamentar. Não é um Governo de coligação dos partidos que na AR asseguram uma maioria de esquerda.
A sua próxima tomada de posse põe um ponto final numa das mais antigas impossibilidades da política portuguesa: os partidos à esquerda do PS não integram o arco da governação. Mas, o acordo não foi capaz de acabar com outra impossibilidade tão velha como a primeira: os partidos à esquerda do PS não integram os Governos. Mesmo aqueles que apoiam politicamente, sabemo-lo agora.
Parece-me mal a permanência desta impossibilidade. Parece-me ainda pior, porque não duvido que isso resulta da mais difícil de ultrapassar de todas as barreiras: aquelas que nós colocamos a nós próprios. Ora, não precisava de ler a seguinte  frase da deputada Mariana Mortágua para saber que os partidos à esquerda não aceitaram integrar o Governo.

"(...)Aquilo que permite um acordo com estas características, mas não permite uma coligação de Governo diz respeito àquilo que nos diferencia. Estou a falar das questões europeias, do Tratado Orçamental, da dívida(...)"

Esta frase consagra a impossibilidade de o BE -  o PCP é mais imprevisível - participar num Governo, a menos que seja o "seu Governo", ou um Governo liderado pelo PCP, porque não se percebe outra forma de ultrapassar estes "constrangimentos". Parece-me que a opção mais inteligente seria integrar um Governo, o actual, trabalhando para a correção destes instrumentos de controlo orçamental que a nível Europeu determinam muito do que se faz internamente. Embora o constrangimento europeu implique muitas e diferentes "lutas" que importará travar. Há aqui uma clara demissão que aparece disfarçada de fidelidade aos princípios ou de intransigência.
Há ao mesmo tempo uma ilusão política grave. Dá-se a entender que há duas dimensões separadas na governação: a europeia e a nacional. Um erro político grave, que representa uma cedência àqueles  que dentro do BE  digeriram com dificuldades o acordo e desde sempre se opuseram à participação no Governo.
As consequências prácticas da permanência desta impossibilidade são várias. Em primeiro lugar quer isto dizer que o acordo conseguido se organiza em torno de um programa mínimo e que a forma como a governação se irá desenrolar dependerá, exclusivamente, da forma como o PS irá gerir as relações com os seus apoiantes e com as restantes entidades que, nacional e internacionalmente, interferem com a Governação. O que significa que se António Costa quiser conferir um teor mais centrista à Governação, apesar do rigoroso cumprimento do Programa Mínimo, isso não será impedido pelos que suportam o Governo a nível parlamentar.
Como refere a deputada bloquista na entrevista já aqui citada :


Uma solução contra o empobrecimento é muito importante. Legitima, por si só, o acordo. Mas, é uma solução pobre, já que ignora as restantes dimensões da política e da acção governativa. Ora, há muitas áreas em que a participação da esquerda bloquista e comunista poderia trazer vantagens ao Governo e à governação.  Um reforço da transparência,  um combate ao tráfico de influências e à corrupção. Uma despartidirização da máquina e do aparelho de Estado. Uma gestão mais transparente do Quadro Comunitário. Um maior controlo dos fundos comunitários investidos, com combate à corrupção que se organiza à sua sombra. Uma revisão da Contratação Pública, eliminando as novas formas de promoção da corrupção e do nepotismo. Essas vantagens  -resultantes da participação directa no Governo - não são substituíveis por Grupos de Trabalho, por muito que os temas a tratar sejam relevantes e devam ser discutidos. Mas, sinceramente, é necessário fazer um grupo de trabalho para analisar as questões da Política de Habitação? E será possível continuar a ignorar uma abordagem da política de ordenamento do território, que ignore a política de solos e de habitação e que ignore uma política das cidades ? Pelos vistos sim, embora isso vá ser estudado.
Bom, estas criticas não são apagadas pela existência de um Governo que coloque um ponto final nos aspectos mais nefastos da austeridade e acabe com um dos Governos mais sinistros da democracia. Mas esperemos pelo programa e pelo Orçamento para vermos melhor o que aí vem.
Há pelo menos uma sensação de alívio na sociedade e o renascer da convicção de que a esperança é possível, outra vez. A TINA recolheu aos bastidores de onde nunca devia ter saído. Saiu de cena.

