Como já se esperava, vai haver eleições na Grécia. Há fortes hipoteses de uma vitória do SYRIZA; a questão, agora, é o que poderá suceder com um governo da "esquerda radical".
É um dado assente que um governo do SYRIZA vai tentar renegociar a dívida - agora que caminhos tal pode seguir:
1) A hipotese mais otimista é que a UE aceite a renegociação; nesta situação o novo governo poderá sem grandes problemas aumentar os gastos sociais, eliminar alguns impostos extraordinários entretanto lançados, etc; não é claro que se nestas eleições o SYRIZA continua com o seu programa de renacionalizar as empresas privatizadas e de apoiar a re-abertura pelos trabalhadores de empresas entretanto encerradas, mas é possível que sim. A nivel europeu, provavelmente a renogociação da dívida grega abrangerá também a dos outros estados endividados (como Portugal), e poderá criar condições para a Europa sair definitivamente da crise económica, com o fim das políticas de austeridade.
2) A hipotese mais provável é que a UE não aceite renegociar a dívida; nesse caso, o governo grego poderá, ou "conformar-se com a realidade" e manter as políticas anteriores (à François Hollande?), ou responder com uma moratória unilateral aos pagamentos da dívida.
3) Caso o novo governo grego prossiga a mesma política, em breve perderá a sua base de apoio, e o descontentamento popular irá passar a ser representado, ou pelos anarquistas, ou pela Aurora Dourada (talvez seja pessimismo da minha parte, mas imagino mais facilmente que a Grécia vire para o lado dos segundos do que dos primeiros...). A nível europeu, isso representará um fim definitivo dos partidos de "esquerda alternativa", estilo BE, Die Linke, Podemos, etc., já que não conseguirão responder à pergunta "o que fariam diferente do que na Grécia?" (e, também a nível europeu, imagino que o descontantamente será mais capitalizado pela extrema-direita do que pela ideia de criar um novo sistema político em que não haja governantes e governados, e assim os primeiros já não poderão trair os segundos).
4) No caso de uma moratória ao pagamento da dívida (que lançará o caos no sistema financeiro internacional, não só pela Grécia, mas também pela possibilidade de outros países seguirem o caminho), a UE pode reagir de 3 maneiras: finalmente aceitar uma renogociação da dívida (e aí voltamos ao ponto 1); ou o BCE deixa de fornecer liquidez aos bancos gregos; ou a UE simplesmente não faz nada.
5) Não é muito claro se o BCE pode simplesmente decidir deixar de emprestar dinheiro aos bancos gregos (recorde-se que os tratados constituitivos da UE não prevêm a possibilidade de um país ser expulso do euro); poderão argumentar que, com o default, a dívida grega passa a valer zero e portanto os bancos gregos já não cumprem os rácios de capital, mas confesso que não sei se, neste momento, os bancos gregos detêm ainda muita dívida pública grega, ou se está já está quase toda nas mãos do UE e do FMI (além de que, se fosse por esse argumento, teriam que deixar de fornecer liquidez a todos os bancos muito expostos à dívida grega, e não apenas aos gregos); de qualquer forma, se o BCE deixar de fornecer liquidez à banca grega, o governo grego terá duas hipoteses: ficar mesmo assim no euro, ou preparar a saída e o lançamento de uma moeda própria.
6) Permanecer no euro mesmo sem o BCE dar suporte aos bancos gregos não é totalmente impossível: afinal, países que nem sequer é suposto fazerem parte da zona euro, como o Montenegro e o Kosovo, usam o euro como moeda oficial (tal como vários países - incuindo alguns supostamente "anti-EUA" como o Equador - usam o dólar); no entanto levantaria problemas os bancos locais funcionarem sem puderem recorrer ao BCE como prestamista de ultima instância, e no caso grego haveria também o problema adicional de a expetativa seria que talvez deixasse completamente o euro (ao contrário do Montenegro e do Kosovo, em que a expetativa é um dia virem a ser membros da UE e da zona euro) o que poderia desencadear uma corrida aos bancos para levantar os euros antes que fosse tarde demais (ou seja, provavelmente seria necessário, nem que temporariamente, impor limites ao levantamento de dinheiro, tal como foi feito em Chipre)
7) Sobre as consequências da saída do euro já se escreveu tanto que não há muito a dizer; politicamente, poria em grandes dificuldades o governo do SYRIZA, que se tem apresentado como pretendendo manter a Grécia no euro (suspeito que a saída do euro só seria possível com um referendo) - e se a moratória à dívida não dar origem ao caos previsto no ponto 4, a saída da Grécia do euro provocaria-o de certeza (também neste caso, sobretudo pelo efeito de "precedente" - a partir do momento em que se toma consciência real que um país pode sair do euro, a confiança neste seria bastante abalada). Finalmente, recorde-se que, de acordo com os tratados, uma saída do euro obrigaria a uma saída da UE.
8) Finalmente, no caso de a UE não reagir à moratória grega, talvez não houvesse grande problema - a Grécia tem um superavit primário, logo poderia dispensar os mercados financeiros e ainda afrouxar um pouco a austeridade.
Todos os cenários acima descritos foram feitos abstraindo de condicionantes internas à politica do hipotético governo SYRIZA, como coligações de governo (uma coligação com os social-democratas do Potami, com os comunistas eurocéticos do KKE ou com os Gregos Independentes da direita nacionalista com certeza não seria indiferente em termos de percursos a escolher), ameaças de golpes de estado, etc.
De qualquer forma, suspeito que 2015 será um ano decisivo para a Europa, em que vai acabar a fase do "empurrar com a barriga" e, ou se finalmente avança para uma politica coordenada de combate à crise (em vez de uma politica coordenada de deprimir a economia via austeridade), ou a UE se começa a desagregar.
[Esquema do post inspirado neste]
29/12/14
24/12/14
Onde está o terrorismo, afinal ?
por
joão viegas
Enquanto os idiotas úteis do costume nos tentam impingir a
ideia de que existiria um complô mundial de pseudo-cientistas em torno do aquecimento global, uma falácia para tirar ao bom povo o direito inalienável
de ir comprar pão de automóvel, eis que se descobre que os principais
construtores de camiões na Europa estão em cartel há 14 anos (quatorze) !
« (Reuters) - Les constructeurs de poids lourds européens se sont entendus sur les prix pendant 14 ans pour ralentir la mise au point de technologies permettant une diminution des émissions polluantes, rapporte le Financial Times, citant des documents tirés de l'enquête menée par l'Union européenne. »
Ver aqui também :
Reparem, não estamos a falar de jovens desgraçados acéfalos,
que criaram uma habituação ao jogo da guerra santa e que, de repente,
passam a confundir a vida real com um mau filme. Estamos a falar de
engravatados bem falantes, que frequentaram as melhores escolas, que se consideram como um exemplo para os
filhos e que têm casas confortáveis repletas de espelhos !
Mantém-te calmo, cidadão, é só fumaça… O verdadeiro perigo,
é o Bin Laden que continua escondido nas traseiras do teu prédio, onde diariamente
sacrifica ao Capeta juntamente com o Elvis Presley…
23/12/14
Re: Sobre o direito à greve
por
Miguel Madeira
N'O Insurgente, Rodrigo Adão Fonseca argumenta que "o direito à greve é um anacronismo nas sociedades atuais".
Em primeiro lugar, parece-me que grande parte dos argumentos que RAF apresenta, quando muito, poderiam servir para concluir que "a greve é um anacronismo"; mas concluir a partir daí que "o direito à greve é um anacronismo" já me parece um salto mais alto.
Mas o meu ponto é mais outro - vou assumir que, como parece, RAF é contra a existência do direito à greve (e não apenas contra o ato de fazer greve). Mas, quando vejo (ouço/leio/etc.) alguém a dizer-se contra o direito à greve, tendo a ficar na dúvida sobre o que é que defendem exatamente - é que ser contra o direito à greve, pelo menos em teoria, pode significar duas coisas diferentes: pode significar que se defende que a lei passe a, pura e simplesmente, ignorar o conceito de "greve", sendo as faltas por greve equiparadas a faltas injustificadas como outras quaisquer, com as mesmas implicações; ou pode significar que se defende que a lei puna quem faça greve (ou, pelo menos, os sindicatos que a declaram), com penas criminais ou com o pagamento de indemnizações às entidades patronais prejudicadas pela greve (como, por exemplo, no Reino Unido, em que se uma greve não for declarada de acordo com um certo número de regras, os sindicatos podem ser obrigados a pagar pesadas indemnizações às empresas - aliás, mesmo que não se declare greve nenhuma e muitos trabalhadores faltarem no mesmo dia, o sindicato pode ser obrigado a pagar uma indemnização se se provar que incentivou à "falta coletiva").
Ou seja, quando se discute o direito à greve, seria conveniente que quem diz ser contra esse direito explicasse em que sentido é contra o "direito à greve".
É verdade que essa indefinição no que se entende por "direito à greve" é ajudado pelo facto de a situação em que a lei é neutral face às greves ser uma quase inexistência histórica (talvez o Reino Unido pré-Thatcher, onde penso que os direitos legais dos sindicatos resumiam-se basicamente a terem imunidade face às leis anti-trust?) - por norma, ao levantamento dos limites legais à greve segue-se, pouco depois, a criação de proteções legais à greve, ou então um sistema misto em que há ao mesmo tempo proteção às greves - se forem declaradas em dadas condições - e punição - se forem declaradas fora dessas condições; penso que não é difícil imaginar o porquê disso - as mesmas pessoas que têm interesse em que a greve seja permitida têm também interesse em que seja protegida, e as que têm interesse em que não seja protegida têm também interesse em que seja restringida; assim, um governo apoiado nos assalariados tenderá a fazer leis protegendo o direito à greve, enquanto que um governo apoiado no patronato tenderá a fazer leis restringindo as greves (e um "governo de salvação nacional" mais facilmente implementa um sistema em que a greve seja ao mesmo tempo protegida e limitada do que um sistema em que não seja protegida nem limitada, já que esse género de governos gosta de se apresentar como regulados "imparcial" das lutas sociais).
Em primeiro lugar, parece-me que grande parte dos argumentos que RAF apresenta, quando muito, poderiam servir para concluir que "a greve é um anacronismo"; mas concluir a partir daí que "o direito à greve é um anacronismo" já me parece um salto mais alto.
Mas o meu ponto é mais outro - vou assumir que, como parece, RAF é contra a existência do direito à greve (e não apenas contra o ato de fazer greve). Mas, quando vejo (ouço/leio/etc.) alguém a dizer-se contra o direito à greve, tendo a ficar na dúvida sobre o que é que defendem exatamente - é que ser contra o direito à greve, pelo menos em teoria, pode significar duas coisas diferentes: pode significar que se defende que a lei passe a, pura e simplesmente, ignorar o conceito de "greve", sendo as faltas por greve equiparadas a faltas injustificadas como outras quaisquer, com as mesmas implicações; ou pode significar que se defende que a lei puna quem faça greve (ou, pelo menos, os sindicatos que a declaram), com penas criminais ou com o pagamento de indemnizações às entidades patronais prejudicadas pela greve (como, por exemplo, no Reino Unido, em que se uma greve não for declarada de acordo com um certo número de regras, os sindicatos podem ser obrigados a pagar pesadas indemnizações às empresas - aliás, mesmo que não se declare greve nenhuma e muitos trabalhadores faltarem no mesmo dia, o sindicato pode ser obrigado a pagar uma indemnização se se provar que incentivou à "falta coletiva").
Ou seja, quando se discute o direito à greve, seria conveniente que quem diz ser contra esse direito explicasse em que sentido é contra o "direito à greve".
