31/10/12

Aguenta!


Em 2005, havia um banco cujo site parecia aquilo a que hoje se chama uma loja chinesa: de computadores a peças de ourivesaria, tudo se vendia por ali, sempre com a promessa de dinheiro rápido e fácil. Para tudo ter, bastava pedir os afectuosos serviços do BPI. E o respectivo crédito ao consumo, claro está. 
 Este banco era já então comandado por Fernando Ulrich. Esse mesmo: o incalável tenor da cantilena “os portugueses viveram acima das suas possibilidades”; o iluminado que quer desempregados a trabalhar para ele sem pagar; o banqueiro que não pára de lucrar com a dívida soberana portuguesa, enquanto se refinancia a taxas mais que generosas; o homem que gasta a língua a dar graxa aos sapatos do governo e a vituperar todos os seus empecilhos, do Tribunal Constitucional ao madraço do tuga.
Agora, o visionário só tem uma palavra para responder a quem duvida que Portugal seja capaz de levar com mais doses desta terapia assassina: “Aguenta!” É certo e sabido que os gregos fazem um pouco mais de barulho nas manifs do que nós e partem uns quantos tarecos urbanos, “mas eles estão lá, estão vivos”. 
 Talvez aqui se justifique perguntar se o senhor banqueiro aguentaria que lhe arrancassem a língua com uma tenaz ferrugenta. Ficaria vivo, isso é certo. Ou relembrar um episódio pícaro que há uns anos teve como estrela um conhecido arquitecto. Também ele incitava as renitentes parceiras a serem privadas do seu bem-estar e da sua dignidade com a mesma palavra de ordem: “aguenta!”


Também publicado aqui

30/10/12

A visão de um CEO sobre empregados e crianças

David Siegel, CEO of Westgate Resorts, sent his 7000 employees a mailer warning them not to vote for Obama. Asked to explain his letter, Siegel said:

Dicionário abreviado de Coelhês


Aritmética – 1. Arte esotérica que em tempos idos garantia, por exemplo, que a cobrança de IVA não sobe em ano de recessão profunda. 2. Botabaixismo.
Banca – 1. Amigos que nos hão-de dar emprego quando isto der para o torto. 2. Que merece todo o apoio e consideração.
Direitos – 1. Ilusões que povoam os cérebros desnutridos do lumpen. 2. Reivindicações mais que justas dos amigos e patronos (cf. “Banca”).
Emigração – Forma de relocalização recomendada a descontentes, manifestantes e outros madraços.
Estado – 1. Armazém de benfeitorias a distribuir com critério. 2. Entidade maternal a que os inúteis recorrem. 3. Local onde certas espécies parasitas dominantes depositam os seus ovos, para depois eclodirem como larvas vorazes.
Exigência – Modalidade de avaliação destinada a todos excepto a ministros, parceiros de coligação, universidades esconsas e grandes fortunas.
Mercados – Divindades a quem devemos pagar tributo de quem só os acólitos certificados conseguem descortinar as insondáveis vontades.
Não – Sinónimo de “Sim”. Usado para negar, por exemplo, um novo pedido de ajuda que se sabe iminente.
Piegas – Qualquer indivíduo que ache mal ter de viver sem dinheiro, curar-se sem medicamentos, manter a esperança sem futuro à vista.
Refundação – 1. Admissão tímida de engano monstruoso, mantendo no entanto a pouca face que sobra. 2. Inescrutável processo que implica a transferência de culpas próprias para terceiros. 3. Milagre.
Rigor – Antónimo de “Orçamento de Estado”.
Social – Designação genérica de doenças que têm como sintomas a preguiça, a irresponsabilidade e um destrutivo desejo de exigir condições de vida vagamente humanas.

29/10/12

Para continuar o debate sobre "os perigos da nação em cólera": o Passa Palavra contra "lugares-comuns e ideias feitas"

Neste blogue têm vindo a ser discutidas nas últimas semanas algumas questões fundamentais de que se ocupa mais um texto colectivo — A propósito de lugares-comuns e ideias feitas — que o Passa Palavra acaba de publicar. A sua leitura contribuirá decerto para precisar o debate. E mostra a meu ver como a reiteração de posições soberanistas e patrióticas leva a substituir a "questão nacional" à "questão social", a "independência nacional" à "emancipação dos trabalhadores", a "liberdade do Estado" (que Marx considerava inversamente proporcional à dos cidadãos) à do autogoverno dos iguais…

Aqui fica o link e um excerto do texto do Passa Palavra:

E como a saída da zona euro e a adopção de uma moeda de pechisbeque traria condições de vida ainda piores do que as que já sofremos, provocaria uma considerável desilusão dos trabalhadores, que tinham esperado salvar-se ou pelo menos emergir e ver-se-iam mais afundados. Daqui resultaria muito provavelmente uma agudização das reivindicações e das lutas, numa situação em que os patrões e os governantes teriam ainda menos margem de manobra do que hoje. A resposta só poderia ser o agravamento da repressão e a tentativa de pôr fim às greves sob o pretexto de que precisamos de defender a economia nacional. Os mais velhos de entre nós já ouviram esta música.

Ora, como escreveu Nuno Cardoso da Silva, um comentador que neste contexto citamos por excepção, já que destoa das futilidades e dos delírios, «não precisamos efectivamente de nenhum capitalismo de Estado para resolver os problemas do capitalismo privado».

Nada disto convence os comentadores histéricos, que repetem em todos os tons Não importa o que virá depois. Mas isto significa que se derruba a actual situação sem saber em benefício de quem. O Que se lixe! tem uma função exclusiva de ocultamento político.
(…)
Há quem nos acuse de «prostração perante a grande burguesia europeia e a oligarquia financeira europeia». (…) Aliás, alguns comentadores mais histéricos postulam a equivalência entre o internacionalismo do Passa Palalvra e o imperialismo dos Estados Unidos ou da Alemanha.
Mas aqueles que «por anticolonialismo» defendem «a saída imediata de Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha da União Europeia» será que há alguns anos atrás defenderam também que saíssem imediatamente da União Soviética a Ucrânia, a Bielo-Rússia, a Geórgia, a Arménia, o Azerbeijão, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, o Uzbequistão, o Turquemenistão e desculpem-nos os esquecimentos? Ou será que a balcanização, que é uma catástrofe visível no Leste da Europa, se transformará numa benção a Ocidente?