 

24/11/15

O estado de emergência em França (II)

France Cracks Down on Civil Liberties, Sometimes Exceeding US's Post-9/11 Response, por Anthony L. Fisher (Reason):
France's reaction to the terrorist attacks of two weeks ago, which left 130 dead, is playing out similarly to the US's response after the 9/11/01 attacks which left 2,977 dead, but in some ways goes even further.
France Goes to War on Civil Liberties, por (Mother Jones):
The rise of a police state in France may come as a surprise to Americans old enough to remember when France stood out as Europe's greatest critic of President George W. Bush's war on terror—a spat that peaked in 2003 when, in response to French opposition to the invasion of Iraq, the House of Representatives cafeteria rebranded its French fries "Freedom Fries." (...=

SPEECH AND THE PRESS

United States: The constitutional right to free speech in the United States remained in full effect in the aftermath of 9/11. Disturbing images of people jumping to their deaths from the World Trade Center led the front pages of newspapers around the country.

France: The state of emergency law authorizes the government to "control the press" by placing restrictions on everything from radio broadcasts to movies and plays. Just after the Paris attacks, the French police prevented journalists from interviewing witnesses. In the following days, France's Interior Ministry asked social media networks such as Twitter to censor photographs of the killings and to remove keywords and posts it deemed to be pro-ISIS. Under France's expansive hate speech laws, it is a crime to insult people based on their race, religion, or sex; to deny the Holocaust; or to advocate terrorism.
The expanded powers approved on Friday give police officers an increased capacity to block websites that "encourage" terrorism. But in extending the state of emergency, parliament removed the restrictions on journalists. Lawmakers are also reportedly considering a law that makes it easier to deport radical imams.

FREEDOM OF ASSEMBLY

United States: The US Constitution guarantees "the right of people to peaceably assemble"—a right that was generally respected even after 9/11. However, a 2010 Supreme Court ruling upheld a federal law that makes it illegal to offer "material support," including training and expert advice, to US-designated terrorist groups. Courts have also allowed the police to curtail the assembly rights of criminal gangs using "gang injunctions."

France: The declared state of emergency allows French authorities to close any public meeting place, including public theaters. The expanded powers approved on Friday permit police to dissolve groups or associations they believe participate in, facilitate, or incite acts that are a threat to public order. Members of these groups can be placed under house arrest.

The government has invoked the state of emergency to cancel protests and marches that were planned to coincide with the COP21 climate conference.

NATO: chão que já deu uvas?

- A França (membro da NATO) é atacada pelo Estado Islâmico

- Como a Rússia está a bombardear os grupos rebeldes sírios (incluindo o EI), a França fala em colaborar com a Rússia

- Entretanto, a Turquia (membro da NATO) abate um avião russo, que supostamente teria invadido o seu espaço aéro

Nos últimos dias, tem-se ouvido "analistas" a falarem sobre a importância da NATO, agora que a Europa está sobre ameaça terrorista; independentemente das dúvidas que se possam levantar em geral sobre o uso de forças militares convencionais para lutar contra o terrorismo, a NATO em particular parece largamente inútil no que diz respeito à luta contra o EI, já que os seus membros têm agendas largamente contraditórias no que diz respeito à Síria e arredores.

23/11/15

As condições de Cavaco

Atualização às 12:25 de 2015/11/24: seja lá o que Costa lhe tenha dito ou escrito, parece que o Cavaco lá ficou contente.

O presidente recusou-se para já a indigitar António Costa como primeiro-ministro, enquanto não forem esclarecidas as seguintes condições:
"a) aprovação de moções de confiança;

b) aprovação dos Orçamentos do Estado, em particular o Orçamento para 2016;

c) cumprimento das regras de disciplina orçamental aplicadas a todos os países da Zona Euro e subscritas pelo Estado Português, nomeadamente as que resultam do Pacto de Estabilidade e Crescimento, do Tratado Orçamental, do Mecanismo Europeu de Estabilidade e da participação de Portugal na União Económica e Monetária e na União Bancária;

d) respeito pelos compromissos internacionais de Portugal no âmbito das organizações de defesa colectiva;

e) papel do Conselho Permanente de Concertação Social, dada a relevância do seu contributo para a coesão social e o desenvolvimento do País;

f) estabilidade do sistema financeiro, dado o seu papel fulcral no financiamento da economia portuguesa."