É verdade que essa indefinição no que se entende por "direito à greve" é ajudado pelo facto de a situação em que a lei é neutral face às greves ser uma quase inexistência histórica (talvez o Reino Unido pré-Thatcher, onde penso que os direitos legais dos sindicatos resumiam-se basicamente a terem imunidade face às leis anti-trust?) - por norma, ao levantamento dos limites legais à greve segue-se, pouco depois, a criação de proteções legais à greve, ou então um sistema misto em que há ao mesmo tempo proteção às greves - se forem declaradas em dadas condições - e punição - se forem declaradas fora dessas condições; penso que não é difícil imaginar o porquê disso - as mesmas pessoas que têm interesse em que a greve seja permitida têm também interesse em que seja protegida, e as que têm interesse em que não seja protegida têm também interesse em que seja restringida; assim, um governo apoiado nos assalariados tenderá a fazer leis protegendo o direito à greve, enquanto que um governo apoiado no patronato tenderá a fazer leis restringindo as greves (e um "governo de salvação nacional" mais facilmente implementa um sistema em que a greve seja ao mesmo tempo protegida e limitada do que um sistema em que não seja protegida nem limitada, já que esse género de governos gosta de se apresentar como regulados "imparcial" das lutas sociais).
18/12/14
A TAP não pode estar à mercê de interesses particulares
por
Miguel Madeira
A decisão foi tomada em "nome do interesse público nacional", disse Pires de Lima.
Segundo o ministro, a diáspora portuguesa não tem alternativas de deslocação a Portugal que não a TAP e os habitantes dos arquipélagos estão dependentes destas ligações. Por isso, não podem ser "ignorados ou ameaçados por interesses particulares. O interesse público tem que prevalecer".
Segundo o ministro, a diáspora portuguesa não tem alternativas de deslocação a Portugal que não a TAP e os habitantes dos arquipélagos estão dependentes destas ligações. Por isso, não podem ser "ignorados ou ameaçados por interesses particulares. O interesse público tem que prevalecer".
16/12/14
Requisição civil na TAP?
por
Miguel Madeira
Consta que o governo está a ponderar declarar a requisição civil na TAP; mas pensemos um pouco nas implicações lógicas disso: a requisição civil só poderia ser justificada argumentado que é de importância vital para o país que a TAP esteja em funcionamento (e note-se que o que está em causa é uma greve apenas da TAP, não do sector da aviação comercial no seu conjunto) - mas se a TAP é uma empresa assim tão vital e estratégica, isso não será um argumento decisivo contra a sua privatização?
15/12/14
O espectro do Syriza assombra o João Rodrigues que intrepidamente denuncia a sua moderação e lança um vibrante apelo à vigilância dos seus companheiros de jornada
por
Miguel Serras Pereira
Lendo a inacreditável prosa — alertando, presa do pânico, para a ameaça que representa para todos os nacionalistas da Europa uma eventual vitória do Syriza na Grécia — da posta arrotada pelo João Rodrigues sob o título Ajuda grega, compreendemos melhor como, mais do que o actual governo ou os seus opositores do arco da governação, a frente ampla da "política patriótica e de esquerda", que se cometeu com a desagregação da UE como aposta prioritária, receia a possibilidade — infelizmente remota, no imediato — de ver aparecer por cá qualquer força que tenha a contrapor, como alternativa às políticas austeritárias hoje governantes na UE, qualquer coisa um pouco menos desastrosa, e mais favorável a uma democratização efectiva das relações de poder dominantes, do que a austeridade agravada, que resultaria da desagregação da UE e da rectivação reforçada da soberania dos Estados-nação nas quais apostam, rivalizando em ardor, tanto o vanguardismo do PCP como os companheiros de jornada do João Rodrigues. Mas, no fundo, é compreensível: com efeito, o Syriza não só é responsável pela contenção dos fascistas do Aurora Dourada como pelo enfraquecimento da "política patriótica e de esquerda" que, na Grécia, tem por vanguarda o KKE.
Meia-dúzia de meias palavras a propósito de Augusto Abelaira
por
Miguel Serras Pereira
Os parágrafos infra retomam o texto da minha intervenção na sessão da série "Amigos de Mário Dionísio" que a Casa da Achada, no passado dia 13 de Dezembro, dedicou a Augusto Abelaira.
Meia-dúzia de meias palavras a propósito de Augusto Abelaira
Começarei, um tanto ex abrupto, por fazer notar que Augusto Abelaira renovou radicalmente aquilo a que poderíamos chamar a dúvida metódica que sempre acompanhou e animou enquanto princípio e critério constantes as suas tomadas de posição críticas e políticas, sendo ao mesmo tempo como que uma premissa maior da sua criação romanesca. Renovou radicalmente a dúvida metódica tornando-a permanente em vez de simples ponto de partida pedagógico destinado a assegurar a propriedade de uma verdade definitiva e definitivamente ao abrigo de qualquer dúvida. Fazendo-o, não ficou atrás dos relativistas ou adeptos da desconstrução mais extrema, mas com uma diferença essencial, que o levou bem mais longe do que o simples relativismo e/ou a simples desconstrução podem ir. É que, do facto de não haver fórmulas de antemão garantidas ou definitivamente apropriáveis da verdade, do sentido ou fins da história, da justiça — ou ainda, noutro plano, do amor e da amizade — Abelaira concluía que teríamos de lhes abrir o caminho caminhando por nossa conta e risco, e não que todos os caminhos fossem igualmente ilusórios, que valesse tudo, ou que tudo fosse, no plano do pensamento ou da acção, indiferentemente equivalente.
Não posso alargar-me aqui na tentativa de documentar, visitando diversos momentos e lugares da vida e da obra de Augusto Abelaira, como e de que modo, para ele, a "longa conversa" do amor — a longa conversa com memória mas sem modelo anterior ou destino antecipadamente escrito, que é uma relação amorosa enquanto permanece e permanece em construção — é objecto de uma tematização como que solidária ou electivamente afim da exigência política da criação colectiva das condições, contra a dominação hierárquica de qualquer oligarquia, de uma arena democrática e dialógica, animada por um questionamento incessante e por uma interrogação tão ilimitada como interminável, arena que é ao mesmo tempo a via e a verdade da construção de uma sociedade justa — ou, se se quiser, da construção ou conquista da liberdade e da justiça como regime de governo que torna possível qualquer coisa como a "vida boa" na cidade.
Ora bem, e para abreviar, se não me engano muito na formulação do meu juízo, este, ainda que tão sumariamente esboçado, fornece uma chave que nos permitirá compreender melhor a singularidade da figura cívica e pública de Abelaira. À luz do que sugeri, compreenderemos melhor, com efeito, toda a história da sua passagem pelo semanário Vida Mundial, do qual Augusto Abelaira foi director desde o imediato pós-25 de Abril de 1974 até poucos dias depois do 25 de Novembro de 1975. Dois episódios dessa época, durante a qual tive a sorte de trabalhar com ele na referida revista, serão suficientes, embora muitos outros, não menos elucidativos, tenham de ficar, entretanto, por contar. No auge do PREC, o diário O Século, controlado pelo PCP e pertencente à mesma empresa a que pertencia a Vida Mundial, publicou na primeira página uma nota em que Augusto Abelaira era denunciado como (sic) "O Advogado da Burguesia". Eis o primeiro episódio. O segundo consistiu, imediatamente após o 25 de Novembro de 1975, no saneamento de Augusto Abelaira do cargo de director de uma revista cuja orientação era considerada subversiva pelos novos detentores do poder. Gostaria de terminar sublinhando brevemente que, a seu modo, tanto os detractores estalinistas de Abelaira como os saneadores subsequentes não se enganaram no alvo.
Augusto Abelaira não foi decerto "advogado da burguesia", mas combateu sem concessões, e dirigiu uma revista em cujas páginas outros combatiam também, a teoria e a prática dos partidos que, em nome dos trabalhadores, se propunham dirigir e comandar o conjunto dos cidadãos comuns, negando-lhes o direito de decidirem dos seus próprios destinos, participando como iguais no governo da cidade. E isso, na época, fazia de Abelaira aos olhos do PCP um inimigo a abater.
Mas, também para os saneadores que o afastaram após o 25 de Novembro, a concepção que Abelaira tinha da democracia e do socialismo — coisas que, para ele, só podiam significar um regime instaurado, não pela designação, ainda que na base de eleições periódicas, de representantes hierarquicamente superiores aos representados, mas através da acção e da vontade da grande maioria dos homens e das mulheres comuns, ou seja: um regime que assentasse na igualdade do conjunto dos cidadãos em termos de participação no governo da cidade — essa concepção, dizia eu, não era menos subversiva, embora por outras razões, para os saneadores que o afastaram após o 25 de Novembro, do que aos olhos daqueles que anteriormente o acusavam de "advogado da burguesia". Daí que, para começar, os saneadores em causa o tenham demitido da direcção da Vida Mundial, nomeando para o substituir Natália Correia, apesar de a maioria da redacção da revista se ter solidarizado com Abelaira, recusando-se a trabalhar sob a nova direcção.
Muito mais, como já disse, haveria para contar e dar-nos que pensar, ainda que só sobre a aventura da Vida Mundial. Mas, se para bons entendedores meia palavra basta, a meia-dúzia de meias palavras que disse até aqui já contém motivos de reflexão de sobra para os que hoje quiseram estar presentes nesta assembleia.
Meia-dúzia de meias palavras a propósito de Augusto Abelaira
Começarei, um tanto ex abrupto, por fazer notar que Augusto Abelaira renovou radicalmente aquilo a que poderíamos chamar a dúvida metódica que sempre acompanhou e animou enquanto princípio e critério constantes as suas tomadas de posição críticas e políticas, sendo ao mesmo tempo como que uma premissa maior da sua criação romanesca. Renovou radicalmente a dúvida metódica tornando-a permanente em vez de simples ponto de partida pedagógico destinado a assegurar a propriedade de uma verdade definitiva e definitivamente ao abrigo de qualquer dúvida. Fazendo-o, não ficou atrás dos relativistas ou adeptos da desconstrução mais extrema, mas com uma diferença essencial, que o levou bem mais longe do que o simples relativismo e/ou a simples desconstrução podem ir. É que, do facto de não haver fórmulas de antemão garantidas ou definitivamente apropriáveis da verdade, do sentido ou fins da história, da justiça — ou ainda, noutro plano, do amor e da amizade — Abelaira concluía que teríamos de lhes abrir o caminho caminhando por nossa conta e risco, e não que todos os caminhos fossem igualmente ilusórios, que valesse tudo, ou que tudo fosse, no plano do pensamento ou da acção, indiferentemente equivalente.
Não posso alargar-me aqui na tentativa de documentar, visitando diversos momentos e lugares da vida e da obra de Augusto Abelaira, como e de que modo, para ele, a "longa conversa" do amor — a longa conversa com memória mas sem modelo anterior ou destino antecipadamente escrito, que é uma relação amorosa enquanto permanece e permanece em construção — é objecto de uma tematização como que solidária ou electivamente afim da exigência política da criação colectiva das condições, contra a dominação hierárquica de qualquer oligarquia, de uma arena democrática e dialógica, animada por um questionamento incessante e por uma interrogação tão ilimitada como interminável, arena que é ao mesmo tempo a via e a verdade da construção de uma sociedade justa — ou, se se quiser, da construção ou conquista da liberdade e da justiça como regime de governo que torna possível qualquer coisa como a "vida boa" na cidade.
Ora bem, e para abreviar, se não me engano muito na formulação do meu juízo, este, ainda que tão sumariamente esboçado, fornece uma chave que nos permitirá compreender melhor a singularidade da figura cívica e pública de Abelaira. À luz do que sugeri, compreenderemos melhor, com efeito, toda a história da sua passagem pelo semanário Vida Mundial, do qual Augusto Abelaira foi director desde o imediato pós-25 de Abril de 1974 até poucos dias depois do 25 de Novembro de 1975. Dois episódios dessa época, durante a qual tive a sorte de trabalhar com ele na referida revista, serão suficientes, embora muitos outros, não menos elucidativos, tenham de ficar, entretanto, por contar. No auge do PREC, o diário O Século, controlado pelo PCP e pertencente à mesma empresa a que pertencia a Vida Mundial, publicou na primeira página uma nota em que Augusto Abelaira era denunciado como (sic) "O Advogado da Burguesia". Eis o primeiro episódio. O segundo consistiu, imediatamente após o 25 de Novembro de 1975, no saneamento de Augusto Abelaira do cargo de director de uma revista cuja orientação era considerada subversiva pelos novos detentores do poder. Gostaria de terminar sublinhando brevemente que, a seu modo, tanto os detractores estalinistas de Abelaira como os saneadores subsequentes não se enganaram no alvo.