Será que imaginam que, saindo da zona euro, Portugal poria em causa os centros imperialistas? Ora, a economia portuguesa representa uma parcela ínfima do Produto Interno Bruto da zona euro e não é com estas migalhas que os centros capitalistas europeus enriquecem, mas com a exploração dos seus próprios trabalhadores.
(…)
[A] estes comentadores (…) [que] falam só de nações (…) nem lhes passa pela cabeça analisar as contradições sociais nos centros mais produtivos da União Europeia e confundem os «trabalhadores do centro e norte ricos da Europa» entre o saco sem fundo dos defensores da chanceler Merkel. Um dos comentadores evocou mesmo «uma União Europeia, comandada sobretudo pelos capitalistas do Norte e fortemente apoiada pela classe trabalhadora bem instalada nesses países e que não sente a crise». Voltámos assim à oposição entre nações proletárias e nações plutocráticas, típica da panóplia de conceitos dos fascismos.

Depois acham que não temos razão para estar preocupados?



27/10/12

O dilema da esquerda europeísta - revisitado

No contexto da discussão ali em baixo entre o Pedro Viana, o Miguel Serras Pereira e mais uma carrada de gente, venho repostar este meu post de Maio de 2011, "O dilema da esquerda europeísta":

Perante a impossibilidade de, a curto prazo, atingir os seus objectivos minimos (i.e., a criação de uma politica económica e social comum a sério, decidida de forma razoavelmente democrática) qual deve ser o mal menor - a UE tal como ela existe, ou defender a saída do euro?

Ou pondo a questão de uma maneira mais concreta, imagine-se três hipoteses (não estou a contar, para já, com a "República Federativa dos Conselhos Operários Europeu"):

A - moeda única com um orçamento comum
B - moeda única sem um orçamento comum (basicamente, a situação actual)
C - fim da moeda única e regresso às moedas nacionais

Muitos economistas defendem que só as opções A e C são viáveis a prazo (é mais ou menos o que Paul Krugman defende aqui); o que é que alguem que defenda a opção A deverá preferir, a B ou a C?

Argumento a favor da opção C - resolve o problema de ter uma moeda única sem uma politica económica comum; argumento a favor da opção B - é mais fácil a transição futura para a A a partir da B do que da C.

Esta questão não é académica - a saída do euro (e provavelmente também da UE) em breve será o principal tema de discussão politica neste subcontinente.

25/10/12

De que falamos quando falamos de alternativa?


(o meu artigo no i de hoje)

É urgente mudar os conteúdos das políticas que nos governam? Sim, é urgente, e no entanto não basta simplesmente mudar os conteúdos.

O artigo que escrevi há duas semanas dirigia críticas à ideia de alternativa que me parece ter sido acalentada em iniciativas como o “Congresso das Alternativas”. Em troca recebi algumas respostas que desde já agradeço.
A questão que pretendi colocar a debate naquele artigo foi: de que falamos quando falamos de alternativas? Julgo importante fazer esta pergunta porque, a meu ver, a actual situação política não exige simplesmente propostas políticas com conteúdos diferentes, mas também outra forma de organização do trabalho político. Esta exigência interpela a chamada esquerda do “arco da governação”, isto é, o PS, que por alternativa tem entendido, sobretudo, alternância governativa, mas também julgo interpelar a restante esquerda que navega na órbita parlamentar. Não esqueço que comunistas e bloquistas sempre exigiram uma mudança de políticas e não simplesmente uma alteração dos políticos, mas, se ontem teria eventualmente bastado o muito que seria substituir políticas económicas liberais por políticas económicas de pendor social-democrata, creio que hoje não só não chegará mudar de políticos como também não bastará mudar de políticas. É também preciso, sim, mudar a política.
Os trabalhos que esta mudança implica não são simples e ninguém garante um final feliz. São várias as hipóteses que estão na ordem do dia.
A primeira é a de uma mudança de orientação tecnocrática. Do ponto de vista tecnocrático, o confronto político entre os partidos no quadro parlamentar é uma espécie de fábrica de mistificações ideológicas que se limita a atrapalhar a eficiência governativa. Haveria, então, que remover o parlamento (ou até mesmo as eleições) para nos aproximarmos da verdade das coisas.
A segunda hipótese é a hipótese populista. Mais do que na ideia da política como um lugar contaminado por ideologias cuja abstracção só atrapalhará o melhor governo do país, esta hipótese assenta na suposição de que a política é hoje um lugar dominado por palavras despidas de emoções, que através de artifícios retóricos acaba por nada dizer ao coração de um povo que por este efeito se vê excluído do sistema.
A terceira hipótese é a que me parece ser alimentada por iniciativas como o “Congresso das Alternativas”. Esta hipótese dirige a sua crítica não ao sistema demo-parlamentar por inteiro mas ao monopólio que dele fariam os partidos políticos. Em alternativa a este monopólio, haveria que procurar um sistema de representação em que, por exemplo, as personalidades teriam maior margem de manobra. É o discurso alimentado por vários independentes de esquerda, de ex-dirigentes partidários a jovens intelectuais cujo brilho é indisputável.
Por que não me agrada esta terceira hipótese? Porque a hipótese que me anima é a da possibilidade de uma experiência democrática além do sistema representativo vigente. Neste sentido, o meu problema com o BE e o PCP não reside no facto de eles monopolizarem a representação parlamentar do famigerado povo da esquerda ou de serem mais ou menos eficazes na sua performance político-institucional. O meu problema reside no facto de a vida político-institucional – e o circuito mediático e a lógica estatal que ela envolve – tender a monopolizar a política desses partidos. Acresce, ainda, que BE e PCP, com os infinitos defeitos que têm, guardam uma vantagem em relação a um "Congresso das Alternativas" que, podendo ter sido uma experiência de construção política colectiva, pouco fez para evitar que se apresentasse em público como uma constelação de protagonismos individuais. Ora, ao culto da liberdade individual e do brilhantismo intelectual dos independentes de esquerda continuarei a preferir o colectivismo dos militantes partidários, com todos os problemas que o colectivismo também suscite.

Uma questão de vias de facto

Como o Miguel Serras Pereira chamou a atenção, foi recentemente publicado no Passa Palavra um novo texto de opinião, que desenvolve a argumentação apresentada num texto anterior, em parte como resposta às críticas que lhe foram feitas por Alexandre Abreu no blogue Ladrões de Bicicletas.

