31/03/10

Queremos mais Igualdade, queremos mais Democracia

O que o Miguel Serras Pereira aqui defende vai de encontro ao que é preconizado neste livro



já mencionado nesta crónica do Rui Tavares, e que no essencial demonstra que mais Igualdade e Democracia resultam em mais bem-estar para um maior número de pessoas. Aqui pode ser encontrada uma recensão do livro pelo Renato Miguel do Carmo, do Observatório das Desigualdades, e aqui algumas considerações feitas por José Luiz Sarmento a propósito do livro. Os autores do livro, Richard Wilkinson e Kate Pickett, aproveitaram a oportunidade para constituir uma organização de promoção da Igualdade, o Equality Trust.

Aqui pode ainda ser encontrada uma entrevista a Richard Wilkinson, da qual saliento este extracto:

"What we've learned is that the real quality of life for all of us now depends on improving the social environment, and that we have a policy handle on how to do that. It's not that we all need to have more therapy to try and make us nicer people. Income distribution, an issue government or big corporations can do something about, really affects the psychosocial well-being of the whole society. But we can't just rely just on taxes and benefits to increase equality—the next government can undo them all at a stroke. We've got to get this structure of equality much more deeply embedded in our society. I think that means more economic democracy, or workplace democracy, of every kind. We're talking about friendly societies, mutual societies, employee ownership, employee representatives on the board, cooperatives—ways in which business is subjected to democratic influence. The bonus culture was only possible because the people at the top are not answerable to the employees at all.

Changing workplaces can have an enormous effect—not only is that where wealth is created, it's where income from production is initially divided up. It's also where we're most subjected to hierarchy and authority. Employee ownership turns a company into a community. The chief executive becomes answerable to employees. You might vote for your boss to have, I don't know, three times as much income as you—not 300 or 400 times more. Embedding greater equality and more democratic accountability in our institutions does much more than just changing income distribution or wealth distribution. And, a number of studies show that if you combine an even partial employee ownership, you get quite reliable increases in productivity. This is about how we work better together."

Notas para uma redefinição da cultura - o estranho caso da recepção de Serralves

O que se está a passar na Fundação Serralves ilustra, como poucas situações, a cara de pau com que se presenteiam trabalhadoras e trabalhadores com situações de precariedade. Descobriram agora as luminárias da Fundação as vantagens do «empreendedorismo», certamente à boleia de grandes documentos da cultura como o Código do Trabalho de Vieira da Silva (primeiro contra, depois a favor, eis um ministro que oscila como as avaliações das agências de rating) ou o Compromisso Portugal.  
Como relembra Daniel Oliveira, a Fundação tem dois representantes do Estado português, juntamente com um Presidente e um vice-presidente que já ocuparam  lugares em governos. Gente da mais fina estirpe considera razoável ter, na recepção de um Museu com esta dimensão, pessoas a trabalhar a recibos verdes (independentes que prestam serviços, imaginar-se-ia) mas que, estranhamente, respondem a um superior hierárquico, têm horários fixos e um posto de trabalho permanente, para além de se verem abrangidos pelos regulamentos fixados pela instituição. Pensaram os recepcionistas de Serralves que tudo isso seria considerado relevante e tomado em conta quando recusaram constituir-se em empresa autónoma, que prestaria à Fundação um serviço numa área pouco importante, como sabemos ser esta, a de servir de cara e voz de Serralves em relação aos seus visitantes.
Seria cómico se não fosse dramático e não apenas pelas vidas destas pessoas que agora se vêm no desemprego por terem recusado ser tomadas por estúpidas e ousado dizer não. É que o sentimento de impunidade dos administradores e a tranquila indiferença com que uma instituição desta natureza - virada para a cultura e proposta a reflectir acerca das grandes questões do seu tempo ("centro de reflexão e debate sobre a sociedade contemporânea", pode-se ler no seu site) - responde desta maneira à questão que lhes foi colocada, é todo um programa filosófico, estético e político. 
Já conhecemos o recorrente hábito, que certas e determinadas pessoas têm de tomar tudo e todos por estúpidos, mas há limites que nem sequer  Rui Pedro Soares ou Vitalino Canas (o provedor das empresas de trabalho temporário e «rei das consultorias») se  atreveriam a ultrapassar. Que se revele, de maneira tão evidente, a ideia que estes administradores têm das coisas da cultura, apenas ilustra a aleatoriedade da distribuição geral de benesses e prebendas pela clientela. Esperava-se que tivessem escolhido alguém que se lembrasse e chamasse a atenção para as diferenças entre uma fundação cultural e um hipermercado. Não porque essa diferença seja algo de óbvio e inquestionável, mas porque sempre fez parte do jogo simbólico ligado às «gentes da cultura», «programadores» e «artistas» cavar um fosso entre essas duas condições e colocar a arte num lugar distinto do da mera «produção». Parece que desta vez ninguém se lembrou de o fazer e Serralves vê-se assim representada como um «Norteshopping» para gente com óculos de massa e calças de flanela.
O caso ilustra pois uma passagem decisiva e cheia de alcance para um posicionamento crítico em relação à apologia das «industrias culturais» e das «cidades criativas». De um ponto de vista de classe, como pode ser o dos «trabalhadores independentes da recepção», a «cultura» ali encenada apresenta-se como uma  flor na lapela, um negócio como os outros, uma mercadoria em promoção.
Se quisermos procurar o  significado mais clássico (e simultaneamente mais moderno) da palavra, algo que faça dela um ponto de resistência à normalização e um esforço para questionar o real, então só a poderemos mesmo encontrar naqueles espaços e tempos em que pessoas se juntam para lutar contra esta retorcida banalização do cinismo. Para encontrar um "centro de reflexão e debate sobre a sociedade contemporânea", só mesmo procurando entre aqueles que se organizam para planear o contra-ataque e elaborar dessa maneira uma cultura que não está à venda, porque é inseparável das suas vidas. Nos tempos que correm, a cultura é precária. Como poderia deixar de ser rebelde?





Uma carta da Associação Ateísta Portuguesa

… enviada hoje ao bispo Carlos Azevedo, a propósito da visita do papa a Portugal.

«A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) compreende a preocupação da Igreja católica com o ateísmo, a ponto de ter realizado a peregrinação de 13 de Maio de 2008, a Fátima, "contra o ateísmo na Europa"» e de, no mesmo ano, o Sr. Patriarca Policarpo ter considerado o ateísmo como o "maior drama da humanidade", maior ainda que a fome, as doenças, as guerras, as catástrofes naturais, a pedofilia e o terrorismo religioso. E a AAP reconhece, e defende, o direito de V. Ex.ª e da sua Igreja de não gostar de ateus e de manifestar o azedume que esta associação lhes tem causado nestes escassos dois anos que leva de existência.»