Augusto Abelaira não foi decerto "advogado da burguesia", mas combateu sem concessões, e dirigiu uma revista em cujas páginas outros combatiam também, a teoria e a prática dos partidos que, em nome dos trabalhadores, se propunham dirigir e comandar o conjunto dos cidadãos comuns, negando-lhes o direito de decidirem dos seus próprios destinos, participando como iguais no governo da cidade. E isso, na época, fazia de Abelaira aos olhos do PCP um inimigo a abater.
Mas, também para os saneadores que o afastaram após o 25 de Novembro, a concepção que Abelaira tinha da democracia e do socialismo — coisas que, para ele, só podiam significar um regime instaurado, não pela designação, ainda que na base de eleições periódicas, de representantes hierarquicamente superiores aos representados, mas através da acção e da vontade da grande maioria dos homens e das mulheres comuns, ou seja: um regime que assentasse na igualdade do conjunto dos cidadãos em termos de participação no governo da cidade — essa concepção, dizia eu, não era menos subversiva, embora por outras razões, para os saneadores que o afastaram após o 25 de Novembro, do que aos olhos daqueles que anteriormente o acusavam de "advogado da burguesia". Daí que, para começar, os saneadores em causa o tenham demitido da direcção da Vida Mundial, nomeando para o substituir Natália Correia, apesar de a maioria da redacção da revista se ter solidarizado com Abelaira, recusando-se a trabalhar sob a nova direcção.
Muito mais, como já disse, haveria para contar e dar-nos que pensar, ainda que só sobre a aventura da Vida Mundial. Mas, se para bons entendedores meia palavra basta, a meia-dúzia de meias palavras que disse até aqui já contém motivos de reflexão de sobra para os que hoje quiseram estar presentes nesta assembleia.
10/12/14
Testemunhos sobre a vida e a obra de Augusto Abelaira na Casa da Achada — Sábado, 13 de Dezembro, às 16 horas
por
Miguel Serras Pereira
Desde A Cidade das Flores, sem esquecer nada do que dessa invulgar obra de estreia havia de ser evitado ou amadurecido nos livros posteriores, Abelaira habitou-nos a um tom de atacar o papel (não o assunto; é mesmo o papel que quero dizer) de interrogar-se e interrogar-nos que não se encontra em qualquer outro escritor. Muitas perguntas que estão em todos e em cada um dos seus romances são as mesmas que faço, faria, gostaria de ter feito, as que muitos escritores fazem - mas nunca daquele modo. E a isto chamo originalidade.
Mário Dionísio
04/12/14
02/12/14
O golpe de Estado "constitucional" do governo de Israel
por
Miguel Serras Pereira
Como todos sabem, Marx escreveu que, na história, a repetição da tragédia dava lugar à farsa. Mas eis que ao propor, por meio de um golpe de Estado "constitucional", um regime de discriminação, apoiando-se na proclamação do país como "Estado-nação judeu", o governo de Israel parece em vias de conseguir a repetição da tragédia da adopção das leis raciais nazis, bem como a do apartheid sul-africano, sem esquecer as trágicas experiências de confessionalismo integral dos regimes teocráticos islamitas. Já não é de farsa que se trata — ou só na medida em que a tragédia anunciada por um governo que reclama por linhagem e título de legitimação as vítimas do Holocausto se acompanha da tentativa ridícula de fazer passar a legalização da discriminação por compatíveis com a democracia. O que não nos deve fazer esquecer que episódios e proclamações ridículas foram um acompanhamento frequente, e que não alterou a sua natureza, da tragédia nazi.
El Consejo de Ministros de Israel aprobó este domingo el primer borrador de una norma que consagra el carácter judío del país por encima incluso de su naturaleza democrática. La Ley Básica, que proclama el “Estado-nación judío”, aún debe aprobarse en la Knesset –el Parlamento, donde comenzará a tramitarse esta misma semana- y, dada la polémica que ha suscitado, se asume que sufrirá modificaciones, pero por ahora mantiene elementos que hacen que el centro y la izquierda cataloguen el texto de “equivocado”, “crimen contra la convivencia” o “racista”. Además de esa primacía de los valores judíos, no garantiza literalmente la igualdad entre todos los ciudadanos y elimina el árabe como lengua cooficial. El 24,6% de la población de Israel (1,9 millones de habitantes) no profesa el judaísmo. Casi un millón y medio son árabes.
El texto, que es una fusión de dos propuestas nacionalistas, fue aprobado por los partidos de derecha y ultraderecha, Likud, Israel Beitenu y Casa Judía, y rechazado por los ministros de Hatnua (de la titular de Justicia, Tzipi Livni) y Yesh Atid (principal socio del primer ministro, Benjamín Netanyahu, liderado por el ministro de Finanzas, Yair Lapid). “En el Estado de Israel hay igualdad individual para todos los ciudadanos, pero el derecho nacional [está reservado] sólo para el pueblo judío”, ha defendido Netanyahu, provocando la ira de sus opositores.
El Consejo de Ministros de Israel aprobó este domingo el primer borrador de una norma que consagra el carácter judío del país por encima incluso de su naturaleza democrática. La Ley Básica, que proclama el “Estado-nación judío”, aún debe aprobarse en la Knesset –el Parlamento, donde comenzará a tramitarse esta misma semana- y, dada la polémica que ha suscitado, se asume que sufrirá modificaciones, pero por ahora mantiene elementos que hacen que el centro y la izquierda cataloguen el texto de “equivocado”, “crimen contra la convivencia” o “racista”. Además de esa primacía de los valores judíos, no garantiza literalmente la igualdad entre todos los ciudadanos y elimina el árabe como lengua cooficial. El 24,6% de la población de Israel (1,9 millones de habitantes) no profesa el judaísmo. Casi un millón y medio son árabes.
El texto, que es una fusión de dos propuestas nacionalistas, fue aprobado por los partidos de derecha y ultraderecha, Likud, Israel Beitenu y Casa Judía, y rechazado por los ministros de Hatnua (de la titular de Justicia, Tzipi Livni) y Yesh Atid (principal socio del primer ministro, Benjamín Netanyahu, liderado por el ministro de Finanzas, Yair Lapid). “En el Estado de Israel hay igualdad individual para todos los ciudadanos, pero el derecho nacional [está reservado] sólo para el pueblo judío”, ha defendido Netanyahu, provocando la ira de sus opositores.
01/12/14
Mas não é só no estado que há greves?
por
Miguel Madeira
greve de trabalhadores de handling, marcada para hoje, regista uma adesão na ordem dos 90-95%, avançou esta manhã o Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos.
Fernando Henriques, porta-voz do sindicato que junta funcionários da Portway, da Groundforce e de empresas temporárias, diz que greve de 24 horas permite assegurar apenas os serviços mínimos nos serviços de bagagem pelas empresas que operam no Aeroporto da Portela, em Lisboa.
[A Groudforce - grupo TAP - é "Estado", mas a Portway - grupo ANA - e as empresas temporárias são privadas]
Fernando Henriques, porta-voz do sindicato que junta funcionários da Portway, da Groundforce e de empresas temporárias, diz que greve de 24 horas permite assegurar apenas os serviços mínimos nos serviços de bagagem pelas empresas que operam no Aeroporto da Portela, em Lisboa.
[A Groudforce - grupo TAP - é "Estado", mas a Portway - grupo ANA - e as empresas temporárias são privadas]
27/11/14
Obra Completa de João Bernardo na Internet
por
Miguel Serras Pereira
Graças a Manolo, autor de numerosos e muito recomendáveis textos publicados no Passa Palavra, passa a estar disponível na Internet o conjunto da obra de João Bernardo, acompanhada de uma introdução do organizador. Boa leitura!
16/11/14
A censura na revista Análise Social e a sua "solução"
por
Diogo Duarte
O acto de censura, por parte do Director do ICS, José Luís Cardoso, que visou um texto da autoria de Ricardo Campos, a publicar na revista Análise Social, é bastante conhecido. Foi amplamente divulgado, comentado e criticado (e, menos amplamente, defendido), e também aqui no Vias de Facto se tocou no assunto (aqui, aqui e aqui). Os mais distraídos podem saber mais através dos textos do José Neves e do António Monteiro Cardoso publicados no Público, do texto do Luís Trindade no iOnline, do texto do Nuno Teles no Ladrões de Bicicleta, ou, simplesmente, pelas notícias do Público (esta, esta e esta) ou da TVI24. Por outro lado, podem ficar a saber menos ao ler este texto do José Manuel Fernandes no Observador.
Entretanto, retrocedeu-se na decisão de "suspender" o número em causa da revista, como foi ontem decidido e anunciado pelo Conselho Científico do ICS. A notícia é boa, obviamente. Mas a decisão vem bastante armadilhada, como se pode perceber muito bem através do comunicado que o Conselho Científico em causa divulgou a anunciar a decisão (disponível nesta notícia). Infelizmente, a julgar pela forma subtil como o comunicado reescreve a história e tenta resolver o assunto distribuindo o mal pelas aldeias, a decisão não parece derivar do reconhecimento da gravidade daquilo que se passou. E a saída, mesmo sem ter que implicar demissões, podia e devia ser outra. Tendo as coisas chegado a este ponto, e considerando tudo o que aconteceu, parece-me absurdo que se aja como se estivesse tudo igual ao que era antes ou como se tudo não passasse de um fait divers. Tudo se torna ainda mais preocupante se a comunidade académica que protestou firmemente contra o gesto de censura em causa (e que, sem dúvida, fez com que se voltasse atrás nesse gesto) aceitar a forma como se está a tentar encerrar este caso, ignorando tudo o que está subjacente a este episódio grave. E, para já, é o que parece estar a acontecer com muita gente envolvida nesse protesto.
Um acto de censura nunca é "apenas" um acto de censura. Este nunca pode ser entendido como um fenómeno isolado. A censura reflecte certas coisas que sob o manto da impunidade e da arbitrariedade são verdadeiramente perigosas. Logo, combatê-la não tem qualquer significado se não se perceber e combater aquilo que a torna possível. Neste caso particular, o acto não pode ser desligado de uma série de desigualdades de poder que permeiam a universidade e que têm afastado, cada vez mais, os membros da sua “comunidade” da discussão e das decisões que lhes dizem respeito. Isso foi notório, por exemplo, não só na decisão unilateral de tirar a revista de circulação e anunciar a sua destruição, mas também na forma como muitos investigadores e professores se viram obrigados a ficar calados com medo das represálias que podiam eventualmente sofrer, evitando pronunciar-se sobre o que aconteceu ou pronunciando-se no sentido de relativizar a gravidade do sucedido, defendendo até a decisão do Director.
Estas desigualdades são em grande parte internas, mas não podem ser desligadas do contexto mais amplo em que se inserem. Desde logo, no caso em questão também ficou particularmente clara a dependência crescente e a vulnerabilidade da universidade, e da sua produção crítica e científica, em relação a interesses que lhe são alheios e mesmo antagónicos (como o poder político ou o “mercado”). Com a enorme vaga de contestação que surgiu, a decisão de censurar a revista foi abandonada e a revista vai ser posta em circulação. O que é óptimo. Mas tudo aquilo que permitiu que tal coisa fosse sequer uma possibilidade, não mudou nem um milímetro. E diria até que corre o risco de ficar pior se se aceitar a “solução” que se arranjou e que ficou expressa no comunicado que foi publicado. É que uma outra forma de censura particularmente subtil, ou pelo menos dela algo próxima, é a reescrita da história. E o que o comunicado diz - parece que também com o propósito de não desagradar a certas pessoas - desafia uma data de factos importantíssimos. Pior: permite, além disso, notícias como esta, que não fazem mais do que levar até às últimas consequências aquilo que o mesmo comunicado expressa. É que a interpretação que esta notícia faz - tirando, talvez, um ou outro exagero entusiástico - parece-me ser bastante legítima face ao teor do comunicado. Espero, por isso, que ninguém se conforme com a “solução” inventada. E, infelizmente, estou a ver demasiada gente satisfeita…
Entretanto, retrocedeu-se na decisão de "suspender" o número em causa da revista, como foi ontem decidido e anunciado pelo Conselho Científico do ICS. A notícia é boa, obviamente. Mas a decisão vem bastante armadilhada, como se pode perceber muito bem através do comunicado que o Conselho Científico em causa divulgou a anunciar a decisão (disponível nesta notícia). Infelizmente, a julgar pela forma subtil como o comunicado reescreve a história e tenta resolver o assunto distribuindo o mal pelas aldeias, a decisão não parece derivar do reconhecimento da gravidade daquilo que se passou. E a saída, mesmo sem ter que implicar demissões, podia e devia ser outra. Tendo as coisas chegado a este ponto, e considerando tudo o que aconteceu, parece-me absurdo que se aja como se estivesse tudo igual ao que era antes ou como se tudo não passasse de um fait divers. Tudo se torna ainda mais preocupante se a comunidade académica que protestou firmemente contra o gesto de censura em causa (e que, sem dúvida, fez com que se voltasse atrás nesse gesto) aceitar a forma como se está a tentar encerrar este caso, ignorando tudo o que está subjacente a este episódio grave. E, para já, é o que parece estar a acontecer com muita gente envolvida nesse protesto.