Infelizmente, o novo texto publicado no Passa Palavra padece do mesmo problema que o anterior. Tal como já tive a oportunidade de o referir antes, esse problema radica na recusa em serem retiradas consequências práticas das posições defendidas. Não estou, de modo nenhum, a exigir "(...)propostas concretas de negociação com a Troika ou de organização da economia pós-Troika(...)", mas somente a pedir ao(s) autor(es) dos textos em causa que não se retraiam, e explicitem o que acham que deve ser o curso de acção daqueles que interpelam. Ou os textos que têm publicado não procuram ter consequências sobre quem os lê? Serão meros exercícios de retórica propositadamente estéril? Talvez achem que cada um deve retirar as suas próprias conclusões sobre o curso de acção que deve seguir. Diria que é bem mais provável que quem escreveu os textos em causa tenha uma ideia muito clara sobre o curso de acção a tomar, mas não a partilha com aqueles a quem dirige os seus textos porque sabe que esse curso de acção é impossível de ser por eles aceite aceite. Por mais sustentado que seja, do ponto de vista do processo dedutivo assente nas regras da lógica, tal curso de acção não é aceite porque é incompatível com a dignidade daquele que não aceita ser humilhado através da restrição da sua autonomia e da exploração do seu trabalho. Quem se sentiria confortável em recomendar a um escravo: recusa a luta pela liberdade, pois de outro modo muito provavelmente diminuirás o teu bem-estar material, quiçá acabarás ainda mais escravo?...

 

23/10/12

Novo contributo do Passa Palavra para o debate em torno da "saída do euro" e da "unificação política da zona euro"

O artigo A saída do euro e o fascismo assinado pelo colectivo do Passa Palavra, para cuja importância chamei a atenção a seu tempo,  deu lugar a longas menções e respostas, seguidas de uma série de comentários de índole muito diferente, surgidas em blogues como os Ladrões de Bicicletas (Alexandre Abreu) , o 5 dias (João Valente Aguiar) e o próprio Vias de Facto (Pedro Viana).

Centrando-se numa análise crítica dos argumentos de Alexandre Abreu, mas não se limitando a eles, o colectivo do Passa Palavra volta agora à carga com novo editorial intitulado «Europa não, Portugal nunca» – um esclarecimento, explicitando a sua perspectiva e reiterando a sua tomada de posição: ou seja, as razões pelas quais "[em] vez de apontarmos para uma saída do euro e o ressuscitar do «orgulhosamente sós», pensamos que é mais propício para as lutas dos trabalhadores o prosseguimento da unificação política da zona euro". Aqui fica o link, bem como a conclusão do artigo, para alimentar um debate cuja urgência e consequências dificilmente poderão ser exageradas.


A nossa análise adiantou outro aspecto, sem o qual não pode ser entendida. É que, se o nacionalismo deixou de ter uma existência possível no plano económico, todo o nacionalismo constitui hoje uma falsa consciência, queremos dizer, uma ideologia que, servindo por um lado para obscurecer a realidade, por outro lado serve para indicar em negativo o lugar dessa realidade. A falsa consciência é sempre uma consciência incómoda, como entenderá quem se der ao trabalho de estudar o fascismo nos textos dos fascistas. A demagogia e a histeria de insultos são a forma estilística desse incómodo. É disto e deste nacionalismo que estamos a falar.

Alexandre Abreu afirmou que «num cenário de saída e desvalorização, o ajustamento afectaria transversalmente o poder aquisitivo externo dos rendimentos do trabalho e do capital». O objetivo, pensamos, não é que o capital perca poder porque sim, mas que tal perda beneficie aqueles que trabalham. Ora, o cenário de trabalhadores e patrões unidos numa comum e fraterna indignação prenuncia uma coligação populista e, com ela, todo um conjunto de perigos associados. Num artigo que publicámos recentemente chamámos a atenção para os perigos da «nação em cólera», usando os termos que um fascista sabedor e erudito empregou para classificar esse tipo de indignação nacional.
Pretender, como faz Alexandre Abreu, que a saída do euro permitiria «que um outro mecanismo que não a compressão salarial funcione como variável de ajustamento face à co-evolução das economias» é, uma vez mais, raciocinar no plano financeiro como se ele fosse único ou determinante, porque uma saída do euro provocaria uma tal catástrofe nos rendimentos dos trabalhadores que isto corresponderia a uma compressão salarial muito superior àquela que nos é agora imposta. Ora, é precisamente aqui que detectamos o cerne da incompreensão de Alexandre Abreu perante o nosso artigo. Escreveu ele que, em nosso entender, «a desvalorização do poder aquisitivo externo das poupanças afectaria sobretudo os pequenos e médios capitalistas e os trabalhadores». E em seguida considerou «estranho que uma proposta de esquerda como a destes autores tenha como umas das suas preocupações centrais proteger as poupanças em detrimento dos rendimentos presentes, nomeadamente os rendimentos presentes do trabalho». Mas nós não estamos interessados em proteger as poupanças dos pequenos e médios capitalistas. O que nos interessa, isso sim, é prosseguir o debate, analisando em que medida um ataque conjunto às poupanças desses capitalistas e aos salários dos trabalhadores não os confundiria todos numa «nação em cólera», para empregar uma vez mais as palavras do escritor e político fascista que citámos.

É precisamente nessa conjugação que reside o perigo do fascismo, agravado pelo nacionalismo.



Georges Brassens: "Vénus Callipyge" (1964)

Aqui fica este souvenir pas trop pieux de Brassens, no dia em que — se não tivesse decidido, entretanto, passer sa mort en vacances — completaria mais um aniversário, como a Joana não nos deixa esquecer, argumentando que todos os pretextos são bons para o ouvir. Ouçamo-lo, pois, em 1964, no teatro Gérard Philippe, em Saint-Denis…

21/10/12

Resultados eleitorais em Euskadi e na Galiza



Via El País.
De novo, volto a notar que tenho uma posição muito dividida sobre o separatismo basco (uma explicação mais em pormenor aqui).

20/10/12

Glosa e requiem


O Manuel António Pina tinha um leitor completamente obcecado
por ler tudo o que ele escrevia como lhe parecia descortinar às vezes que ele fazia
Quando não percebia logo tornava a ler o que já tinha decorado
quando percebia à primeira relia e decorava aquilo que lia

Como gostava muito desse leitor que não sabia que lhe coubera em sorte
o Manuel quis legar-lhe uma surpresa quando viesse o dia
em que faria de conta que chegava enquanto o levava a morte

E chegou para ficar enquanto fazia de conta que morria

19/10/12

MANUEL ANTÓNIO PINA (1943-2012)


PARA BAIXO E PARA CIMA

A Ana tinha um ió-ió muito bonito      
que fazia tudo o que ela queria
quando ela dizia "para cima" o ió-ió ia para baixo
quando ela dizia "para baixo" o ió-ió ia para cima
   
Como gostava muito daquele ió-ió
a Ana fazia de conta que não percebia
para o ió-ió ir para cima dizia "para baixo"
para o ió-ió ir para baixo dizia "para cima"
 
e como o ió-ió gostava muito da Ana
era o ió-ió mais obediente que havia
quando ia para cima fazia de conta que ia para baixo
quando ia para baixo fazia de conta que ia para cima

(Gigões e Anantes, 1974)

17/10/12

A candidata "verde" no debate Obama-Romney

Washington Post - Green Party candidate arrested outside debate site
Green Party presidential candidate Jill Stein and running mate Cheri Honkala were arrested outside Long Island’s Hofstra University ahead of tonight’s debate.