Na íntegra, aqui.

Uma Reivindicação Razoável

Será de mais - será sequer assim tanto - o "tudo" do "Queremos Tudo" do combate operário que o Ricardo Noronha nos propôs aqui que considerássemos, por esse caminho antecipando da melhor maneira as jornadas do próximo May Day ?
A resposta democrática à precariedade, à expropriação e à subordinação hierárquica do trabalho e do conjunto da actividade económica parece, em todo o caso, bastante simples, e pode traduzir-se numa reivindicação razoável, que não pressupõe descobertas científicas novas no campo da economia, da sociedade ou da história, não depende de soluções tecnológicas milagrosas, não implica a construção de direcções políticas qualificadas, nem a assunção de competências extraordinárias por agentes privilegiados e profissionais do governo dos outros.
Bastaria que, em contrapartida de um determinado montante de trabalho - igualitariamente estabelecido  pelo poder democrático igualitariamente exercido pelos cidadãos -, fosse garantido a todos um rendimento igualitário e condições de igualdade perante o mercado. Precise-se somente que esta política de igualização dos rendimentos não poderia deixar de ser acompanhada da democratização das condições de exercício da actividade económica e da divisão (política) do trabalho em vigor - consequência óbvia da transformação democrática da actual divisão hierárquica do trabalho político.
Tal seria o resultado da adopção de uma proposta do tipo da reiteradamente apresentada nesta matéria por Castoriadis, em termos que poderiam unir numa mesma plataforma tanto os precários rebeldes como os restantes trabalhadores cada vez mais precarizados. E poderia acrescentar-se que essa plataforma seria também uma via de saída para a crise global que a ordem estabelecida não para de reproduzir e agravar a todos os níveis e à escala planetária.

Embora tentar?

30/03/10

Mulheres que trabalham


"Ontem foi bom e foi importante. Um grupo de trabalhadoras do sexo do Intendente foi por sua iniciativa própria ao 1º de Maio. Umas levaram as filhas, aquelas que a segurança social retira não necessariamente com mais do que o critério único da profissão da mãe. Outras levaram voz e garra. Sem grandes teses ou reivindicações sobre a profissão. Não é que não as vão já debatendo, e que não digam “queremos direitos”. Não, mas antes disso e antes de mais, colocar o dedo na ferida do estigma e da violência, quer aquela a que se sujeitam nas ruas, quer a do preconceito social que fez pesados os olhares do público à sua chegada à Alameda. O estigma. A forma como são tratadas pelo Estado e pelos comuns de nós. Quanto mais não seja quando olhamos para o lado todos os dias, aqueles que não somos seus clientes, e não vemos realidades duras, muito duras, que não podem continuar a ser ignoradas. “Prostituição: Não ao preconceito, Sim, à pessoa”, era o que queriam dizer, e que também são trabalhadoras.
No Portugal do sexo insistentemente tabú e mal vivido, da discriminação, uma aliança – alguns dirão contra-natura outros bizarra – entre um grupo lgbt (panteras rosa), uma instituição católica, (irmãs oblatas), PROJECTO IR (CEM – Centro Em Movimento) e um conjunto de trabalhadoras do sexo de uma das mais degradadas zonas de Lisboa, ajudou a trazer à rua a denúncia da hipocrisia sobre a existência da prostituição. Essa profissão quer voluntária, quer recurso extremo, quer de mulheres, quer de homens, quer de transexuais, em tantos e variados contextos e diferentes situações, mas com tanta experiência comum. Uma aliança natural, digo eu, quando leio declarações da responsável das oblatas ao Público que “se Jesus fosse vivo andaria a distribuir preservativos às prostitutas”. As minhas alianças são também as de quem intervém de forma humana e progressista na área das ’sexual politics’. Sobretudo em Portugal. Eu não diria melhor.
Tiro o chapéu a estas mulheres auto-organizadas que ontem passaram desfilando frente ao seu local de trabalho e cumprimentaram colegas a partir da marcha, enquanto cantavam junto com as pessoas que se manifestaram no MAYDAY 2009 “hoje, 1º de maio, há precárias a trabalhar!”. Confio que no próximo ano sejam também, se não ainda muitas, certamente mais, porque esse é o efeito dos primeiros exemplos quando são corajosos.
"
Sérgio Vitorino, 5 Dias, 2 de Maio de 2009.
A confiança do Sérgio provou-se fundamentada, uma vez que várias trabalhadoras do sexo têm participado nas iniciativas e assembleias do Mayday, enfrentando medos e desafiando preconceitos, vencendo a primeira de todas as lutas: a de caminhar livremente e de cabeça erguida, impondo a sua visibilidade sem esquecer a sua condição. De trabalhadoras em luta, de precárias que se rebelam.
Working Girl (in boots), Paula Rêgo (consta que a modelo terá sido a jovem e simpática autora deste livro)

Roma, cidade fechada


A discussão começou ontem nos comentários a um post que eu julgava inócuo e que deram origem a um texto do Miguel Serras Pereira e a um outro do João Tunes. Tomo-os como ponto de partida, concordando com muito do que ambos dizem, mas tentando abordar a questão de um outro ponto de vista e deixando de lado, pelo menos para já, a questão da pedofilia e de tudo o que lhe está ligado.

Será razoável esperar que a igreja católica enquanto instituição venha a prescindir do poder fortemente centralizado que detém, ou a modificar significativamente as suas características, apesar das declarações cíclicas de descentralização e de autonomias que vai fazendo? Terá isso importância, ou não, na sua contribuição para a construção da democracia dos povos?

A minha resposta à primeira pergunta é negativa e recuo algumas décadas para lá chegar. Durante o Concílio Vaticano II que decorreu na primeira parte dos anos 60, mais exactamente de 1962 a 1965, a grande esperança que alimentou o mundo católico foi precisamente que se estivesse a viver o início de uma nova era em que a primazia do «povo de Deus» vencesse a rigidez de uma estrutura hierárquica, rígida e esclerosada, onde tudo chegava do topo à base em perfeita harmonia, por uma correia de transmissão sem falhas nem desobediências. Ou, por outras palavras em que melhor nos entendemos, para a que a igreja se tornasse uma instituição verdadeiramente «democrática».