Algumas penso que seria fáceis de resolver - as das moções de confiança (com os 4 partidos a se comprometerem a votar a favor de qualquer moção de confiança que o governo apresente) provavelmente deveria estar no acordo desde o príncipio; a dos orçamentos há boas razões para não estar, mas o texto dos acordos poderia ser facilmente reescrito para dar a volta ao problema (estilo "o orçamento será analisado e discutido com os partidos signatários de forma a se assegurar que tenham a sua concordância"). Já a do papel do CPCS e da estabilidade do sistema financeiro, parecem-me coisas tão vagas que até poderiam ser facilmente metidas nos textos (mas o seu caráter vago tem um reverso - o PR poderia sempre dizer que o que fosse metido no texto não era suficiente).

Os grandes problemas são, portanto, o tratado orçamental e a NATO.

No que diz respeito ao tratado orçamental, parece-me que não faz sentido o BE e a CDU aceitarem-no; no fundo, o seu acordo com o PS assenta muito numa posição "nós achamos que é muito díficil romper com as políticas de austeridade dentro do tratado orçamental; mas se o PS acha que é possível, terá o nosso apoio para isso"; mas introduzir o tratado orçamental no acordo implicaria, parece-me, ter uma cláusula dizendo que os compromissos de aumento dos salários e das despesas sociais seriam suspensos ou reformulados se afinal se chegasse à conclusão que as contas do PS estavam erradas e não era possível realizá-los no quadro do tratado orçamental - o BE e a CDU aceitarem isso seria abandonarem todo o seu programa.

Quanto à NATO, não sei se não será uma falsa questão - posso estar completamente enganado, mas creio que nenhum intervenção da NATO foi sujeita a uma votação na Assembleia da República, pelo que, se assim for, não é preciso o BE e a CDU concordarem ou deixarem de concordar com essas intervenções para elas se fazerem (e a exigência de Cavaco é apenas uma forma de levantar obstáculos, pondo condições que dificilmente o BE e a CDU aceitarão).

22/11/15

O estado de emergência em França

É impressão minha ou o atual estado de emergência francês (com proibição de manifestações, possibilidade de deter pessoas sem autorização judicial, etc.) é muito mais limitador das liberdades civis que o tão criticado "Patriot Act" norte-americano pós-11 de setembro? E com a agravante que não me parece estar a levantar em França as críticas que o "Patriot Act" levantou nos EUA.

Será que, pelos vistos, nós, europeus, somos mesmo mais dados que os norte-americanos a estarmos dispostos a trocar liberdade por segurança? Poderá ser também o caso que os "líderes de opinião" tendem a ser menos críticos para com um presidente francês (e do Partido Socialista) do que seriam para com um presidente norte-americano (sobretudo se for Republicano)...

Outra coisa que me ocorre: a tal conversa do "eles odeiam-nos pela nossa liberdade" é idiota (afinal, os islamitas radicais também não são fãs de ditaduras comunistas, de ditaduras nacionalistas relativamente seculares e alguns nem gostam de monarquias absolutas islâmicas que se desviem um milímetros da linha mais radical), mas é capaz de ter uma coisa boa: leva a que se seja mais cuidadoso em restringir liberdades em nome do combate ao terrorismo, já que leva as pessoas a acharem que se se restringir muito as liberdades "os terroristas ganharam".

19/11/15

Uma crónica de antologia de Ricardo Araújo Pereira

Quem não tenha por hábito comprar a revista Visão, não deve deixar de visitar o link publicado pela Joana Lopes, para a ler na íntegra e guardar para memória futura a crónica desta semana de Ricardo Araújo Pereira. Entre os nomes dos que, juntamente com os assassinos, condenam os que ofendem a  sensibilidade religiosa daqueles, figuram "grandes nomes"  (falta, é certo, um tal Santos, particularmente emblemático de certa "esquerda" da região portuguesa, o que não tira um grama de lucidez ao texto) das nossas elites intelectuais, políticas, eclesiásticas e literárias, documentando bem a estupidez abissal com que a oligarquia governante procura — parafraseando O'Neill — perfilar-nos de medo e fazer-nos obedecer.