Um acto de censura nunca é "apenas" um acto de censura. Este nunca pode ser entendido como um fenómeno isolado. A censura reflecte certas coisas que sob o manto da impunidade e da arbitrariedade são verdadeiramente perigosas. Logo, combatê-la não tem qualquer significado se não se perceber e combater aquilo que a torna possível. Neste caso particular, o acto não pode ser desligado de uma série de desigualdades de poder que permeiam a universidade e que têm afastado, cada vez mais, os membros da sua “comunidade” da discussão e das decisões que lhes dizem respeito. Isso foi notório, por exemplo, não só na decisão unilateral de tirar a revista de circulação e anunciar a sua destruição, mas também na forma como muitos investigadores e professores se viram obrigados a ficar calados com medo das represálias que podiam eventualmente sofrer, evitando pronunciar-se sobre o que aconteceu ou pronunciando-se no sentido de relativizar a gravidade do sucedido, defendendo até a decisão do Director.
Estas desigualdades são em grande parte internas, mas não podem ser desligadas do contexto mais amplo em que se inserem. Desde logo, no caso em questão também ficou particularmente clara a dependência crescente e a vulnerabilidade da universidade, e da sua produção crítica e científica, em relação a interesses que lhe são alheios e mesmo antagónicos (como o poder político ou o “mercado”). Com a enorme vaga de contestação que surgiu, a decisão de censurar a revista foi abandonada e a revista vai ser posta em circulação. O que é óptimo. Mas tudo aquilo que permitiu que tal coisa fosse sequer uma possibilidade, não mudou nem um milímetro. E diria até que corre o risco de ficar pior se se aceitar a “solução” que se arranjou e que ficou expressa no comunicado que foi publicado. É que uma outra forma de censura particularmente subtil, ou pelo menos dela algo próxima, é a reescrita da história. E o que o comunicado diz - parece que também com o propósito de não desagradar a certas pessoas - desafia uma data de factos importantíssimos. Pior: permite, além disso, notícias como esta, que não fazem mais do que levar até às últimas consequências aquilo que o mesmo comunicado expressa. É que a interpretação que esta notícia faz - tirando, talvez, um ou outro exagero entusiástico - parece-me ser bastante legítima face ao teor do comunicado. Espero, por isso, que ninguém se conforme com a “solução” inventada. E, infelizmente, estou a ver demasiada gente satisfeita…
12/11/14
Até aonde é que Podemos?
por
Diogo Duarte
No lado da “barricada” em que me coloco, a ascensão surpreendente do Podemos, e aquilo que promete, tem suscitado tantas reservas quanto entusiasmo. E, embora possa parecer o contrário, isto não é de somenos, já que nos últimos anos quase todas as possibilidades que se abriram – mesmo que com menos estrondo do que neste caso – alimentaram sempre mais reservas do que entusiasmo. Temos, portanto, um equilíbrio nas expectativas e, dadas as circunstâncias, esse até parece um bom ponto de partida. Para já, parece prematuro apresentar um diagnóstico definitivo deste fenómeno, ora propondo entendê-lo como uma espécie de estertor final de um sistema ultrapassado, na medida em que mobiliza com sucesso uma série de meios e recursos altamente desacreditados nos últimos anos, ora como o início da ruptura definitiva com esse sistema em direcção a uma transformação radical e emancipatória. Passe a dicotomia básica, que serve para atalhar caminho, não ponho nenhuma destas duas hipóteses de lado.
É certo que me entusiasmaria muito mais com um fenómeno como o Podemos em Portugal. Não só pelas razões óbvias (a urgência em ver surgir qualquer coisa minimamente consequente capaz de desafiar esta modorra), mas porque neste país a solução partidária parece, de facto, a mais plausível no imediato. Não necessariamente a mais desejável, atenção, mas sim a mais provável. Por outras palavras, o meu nível de tolerância e entusiasmo com um partido cresce proporcionalmente ao grau de impossibilidade de outras “saídas”. Em Espanha, a saída partidária desilude-me mais precisamente por me parecer que a força e o enraizamento de alguns dos seus movimentos sociais, ou de outras estruturas sociabilitárias independentes dos partidos e das instituições estatais, permitiria dar (ou pelo menos esboçar) um passo noutra direcção que não a da previsível e convencional criação de um partido em disputa pelo poder dentro das instituições vigentes. Agora, este factor que contribui para a minha (ligeira) desilusão – ou este motivo para a minha apreensão – pode ser, também, um factor a contribuir para o meu relativo entusiasmo.
Vejamos: se cingirmos a nossa leitura do Podemos ao fenómeno partidário e à luta pelo poder estatal, não há qualquer razão para esperar algo de muito positivo ou, na melhor das hipóteses, algo que seja mais do que um travão ao violento ataque anti-democrático em curso. É evidente que em si isso já é muito desejável, mas, convenhamos, não passa de uma solução temporária e, portanto, de uma forma de legitimação do capital e do Estado obrigando-os, “apenas”, a redefinirem-se noutros termos. Para quem acredita que outro mundo é possível, isso, por muito bom que seja, para além de não chegar, pode ter efeitos perversos. Os sinais que nos chegam relativos ao processo da consolidação e institucionalização partidária do Podemos não contribuem para nenhum tipo de optimismo, quer no que concerne à formalização da sua estrutura (um centralismo e hierarquização crescentes, com a adopção de funções comuns nos partidos, como a do secretário-geral), quer no que concerne ao seu programa (grande parte das propostas do seu “programa económico”, por exemplo, remetem mais para respostas à lógica hegemónica, com o intuito de atenuar os seus efeitos mais brutais, sem necessariamente colocar em causa a sua “essência” ou sem remeter para uma transformação mais ampla e profunda – antes pelo contrário, diria).
Mas a verdade é que, independentemente da sua forma e do seu programa, os limites de um partido, pelas regras a que está sujeito, nunca poderia permitir algo de muito diferente nas suas consequências do que o que nos é oferecido pelo Podemos. Se assim fosse, seria outra coisa e estaria excluído do “jogo” nos em termos que se propôs a jogá-lo. O que é que o Podemos tem, então, de potencialmente diferente que nos permita manter alguma expectativa positiva? Para começar, o facto de ser, em certa medida, o resultado de uma enorme movimentação social de contestação e emancipação com alguns traços de radicalidade. Movimentação essa bastante disseminada e com um certo grau de enraizamento e, logo, com uma força própria. Se é verdade que um partido pode ter o efeito de atenuar a dimensão da enorme ruptura desses movimentos e indivíduos com o “sistema” – anulando assim a sua radicalidade e domesticando as suas possibilidades emancipatórias –, não é menos verdade que estando, por enquanto, o partido, muito mais dependente desses movimentos sociais e indivíduos do que o contrário, esse efeito perverso parece-me, para já, relativamente distante. Até porque a ascensão do Podemos foi meteórica e, para além do mediatismo, ainda não teve, creio eu, qualquer efeito significativo nesses sectores sociais. Portanto, meteórica pode ser igualmente a sua queda se incorrer numa sucessão de passos em falso característicos de outros partidos semelhantes. Por outras palavras, o sucesso e a capacidade do Podemos em ir para lá daquilo que propõe por agora – e que, como disse, pode parecer muito nas condições actuais, mas é efectivamente pouco a médio/longo-prazo – depende muito da capacidade de os referidos movimentos sociais manterem a sua autonomia e de se expandirem. Mais do que qualquer programa de governo do Podemos, o que é determinante para o seu sucesso é que este propicie as condições para que essa autonomia se mantenha e para que a força desses movimentos saia reforçada. Nem que seja ficando quietinho, isto é, evitando as tentações para controlá-los ou subjugá-los aos seus fins eleitorais e a um programa político "forte". Para isso é necessário contornar qualquer entendimento vanguardista do seu papel, assumindo-se como apenas mais um elemento de um longo processo, e, igualmente difícil, assegurar uma abertura programática e ideológica permanente. Nada disto é fácil. Sem essa pressão vinda de baixo, não só o Podemos corre o risco de não passar de um simples fogacho ou de se tornar mais um partido sensaborão como todos os outros, como esses movimentos sociais que se estabeleceram nos últimos anos podem sair fragilizados (quando mais não seja pelo tombo que o fracasso das promessas do Podemos pode provocar). Em suma: Podemos, sim, mas fazendo tudo para que esse poder e essa capacidade não fiquem, mais uma vez, entregues a um partido.
É certo que me entusiasmaria muito mais com um fenómeno como o Podemos em Portugal. Não só pelas razões óbvias (a urgência em ver surgir qualquer coisa minimamente consequente capaz de desafiar esta modorra), mas porque neste país a solução partidária parece, de facto, a mais plausível no imediato. Não necessariamente a mais desejável, atenção, mas sim a mais provável. Por outras palavras, o meu nível de tolerância e entusiasmo com um partido cresce proporcionalmente ao grau de impossibilidade de outras “saídas”. Em Espanha, a saída partidária desilude-me mais precisamente por me parecer que a força e o enraizamento de alguns dos seus movimentos sociais, ou de outras estruturas sociabilitárias independentes dos partidos e das instituições estatais, permitiria dar (ou pelo menos esboçar) um passo noutra direcção que não a da previsível e convencional criação de um partido em disputa pelo poder dentro das instituições vigentes. Agora, este factor que contribui para a minha (ligeira) desilusão – ou este motivo para a minha apreensão – pode ser, também, um factor a contribuir para o meu relativo entusiasmo.
Vejamos: se cingirmos a nossa leitura do Podemos ao fenómeno partidário e à luta pelo poder estatal, não há qualquer razão para esperar algo de muito positivo ou, na melhor das hipóteses, algo que seja mais do que um travão ao violento ataque anti-democrático em curso. É evidente que em si isso já é muito desejável, mas, convenhamos, não passa de uma solução temporária e, portanto, de uma forma de legitimação do capital e do Estado obrigando-os, “apenas”, a redefinirem-se noutros termos. Para quem acredita que outro mundo é possível, isso, por muito bom que seja, para além de não chegar, pode ter efeitos perversos. Os sinais que nos chegam relativos ao processo da consolidação e institucionalização partidária do Podemos não contribuem para nenhum tipo de optimismo, quer no que concerne à formalização da sua estrutura (um centralismo e hierarquização crescentes, com a adopção de funções comuns nos partidos, como a do secretário-geral), quer no que concerne ao seu programa (grande parte das propostas do seu “programa económico”, por exemplo, remetem mais para respostas à lógica hegemónica, com o intuito de atenuar os seus efeitos mais brutais, sem necessariamente colocar em causa a sua “essência” ou sem remeter para uma transformação mais ampla e profunda – antes pelo contrário, diria).