Ser ou não ser

SG Polaroid

Quando falamos de nós próprios é sempre difícil esquivar a insolência. Se somos demasiado benévolos parecemos arrogantes, se nos fazemos de humildes ou despretensiosos tudo soa um tanto a contrafeito. E se procuramos parecer imparciais fazemos com que a nossa vida pareça aos olhos dos outros um pântano de apatia e displicência. Mas vou correr o risco de desempenhar qualquer um desses papéis, já que o blogue é dos suportes literários mais volúveis que existem e daqui por uma semana, talvez menos, ou bem menos, já ninguém se lembrará disto.

Gosto de me ver como um tipo da província. A figura faz-me uns anos mais novo e deixa que mais facilmente me sejam perdoados os erros, as omissões, uma ou outra quebra das regras em uso nos ambientes mais refinados. Gosto dela porque me serve de máscara e às vezes de álibi. É pois como provinciano que me repugna um tanto o jogo social, comum entre muita gente das artes e das letras, certos bloggers, alguns jornalistas, e até políticos mais atrevidos, traduzido na ostentação da sua própria singularidade. Naquela atitude a que entre os decadentistas franceses da segunda metade de Oitocentos se chamava, à época com relativa propriedade, «épater la bourgeoisie». Ora é esta rejeição visceral do poseur que me faz gostar de conhecer, não sem uma certa dose de parcialidade, episódios como o relatado por Enrique Vila-Matas no seu recente Diário Volúvel (Teorema, trad. Jorge Fallorca).

O governo deve ser exercido por "pessoas qualificadas"?

Esta questão levantada n'A Douta Ignorância levou-me a outra questão - se o governo deve ser exercido por pessoas "qualificadas para tal".

E a minha resposta é... não! Porquê?

Vamos imaginar uma sociedade em que não há conflitos entre os desejos dos individuos - numa sociedade desse género não haveria qualquer necessidade de governo*, já que tudo poderia funcionar por acordos amigáveis, logo a questão "quem deve governar" não faria sentido - se fosse assim, ninguém deveria governar (algumas pessoas poderiam escolher peritos hiper-qualificados para os guiar, mas sem qualquer poder impositivo).

Agora vamos imaginar uma sociedade em que os desejos dos individuos são conflituais, seja por razões objectivas (p.ex., conflitos entre ricos e pobres), seja por razões subjectivas (p.ex., conflitos entre os que preferem uma praia com rochas naturais e os que preferem que seja implantado um enorme areal). Nessa sociedade talvez* fosse necessário um governo/estado, mas, exactamente porque há desejos conflituais, não há nenhuma solução que se pode dizer que seja a correcta (afinal, qual é a razão para optarmos pelos desejos de uns em detrimento dos de outros) - parafraseando o PR, "mesmo duas pessoas inteligentes e com a mesma informação poderão discordar". E, se não há "a" melhor decisão, mas sim interesses e/ou valores em conflito, não é por a decisão ser tomada por um "perito" que será melhor que se for tomada por um plenário ou referendo (claro, poderá-se argumentar que também não será pior...).

Resumindo:

- se não haver valores ou interesses em conflito na tomada de uma decisão, não é necessária uma autoridade com poder coercivo* para impor a decisão

- se haver valores ou interesses em conflito nessa decisão, isso que dizer que não há uma solução "técnica" para o problema (a decisão acabará por ser mais uma escolha subjectiva e/ou ideológica), logo não há grande justificação para ser tomada por "pessoas qualificadas"

*note-se que em nenhum momento eu digo que se houverem interesses ou valores em conflito é necessário um poder coercivo e que as coisas não se poderão resolver pela tal cooperação amigável; apenas digo que, se não houver esse conflito, é que de certeza não é necessário existir "poder".

Contra uma Execução Anunciada

Mohammad-Amin Valian é um jovem iraniano, com 20 anos de idade, estudante, que foi acusado da prática de "actos contra Deus" e codenado à morte na sequência da participação em acções de rua que, no passado dia 27 de Dezembro, reivindicaram liberdades civis e políticas e o respeito dos direitos humanos para os cidadãos do seu país.

Assinar aqui uma petição que visa impedir o seu homicídio pelo governo clerical iraniano.

Da Pedofilia Privada aos "Vícios Públicos" da Igreja de Roma

Retomo aqui, adaptando-o, o texto de um comentário que deixei ontem a um brilhante e brilhantemente polémico post, Magister dixit?, que a Joana Lopes publicou no seu Brumas.
A minha ideia não é desvalorizar as questões que o escândalo dos casos de pedofilia sacerdotal nos impõe que consideremos. Mas mostrar que essa árvore faz parte de uma floresta muito mais densa, sem cujas condições ambientes não pooderia ela própria, a árvore pedófila, ter alcançado as proporções que alcançou. Na realidade, sem as prerrogativas, o estatuto privilegiado, que uma instituição como a Igreja de Roma concede aos seus pastores enquanto corpo hierárquico governante, detentor de um poder justificado pela vontade de Deus e instaurando uma razão hierárquica não questionável pelos fiéis, o prolongado encobrimento dos factos que começam agora a ser conhecidos e a imposição da mordaça às vítimas não seriam sequer concebíveis.
Quanto ao texto de Anselmo Borges que o post da Joana cita, tomando a sua recepção como ponto de partida, não creio que implique desvalorizá-lo desmitificar os pressupostos adoptados pelas leituras que o trasnformam numa espécie de carta de princípios suficiente para uma transformação da Igreja de Roma. A crónica de Anselmo Borges está muito bem construída, evita o sensacionalismo e põe os pontos nos ii que decide analisar. Mas não aborda, nem pretende fazê-lo, o conjunto da questão política com que o estatuto também político, de superioridade e excepção, que a Santa Sé reclama e, confrontada com o presente escândalo, não se tem cansado de reafirmar.

Do meu ponto de vista, é, com efeito, de recear que o escândalo dos padres predófilos e da protecção de que gozaram, que as imputações que a esse propósito são feitas a Ratzinger no desempenho das suas altas funções anteriores às do pontificado, que, em suma, a crítica dos maus costumes que encontraram abrigo no espaços mais intra muros eclesiástico, desviem a atenção da questão de fundo que uma concepção minimamente exigente da democracia não pode deixar de levantar perante as pretensões políticas da Igreja de Roma em geral e da sua reiteração particularmente intensa por parte do actual papa, que nisso permanece idêntico ao que já sustentava com insistência nos tempos do seu antecessor.

29/03/10

O que é que nós temos a ver com o trabalho?