17/11/15

O Observador, os governos legítimos e ilegítimos e o falecido Helmut Schmidt

No seu artigo de opinião no Observador, Os disponíveis, Maria João Avillez dedica-se sobretudo a atacar a futura aliança de esquerda («esta trapalhada em que estamos, feiíssima trapalhada que as boas almas se apressam sempre a rotular de “legítima”») e ainda mais o que me parece um produto da imaginação dela - as pessoas de direita e entidades patronais que estariam a ser muito brandas na crítica a esse acordo («Basta ouvir o silêncio ensurdecedor que durante as últimas semanas envolveu todo o espaço à direita do PS para se compreender o que digo»; « basta observar como alguns mentores ou responsáveis da sociedade civil, patrões ou “concertadores sociais”, estão já disponíveis para o beneficio da dúvida senão mesmo para a fé, para, com assinalável segurança, obter a temperatura do ar que se respira.» - em que planeta MJA tem estado?); mas dedica a parte final a evocar elogiosamente o falecido chanceler alemão Helmut Schmidt.

Já agora, pode ser interessante relacionar os dois assuntos, e lembrar as duas eleições (1976 e 1980) na sequência das quais Schmidt foi chanceler (numa coligação entre os seus sociais-democratas do SPD com os liberais do FDP):

1976
CDU/CSU 48,9%
SPD 42,6%
FDP 7,9%

1980
CDU/CSU 44.5%
SPD 42,9%
FDP 10,6%

Antes que alguém me diga que individualmente a CDU e a CSU tiveram, cada uma, menos votos que o SPD, noto que a CDU e a CSU têm um grupo parlamentar comum, uma "jota" comum, apresentam um candidato comum a chanceler e em cada região da Alemanha só concorre uma ou a outra, funcionando a nível nacional como, no mínimo, uma coligação pré-eleitoral permanente, se não mesmo um partido bicéfalo, fazendo todo o sentido dizer que ficaram em primeiro lugar nessas eleições (por outro lado, se quisermos mesmo contar os votos separados, terão sido os governos de Kohl em 1987 e 1994 e de Merkel em 2005 "trapalhadas"?).

Claro que se pode argumentar que MJA não diz que seja por o PS não ser o mais votado que um governo PS apoiado pelo BE e pelo PCP será uma trapalhada, logo será irrelevante quem foi ou não o mais votado nesta ou naquela eleição alemã do século passado; talvez - a direita farta-se de apresentar razões para esse governo ser "ilegítimo" (não ser liderado pelo partido mais votado, não ter sido anunciado antes das eleições, ser entre partidos que terão programas muito diferentes sobre alguns assuntos, porque os acordos serão muito limitados, porque o BE e o PCP não estão no governo, etc. etc.), saltando de umas para outras conforme é mais conveniente - mas atendendo que ela não explica o porquê da "ilegitimidade" vou assumir que é por não ser o mais votado (que me parece, apesar de tudo, ser o argumento mais popular para negar e legitimidade desse eventual governo).

16/11/15

A "esquerda sonsa" disposta a fumar, mas sem engolir

Há pouco tempo ainda, o PS dizia que, em último caso e se o resto da malta lhe passasse o charro, fumava. Agora diz que é preciso distinguir entre fumar e engolir o fumo.

António Costa foi questionado sobre se admitia uma intervenção militar contra a organização terrorista, com participação portuguesa, e recusou: “Há formas diversas que não implicam o envolvimento direto, há porventura formas mais adequadas” de “honrar os compromissos internacionais do país”, disse Costa. O ponto era sensível, visto que PCP e BE são abertamente contra qualquer intervenção militar.