Mas a verdade é que, independentemente da sua forma e do seu programa, os limites de um partido, pelas regras a que está sujeito, nunca poderia permitir algo de muito diferente nas suas consequências do que o que nos é oferecido pelo Podemos. Se assim fosse, seria outra coisa e estaria excluído do “jogo” nos em termos que se propôs a jogá-lo. O que é que o Podemos tem, então, de potencialmente diferente que nos permita manter alguma expectativa positiva? Para começar, o facto de ser, em certa medida, o resultado de uma enorme movimentação social de contestação e emancipação com alguns traços de radicalidade. Movimentação essa bastante disseminada e com um certo grau de enraizamento e, logo, com uma força própria. Se é verdade que um partido pode ter o efeito de atenuar a dimensão da enorme ruptura desses movimentos e indivíduos com o “sistema” – anulando assim a sua radicalidade e domesticando as suas possibilidades emancipatórias –, não é menos verdade que estando, por enquanto, o partido, muito mais dependente desses movimentos sociais e indivíduos do que o contrário, esse efeito perverso parece-me, para já, relativamente distante. Até porque a ascensão do Podemos foi meteórica e, para além do mediatismo, ainda não teve, creio eu, qualquer efeito significativo nesses sectores sociais. Portanto, meteórica pode ser igualmente a sua queda se incorrer numa sucessão de passos em falso característicos de outros partidos semelhantes. Por outras palavras, o sucesso e a capacidade do Podemos em ir para lá daquilo que propõe por agora – e que, como disse, pode parecer muito nas condições actuais, mas é efectivamente pouco a médio/longo-prazo – depende muito da capacidade de os referidos movimentos sociais manterem a sua autonomia e de se expandirem. Mais do que qualquer programa de governo do Podemos, o que é determinante para o seu sucesso é que este propicie as condições para que essa autonomia se mantenha e para que a força desses movimentos saia reforçada. Nem que seja ficando quietinho, isto é, evitando as tentações para controlá-los ou subjugá-los aos seus fins eleitorais e a um programa político "forte". Para isso é necessário contornar qualquer entendimento vanguardista do seu papel, assumindo-se como apenas mais um elemento de um longo processo, e, igualmente difícil, assegurar uma abertura programática e ideológica permanente. Nada disto é fácil. Sem essa pressão vinda de baixo, não só o Podemos corre o risco de não passar de um simples fogacho ou de se tornar mais um partido sensaborão como todos os outros, como esses movimentos sociais que se estabeleceram nos últimos anos podem sair fragilizados (quando mais não seja pelo tombo que o fracasso das promessas do Podemos pode provocar). Em suma: Podemos, sim, mas fazendo tudo para que esse poder e essa capacidade não fiquem, mais uma vez, entregues a um partido.
10/11/14
Dossier sobre a extrema-direita no Passa Palavra
por
Miguel Serras Pereira
O Passa Palavra acaba de publicar um importante dossier sobre a extream-direita, retomando vários textos anteriormente aparecidos nas suas páginas sobre o tema. À laia de recomendação de leitura, aqui fica o excerto de um dos artigos — "Entre a luta de classes e o ressentimento. A propósito do artigo «Cadilhe, o “coveiro rico”»" —, escrito pelo João Bernardo em 2009.
(…)
Mais tarde, já no século XX, quando a tecnocracia e os grandes administradores passaram a dominar os governos e sobretudo os bastidores da política, começou a difundir-se a ideia não de que os governos seriam imunes às pressões económicas mas exactamente do contrário, de que eles seriam imunes às pressões políticas. Se a burguesia legitima os seus lucros mediante os títulos jurídicos da propriedade privada, os tecnocratas e, em geral, os gestores legitimam-nos mediante o mito da sua competência técnica. A partir de então os governos passaram a ser encarados na mesma óptica gestorial em que se encara a economia. Um bom governo deveria ser gerido como uma boa empresa, e a palavra «político» passou a carregar o sentido pejorativo que ainda hoje conserva.
Quem não gostou nada desta mudança foram os pequenos patrões, os donos das fabriquetas, das oficinas, os merceeiros [donos de sacolões] da esquina, os agricultores suficientemente abastados para assalariar alguma mão-de-obra e produzir para o mercado, mas sem terras bastantes nem capacidade suficiente para aplicarem no cultivo os métodos mais modernos e produtivos. Foi esta gente que começou a denunciar o favoritismo económico dos governantes, não porque se opusessem em princípio à relação da política com a economia, mas porque pretendiam ser eles a beneficiar dessa relação. Nas décadas de 1920 e de 1930, na Europa, em alguns países da Ásia e nas duas Américas, esta insatisfação dos pequenos patrões foi uma das principais componentes do fascismo. Não constituiu o único factor, houve outros igualmente importantes, mas o fascismo nunca se afirmou sem aquela componente. E desde então, onde o rancor dos pequenos patrões existe, o fascismo não anda longe.
Em termos sociológicos, o que estes pequenos patrões pretendiam e pretendem é atacar os governos não numa perspectiva de luta de classes mas numa perspectiva de mobilidade de elites. Trata-se, para eles, de manter a estrutura económica existente, desde que ascendam dentro dessa estrutura e passem a incluir-se entre o escol dominante. Ora, esta situação agravou-se nas últimas décadas.
Um dos aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é o facto de a concentração do capital, que se acelerou no plano económico, onde atingiu níveis nunca antes alcançados, ter apresentado no plano jurídico uma fisionomia inversa, levando à fragmentação das antigas grandes companhias da era do fordismo. Vivemos numa época em que a generalização das relações de subcontratação e de terceirização atrelou às grandes empresas uma miríade de pequenos patrões. Por um lado, na medida em que estão inteiramente dependentes do mercado de produtos e de serviços constituído pelas grandes empresas que os subcontratam, os pequenos patrões têm de lhes obedecer e de seguir os seus ditames. Mas, por outro lado, este agravamento da subserviência estimula os rancores. É nestes meios sociais que proliferam as denúncias sobre as benesses que grandes capitalistas e altos gestores obtêm dos governos, e a indignação vem-lhes não do facto de o capitalismo existir, mas do facto de não conseguirem aproveitar-se dele, pelo menos tanto como desejariam.
Não devemos desprezar a capacidade mobilizadora que estes pequenos patrões exercem relativamente à classe trabalhadora. Muitos deles estão unidos por elos familiares tanto aos velhos meios operários como aos novos proletários saídos de cursos superiores e que, apesar disso, não encontram senão empregos precários. Outros desses pequenos patrões são antigos operários que conseguiram juntar um pecúlio e instalar-se como pequenos empresários, e mantêm relações familiares e sociais com o seu meio de origem.
Numa época em que, perante a concentração transnacional do grande capital, os trabalhadores se encontram fragmentados, quando foram em boa medida dissolvidas as suas antigas relações de solidariedade e atenuado ou extinto o seu sentimento de classe, mais fácil se torna que eles encontrem nos pequenos patrões os leaders ou os modelos. No plano ideológico e psicológico, trata-se de substituir o espírito de classe pelo ressentimento, ou seja, o desejo de acabar com o capitalismo pela aspiração de subir dentro do capitalismo. O fascismo, na face que apresentou às massas populares, foi exactamente isto.
(…)
(…)
Mais tarde, já no século XX, quando a tecnocracia e os grandes administradores passaram a dominar os governos e sobretudo os bastidores da política, começou a difundir-se a ideia não de que os governos seriam imunes às pressões económicas mas exactamente do contrário, de que eles seriam imunes às pressões políticas. Se a burguesia legitima os seus lucros mediante os títulos jurídicos da propriedade privada, os tecnocratas e, em geral, os gestores legitimam-nos mediante o mito da sua competência técnica. A partir de então os governos passaram a ser encarados na mesma óptica gestorial em que se encara a economia. Um bom governo deveria ser gerido como uma boa empresa, e a palavra «político» passou a carregar o sentido pejorativo que ainda hoje conserva.
Quem não gostou nada desta mudança foram os pequenos patrões, os donos das fabriquetas, das oficinas, os merceeiros [donos de sacolões] da esquina, os agricultores suficientemente abastados para assalariar alguma mão-de-obra e produzir para o mercado, mas sem terras bastantes nem capacidade suficiente para aplicarem no cultivo os métodos mais modernos e produtivos. Foi esta gente que começou a denunciar o favoritismo económico dos governantes, não porque se opusessem em princípio à relação da política com a economia, mas porque pretendiam ser eles a beneficiar dessa relação. Nas décadas de 1920 e de 1930, na Europa, em alguns países da Ásia e nas duas Américas, esta insatisfação dos pequenos patrões foi uma das principais componentes do fascismo. Não constituiu o único factor, houve outros igualmente importantes, mas o fascismo nunca se afirmou sem aquela componente. E desde então, onde o rancor dos pequenos patrões existe, o fascismo não anda longe.
Em termos sociológicos, o que estes pequenos patrões pretendiam e pretendem é atacar os governos não numa perspectiva de luta de classes mas numa perspectiva de mobilidade de elites. Trata-se, para eles, de manter a estrutura económica existente, desde que ascendam dentro dessa estrutura e passem a incluir-se entre o escol dominante. Ora, esta situação agravou-se nas últimas décadas.
Um dos aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é o facto de a concentração do capital, que se acelerou no plano económico, onde atingiu níveis nunca antes alcançados, ter apresentado no plano jurídico uma fisionomia inversa, levando à fragmentação das antigas grandes companhias da era do fordismo. Vivemos numa época em que a generalização das relações de subcontratação e de terceirização atrelou às grandes empresas uma miríade de pequenos patrões. Por um lado, na medida em que estão inteiramente dependentes do mercado de produtos e de serviços constituído pelas grandes empresas que os subcontratam, os pequenos patrões têm de lhes obedecer e de seguir os seus ditames. Mas, por outro lado, este agravamento da subserviência estimula os rancores. É nestes meios sociais que proliferam as denúncias sobre as benesses que grandes capitalistas e altos gestores obtêm dos governos, e a indignação vem-lhes não do facto de o capitalismo existir, mas do facto de não conseguirem aproveitar-se dele, pelo menos tanto como desejariam.
Não devemos desprezar a capacidade mobilizadora que estes pequenos patrões exercem relativamente à classe trabalhadora. Muitos deles estão unidos por elos familiares tanto aos velhos meios operários como aos novos proletários saídos de cursos superiores e que, apesar disso, não encontram senão empregos precários. Outros desses pequenos patrões são antigos operários que conseguiram juntar um pecúlio e instalar-se como pequenos empresários, e mantêm relações familiares e sociais com o seu meio de origem.
Numa época em que, perante a concentração transnacional do grande capital, os trabalhadores se encontram fragmentados, quando foram em boa medida dissolvidas as suas antigas relações de solidariedade e atenuado ou extinto o seu sentimento de classe, mais fácil se torna que eles encontrem nos pequenos patrões os leaders ou os modelos. No plano ideológico e psicológico, trata-se de substituir o espírito de classe pelo ressentimento, ou seja, o desejo de acabar com o capitalismo pela aspiração de subir dentro do capitalismo. O fascismo, na face que apresentou às massas populares, foi exactamente isto.
(…)
Exercício matemático sobre a votação catalã
por
Miguel Madeira
O "Sim-Sim" teve uma vitória esmagadora, cerca de 80%. No entanto é um facto que, sendo uma consulta cujo lado "espanholista" recusava a legitimidade, é natural que quase só os "soberanistas" tenham ido votar.
Assim, o que vou tentar fazer é comparar esses resultados com o que poderiam ter sido se a votação tivesse tido níveis "normais".
Cenário A:
Vamos supor que a votação teria sido a mesma que nas últimas eleições regionais catalãs (em 2012) - 3.668.310 votos
Assim, teríamos:
As percentagens foram calculadas dividindo a votação que cada opção teve no escrutínio de ontem pelo total de votantes expectáveis no cenário (os [Em falta] correspondem à diferença entre a votação real e a votação hipotética; claro que, se tivessem ido votar, os [Em falta] se distribuiriam pelas várias opções, que teriam todas percentagens maiores que o apresentado). Seja como for, mesmo se todos os votantes "Em falta" votassem pelo "Não", o "Sim-Sim" (independência) ganharia.
Cenário B:
É natural que num referendo independentista haja maior adesão de que numas eleições regionais; assim, agora vamos assumir 5.257.960 eleitores inscritos (os que estavam inscritos em 2012) e uma afluência às urnas de 85% (como no referendo escocês):
Ao contrário do cenário anterior, está já não é conclusivo - é de esperar que, de qualquer maneira, todos os votantes no "Sim-Sim" tenham ido votar ontem, mas como é que os "Em falta" se distribuiriam entre o "Sim-Não" e o "Não" (para não falar nos brancos e nulos)?