“Foram mais de dois meses de uma luta mesmo bestialmente espontânea. Não havia dia em que não paralisasse uma oficina. Todas as semanas mais ou menos bloqueava-se a FIAT inteira. Eram mesmo dias de luta contínua. De facto os títulos dos panfletos que se faziam eram Luta Contínua e realmente havia uma luta contínua durante aqueles meses na FIAT em Turim. Queria-se bloquear o trabalho a todo o custo isto é não se queria trabalhar mais. Procurava-se colocar para sempre a produção em crise. Fazer ajoelhar os patrões e fazê-los descer a acordos connosco. Combatia-se uma batalha a fundo.
Agora uma coisa era já evidente nestas assembleias. A impressão que todos os operários tinham era a de que estavamos numa grande fase do confronto entre nós e os patrões uma fase decisiva. Sentia-se no ar esta consciência das coisas. E de facto nas assembleias era frequentemente usada a palavra revolução. Viam-se companheiros com quarenta anos chefes de família que tinham trabalhado na Alemanha que tinham trabalhado nas obras. Gente que tinha feito de tudo. Que agora diziam que quando tivessem sessenta anos morreriam de cansaço.
Não é justo levar esta vida de merda diziam os operários nas assembleias nos grupos aos portões. Tudo toda a riqueza que produzimos é nossa. Agora chega. Já não aguentamos mais ser também nós coisas mercadoria vendida. Nós queremos tudo. A riqueza toda o poder todo e nenhum trabalho. O que é que nós temos a ver com o trabalho? Começavam a estar fartos a querer lutar por causa do trabalho não porque o patrão é mau mas porque existe. Começava enfim a vir à tona esta exigência de querer o poder. Começava para todos os operários com três ou quatro filhos operários solteiros operários que tinham filhos para mandar para a escola operários que não tinham casa. Todas as nossas exigências sem limites vinham à tona como objectivos concretos de luta na assembleia. Portanto a luta não era apenas uma luta de fábrica. Porque a FIAT tem cento e cinquente mil operários. Era uma grande luta e não só porque envolvia esta enorme massa de operários.
Mas porque os conteúdos destas lutas as coisas que nós os operários queríamos não eram as coisas que o sindicato dizia: Os ritmos são demasiados elevados baixemos os ritmos. O trabalho é nocivo tentemos retirar-lhe essa nocividade estas merdas todas. Os operários pelo contrário já não queriam participar. Descobriram que queriam o poder lá fora. Tá bem na fábrica conseguimos lutar bloquear a produção quando queremos. Mas lá fora o que é que fazemos? Lá fora temos que pagar a renda temos que comer. Temos estas exigências todas. Descobriram que não tinham poder algum o Estado fodia-os lá fora a todos os níveis. Fora da fábrica não se transformavam em cidadãos como todos os operários quando despem o fato-macaco. Continuavam a ser outras raça. Neste sistema de exploração continuavam a ser operários lá fora também. A viver como operários lá fora também a ser explorados lá fora também.”
Nanni Ballestrini, Queremos tudo, Fenda, Lisboa, 1989

Bowling for Colombo


Os precários do Mayday foram ao shopping...

Johnny

A conversa começou na Caixa de Comentários a um post do Miguel Serras Pereira, a propósito de várias interpretações de Le Déserteur.

Jorge Conceição pediu que alguém o ajudasse «a recordar uma canção que ouvira inúmeras vezes a bordo do Niassa, a caminho da Guerra em Moçambique» - Johnny -, «cuja autoria ou interpretação» esquecera. A ajuda não veio mas ele entretanto encomendou o LP Le Déserteur et 13 Autres Chansons Pacifistes e também localizou Johnny no Youtube.

Aqui fica.

Um país, muitos sistemas


Olhamos para a China de fora, elogiamos ou condenamos os seus efeitos na inevitável globalização, protestamos contra a repressão dos que pretendem exprimir-se livremente, comentamos as manobras, louváveis ou nem por isso, do tipo de permanência do Google no país - sempre com as imagens da Praça Tiananmen em pano de fundo e com a herança de Mao na memória e nas prateleiras.

Pouco sabemos, no entanto, da movimentação interna de centenas de milhões de pessoas, do seu significado e das consequências ainda certamente imprevisíveis que ela terá, a médio prazo, não só naquele país mas no mundo em geral.

Estima-se em pelo menos 200 milhões o número de camponeses migrantes para os arredores das grandes cidades, onde vivem em péssimas condições depois de, na melhor das hipóteses, terem conseguido uma autorização de residência temporária que pode caducar em qualquer momento pelos mais variados motivos, sendo os seus portadores recambiados para o local de origem. Mas, num país onde não há «liberdade de habitação», muitos vivem ilegais ou mesmo na clandestinidade.

28/03/10

A lição de Otranto

No dia 12 de Dezembro de 1998, cheguei ao porto de Vlora, na Albânia, onde estive perto de cinco horas. Descobri uma cidade cinzenta, ainda com os vestígios frescos da guerra civil. Casas crivadas de balas, por exemplo. As crianças falavam quase todas um italiano fluente, que aprendiam ouvindo rádio e vendo televisão. As estradas eram de terra batida e de vez em quando passava um BMW de vidros fumados, sem que alguém aparentemente achasse piada ao que observava. Devo dizer, como já terão adivinhado, que aquela não era uma viagem de turismo. Passavam perto de dois anos desde a morte de cento e oito albaneses durante a travessia do Canal de Otranto. A viagem - organizada pelos Tute Bianche - pretendia romper simbolicamente essa fronteira de setenta quilómetros de mar que separam o porto de Brindisi da cidade albanesa que nos acolhia. Uma fronteira que muitos albaneses viam ao mesmo tempo como muro, miragem e oportunidade.