After being denied entrance to the campus because they lacked credentials, the two candidates sat down in the street in front of the university with an American flag on their laps, the Long Island Report explains. They were led away by police officers after refusing to move.

Stein and Honkala objected to being excluded from the debate, saying they are on 85 percent of state ballots and should be part of the national discussion.

16/10/12

Sejamos claros

O texto A saída do euro e o fascismo, publicado no Passa Palavra e a que o Miguel Serras Pereira já aludiu, motivou uma resposta por parte do Alexandre Abreu, no Ladrões de Bicicletas, e um comentário do João Valente Aguiar (recomendo também a leitura dos textos aí referenciados) no 5dias.

Da leitura de todos os textos acima mencionados, surge como óbvio um ponto comum: todos rejeitam os compromissos existentes relativos ao pagamento da actual dívida pública, o que advém em parte da constatação de que é impossível pagar tal dívida com os juros que neste momento recaem sobre ela (e que correspondem a cerca de 5% do PIB nacional), juros estes que na prática estão a ser pagos através dum maior endividamento do Estado Português. Ora, se o Estado Português tentar repudiar esses compromissos, através duma re-estruturação da dívida liderada pelo devedor, que envolveria uma combinação de re-definição dos juros a pagar, moratória e anulação pura e simples, é muito provável que o Banco Central Europeu (BCE) reaja suspendendo o financiamento da economia portuguesa, ou seja deixando de emprestar euros aos bancos a operar em Portugal. Ao mesmo tempo, estes seriam também negativamente afectados devido ao facto de serem detentores duma parte muito substancial da actual dívida pública portuguesa. A consequência óbvia deste duplo impacto será a falência de todo o sistema bancário, que precisará de ser nacionalizado, simultaneamente com a introdução de controlos sobre a saída de Capital. Nessa altura, ou o Estado Português introduz uma nova moeda através da qual se compromete a pagar as dívidas dos bancos (agora re-denominadas nessa moeda, pelo menos as de âmbito nacional), ou re-estrutura essas dívidas (mais uma vez combinando re-definição dos juros a pagar, moratória e anulação pura e simples) mantendo o euro como única moeda de transação em Portugal (o que é equivalente a criar uma nova moeda em paridade cambial com o euro, com todas as consequências previsíveis). Esta sequência de acontecimentos só é evitável se quem rejeita os compromissos existentes relativos ao pagamento da actual dívida pública condiciona essa rejeição à sua aceitação pelo BCE, ou seja se estiver implicitamente a propor, na verdade, antes uma re-negociação dos termos da dívida pública liderada pelos credores. É isto que pretendem?... Ou estão antes à espera que o BCE assista impávido a uma re-estruturação hostil da dívida pública portuguesa, com receio das consequências do abandono da zona euro por Portugal? Relembre-se que boa parte dessa dívida é (indirectamente) aos países que controlam o BCE, a qual está continuamente a aumentar por cada tranche que Portugal recebe ao abrigo do acordo com a "troika" FMI/CE/BCE, tornando politicamente cada vez mais difícil re-estruturar essa mesma dívida (os Estados, principalmente da UE, têm muito mais poder de retaliação sobre Portugal que investidores privados internacionais). Tudo isto já foi por diversas vezes mencionado, por exemplo na recente Declaração do Congresso das Alternativas.
 

15/10/12

Opção de classe

Nos últimos dias, o governo foi divulgando as medidas com maior impacto do Orçamento de Estado para 2013. Pretendia determinar quais gerariam maior oposição, de modo a poder recuar antes que fossem oficializadas. Hoje, o governo decidiu, sem surpresa, que afinal não vai ser aplicada a sobretaxa de 4% de IRS aos rendimentos de mais-valias mobiliárias, operações relativas a instrumentos financeiros derivados, relativas a warrants autónomos e certificados. E já se sabia que também não seria aplicada sobre os rendimentos sujeitos a taxas liberatórias, nomeadamente dividendos e rendimentos de aplicações financeiras, como os juros de depósitos a prazo ou dos certificados de depósito e rendimentos de títulos da dívida. Vai ainda manter-se a cláusula de salvaguarda relativamente à actualização do IMI. Um imposto particularmente odiado à Direita, porque penaliza a propriedade. Os grandes senhorios respiraram de alívio. Entre o Capital e o trabalhador, independente ou por conta de outrém, do sector privado ou funcionário público, este governo sabe sempre de que lado está. Quem disse que não havia alternativa? Existe, somos nós.

14/10/12

Um alerta lúcido do Passa Palavra sobre "A saída do euro e do fascismo" e vários equívocos de várias alternativas da "esquerda" nacionalista

é o título de um editorial do Passa Palavra que formula mais completa e convincentemente do que eu poderia fazê-lo as principais razões de fundo do alerta democrático que, a propósito dos mesmos problemas, nestes últimos tempos, não me tenho cansado de repetir.