Por outro lado, se (como na Escócia] fosse uma escolha apenas entre "Sim" e "Não" (sem opção intermédia), ainda maís dificil seria extrapolar a partir da consulta de ontem, já que alguns (talvez até a maioria) dos votantes do "Sim-Não" iriam votar "Sim".
Assim, o que vou tentar fazer é comparar esses resultados com o que poderiam ter sido se a votação tivesse tido níveis "normais".
Cenário A:
Vamos supor que a votação teria sido a mesma que nas últimas eleições regionais catalãs (em 2012) - 3.668.310 votos
Assim, teríamos:
Opção | Votos em 2014 | % |
Sim-Sim | 1.861.753 | 50,75% |
[Em falta] | 1.363.020 | 37,16% |
Sim-Não | 232.182 | 6,33% |
Sim-Branco | 22.466 | 0,61% |
Não | 104.772 | 2,86% |
Branco | 12.986 | 0,35% |
Outros (?) | 71.131 | 1,94% |
Total | 3.668.310 | 100% |
As percentagens foram calculadas dividindo a votação que cada opção teve no escrutínio de ontem pelo total de votantes expectáveis no cenário (os [Em falta] correspondem à diferença entre a votação real e a votação hipotética; claro que, se tivessem ido votar, os [Em falta] se distribuiriam pelas várias opções, que teriam todas percentagens maiores que o apresentado). Seja como for, mesmo se todos os votantes "Em falta" votassem pelo "Não", o "Sim-Sim" (independência) ganharia.
Cenário B:
É natural que num referendo independentista haja maior adesão de que numas eleições regionais; assim, agora vamos assumir 5.257.960 eleitores inscritos (os que estavam inscritos em 2012) e uma afluência às urnas de 85% (como no referendo escocês):
Opção | Votos em 2014 | % |
[Em falta] | 2.296.498 | 49,90% |
Sim-Sim | 1.861.753 | 40,46% |
Sim-Não | 232.182 | 5,05% |
Sim-Branco | 22.466 | 0,49% |
Não | 104.772 | 2,28% |
Branco | 12.986 | 0,28% |
Outros (?) | 71.131 | 1,55% |
Total | 4.601.788 | 100% |
Ao contrário do cenário anterior, está já não é conclusivo - é de esperar que, de qualquer maneira, todos os votantes no "Sim-Sim" tenham ido votar ontem, mas como é que os "Em falta" se distribuiriam entre o "Sim-Não" e o "Não" (para não falar nos brancos e nulos)?
Por outro lado, se (como na Escócia] fosse uma escolha apenas entre "Sim" e "Não" (sem opção intermédia), ainda maís dificil seria extrapolar a partir da consulta de ontem, já que alguns (talvez até a maioria) dos votantes do "Sim-Não" iriam votar "Sim".
09/11/14
O que faria se fosse catalão
por
Miguel Madeira
- Ia votar
- À questão "Quer que a Catalunha seja um Estado?", respondia "sim"
- À questão "Quer que esse Estado seja independente?", respondia "não"
Explicando:
- Eu acho que se o povo da Catalunha (ou o povo de Santo António dos Cavaleiros, já agora) tem todo o direito a decidir ser independente, logo em primeiro lugar iria votar, apoiando o processo referendário contra a tentativa das autoridades de Madrid de o impedirem (e levando à sua transformação em "consulta")
- Achando que uma federação (ou melhor, uma confederação) voluntária é preferível à independência pura, seria a favor de um Estado catalão não-independente.
- À questão "Quer que a Catalunha seja um Estado?", respondia "sim"
- À questão "Quer que esse Estado seja independente?", respondia "não"
Explicando:
- Eu acho que se o povo da Catalunha (ou o povo de Santo António dos Cavaleiros, já agora) tem todo o direito a decidir ser independente, logo em primeiro lugar iria votar, apoiando o processo referendário contra a tentativa das autoridades de Madrid de o impedirem (e levando à sua transformação em "consulta")
- Achando que uma federação (ou melhor, uma confederação) voluntária é preferível à independência pura, seria a favor de um Estado catalão não-independente.
04/11/14
Alguns referendos hoje nos EUA
por
Miguel Madeira
Além de umas eleições com resultados cuja importância é largamente simbólica, hoje também irão ocorrer dezenas de referendos nos EUA, uns convocados por iniciativas de grupos de cidadãos, outros pelos parlamentos locais.
Alguns desses referendos, todos eles convocados por iniciativa popular:
*Alaska Marijuana Legalization, Ballot Measure 2
*Alaska Minimum Wage Increase, Ballot Measure 3, para subir o salário mínimo
*Florida Right to Medical Marijuana Initiative, Amendment 2
*Massachusetts Paid Sick Days Initiative, Question 4, para os trabalhadores puderem faltar por doença sem perderem o ordenado
*Nebraska Minimum Wage Increase, Initiative 425
*Oregon Legalized Marijuana Initiative, Measure 91
*South Dakota Increased Minimum Wage, Initiated Measure 18
*Washington D.C. Marijuana Legalization, Initiative 71, legalizando a posse e cultivo de pequenas quantidades de marijuana (a legalidade desta proposta é bastante polémica, já que a cidade de Washington está sobre a autoridade direta do governo federal, e a ser aprovada entrará em choque com as leis federais sobre drogas)
Editado às 10:15 de 5/11/2014: Destas propostas, a única que foi rejeitada foi Florida Right to Medical Marijuana Initiative (teve a maioria dos votos, mas precisava de uma maioria qualificada); as outras foram todas aprovadas
Alguns desses referendos, todos eles convocados por iniciativa popular:
*Alaska Marijuana Legalization, Ballot Measure 2
*Alaska Minimum Wage Increase, Ballot Measure 3, para subir o salário mínimo
*Florida Right to Medical Marijuana Initiative, Amendment 2
*Massachusetts Paid Sick Days Initiative, Question 4, para os trabalhadores puderem faltar por doença sem perderem o ordenado
*Nebraska Minimum Wage Increase, Initiative 425
*Oregon Legalized Marijuana Initiative, Measure 91
*South Dakota Increased Minimum Wage, Initiated Measure 18
*Washington D.C. Marijuana Legalization, Initiative 71, legalizando a posse e cultivo de pequenas quantidades de marijuana (a legalidade desta proposta é bastante polémica, já que a cidade de Washington está sobre a autoridade direta do governo federal, e a ser aprovada entrará em choque com as leis federais sobre drogas)
Editado às 10:15 de 5/11/2014: Destas propostas, a única que foi rejeitada foi Florida Right to Medical Marijuana Initiative (teve a maioria dos votos, mas precisava de uma maioria qualificada); as outras foram todas aprovadas
03/11/14
Venerandas instituições que são a base da sociedade
por
Ricardo Noronha
Têm alguns espíritos ávidos de inovação, ainda que no fundo
sinceramente afeiçoados aos princípios conservadores, sustentado que o
sistema da Sebenta (como na sua jovial linguagem lhe chama a mocidade
estudiosa) é antiquado. Eu considero, porém, a Sebenta como a
mais admirável disciplina para os espíritos moços. O estudante,
habituando-se, durante cinco anos, a decorar todas as noites, palavra
por palavra, parágrafos que há quarenta anos permanecem imutáveis, sem
os criticar, sem os comentar, ganha o hábito salutar de aceitar sem
discussão e com obediência as ideias preconcebidas, os princípios
adoptados, os dogmas provados, as instituições reconhecidas. Perde a
funesta tendência – que tanto mal produz – de querer indagar a razão das
coisas, examinar a verdade dos factos; perde, enfim, o hábito
deplorável de exercer o livre-exame, que não serve senão para ir fazer
um processo científico a venerandas instituições, que são a base da
sociedade. O livre-exame é o princípio da revolução. A ordem o que é? – A
aceitação das ideias adoptadas. Se se acostuma a mocidade a não receber
nenhuma ideia dos seus mestres sem verificar se é exacta, corre-se o
perigo de a ver, mais tarde, não aceitar nenhuma instituição do seu país
sem se certificar se é justa. Teríamos então o espírito da revolução,
que termina pelas catástrofes sociais!
Hoje, destruído o regime absoluto, temos a feliz certeza de que a
Carta liberal é justa, é sábia, é útil, é sã. Que necessidade há de a
examinar, discutir, verificar, criticar, comparar, pôr em dúvida? O
hábito de decorar a Sebenta produz mais tarde o hábito de aceitar a Carta. A Sebenta é a pedra angular da Carta! O Bacharel é o gérmen do.Constitucional.
Eça de Queiroz, O Conde de Abralho
02/11/14
Sobre Sedas Nunes e «grosseria»
por
Zé Nuno Matos
Num artigo editado no Público, Jorge
Almeida Fernandes considera que Sedas Nunes foi um sociólogo que se pautou não
só pelo cuidado e
rigor, mas também pela «separação de águas entre o trabalho científico e os
textos de intervenção política a coberto da “ciência”». O seguinte
excerto, uma reflexão sobre a natureza do proletariado publicada no
artigo «Crise
Social e Reforma da Empresa» (Revista do Gabinete de Estudos Corporativos, Ano
III, 9, 1952), parece indicar o contrário:
“homem sem família, sem
pátria, sem profissão, sem propriedade; agitado pelo espírito de negação, seja
da presente estrutura social, seja dos valores tradicionais; […]; convencido,
aliás, de que um mundo novo (dos proletários, embora não proletário) está para
chegar – o proletário é verdadeiramente o bárbaro dos nossos dias, ser
desorientado e infeliz, tão incapaz de, por si só, construir uma sociedade
estável e afortunada, como pronto a deixar-se seduzir por qualquer utopia
falaz, que lhe diga o que ele quer ouvir e lhe prometa o que deseja. Ameaça
terrível, gerada no ventre mesmo da civilização, aborto vergonhoso por ela dada
à luz” (p. 23).
Se Sedas Nunes foi um grande
sociólogo, tal deve-se a nunca ter escondido o que era, de onde vinha e o que
pensava. A falta de pudor e a polémica não são, nem nunca foram, inimigas da
ciência, pois é do contraditório que nascem a reflexão e a vontade de
ultrapassar (ou confirmar) os argumentos contrários. Contudo, todo e
qualquer debate requer condições mínimas, em particular a garantia do direito à
existência (e não à destruição) daquilo com que não concordamos.
31/10/14
Sobre as reformas utópicas que pretendem « controlar » o capitalismo
por
Jorge Valadas
Um texto crítico
sobre o « Salário garantido », revendicado em Espanha pelo novo
partido PODEMOS.
°°°°
Desde
que Podemos tuvo su enorme triunfo electoral en las elecciones europeas la
renta básica parece haber dejado de ser un tema de conversación de economistas
de izquierda para convertirse en asunto de discusión política amplia.
Dado el enorme desprestigio de los partidos del sistema y de los “expertos en
economía” que los respaldan —muchos, si no la gran mayoría de los economistas—
la gente de a pie presta cada vez más atención a quienes presentan otras ideas
y a las razones a favor o en contra de esas ideas. Si algo de positivo ha
tenido la crisis, es sin duda hacer que se cuestionen muchas ideas que antes se
daban como indiscutibles. Que haya interés en discutir si un esquema como la
renta básica es mejor o peor que una política de trabajo
garantizado y que incluso sectores del PP
se expresen a favor de estas medidas es sin duda indicativo de la revitalización
del debate público en España.