Muitos continuaram a perder as vidas na travessia daquele estreito. No entanto, aquelas mortes de Março de 1997 tinham um travo amargo muito especial: a barcaça na qual se amontoavam os cerca de 150 albaneses foi abalroada por um navio das forças armadas italianas, após insistentes manobras para lhes impedir o acesso à costa. Lembro-me muitas vezes deste episódio. Foi a 28 de Março de 1997 e faz hoje treze anos. Não por acaso, foi nesta varanda sobre o Adriático que Nanni Moretti procurou em vão a esquerda. Num pedaço emblemático de "Aprile", Moretti recorda-nos que a esquerda só faz sentido se souber estar onde estão as vítimas das fronteiras - as físicas e as imaginárias. Pelo menos é assim que eu gosto de ler este excerto:

27/03/10

A propósito de morcegos e das declarações da Ministra da Cultura acerca do TNSC



Ao ouvir excertos da entrevista da Ministra da Cultura à Antena 2 (onde se refere à alegada insatisfação do público do São Carlos, mais precisamente das “pessoas próximas do universo da ópera e da música”), lembrei-me de imediato da récita a que fui assistir d’O morcego de Johann Strauss.
(Trata-se de uma ópera cómica repleta de cinismo e artificialidade: um retrato mordaz da sociedade aristocrática vienense no séc. XIX. O desafio que coloca à sua encenação não é pequeno.  A aposta da encenadora (Katharina Thalbach) foi a de explorar o lado "vampirístico" – logo, susceptível de uma leitura política – da ópera. Para que isto se perceba, note-se que o que desencadeia a acção é a vingança de um dos personagens, que, em tempos, fora abandonado no meio da cidade, no rescaldo de um baile de máscaras, ainda alcoolizado e vestido de morcego... Daí a associação ao imaginário dos vampiros.)
Será que as “pessoas próximas do universo da música e da ópera” são aquelas que pareciam deliciar-se com o “esconde-esconde” vulgar do amante que se refugia no armário, mas se indignaram com a aparição de Maria Rueff no 3º Acto?
Eu diria que não, que não são essas pessoas, necessariamente, o público do São Carlos ou de qualquer outro teatro nacional. Diria, até, que as “pessoas próximas do universo da música e da ópera” não são as que desde sempre se instalam no lugar da sua assinatura, mas aquelas que esse universo souber (e puder...) cativar.

Mais vale rir

Vivi décadas num mar de siglas, quando as americanices ainda não eram moda cá pelo burgo, e levei tempo a refazer-me do espanto de ter um chefe que assinava RPG e que punha em todos os recados FYI ou ASAP. Mas garanto que nunca, mas nunca mesmo, ouvi uma maravilha parecida com esta:



A PT está portanto bem entregue. E o little boy, que entretanto a deixou, rezava assim.

26/03/10

Como se levanta um Estado


O jornal i noticia, na sua edição on-line, uma ambiciosa medida do governo para combater o desemprego e dar um sinal esclarecedor em tempo de crise. Mais pobres e explorados, seremos cada vez melhor vigiados.
"O ministro da Administração Interna, Rui Pereira, afirmou, esta sexta-feira, que vão «desencadear-se imediatamente» os procedimentos necessários para a admissão de dois mil novos elementos para as forças de segurança. «Vamos desencadear o processo concursal para admissão de novos elementos na PSP e na GNR. Haverá um concurso, formação e depois serão incorporados», afirmou Rui Pereira.
O ministro afirmou igualmente que as políticas do Ministério da Administração Interna estão “estrategicamente orientadas” para “prevenir e reprimir a criminalidade”, especialmente a violenta, e o aumento da segurança através de politicas de policiamento de proximidade e comunitárias, além da proteção civil e da segurança rodoviária. 
Sobre a principal conclusão do estudo, de que a maior parte dos portugueses se sente seguro na zona onde mora, mas 41,6 por cento não se sentem seguros em Portugal, Rui Pereira referiu que tal se deve “à sensibilidade que as pessoas têm às notícias sobre crimes”.
Quando se fala da possibilidade de um contágio do «fogo grego» em Portugal, a notícia revela todo um programa, bem ilustrado por uma outra relativa a estas magníficas «jornadas de segurança». Parece que metade dos jovens das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto são «potenciais delinquentes». Serão dois mil novos polícias suficientes para tanta gente?

25/03/10

O erro de Louçã

Como era de esperar, o PSD viabilizou o projecto de resolução do PS de apoio ao PEC. No entanto, supreendentemente, o PS cedeu em toda a linha perante o PSD, transformando o que era um projecto de resolução de apoio específico, às medidas constantes do PEC enviado pelo governo para Bruxelas, num projecto de resolução de apoio genérico, à necessidade de diminuição abrupta do défice público no âmbito do PEC. Torna-se assim óbvio que, neste momento, o PS teme mais do que o PSD o aparecimento duma crise política que possa levar à demissão do governo e à convocação de eleições antecipadas.

Entretanto, após ter escrito este texto, descobri este artigo de opinião de Francisco Louçã. Concordo com a sua primeira parte, que consiste numa análise do PEC, mas não com a segunda parte, onde é esquematizada a estratégia do BE perante o PEC, e mais genericamente perante o governo de José Sócrates. Segundo Francisco Louçã, o PS, e em particular José Sócrates, suspira pelo dia em que o governo seja derrubado, ou seja "obrigado" a demitir-se pela oposição. Na esperança de obter nova maioria absoluta em eleições legislativas antecipadas. No entanto, é hoje claro que não é assim. E não o é, porque o PS sabe que uma nova maioria absoluta é hoje um objectivo ainda mais distante do que em Setembro de 2009. Porque entretanto rebentaram mais alguns escândalos que revelam um governo obcecado com a manutenção do Poder, porque o PS tem um PEC ao pescoço que desmente o seu programa eleitoral e prejudica uma grande maioria de portugueses, aumentando o potencial de voto nos partidos à sua Esquerda, porque o PSD vai ter um novo líder, que não pode fazer pior do que a actual. Nenhuma dramatização permitirá ao PS chegar sequer próximo duma maioria absoluta em eleições legislativas antecipadas, sendo bem mais provável a perda da condição de partido mais votado. A analogia, feita por Francisco Louçã, com a estratégia que Cavaco Silva seguiu para obter a sua primeira maioria absoluta é inválida. Cavaco Silva representava então o novo, a mudança. O governo de José Sócrates e o PS são hoje vistos como algo velho e esgotado, perto do fim.