12/10/12

Um Congresso pouco Alternativo

No dia 5 de Outubro, teve lugar o Congresso Democrático das Alternativas. No rescaldo deste, foi divulgada uma Declaração, baseada num documento preparado antes da realização do Congresso, e que sofreu algumas (pequenas) modificações durante este. A Declaração é clara na necessidade de denúncia do Memorando de Entendimento, cujas medidas estão a destruir o tecido económico e social em Portugal,  defendendo a reestruturação da dívida pública e da dívida bancária e a suspensão do pagamento dessa dívida (o que habitualmente acaba por levar à anulação de parte da dívida) caso haja uma suspensão do financiamento da economia portuguesa em virtude da denúncia do Memorando. Na Declaração são também defendidas medidas de política económica cujo objetivo declarado é conjugar "o desenvolvimento, a igualdade, a coesão e a sustentabilidade", e que genericamente merecem o meu acordo. É, no entanto, patente a ausência duma estratégia de reconfiguração das relações de trabalho, através da atribuição de mais poder aos trabalhadores para intervirem nas decisões empresariais, e mais genericamente da estrutura Capitalista da economia portuguesa (apesar de se defender genericamente "reforçar a proteção e o apoio ao sector cooperativo e social (economia social), criando as condições jurídicas, económicas e financeiras que permitam o seu desenvolvimento"). Ou seja, no que se refere às políticas económicas e sociais, a Declaração assenta em pouco mais do que numa re-afirmação dos princípios mínimos da tradição social-democrata na Europa (incluindo um vago "controlo público de sectores estratégicos da economia"). Outra coisa não seria de esperar quando o que os proponentes do Congresso possuem como principal preocupação é o desenvolvimento dum programa mínimo de convergência à Esquerda, em que PS, BE e PCP são vistos como seus principais representantes no actual sistema político. Aliás, a Declaração difere em pouco dos últimos programas eleitorais do BE, o que sugere que efectivamente (talvez mesmo intencionalmente na mente de alguns dos promotores), o Congresso constituiu uma forma de criar um movimento que extravasando (aparentemente) as fronteiras do BE, tem o potencial para congregar mais apoio social para as políticas que advoga.

CGTP apela à desobediência civil?

Não parece estar a ser dada muita importância e estas declarações de Arménio Carlos, secretário-geral da CGTP:

"“é o momento de os portugueses assumirem o artigo 21 da Constituição da República Portuguesa”, que estabelece “o direito à resistência contra as ordens ilegítimas que ponham em causa direitos, liberdades e garantias”."

A redação do artigo 21 da CRP é a seguinte:

"Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública."

Parece que José Pacheco Pereira tem razão quando afirma:

"Sindicatos e CGTP são para eles “velhos”, desinteressantes e de cassete, e prestaram pouca atenção ao facto de Arménio Carlos ter feito o mais violento discurso comunista desde o PREC (...) não viram aquilo que foi o mais evidente sinal de uma radicalização nas fileiras do PCP desde há anos de crise. Ora isso não só é novo, como dá uma dimensão que ao governo e o poder devia suscitar as maiores preocupações. Até porque se deve ao PCP e quase só ao PCP e à CGTP o clima de “paciência” do povo português e não haver violência nas ruas.(...) 

A CGTP e o PCP estão cada vez mais a dar expressão a uma radicalidade que vem de baixo, dos locais de trabalho, seja na função pública maltratada, seja nas fábricas onde há despedimentos colectivos, seja em sectores de trabalhadores que são tratados com desprezo por administrações que estão a rasgar acordos que assinaram há um ano.(...)"

11/10/12

Porque narciso acha feio o que não é espelho


(o meu artigo no i de hoje)
Junto a muitos outros e outras, temos vindo a apelar a que o descontentamento individual face à actual situação política dê lugar ao protesto colectivo. No último mês e meio, por obra e graça de milhares de factores, o protesto tomou conta das cidades. Multidão atrás de multidão, manifestação atrás de manifestação, as pessoas saíram à rua, protestaram contra a actual situação e a onda ameaça avolumar-se. Neste cenário, há quem continue a dizer que protestar não chega e que é preciso, sim, construir alternativas. É um erro, porque ou a alternativa nasce do interior do protesto ou não terá força para vencer.
A ideia de que a alternativa é uma fórmula que, trabalhada por um comité de dirigentes ou por uma elite de peritos, conferirá ao protesto a clarividência que dele estaria ausente, ideia que animou todas as vanguardas, falhou redondamente uma e outra vez. E falhou por duas razões. Em primeiro lugar, porque quem protesta também é clarividente e não gosta de se ver simplesmente na pele de um cavalo selvagem à espera de ser domado por um qualquer cavaleiro. Em segundo lugar, falhou porque os cavaleiros que acham que vêm de fora, por mais lúcidos e decididos que se julguem, nem sempre são tão clarividentes quanto o seu espelho lhes faz crer.
Precisamos, pois, de abandonar qualquer espécie de concepção instrumental do descontentamento popular e do protesto colectivo. Não se trata aqui de defender, entenda-se, que todo o protesto tem razão de ser a partir do momento em que é, mas antes de exigir que olhemos para os gestos e as palavras que fazem os protestos com o mesmo cuidados que devotamos à análise dos gestos e palavras dos dirigentes que se situam do lado esquerdo ou direito do hemiciclo parlamentar e dos peritos que os assessoram.
Como modificar o nosso olhar? Não é fácil, mas, de novo, a crítica é a única forma de ir apurando a alternativa. Critique-se a forma de escrever de um dos mais acutilantes cronistas dos nossos média, Daniel Oliveira, exemplo tanto mais útil porque grande parte das posições do cronista em relação ao actual governo não merecem a nossa discordância. Nos seus textos, Daniel tem-nos falado sobre o “desespero popular”, sobre um “povo furioso” ou ainda, entre outros exemplos possíveis, acerca da “raiva em que as pessoas estão”. Tudo isto parece incontestável, mas haveria que perguntar duas coisas: em primeiro lugar, se este tipo de representação do descontentamento não acaba por fazer desse povo de que nos fala uma entidade tanto mais potente quanto mais embrutecida, isto é, um corpo politicamente inimputável, sofrível mas incapaz de pôr cobro, por si só, ao seu sofrimento; e, segunda pergunta, se não é justamente esta suposição de um tal estado de descontrolo por parte da população que leva o nosso cronista, juntamente com outras boas almas da nossa esquerda cuja generosidade e voluntarismo não discutimos por um momento que seja, a entender que protestar não basta e que é preciso oferecer uma alternativa aos desesperados.
É também nas formas de elogio ao povo que protesta que se encontra, por vezes, a atribuição de uma deficiência a esse mesmo povo, deficiência que só poderia ser resolvida com o auxílio de seres dotados de uma razão política superior. Coisa importante para que este esquema funcione é que dirigentes e peritos, partidos e individualidades, denotem grande confiança nas suas próprias competências racionais. Poderão os leitores mais humildes julgar que tamanho nível de confiança é simplesmente inatingível, mas, na verdade, basta uma boa dose de ignorância quanto ao facto de a nossa própria racionalidade política ser também ela moldada por emoções e feitios que só em parte devem à razão. É tamanha ignorância, aliás, que tem permitido que algumas figuras à esquerda estejam sempre prontas a criticar os dirigentes dos partidos de esquerda em nome da unidade dos partidos da esquerda, supondo que estão a falar em nome do interesse geral das esquerdas e não já do seu legítimo mas próprio interesse.