En
intervenciones recientes, Pablo Iglesias ha explicado la renta básica como una
cantidad de alrededor de 600 euros al mes que recibirían todos los ciudadanos o
residentes legales y que serviría para combatir la pobreza y defender la
dignidad de las personas. La renta básica evitaría que se tengan que aceptar
salarios miserables y por otra parte estimularía el consumo, los ingresos del
pequeño comercio y la actividad económica en general. En ello Pablo Iglesias
sigue en general las ideas de los teóricos de la renta básica, entre quienes en
España destaca Daniel Raventós, profesor de
Economía de la Universidad de Barcelona. Raventós afirma que
cualquier ciudadano, “sólo por serlo, tiene todo el derecho del mundo a
percibir un sueldo” o, lo que sería lo mismo, “una asignación monetaria
incondicional”. Eso es la renta básica que, a diferencia de los subsidios más o
menos generalizados en el Estado de bienestar, se adjudicaría a cualquier
persona sin cumplir una condición previa como ser pobre o estar en el paro,
simplemente por ser ciudadano o residente acreditado, independientemente de que
trabaje o no. La renta básica sustituiría al
subsidio de desempleo, así como a todas las prestaciones monetarias
existentes, refundiéndolas en una sola, de tal forma que se unificarían las
prestaciones por desempleo, jubilación, viudedad, orfandad, etc. Sin embargo,
los proponentes de la renta básica también explican que en ningún caso esa
renta debería reemplazar las prestaciones públicas en sanidad, educación,
vivienda, etc., y quienes tuvieran derecho a prestaciones por desempleo o
jubilación superiores a la renta básica se beneficiarían de mecanismos
específicos para que nadie perdiera dinero con el cambio. El Estado sería
perfectamente capaz de asumir el pago de la renta básica, aunque para ello
habría que “evitar el fraude fiscal y hacer una buena reforma fiscal” porque los
ricos “han de pagar más de lo que pagan hoy”. Para Raventós la introducción de
una renta básica como la que ellos sugieren en España supondría una
mejora de ingreso para el 70% de la población y un deterioro para un
15% que tendría que pagar más impuestos; el 15% restante quedaría igual, sin
ganar ni perder.
El
propósito de este comentario es examinar la propuesta de renta básica en el
marco general de la lucha por el progreso social y las políticas de Podemos.
Aunque la propuesta de la renta básica tiene ya muchos años, ahora se hace en
el contexto de una crisis económica que para muchos cuestiona no solo la
política económica del PP y el PSOE y la corrupción de los políticos, sino el sistema
económico actual. Por ello hay que empezar por explicar las características
fundamentales del mismo. Las consignas de pocas palabras sirven para agitar y
son claramente necesarias en los programas electorales. En lo económico la
consigna de renta básica puede cumplir ese papel. Pero la política solo es
progresista si contribuye a que se entienda lo que está en juego. Las cosas
complejas no pueden explicarse en tres palabras. Para palabrería hueca y
demagogia de pocas frases, con los políticos de siempre sobra y basta.
29/10/14
A luta voltou ao muro
por
Zé Nuno Matos
Para quem ainda não conseguiu ler o último número da revista Análise Social:
A escrita no muro de forma não autorizada, vulgo graffito, é uma prática antiga. Há exemplos da sua existência que remontam à antigui- dade clássica, na Roma antiga ou em Pompeia. Comum a estas formas de expressão de índole vernacular é a recorrente veia satírica e contestatária das mensagens. A afronta ao poder e aos bons costumes tem encontrado no muro e nas formas anónimas de comunicação um reduto altamente criativo. Especialmente relevantes são os graffiti executados no espaço público, disponíveis para uma incomensurável plateia. A falta de identificação de um destinatário particular torna esta forma de comunicação ainda mais curiosa, assemelhando-se às estratégias comunicativas da pro- paganda política e da publicidade. Ao invés destas, o graffiti é executado pelo cidadão comum, geralmente na obscuridade.
Na nossa história mais recente alguns exemplos históricos merecem destaque, pela forma como foram marcando os nossos imaginários. Aquilo que atualmente encontramos impresso nas nossas cidades não pode ser apartado dessa linhagem histórica. Joan Gari, académico catalão que escreveu uma excelente obra sobre a semiologia do graffiti contemporâneo, identifica basicamente duas tradições: a europeia e a norte-americana. A europeia teria por característica principal a escrita, em forma de máxima, de natureza poética, filosófica ou política. Exemplo máximo dessa tradição seria o tipo de graffiti que emergiu durante o Maio de 68 francês. Por contraste, a tradição norte-americana está fortemente vinculada à cultura de massas e à sua iconografia pop, sendo marcada por uma expressão eminentemente figurativa e imagética.
As cidades portuguesas, principalmente os grandes centros urbanos, foram invadidas nas últimas décadas pelo graffiti de tradição norte-americana. Composto por tags, throw-ups e murais figurativos de grandes dimensões, esta é uma manifestação visual que faz hoje parte da nossa paisagem. A globalização deste formato de graffiti significa que, disperso pelo planeta, encontramos uma linguagem comum, com mecanismos de produção e avaliação estética idênticos. A hegemonia desta expressão mural não nos deve fazer esquecer aquela que é a manifestação mural mais marcante da nossa história recente: o mural pós-revolucionário. O período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 foi marcado por uma profusão de propaganda política que recorria ao muro como principal suporte. A iconografia de então, em que se destacavam Marx, Lenine ou Mao, acompanhados por representações colectivas do povo, do operariado ou campesinato, cedeu paulatinamente o lugar aos politicamente inconsequentes tags.
Porém, nos últimos anos parece ter despontado nas paredes uma nova vontade de comunicação política. A grave crise económica e social que eclodiu em função das fortes medidas de austeridade impostas pela coligação de governo psd-cds, parece ter mobilizado os cidadãos para atuarem politicamente à margem dos mecanismos convencionais de expressão da vontade política. As grandes manifestações que se realizaram nos últimos anos, organizadas por associações e coletivos não-partidários são um bom exemplo disso. As paredes parecem, também elas, servir cada vez mais para expressar não apenas uma revolta difusa, mas para acicatar o poder político, satirizar a classe partidária e afrontar o status quo. Através de palavras, de slogans, de murais pintados a aerossol ou através da técnica do stencil, vários são os exemplos destas manifestações que pude recolher nas ruas de Lisboa. As imagens fotográficas que aqui se reproduzem visam, precisamente, retratar esta dinâmica de manifestação popular.
Ricardo Campos
Cemri-Universidade Aberta
Ver ensaio visual aqui
27/10/14
Encruzilhadas de PODEMOS (4): o triunfo do "pablismo"
por
Miguel Serras Pereira
Não é necessária uma clarividência invulgar nem grande erudição teórica, mas basta pensar um momento no assunto, ou examinar serenamente a questão com olhos de ver, para se alcançar que, através de uma organização hierarquicamente centralizada, coroada por um chefe carismático, assistido por responsáveis em grande medida coptados, se poderá eventualmente derrubar um governo ou mudar de constituição, mas que o regime e as relações de poder resultantes serão tudo menos realmente democráticos, pelo menos, se não nos limitando a uma concepção representativa da democracia, considerarmos que a democracia "real" só pode instaurar-se através da generalização da participação no exercício do poder e no governo dos diversos aspectos colectivos da vida social do conjunto dos cidadãos.
É por isso que, tendo presente, por um lado, o carácter antidemocrático — que procurei documentar aqui, aqui, aqui e aqui — das medidas organizativas do "pablismo" e do regime interno que se destinam a instaurar e blindar no interior do PODEMOS, e, por outro lado, o facto de que o mesmo "pablismo" obteve na asamblea ciudadana o apoio de mais de 80 por cento dos votos, que lhe concderam "plenos poderes", resta concluir que, até mais ver, é apostar numa impossibilidade lógica e material que o novo partido possa agir de outro modo que não seja como um obstáculo à democratização e à emergência das formas de organização alternativas sem as quais essa demcratização não poderá avançar. Parafraseando um célebre aforismo de Marx, que afirmava que a liberdade do Estado é inversamente proporcional à dos cidadãos, é caso para dizermos que o poder que o PODEMOS possa exercer só poderá ser inversamente proporcional ao da democracia.
É por isso que, tendo presente, por um lado, o carácter antidemocrático — que procurei documentar aqui, aqui, aqui e aqui — das medidas organizativas do "pablismo" e do regime interno que se destinam a instaurar e blindar no interior do PODEMOS, e, por outro lado, o facto de que o mesmo "pablismo" obteve na asamblea ciudadana o apoio de mais de 80 por cento dos votos, que lhe concderam "plenos poderes", resta concluir que, até mais ver, é apostar numa impossibilidade lógica e material que o novo partido possa agir de outro modo que não seja como um obstáculo à democratização e à emergência das formas de organização alternativas sem as quais essa demcratização não poderá avançar. Parafraseando um célebre aforismo de Marx, que afirmava que a liberdade do Estado é inversamente proporcional à dos cidadãos, é caso para dizermos que o poder que o PODEMOS possa exercer só poderá ser inversamente proporcional ao da democracia.
O "coeficiente familiar" no IRS
por
Miguel Madeira
Uma novidade neste orçamento de Estado, bastante propagandeada pelos apologistas do governo, é o "apoio à família" atravéz do "coeficiente familiar": isto é, agora, para efeitos de determinação de taxa, o rendimento de um casal com um filho é dividido por 2,3 em vez de por 2.
Mas não é de agora que as famílias com filhos dependentes têm beneficios no IRS - há muito que, por cada dependente, se deduz não sei quanto à coleta final. Haverá uma grande diferença entre os dois sistemas?
Na verdade há - no sistema de deduções à coleta, cada filho a cargo significa um abatimento fixo no IRS a pagar no fim do ano, independentemente do valor dos rendimentos (com o limite de que nunca se pode receber mais do que se pagou). Já o sistema do coeficiente familiar (em que um filho adicional reduz o rendimento base para a determinação da taxa de IRS) leva, não a uma redução em valor absoluto do IRS a pagar, mas a uma redução da taxa a pagar, o que quer dizer que redução no IRS tende a ser maior quanto maior o rendimento.
Ou seja, a implementação do coeficiente famíliar como política de "apoio à família", em vez de simplesmente aumentar o valor das deduções à coleta por dependente, representa sobretudo o apoio a um tipo especifíco de "família numerosa": aquela que vive numa casa apalaçada e que tem quase tantos apelidos como filhos.
Mas não é de agora que as famílias com filhos dependentes têm beneficios no IRS - há muito que, por cada dependente, se deduz não sei quanto à coleta final. Haverá uma grande diferença entre os dois sistemas?
Na verdade há - no sistema de deduções à coleta, cada filho a cargo significa um abatimento fixo no IRS a pagar no fim do ano, independentemente do valor dos rendimentos (com o limite de que nunca se pode receber mais do que se pagou). Já o sistema do coeficiente familiar (em que um filho adicional reduz o rendimento base para a determinação da taxa de IRS) leva, não a uma redução em valor absoluto do IRS a pagar, mas a uma redução da taxa a pagar, o que quer dizer que redução no IRS tende a ser maior quanto maior o rendimento.
Ou seja, a implementação do coeficiente famíliar como política de "apoio à família", em vez de simplesmente aumentar o valor das deduções à coleta por dependente, representa sobretudo o apoio a um tipo especifíco de "família numerosa": aquela que vive numa casa apalaçada e que tem quase tantos apelidos como filhos.
23/10/14
"Verão árabe" na Tunísia?
por
Miguel Madeira
Os resultados da "primavera árabe" de 2011 parecem desanimadores - a Síria, Iemén e Líbia em guerra civil, e o Egito com uma ditadura militar talvez ainda mais repressiva que o regime de Mubarak.
Mas e o país que deu início a tudo, a Tunísia? Comparada com os vizinhos, parece estar num caminho não muito mau - no próximo domingo irá haver novas eleições; não encontro referências a sondagens recentes (tirando esta, que demonstra um descontentamente com a democracia, mas não faz perguntas sobre intenções de voto), mas as que há (de julho) apontam para a coligação Nida Tounes (em termos europeus poderá ser classificada como "direita secular") ficar em primeiro, o Ennahdha (islamita) - os vencedores das anteriores eleições - em segundo e a Frente Popular (esquerda radical) em terceiro. A grande novidade aqui é mesmo, se estes resultados se confirmarem, talvez a primeira vez em que primeiro um partido islamita ganha umas eleições democráticas para as perder nas eleições seguintes, sem um golpe militar pelo meio. Provavelmente o facto de nas eleições anteriores os islamitas não terem tido maioria (e terem precisado de se coligar com dois partidos seculares) também ajudou - se não fosse isso, talvez a polarização entre o campo islamita e o secular tivesse sido maior, e talvez a crise que ocorreu com o assassínio de dois dirigentes da Frente Popular por terroristas salafitas (e que levou à demissão do primeiro-ministro islamita e à criação de uma espécie de governo de independentes) tivesse dado origem a um golpe de estado, como no Egito.