A poesia está nas ruas

Razões para uma greve geral

Amanhã é um bom dia para derrubar o governo

Tudo indica que o PSD vai hoje viabilizar o projecto de resolução do PS de apoio ao PEC. Mais uma vez o PSD dá uma mãozinha ao governo de José Sócrates. Apenas o suficiente para o manter à tona, até sentir que tem condições para desferir a estocada final. Entretanto, os partidos de Esquerda, BE e PCP, saltam, gritam, barafustam, mas na realidade nada fazem para desmascarar o efectivo Bloco Central de Interesses que sustenta o governo de José Sócrates. E que aprecia sobremaneira o PEC. O Bloco Central de Interesses toma-nos por parvos. Quer que acreditemos que os candidatos a líderes do PSD estão sinceramente escandalizados com o facto do PS ter agendado a votação do seu projecto de resolução de apoio ao PEC para o dia anterior à eleição do próximo líder do PSD. O Bloco Central de Interesses toma-nos por parvos. Cria uma aparente dissonância entre os partidos, PS e PSD, que o sustentam, de modo a que seja esta a dominar a agenda mediática, deste modo mascarando as opções ideológicas plasmadas no PEC, e que no essencial merecem total concordância tanto de PS como de PSD. É evidente que o PS está a fazer um favor ao PSD, ao permitir ao seu próximo líder não ter de escolher já entre derrubar ou apoiar o governo. Porque não duvidem que o PEC é a trave central deste governo, liderado nominalmente por José Sócrates e efectivamente por Teixeira dos Santos. Uma rejeição do projecto de resolução do PS de apoio ao PEC levaria à demissão de Teixeira dos Santos, e estou certo que por arrastamento à de todo o governo. O Bloco Central de Interesses toma-nos por parvos. E os partidos de Esquerda, PCP e BE, nada fazem. Esperam por quê? O PEC apresenta-se como uma excelente oportunidade para mover a fronteira da discussão político-ideológica para a Esquerda, dividindo as águas entre quem apoia e quem contesta as políticas e motivações ideológicas plasmadas no PEC. Por tudo isto, a situação política exige a apresentação de uma moção de censura ao governo. Já amanhã. É preciso amarrar já o próximo líder do PSD ao governo de José Sócrates, desmascarando o Bloco Central de Interesses que nos governa, e demonstrando que a alternativa ao actual governo encontra-se à Esquerda. Há obviamente a possibilidade da moção de censura passar. Haveria então novo governo, se uma maioria parlamentar estável pudesse ser encontrada, ou, mais provavelmente, novas eleições para a Assembleia da República (pode ser dissolvida a partir de 26 de Abril). No segundo caso, os partidos de Esquerda teriam perante si um PS amarrado ao PEC, e portanto via aberta, de facto, para crescer eleitoralmente, congregando o voto de todos aqueles que se identificam com um mínimo dos princípios que norteiam a Esquerda.

Uma moção de censura ao governo, amanhã, já!

Um muro mais forte que o de Berlim?


De Cuba nada de novo, mas Obama fez ontem uma declaração. Aqui na íntegra:

President Obama's statement on Cuban human rights

Recent events in Cuba, including the tragic death of Orlando Zapata Tamayo, the repression visited upon Las Damas de Blanco, and the intensified harassment of those who dare to give voice to the desires of their fellow Cubans, are deeply disturbing.

These events underscore that instead of embracing an opportunity to enter a new era, Cuban authorities continue to respond to the aspirations of the Cuban people with a clenched fist.

Today, I join my voice with brave individuals across Cuba and a growing chorus around the world in calling for an end to the repression, for the immediate, unconditional release of all political prisoners in Cuba and for respect for the basic rights of the Cuban people.

During the course of the past year, I have taken steps to reach out to the Cuban people and to signal my desire to seek a new era in relations between the governments of the United States and Cuba. I remain committed to supporting the simple desire of the Cuban people to freely determine their future and to enjoy the rights and freedoms that define the Americas, and that should be universal to all human beings.


Entretanto, Gullermo Fariñas continua em greve de fome, iniciada há um mês.

P.S. – A propósito de «mensageiro», «mensagem» e da discussão na caixa de comentários deste post: Fidel Castro aplaude la reforma sanitaria de Obama.

As más moedas

Filipe Nunes Vicente (FNV) tem lançado algumas notas no Mar Salgado sobre os contornos de um potencial novo partido a nascer no seio do PSD. Mais do que reflexões motivadas pelo evoluir recente do partido laranja, FNV procura definir os traços ideais da "necessária" agremiação. Dotada de uma “linguagem culta e elitista”, ela deveria “proteger a tradição, manejando-a ou liquidando-a” – expressão confusa e contraditória que parece apontar já para um começo pouco auspicioso. No entanto, a “verdadeira ruptura” a operar seria com a ideia de partido como “agência de emprego” para a “tralha". A "tralha", esclareça-se, é esse “conjunto de quadros suburbanos sub-politizados, batidos nas alianças de freguesia, de espírito associativo (da filarmónica ao clube local passando pelo porco assado)”. Ao invés, a nova organização funcionaria por meio de núcleos em universidades, em grandes empresas, em organizações não-governamentais, nas forças de segurança e na Igreja (FNV usa a grafia maiúscula, pelo que suponho estar a referir-se à “Católica”). Como seria de esperar, evoca-se ainda o recurso amplo e estratégico às redes sociais. Parece o MEP, mas não é (até porque o MEP já foi).

Não me interessa por agora anotar os sonhos húmidos de certos sectores da direita, mas registo com curiosidade as curvas dessa excitada imaginação: um novo partido político composto por elites urbanas, zelosas e cultas (o que não são redundâncias, como sabemos), que abnegadamente tomariam o país nas mãos, desarticulando os vasos comunicantes que ligam a “porca da política” ao povo das carnes assadas. Bem sei que o ethos do PSD tende a justificar estes remoques críticos e também me faz alguma espécie que um partido de matriz liberal, enraizado nos interstícios conservadores da sociedade, se continue a apelidar “social-democrata”. Mas não é caso único de incongruência, e o bom povo, entre uma sandes de courato e um jarro de tinto, já se habituou ao descaso entre as palavras e as coisas. Mais relevante parece ser a persistência com que as elites forjam auto-imagens complacentes que associam o fracasso da democracia à contaminação popular das práticas políticas. No caso em apreço, não sei mesmo se as duas terríficas imagens expostas - um conjunto de pequenos António Borges apostados em "guiar" o país e uma massa acéfala de gente laranja que busca tachos enquanto palita os dentes - não são faces da mesma moeda. Da mesma má moeda.

"Portugueses recusam 58 mil empregos"

É o titulo do Correio da Manhã.

Mas lendo a notícia - e o relatório do IEFP [pdf] que lhe serve de base - a única coisa que ficamos a saber é que foram apresentados 118.935 ofertas de trabalho mas que o IEFP apenas conseguiu preencher 60.928. Ou seja, a notícia também se poderia chamar "58 mil empregadores recusam trabalhadores propostos pelo IEFP".