09/10/12

Seminário Internacional ANARQUISMO - HISTÓRIA, TEORIA E POLÍTICA

Realiza-se no sábado, na FCSH-UNL, à Avenida de Berna, o seminário internacional "ANARQUISMO - HISTÓRIA, TEORIA E POLÍTICA". O programa completo encontra-se aqui. Apareçam e divulguem.

08/10/12

Um pequeno contributo para a discussão

Nestas duas últimas semanas foram divulgados vários textos que pretendem discutir diferentes propostas de caminhos que se apresentam à Esquerda, os quais foram oportunamente divulgados pelo Miguel Serras Pereira. Começando com "A classe trabalhadora vai à rua e encontra os mesmos do costume", devo dizer que apesar de concordar genericamente com a análise, esta apresenta a meu ver vários defeitos. A começar pelo título, infeliz, que sugere que apenas alguns devem possuir o direito de sair à rua, o que se não coaduna de todo com a democracia radical advogada pelos autores do texto. Mas também uma excessiva valorização quer da importância dos impulsionadores originais das manifestações inorgânicas que mais sucesso tiveram em termos de mobilização, quer da capacidade do PCP, CGTP e organizações associadas para virem a conseguir controlar e canalizar em seu proveito a raiva e o desespero que tem extravasado para a rua. Em termos de clarividência, parece-me mais acertada esta recente análise de José Pacheco Pereira, também mencionada pelo Tiago Mota Saraiva. O aspecto essencial que os autores do texto em apreço parecem não ter tido em conta é que o PCP, e organizações associadas, estão muito de longe de virem a estar numa posição de supremacia na sociedade portuguesa, pois não possuem nem o apoio (ou mesmo apenas a simpatia) da maioria da população, nem o apoio duma fracção significativa das forças armadas. O PCP sabe disto, e por isso apenas almeja maximizar o seu poder negocial, tornando-se incontornável em qualquer futuro governo de "salvação nacional". Ou seja, sim o PCP tentará controlar "a rua", mas não, não terá grande sucesso devido aos fortes obstáculos sociológicos e culturais que tem de enfrentar na sociedade portuguesa.

De qualquer modo, como antes afirmei, concordo genericamente com a análise feita, nomeadamente no que respeita à identificação e caracterização dos dois eixos fundamentais segundo os quais a estrutura dum movimento pode-se desenvolver: horizontalmente - assente numa percepção de igualdade entre todos, que impossibilita a emergência duma vanguarda que julga ter o direito a liderar; verticalmente - como resultado do aparecimento de hierarquias, que acabam sempre por ser preferencialmente preenchidas por aqueles que julgam possuir o direito natural, porque mais "esclarecidos", ao exercício do poder. "A existência de vanguardas nas lutas sociais é até certo ponto inevitável e, em termos estritamente de dinamização política, até pode ser necessária. Como sempre sucede nas lutas sociais, o mais importante é que as vanguardas nunca se cristalizem e se burocratizem e, por outro lado, que o movimento de consciencialização política e de definição de relações solidárias extravase sempre os sectores mais activos e mais dinâmicos e vá diluindo progressivamente as fronteiras entre a vanguarda e a classe."

O segundo texto, intitulado "Os perigos da «nação em cólera»" e também publicado no Passa Palavra, constitui uma análise demolidora do manifesto "O Meio da Esquerda: Do Contra ao Como". Este último apresenta graves lacunas, e ideias inaplicáveis no tempo político acelerado em que vivemos. Os seus autores começam por criticar 3 posições que têm sido defendidas (não só) à Esquerda: extensão do prazo para a diminuição do déficit do Estado; re-negociação da dívida (pública); suspensão, ou mesmo anulação, do pagamento dessa dívida. Mas nunca chegam a apresentar uma proposta alternativa: "levar a troika ao aeroporto" implica exactamente o quê?! E vir propor medidas que em nada ajudam a resolver a actual situação, para além de serem absurdas ou demasiado vagas, como a constituição dum fundo soberano ou a criação duma economia assente em "cérebros de obra", só denota incapacidade para pensar o presente. No entanto, o texto publicado no Passa Palavra, merecendo a minha concordância nas críticas que faz, peca por ser parco em propostas alternativas. Tanto quanto consigo descortinar, apenas sugere a constituição de "novos organismos nos locais de trabalho" e "a convocação de assembleias nos bairros". Concordo plenamente. Mas não é suficiente. Ironicamente, parecem partilhar com os autores do manifesto que criticam, a incapacidade para pensarem dentro dos actuais constrangimentos sócio-económicos e político-culturais. Em particular, parecem desprezar a possibilidade de uso das actuais estruturas de coordenação social, mesmo que re-construídas, para fazer face aos problemas com que nos defrontamos. Como muito bem assinalam, há hoje o perigo claro duma deriva fascizante, mas parecem ignorar que esta se tornará tão mais provável quanto maior se tornar o grau de insegurança no presente e incerteza perante o futuro, resultante da acelerada dissolução das estruturas acima mencionadas, que não terão substituto claro e universalmente aceite tão cedo. Voltarei ao assunto em breve, quando analisar o que se passou no Congresso Democrático das Alternativas.

07/10/12

Terra prometida

06/10/12

Democracia, Representação, Partidos e Participação dos Cidadãos. Notas à margem do Congresso Democrático das Alternativas


O Congresso Democráticos das Alternativas, que reuniu em Lisboa, no dia 5 de Outubro deste ano, será, sem dúvida, digno de louvor se tiver servido — coisa que só os próximos tempos permitirão verificar — para assentarmos ideias sobre o que é a democracia, e/ou o processo de democratização que a sua instituição pressupõe.

1. Comecemos, pois, pelo princípio, tentando explicitar, à laia de pontos prévios, as condições gerais da democracia. Esta, parafraseando e precisando uma definição célebre, é o governo dos cidadãos comuns pelos cidadãos comuns e para os cidadãos comuns. É o regime em que os cidadãos governados são, ao mesmo tempo, os seus próprios governantes activos e regulares, sendo o poder político exercido pelas suas assembleias e pelos magistrados — sorteados ou, em sendo esse o caso, eleitos —que aqueles instituem na lei fundamental que se tenham fixado.  Os cidadãos poderão eleger delegados para determinadas funções e órgãos governantes, mas estes deverão permanecer responsáveis perante os seus eleitores e vinculados pelo mandato que deles receberam. A democracia é cidadania governante.