Uma explicação para o relativo sucesso tunisino poderá estar em, supostamente, ser um país mais secular do que a maior parte dos países árabes; mas creio que também poderemos contar mais dois factor: o sistema eleitoral, proporcional e ainda por cima creio que pelo método de Hare-Niemeyer, mais favorável às minorias do que o de Hondt (se as primeiras eleições tunisinas tivessem sido pelo sistema maioritário - como no Egito - ou mesmo pelo método de Hondt, os islamitas teriam obtido uma maioria esmagadora no parlamento); e a força dos sindicatos (ao contrário de países em que as únicas forças sociais relevantes são o exército e a religião).
Atenção que, embora eu refira que foi vantajoso para a manutenção até agora da democracia tunisina os islamitas não terem maioria no parlamento, não estou a dizer que o perigo viesse necessariamente de uma maioria islamita tentar acabar com a democracia - poderia também vir, como no Egito e, muitas vezes no século passado, na Turquia, das forças seculares, com medo dos islamitas, acabarem elas com a democracia.
Uma nota final - este meu post pode parecer muito "reformista": um "bom sinal" a consolidação de uma pura democracia representativa "burguesa", e em que ainda por cima a bipolarização é entre dois partidos de direita (um secular e cosmopolita e outro mais religioso e tradicionalista - na Europa, o mais parecido com isso seriam os partidos na Irlanda e na Polónia), com uma esquerda residual (bem, ao menos a FP é capaz de ter mais votos que o BE em Portugal)? Mas comparado com o que aconteceu nos outros países árabes, se calhar é o melhor que se pode esperar...
[Vamos lá ver, se para estragar o meu post, se na segunda-feira não se põem aos tiros uns com os outros]
ATUALIZAÇÃO (16:46) - afinal começaram já hoje
Mas e o país que deu início a tudo, a Tunísia? Comparada com os vizinhos, parece estar num caminho não muito mau - no próximo domingo irá haver novas eleições; não encontro referências a sondagens recentes (tirando esta, que demonstra um descontentamente com a democracia, mas não faz perguntas sobre intenções de voto), mas as que há (de julho) apontam para a coligação Nida Tounes (em termos europeus poderá ser classificada como "direita secular") ficar em primeiro, o Ennahdha (islamita) - os vencedores das anteriores eleições - em segundo e a Frente Popular (esquerda radical) em terceiro. A grande novidade aqui é mesmo, se estes resultados se confirmarem, talvez a primeira vez em que primeiro um partido islamita ganha umas eleições democráticas para as perder nas eleições seguintes, sem um golpe militar pelo meio. Provavelmente o facto de nas eleições anteriores os islamitas não terem tido maioria (e terem precisado de se coligar com dois partidos seculares) também ajudou - se não fosse isso, talvez a polarização entre o campo islamita e o secular tivesse sido maior, e talvez a crise que ocorreu com o assassínio de dois dirigentes da Frente Popular por terroristas salafitas (e que levou à demissão do primeiro-ministro islamita e à criação de uma espécie de governo de independentes) tivesse dado origem a um golpe de estado, como no Egito.
Uma explicação para o relativo sucesso tunisino poderá estar em, supostamente, ser um país mais secular do que a maior parte dos países árabes; mas creio que também poderemos contar mais dois factor: o sistema eleitoral, proporcional e ainda por cima creio que pelo método de Hare-Niemeyer, mais favorável às minorias do que o de Hondt (se as primeiras eleições tunisinas tivessem sido pelo sistema maioritário - como no Egito - ou mesmo pelo método de Hondt, os islamitas teriam obtido uma maioria esmagadora no parlamento); e a força dos sindicatos (ao contrário de países em que as únicas forças sociais relevantes são o exército e a religião).
Atenção que, embora eu refira que foi vantajoso para a manutenção até agora da democracia tunisina os islamitas não terem maioria no parlamento, não estou a dizer que o perigo viesse necessariamente de uma maioria islamita tentar acabar com a democracia - poderia também vir, como no Egito e, muitas vezes no século passado, na Turquia, das forças seculares, com medo dos islamitas, acabarem elas com a democracia.
Uma nota final - este meu post pode parecer muito "reformista": um "bom sinal" a consolidação de uma pura democracia representativa "burguesa", e em que ainda por cima a bipolarização é entre dois partidos de direita (um secular e cosmopolita e outro mais religioso e tradicionalista - na Europa, o mais parecido com isso seriam os partidos na Irlanda e na Polónia), com uma esquerda residual (bem, ao menos a FP é capaz de ter mais votos que o BE em Portugal)? Mas comparado com o que aconteceu nos outros países árabes, se calhar é o melhor que se pode esperar...
[Vamos lá ver, se para estragar o meu post, se na segunda-feira não se põem aos tiros uns com os outros]
ATUALIZAÇÃO (16:46) - afinal começaram já hoje
22/10/14
Declaração de interesses
por
Miguel Madeira
Para a próxima Convenção do Bloco de Esquerda sou apoiante da moção E (Pedro Filipe Soares); eu em principio não irei escrever posts no blogue relacionados com as eleições internas do Bloco, mas se por acaso escrever algum, ficam já informados de qual a minha posição.
21/10/14
Encruzilhadas de PODEMOS (3)
por
Miguel Serras Pereira
El equipo de Pablo Iglesias ha optado por seguir la línea que han defendido este fin de semana, apostando por presentar una propuesta integral, que deberá ser votada en bloque. Dicho de otro modo, quien decida apoyar el proyecto del líder de Podemos tendrá que votar sus modelos político, ético y organizativo juntos; o los tres, o ninguno.
Esto implica también que quienes voten un documento ético, político u organizativo de cualquier equipo, no podrán apoyar el del grupo de Iglesias, Claro que Podemos.
Se não há maneira ou via de credibilizar e provar um processo de transformação radical, ou de democratização efectiva das relações de poder que reproduzem a economia política governante e o seu Estado, substituindo-as pelo autogoverno dos cidadãos organizados, que não passe, e não tenha de começar, por actualizar nas formas de luta, acção e organização a participação e a direcção igualitárias que se propõe como objectivo generalizar — então, as soluções organizativas e o regime interno (monolitismo, concentração das decisões, secundarização das assembleias nos intervalos entre congressos, exaltação da figura do secretário-geral, etc., etc.) que Pablo Iglesias, Monedero e outros estão a procurar impor ao PODEMOS são por si só um obstáculo mais do que suficiente, a não ser destruído, à participação governante dos cidadãos cuja defesa e desenvolvimento o PODEMOS afirma ser o seu propósito último. Vêem e fazem mal os que, dentro e fora do PODEMOS, por "eleitoralismo" ou outras ilusões tácticas, subestimam o alcance da "eficácia" antidemocrática do "pablismo" — e pior ainda vêem e fazem os que a toleram ou secundam como necessidade transitória de meios ao serviço de fins ou tarefas históricas superiores. Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.
Em defesa do Secretário de Estado do Ensino Básico
por
Miguel Madeira
Corre por aí que o motivo da demissão do Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário terá sido devido a uma acusação de plágio. Se fosse esse o caso, acho que seria uma demissão profundamente injusta, na medida em que plagiar até me parece estar de acordo com a linha pedagógica preconizada pelo ministro.
Para explicar melhor o que quero dizer, convém desfazer o que penso ser em parte um equívoco acerca de Nuno Crato: é frequente dizer-se que ele ficou famoso combatendo o "facilitismo" na educação. Confesso que não li os livros dele; mas lia quase sempre os artigos dele no Expresso, e não me parece que ele ocupasse muito tempo a falar do "facilitismo". O que ele criticava sobretudo (e que designava por "eduquês") era o "construtivismo", a teoria de que os alunos aprendem melhor se descobrirem por eles próprios do que se forem explicitamente instruídos (nomeadamente em matemática a pedagogia construtivista que o ensino deve basear-se mais em apresentar problemas para os alunos descobrirem a solução do que em ensinar explicitamente como resolver os exercícios).
Em oposição a essa teoria, Nuno Crato frequentemente vinha com argumentos como "se estiverem à procura de um sitio numa cidade que não conheçam, é melhor perguntar o caminho do que andarem às voltas" ou citava estudos demonstrando que grupos de trabalho em que os membros recebem instruções para copiar os métodos melhor sucedidos funcionam sempre melhor de que grupos em que os membros recebem instruções para serem "originais"; outro aspeto importante da sua argumentação é que as questões para os alunos resolverem devem ser puramente matemáticas em vez de "problemas" (isto é, nos testes deveria-se perguntar "resolva a equação: 120*X = 300 -90*X" em vez de "Lisboa de Portimão estão a 300 kms de distância; na mesma altura, um carro parte de Lisboa para Portimão a 90 km/h e outro parte de Portimão para Lisboa a 120 km/h; quanto demoram até se cruzarem?").
A mim, até nem me parece haver grande ligação entre "construtivismo" e "facilitismo"; para falar a verdade, e pegando na minha experiência de 16 anos de aluno e alguns meses como professor, até suspeito que a maior parte dos alunos acharão a "pedagogia construtivista" MAIS DIFÍCIL do que a "tradicional" (suspeito que muita da fama de "inimigo do facilitismo" de Nuno Crato deriva de na imaginação popular "pedagogia tradicional = exigência; novas pedagogias = bandalheira", logo se alguém faz nome a defender a pedagogia tradicional contra modernices é automaticamente visto como um defensor do "rigor" contra o "facilitismo").
Bem, e o que tem isso a ver com o Secretário de Estado? É que, de certa forma, um plágio mais não é do que levar o anti-construtivismo às últimas consequências (em vez das ideias construtivistas e românticas de que um texto deve ser o produto das reflexões e ideias pessoais do autor).
Para explicar melhor o que quero dizer, convém desfazer o que penso ser em parte um equívoco acerca de Nuno Crato: é frequente dizer-se que ele ficou famoso combatendo o "facilitismo" na educação. Confesso que não li os livros dele; mas lia quase sempre os artigos dele no Expresso, e não me parece que ele ocupasse muito tempo a falar do "facilitismo". O que ele criticava sobretudo (e que designava por "eduquês") era o "construtivismo", a teoria de que os alunos aprendem melhor se descobrirem por eles próprios do que se forem explicitamente instruídos (nomeadamente em matemática a pedagogia construtivista que o ensino deve basear-se mais em apresentar problemas para os alunos descobrirem a solução do que em ensinar explicitamente como resolver os exercícios).
Em oposição a essa teoria, Nuno Crato frequentemente vinha com argumentos como "se estiverem à procura de um sitio numa cidade que não conheçam, é melhor perguntar o caminho do que andarem às voltas" ou citava estudos demonstrando que grupos de trabalho em que os membros recebem instruções para copiar os métodos melhor sucedidos funcionam sempre melhor de que grupos em que os membros recebem instruções para serem "originais"; outro aspeto importante da sua argumentação é que as questões para os alunos resolverem devem ser puramente matemáticas em vez de "problemas" (isto é, nos testes deveria-se perguntar "resolva a equação: 120*X = 300 -90*X" em vez de "Lisboa de Portimão estão a 300 kms de distância; na mesma altura, um carro parte de Lisboa para Portimão a 90 km/h e outro parte de Portimão para Lisboa a 120 km/h; quanto demoram até se cruzarem?").
A mim, até nem me parece haver grande ligação entre "construtivismo" e "facilitismo"; para falar a verdade, e pegando na minha experiência de 16 anos de aluno e alguns meses como professor, até suspeito que a maior parte dos alunos acharão a "pedagogia construtivista" MAIS DIFÍCIL do que a "tradicional" (suspeito que muita da fama de "inimigo do facilitismo" de Nuno Crato deriva de na imaginação popular "pedagogia tradicional = exigência; novas pedagogias = bandalheira", logo se alguém faz nome a defender a pedagogia tradicional contra modernices é automaticamente visto como um defensor do "rigor" contra o "facilitismo").
Bem, e o que tem isso a ver com o Secretário de Estado? É que, de certa forma, um plágio mais não é do que levar o anti-construtivismo às últimas consequências (em vez das ideias construtivistas e românticas de que um texto deve ser o produto das reflexões e ideias pessoais do autor).
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