A verdade é que nós não fazemos a mínima ideia (pelo dados do relatório) se as 58 mil vagas que não foram preenchidas não o foram por os trabalhadores recusarem os empregos, se foram as empresas que recusaram os trabalhadores que o IEFP lhes propôs*, ou se simplesmente as empresas apresentaram ofertas de emprego para profissões em que nessa cidade não havia ninguém inscrito no IEFP (p.ex., foram apresentadas 1.003 ofertas de emprego para "especialistas de ciências físicas, matemática e engenharia" - página 46 do relatório - e foram apenas colocados 236 - pg. 56; será que houve 767 recusas, ou em muitos casos simplesmente não haveria ninguém com essa formação inscrito no Centro de Emprego local? Eu sei que há 11 anos não havia economistas inscritos no Centro de Emprego de Lagos, a tal ponto que tiveram que ir buscar um a Portimão).

*na verdade, haverá casos em que empresas apresentam ofertas de emprego ao IEFP por razões legais (p.ex., creio que as instituições públicas são obrigadas a isso), mas sem uma verdadeira intenção de contratar por essa via

24/03/10

Procura-se a pessoa que escreveu isto. Dão-se alvíssaras.

«Correndo o risco de defender uma visão instrumental da história e do sofrimento humano, arrisco dizer que o erro do neoliberalismo talvez possa ser visto como um erro positivo. Aparentemente, só os seus excessos parecem ter sido capazes de tornar a sua contradição teórica numa evidência prática, reconhecida por todos.  A sua falência acabou, assim, por criar as condições para que o sentimentalismo impotente do «um outro mundo é possível» se tornasse num imperativo político incontornável e reconhecido por todos. Uma crise também é uma enorme oportunidade criativa. Quem sabe se o mundo não precisa da ameaça do apocalipse para decidir agir? 
[...] Não podemos entender uma democracia liberal meramente como um enquadramento legal que regula a existência privada de um conjunto de cidadãos. Uma comunidade política não é um contrato, nem uma criação jurídica formal: é uma forma de vida temporalmente partilhada, substantiva e contingente que exige a dedicação e a responsabilidade de todos.»

23/03/10

Sejamos impossíveis, exijamos realismo!

Der Tod des Vaters

Morreu, no passado domingo, Wolfgang Wagnerneto do compositor d’O anel do nibelungo, director do festival de Bayreuth desde 1951. Só em 1966 (aquando da morte do irmão, Wieland Wagner), Wolfgang assumiu efectivamente o controlo do festival (até 2008). O seu famigerado autoritarismo, a par dos conflitos institucionais / pessoais / artísticos com o irmão, com os sobrinhos, com o filho, com meio mundo, têm dado que falar...

De resto, as querelas familiares nos bastidores do festival de Bayreuth (desde a sua reabertura após a segunda guerra mundial) têm dado a sua graça ao dito festival (e contribuído para as vendas) e foram denunciadas, em tom caricatural, num documentário recente de Tony Palmer, The Wagner Family.
Para os que prezam a obra de Wagner e se estão nas tintas para o festival (como para a boina, para o vegetarianismo, para as micoses, e para a sua malfadada família), o desaparecimento de Wolfgang – uma mistura, a julgar pela retrato de Palmer, de Hunding e Siegfred, de ensimesmamento brutal e voluntarismo autoritário – é antes pretexto para recordar outras palavras e outras imagens. Nestas, de Chaplin, é todo um discurso que se metamorfoseia, que ganha um tom emancipatório - por fim, ao som da abertura de Lohengrin.
Sim, o mínimo que se pode dizer é que a política da obra de Wagner dá pano para mangas... Interessa-nos porém os interstícios, a ambivalência, o carácter enigmático das suas óperas.
Foi o neto que morreu. Que morra também o pai... Esta podia ser a divisa de uma micropolítica de Wagner.

Direitos, Estado e Democracia

Na caixa de comentários do post da Isabel Moreira, no Jugular, que o Zé Neves ontem aqui comentou, prossegue a discussão sobre os direitos e os critérios do possível e, no fundo, sobre a prioridade da democracia versus as razões (políticas, ainda que não declaradas) do regime económico estabelecido. Entre outras achegas - das quais saliento uma breve nota do João Viegas -, o Ezequiel lança uma invejável acha para a fogueira. Transcrevo a seguir, com a devida vénia e exortando o Ezequiel a honrar com as suas visitas os debates deste clube, os seus passos principais:

[…] a formulação, defesa e implementação de direitos muitas vezes ocorre em contextos adversos, onde as condições podem não ser as mais propícias à sua institucionalização […] . Aliás, é precisamente nos períodos onde as reservas do possível são mais "escassas" que os direitos assumem particular importância.
[…] a noção da "reserva do possível" emana de um estratégia de delimitação, de circunscrição […]. Ora, se podemos concordar que existem "reservas do possível" (que as há, sem dúvida), podemos não concordar acerca da sua interpretação (por ex, devemos taxar mais os bancos? E que tal subir [a tributação máxima] de 45% para 60%?). A reserva do possível é susceptível de interpretação substantiva. Ou seja, há muitas interpretações possíveis da "reserva do possível."
Dizer que os direitos não são independentes das condições históricas é uma verdade trivial, perdoa-me a sinceridade. É evidente que não são independentes, os direitos. Mas, apesar disso, as condições históricas são afectadas pela vontade humana (não faz sentido conferir primazia às "condições" na formulação de direitos...) [o que] pode ser uma receita para o conservadorismo, com a "reserva do possível" a agir como fronteira intransponível, como limite à emancipação. É um mecanismo arcaico, porque limita a capacidade crítica e de inovação. Coisa complicada, é certo.
Já houve situações que foram alteradas sem que as condições antecedentes fossem particularmente auspiciosas. O facto é que a reserva do possível pode ser interpretada diferentemente. Não assegura, por si, qualquer delimitação do possível. Muito pelo contrário.
Nesta frase do João ["Os direitos não são independentes das condições históricas que os tornam possíveis"], o que transparece é uma tentativa de usar as "condições" para limitar uma interpretação do possível. a reserva possível não é um brute factum.
Além disso, a "reserva do possível" como critério determinante daquilo que nós, cidadãos, podemos exigir do Estado...é uma categoria eminentemente política na medida em que é disputada/contestada na esfera pública. Ou seja, a reserva do possível também é sujeita às vacilações e imprevistos das tais condições. Não é um critério fixo ou estável. E nem sequer é objectiva do ponto de vista das "condições materiais concretas" (capacidades)...porque uma reorganização das capacidades (do Estado, por ex.) poderia redefinir as nossas expectativas acerca do possível.
Só mais uma coisa: o domínio do abstracto-utópico também faz parte das "condições".