2. Tanto deveria bastar para nos darmos conta de que só por abuso de linguagem podemos falar de "democracia representativa". Com efeito, a democracia requer que a célebre divisa da Revolução Americana - não à tributação ou imposição sem representação - seja substituída por outra: não ao governo sem participação governante do conjunto dos "iguais" ou governados. É verdade que as instituições representativas e a instauração do sufrágio universal foram meios que permitiram limitar a arbitrariedade do Estado e do poder dos grupos dominantes, e que ainda hoje podem fornecer recursos defensivos frente aos regimes ou projectos de regime que se baseiam na absolutização do poder do Estado. Mas não é menos verdade que são também mecanismos de segurança que garantem a exclusão dos cidadãos comuns do exercício regular e permanente do poder político, da deliberação e decisão das leis e medidas que os governam nos diversos domínios da vida colectiva.

3. Assim, a representação, consistente na redução da participação dos cidadãos comuns no exercício do poder à eleição periódica, de tantos em tantos anos, de uns quantos deputados e magistrados, é, essencialmente, um princípio oligárquico e classista, contra o qual a democracia só pode afirmar o princípio da igual participação no exercício do poder pelos cidadãos, o primado da sua actividade governante. Porque, se é verdade que a participação pode ser dependente, arregimentada, cúmplice da hierarquia e/ou dos grupos dominantes, não é menos verdade que sem participação não há democracia.
O carácter antidemocrático do "governo representativo" agrava-se quando, como é o caso em Portugal e noutros lugares, a regra é não só que os cidadãos sejam forçados a não governar, escolhendo quem o faça acima deles, mas, mais ainda, forçados a limitar a sua escolha a listas de candidatos apresentadas por partidos, passando os representantes a estar vinculados mais ao mandato dos partidos do que àquele de quem os elegeu. Trata-se de uma fórmula que, ao mesmo tempo que reduz ainda mais o alcance da participação simplesmente eleitoral, corrompe também o que, num regime democrático, poderia ser o papel dos partidos — ou seja, de associações de pertença voluntária que animassem o debate e a actividade de proposta entre os cidadãos governantes, sem, todavia, governarem em vez deles ou serem canal obrigatório da acção política.

4. Finalmente, os actuais "governos representativos" e os seus diversos órgãos de exercício oficiais estão longe, cada vez mais longe, de ser as únicas instituições efectivamente governantes. Boa parte do poder político, se entendermos por este o poder de editar normas e tomar decisões que vinculam o conjunto dos cidadãos, é exercido à margem dos representantes eleitos e das magistraturas políticas explícitas, na esfera decisiva dita da "economia". Assim, a repolitização explícita desta - tanto ao nível macro do planeamento e orientações estratégicas, como ao nível da empresa e do trabalho quotidiano - é uma condição necessária e primeira da democratização nos termos em que acima ficou definida. Não há democratização efectiva do exercício do poder político governante que não passe pela democratização da economia. E, para concluir este primeiro assentar de ideias, poderia acrescentar-se, a propósito da repolitização democrática da economia acabada de referir, que a democratização do mercado, segundo o princípio de um voto por cidadão, dificilmente deixará de ser um seu momento e/ou condição essencial.


Adenda em tempo útil (06.10.2012, às 16 h e 25). Evidentemente, os poucos parágrafos que podem ler-se acima, publicados há algumas horas, não são uma receita para a acção, ou o esquema de uma teoria a aplicar. Indicam antes a necessidade dessa acção intrinsecamente reflexiva, desse juízo político participante na acção, sem a qual esta se reduz a uma força ou energia reflexa e quase mecânica, nos antípodas da democratização instituinte, e à mercê da canalização que outros dela façam, explorando-a em proveito de velhos ou novos propósitos de dominação. 


04/10/12

A propósito de um novo editorial do Passa Palavra, de um manifesto chamado "O Meio da Esquerda" e de um congresso que se reivindica da democracia e das suas alternativas

Há dias, o camarada Zé Neves publicou no Vias e noutros lugares um post em que expunha claramente os impasses das intenções democratizadoras por via, digamos, de uma ou outra "alternativa de governo"  que não ponha em causa o próprio modo de governar (relações de poder, divisão do trabalho político, distinção hierárquica entre governantes e governados, etc., etc.).  E concluía a sua intervenção reiterando a necessidade de libertar a democracia do "fardo da representação".

Pois bem, dias depois, um grupo de personalidades — entre as quais se contam cidadãos que, à partida, esperaríamos ver mais empenhados na democratização instituinte das relações de poder vigentes através da extensão da participação igulaitária e regular da gente comum no exercício governante, do que na substituição do ministério — publicava um manifesto intitulado O Meio da Esquerda: do Contra ao Como, que não só silencia inteiramente todas as questões do tipo da levantada pelo Zé Neves, como reafirma implicitamente o princípio hierárquico da representaçãoe das relações de poder dominantes, a par do correspondente imaginário da figura dos "bons pastores" como única via de correcção dos males que afligem o pobre rebanho, ou seja: as condições de existência do comum dos cidadãos (na medida decrescente em que hoje ainda nos podemos dizer tais).

Pois bem, o Passa Palavra acaba de publicar mais um texto subscrito pelo seu colectivo — Os perigos da "nação em cólera" —  em que, através de uma análise do manifesto referido, põe em evidência como a sua lógica e pressupostos, mais do que simplesmente insuficientes para abrir caminhos que tendam a libertar a democracia do fardo da representação, constituem um reforço das formas de acção e de organização incompatíveis com a orientação democrática das alternativas que, invocando embora o nome da democracia, alguns dos seus subscritores propõem. A questão que aqui se põe é a mesma a que, comentando um recente post do João Valente Aguiar, chamei a "questão de como organizar as lutas e a acção política em geral de maneira a evitar que os chefes e patrões contra os quais nos revoltamos reapareçam – ou sejam reproduzidos – nas nossas fileiras, reciclando a dominação classista sob novas formas. Neste momento, poucas questões deviam interessar mais os que se reclamam de 'uma terra sem amos' e declaram agir em vista de criar as suas condições. Mas é natural que aqueles que vêem ameaçado por esta discussão o seu poder de governar sobre os outros – ou as suas ambições de pastores dos outros reduzidos a rebanho – fujam dela, recorrendo a insultos, processos de intenções ou outros subterfúgios, tentando evitar que 'a funesta mania de pensar' abra caminho na cabeça dos governados ou dirigidos, e estes se ponham colectivamente a pensar por conta própria, superando essa 'menoridade culpada' em que os mantém a subordinação aos legítimos superiores – e à ideia da 'superioridade legítima' e da necessidade de uma direcção hierárquica".