A "esquerda patriótica", a "esquerda gaga" e a guerra

Como o Miguel Madeira mostrou ainda há pouco, o EI é, de facto, um Estado. Ora, acontece que esse Estado declarou em termos mais do que explícitos guerra à UE. O que nos põe perante algumas questões imediatas e claras, que podem resumir-se nas duas perguntas seguintes: Será possível travar a guerra por via política não-militar? Caso não seja possível ou não queiramos aceitar a via da negociação ou da rendição militar, que fazer na situação de guerra efectiva em questão?

A este respeito, convém reconhecer que, se as respostas dos partidos que constituíram até há pouco o "arco da governação" são vagas e erráticas — a guerra, só em último lugar; a guerra, só se não houver outra maneira; etc., sendo que não são sequer formuladas as perguntas: A guerra, como? A guerra, para quê?—  —, as da "esquerda" parlamentar são ainda mais insensatas (caso do PCP) ou vazias (caso do BE).  Com efeito, se havia quem receasse que a "esquerda patriótica" e soberanista, assumisse perante a declaração de guerra de um Estado agressor posições de apoio incondiconal a medidas de retaliação defensiva, não poderá deixar de sentir-se estupefacto perante a recusa, após uma declaração de guerra de outro Estado, de qualquer intervenção militar no estrangeiro. Dizer que a guerra declarada aos Estados membros da UE pelo EI se deve, sobretudo, à política externa norte-americana, etc., etc., não impede essa declaração de atentar contra a "nossa pátria".

As considerações gagas do BE conseguem o prodígio de não dizer coisa nenhuma: o Bloco de Esquerda recusou que a “solução” para o terrorismo passe pela “violência” e pela via militar. Contactado pelo Observador, o BE remeteu qualquer esclarecimento sobre a posição do partido para as declarações feitas este fim de semana pelos dirigentes bloquistas que estavam em Paris. Falando aos jornalistas no domingo depois de prestar homenagem às vítimas, o líder parlamentar bloquista defendeu que a “resposta ao terror” deve ser “forte, veemente, mas dentro do quadro da democracia”. Ou seja, sem violência e sem ação militar de contra-ataque (…) O mesmo disseram a coordenadora do BE, Catarina Martins, e a candidata presidencial apoiada pelo partido, Marisa Matias: que caminho tem de ser feito pela “solidariedade” e não através do “ódio”. Essa é, disseram, “a única resposta da paz e dos direitos humanos”. As dirigentes bloquistas defenderam, durante uma sessão de apresentação da candidatura de Marisa Matias a Belém, que a Europa não pode enfiar a cabeça na areia nem construir muros ou fechar fronteiras, devendo sim procurar perceber “as causas e razões destes atentados” e trabalhar para “acabar com o terrorismo”. A "resposta ao terror", "forte e veemente", será, quando muito, a constituição de um grupo de trabalho, que estude — não se sabe se em conjunto com o PS, ou não — maneiras pacíficas e solidárias de combater o agressor.

Por fim, é de notar o quase silêncio da "esquerda patriótica" e do BE sobre a questão dos refugiados e a urgência, que a guerra em curso só vem reforçar, de um acolhimento mais aberto e que vise a sua integração acelerada nos países da UE como cidadãos de parte inteira, sem guetos, nem outorgas envenenadas de estatutos identitários à parte.

O "Estado Islâmico" não é um estado nem é islâmico?

É frequente dizer-se que o autoproclamado "Estado Islâmico" não é um estado nem é islâmico. Será? Vamos ver:

- O EI tem todas as características de um Estado: controla um território (sobre qual exerce o monopólio da violência), aplica uma dado sistema legal (neste caso, uma interpretação da sharia), cobra impostos, tem até uma espécie de aparelho administrativo, etc.

- E é claramente de inspiração islâmica - a grande diferença entre o EI e a Arábia Saudita (que quase ninguém negará que seja islâmica) é que a Arábia Saudita (ou, já agora, a outra fação fundamentalista dos rebeldes sírios, a Al-Nusra) não transmite as execuções para o mundo via youtube.

Neste conversa de "o EI nem é um Estado nem é Islâmico" parece-me haver um grande desejo de negar que tanto os estados como as religiões possam cometer ou promover atrocidades.