Sem dúvida, neste momento, a proposta democrática de alternativas é, para recorrer de novo aos termos do Zé Neves, tão urgente como "a partilha do pão". É para a definição lúcida das suas exigências mínimas — das exigências mínimas de qualquer movimento de democratização efectiva da partilha e produção do pão — que o novo editorial do Passa Palavra, prolongando e precisando o que, há dias, o precedeu, e alertando contra "os perigos da 'nação em cólera'", traz um contributo indispensável.


Qualquer tentativa de democratização do sistema político isolada das relações tecidas nos locais de trabalho e de residência é um logro. E assim como as recentes grandes manifestações, até as que nasceram exteriormente aos sindicatos e aos partidos, não geraram nenhumas organizações de base nas empresas nem nos bairros, também a reforma eleitoral avançada pelo Manifesto pressupõe a mesma atomização dos eleitores que está na base da democracia capitalista. A individualização dos participantes no sistema político corresponde à individualização dos agentes económicos nos mercados de consumo e de trabalho. O Manifesto mantém-se disciplinadamente no âmbito das instituições capitalistas. A democracia directa é outra coisa, requer que a base eleitoral seja composta por pessoas inseridas nos seus locais de trabalho ou de habitação. Sem isto nenhum sistema político pode iniciar uma ruptura com o capitalismo.

Um teste infalível para avaliar o grau em que uma proposta de remodelação política se insere no capitalismo é a obsessão com o problema da corrupção, e também os autores do Manifesto reclamam contra a «impunidade da corrupção». Mas veja-se com atenção. A corrupção consiste em não respeitar as regras estabelecidas pelo capitalismo nas relações entre capitalistas, não nas relações dos capitalistas com os trabalhadores. A corrupção não diz respeito à extorsão da mais-valia, ao processo de exploração dos trabalhadores, mas à repartição entre os capitalistas dos frutos dessa exploração. Compreendemos que o problema preocupe os capitalistas e os seus agentes políticos, mas é necessário que os trabalhadores sejam vítimas de profundas ilusões para se ocuparem com a questão.

A corrupção é uma violação das regras vigentes na economia capitalista, e reclamar contra a violação das regras é implicitamente apoiá-las. Nesta perspectiva, o Manifesto propõe «a utilização de um sistema de júri, de forma coadjuvante, nos processos de corrupção». Todavia, uma reforma da Justiça que não passe pela completa remodelação do Direito, dos cursos de Direito e dos sistemas de nomeação dos magistrados e se baseie em júris é uma piada de tanto mais mau gosto quanto — mantendo-se o sistema capitalista — os júris constituem, ou podem constituir, uma forma de linchagem popular regularizada.

Para entender este problema é indispensável não confundir a consciência de classe com o ressentimento. Uma coisa é dar um pontapé no tabuleiro porque se recusam as regras do jogo. Outra coisa, muito diferente, é protestar contra a batota daqueles que estão a vencer porque se pretende ganhar em vez deles. É aqui que entra o argumento da corrupção, acusando-a de batota. Aqueles que evocam a corrupção não pretendem liquidar o capitalismo e deixar os capitalistas sem ofício, mas apenas substituí-los por outros. Ora, quanto a isto a última palavra foi dita, e há muitos anos, por H. L. Menken, quando observou que pretender resolver o problema da corrupção colocando no governo políticos honestos era o mesmo que pretender resolver o problema da prostitução enchendo os bordéis de virgens. É que nas regras deste jogo estão implícitas as modalidades da sua violação e a curto prazo tudo recomeça, só que os ressentidos têm a barriga mais vazia e os dentes mais afiados, o que os torna ainda piores do que os outros.

A ler na íntegra, claro.

02/10/12

Ler para crer

É ler para crer.

Tras su detención por robar y filtrar la correspondencia secreta de Benedicto XVI, Paolo Gabriele permaneció de 15 a 20 días encerrado en una celda minúscula -no podía ni extender los brazos- y con la luz permanentemente encendida. El Vaticano ha anunciado que abrirá una investigación sobre las condiciones de la detención del mayordomo. Durante su declaración en el juicio, Gabriele ha asegurado que las duras condiciones de su detención en el Vaticano le provocaron, sobre todo al principio, daños psicológicos y una disminución de la vista.

Dir-se-ia que o braço secular do Vaticano não quer pesar menos, no plano material, do que o dogma no do espírito. Bem vistas as coisas, é natural que o autoritarismo renovado no plano da doutrina da Igreja reactive no sector penitenciário do seu Estado o recurso aos velhos métodos da "questão" do Santo Ofício.

Jorge Nascimento Fernandes

Ontem faleceu Jorge Nascimento Fernandes, biólogo, militante, primeiro do Partido Comunista, e depois do Bloco de Esquerda, e autor do blog Trix-Nitrix (tendo nessa última qualidade regularmente entrado em diálogo com o Vias de Facto).

Aos seus familiares, amigos e conhecidos, as nossas sentidas condolências.

01/10/12

Esteve para haver um golpe na Grécia?

Greece November 2011: “The Coup D’ Etat that Did Not Happen…” Part II, no Keep Talking Greece:

Below you will find some of the highlights published in Sunday newspaper To Vima in its front page report “The Coup d’ etat that didn’t happen…”. The basic idea of the newspaper is that the leadership of the Greek Armed Forces was replaced in November 2011 because then Prime Minister George Papandreou and National Defence Minister Panos Beglitis were afraid of an upcoming military intervention.

A special reference is being made to former Chief of Land Forces Fangoulis Frangos. Already after the replacement of last November, there are claims in the Greek media, that he was ‘preparing a coup and therefore the leadership was replaced’.

Highlights of  lengthy To Vima report:

•Relations between defence Minister Beglitis and Frangos were tense. Beglitis was sceptical on Frangos considering him as especially active, while he concetrated more and more power in his hands. He had contacts to religious organizations that are active off the official Church.

•Frangos was the inspirator of building the ditch at the Greek Turkish borders in Evros.

•Frangos had not informed Beglitis about the military exercise* in Kilkis, where soldiers were trained to combat protesters.

•The booing of politicians during the October 28/2011 parade were staged by extreme-rights**, retired army officers and members of religious fundamentalists.

•Politician of the national-patriotic section of the right-wing confesses today in private discussions that in the days before October 28th, he was felt out by a retired army officer about a possible participatation in an interim government of military.

•The analysis tabled to Papandreou was based on the assessment that overthrowing of governments is not done by sudden moved of individual army officers. Before any movement in this direction, an organised castigation of the political class and civil irritation caused by widespread incidents precede.

•“The army comes as a Deus ex machina (a savor) at the end of the play, not at the beginning,” said a high ranking PASOK official.

•To trigger a military intervention was exactly that what those who work out plans for a withdrawal of Greece from the European Union