Palmas para o Google?


A notícia é conhecida e amplamente divulgada: depois de muitas ameaças e de alguns pré-anúncios, o Google recusou submeter-se à censura imposta pelas autoridades de Pequim, tendo estado, na origem próxima desta decisão, ataques de hackers a alguns dos seus servidores. Pelo meio, alguns protestos e tentativas de conciliação, como uma carta de internautas dirigida ao governo chinês e à direcção do Google.

A partir de agora, ou se utiliza o motor de busca em inglês, ou se é dirigido automaticamente para servidores localizados em Hong Kong, com acesso a conteúdos não censurados.

Aplausos? Sim, e obviamente, porque está em causa o permanente ataque à liberdade de expressão por parte das autoridades chinesas, nunca suficientemente denunciado. Nem por isso, já que me parece haver aqui, talvez acima de qualquer outro objectivo, uma muito bem orquestrada campanha de marketing do Google.

Antes de mais, porque é óbvio que poderão ser utilizados firewalls – e sê-lo-ão - para bloquear o acesso a tudo o que até aqui foi considerável indesejável, esteja a informação em Hong Kong ou em Freixo de Espada à Cinta. Parece-me estarmos portanto perante um wishful thinking, de inocência pouco provável, quando o Google afirma esperar que o governo chinês respeite esta sua operação e não filtre a informação.

Em segundo lugar, porque se a presença do Google no mercado chinês dos motores de busca não é de desprezar (cerca de 30% segundo algumas fontes, muito menos segundo outras), a de Baidu.com é pelo menos o dobro (ocupando mesmo já o terceiro lugar a nível mundial – Wikipedia dixit). O impacto desta retirada é assim grave mas não dramático.

Finalmente, porque não há almoços grátis e esta tomada de posição traz dividendos. Na China, sem dúvida, mas também nos Estados Unidos (onde os aplausos já se fazem sentir e esta atitude pioneira impõe protagonismo junto da Microsoft e de outros) e no resto do mundo - sensível e virtuoso como sempre.

P.S. - O esquerda.net noticia detalhadamente o acontecimento. Mas tem alguma opinião sobre o assunto?

Um Hooligan nos Ladrões de Bicicletas

Há muito tempo que um post não me desconcertava tanto. Sinceramente, pensava já não ser possível encontrar um intelectual, de esquerda ou de direita, mas ainda mais de esquerda, dizer o que Francisco Oneto diz aqui. E não me refiro ao primeiro parágrafo, onde Oneto define o que entende por exercício da violência legítima por parte do Estado. Nem me refiro à condenação dos acontecimentos em causa, condenação que partilho. Falo de um certo tom que, no mínimo, roça a selvajaria que identifica no outro. A propósitos dos confrontos violentos entre adeptos do FC Porto e a polícia, Oneto fala-nos de “bandos de desordeiros”, de uma “esmagadora maioria [de] ignorantes e mal-educados - senão mesmo mentecaptos”, da “reles submissão a ideais de estupidez agonística exacerbada”, de “estes degenerados”, da “acção desta escumalha”; e exige a plenos pulmões “regime de reclusão”, “trabalho compulsivo em prol da comunidade”, perfumando o seu vómito com uma proposta paternalista: “O que não faltam aí são bibliotecas com livros a precisar de encadernação e formadores a precisar de trabalho”.

Ainda agora cá cheguei…


…e só posso congratular-me com a forma como acabo de ser recebido aqui no Vias de Facto. Estou agora em condições de confirmar aquilo que já presumia: existe um excelente ambiente de balneário, não se diferençando o mister do roupeiro ou a fisioterapeuta da menina do posto médico. Democracia é isto mesmo. Apenas prometo uma coisa: trabalhar todos os dias e suar o fátreino para poder entrar em campo e dar o meu melhor.

22/03/10

Sócrates crítico de Keynes


A reivindicação de pragmatismo por parte de quem defende medidas como a «diminuição do nível de salários oferecidos que obrigam à aceitação do subsídio de desemprego» não me parece muito convincente e deve ser debatida nos próprios termos em que é enunciada.
Argumenta João Galamba que «Portugal é um dos países da OCDE onde a diferença entre o subsídio de desemprego e a remuneração líquida anteriormente auferida pelo trabalhador é menor». Mas isso é assim, e não é preciso ter lido Marx para o saber, porque ambos os valores são tendencialmente baixos e correspondem a um nível muito elementar de necessidades básicas de reprodução da força de trabalho. O efeito de uma medida como a que se prevê será uma redução generalizada dos salários, o que acentuará o perfil subdesenvolvido da economia portuguesa. O primeiro-ministro, que mencionou numa entrevista as suas intensas leituras de Keynes, deve ter saltado algumas partes importantes.
Tudo o que se tem dito acerca da qualificação dos portugueses e do reforço da incorporação de valor a partir de indústrias de alta tecnologia fica reduzido a algo bem pior do que o puro idealismo. O que se chamou pomposamente de «choque tecnológico» não passou de uma medida de propaganda. 
Depois de ter desenhado os mais ambiciosos cenário de uma nova economia assente no conhecimento e nas energias renováveis, o governo vai fazer um frete ao patronato no sentido de reduzir os custos com a força de trabalho e incorporar em condições mais precárias quem está neste momento no desemprego, incluindo os trabalhadores mais qualificados. 
O que aí vem, para quem trabalha, é mais do mesmo:  horários mais longos, salários mais baixos, contratos a prazo, menos direito. Evidentemente que não para todos: os mais jovens, ambiciosos, qualificados e cosmopolitas (credo, pareço o Rui Tavares a falar) vão-se embora. Pelo menos todos aqueles que não são administradores  executivos da PT.
A mobilidade para quem não tem grande coisa que o prenda e o empobrecimento para quem já aqui tem  demasiado para partir. Não é difícil prever o impacto desse movimento simultâneo no que diz respeito à produtividade do trabalho. De todos os pontos de vista, estas medidas comprometem o tipo de desenvolvimento que o PS afirma desejar para o país.
Este pragmatismo nada tem pois de reformista. É, a pretexto de uma medida orçamental, uma pura e simples capitulação - não no plano das ideias puras, mas no da correlação de forças que molda o mercado de trabalho. Qualquer social-democrata convicto repudiaria uma opção de classe tão transparente. É o que fazem, e bem, pessoas dessa área política, como João Cravinho, Paulo Pedroso, Daniel Oliveira ou João Rodrigues.

O marxismo ortodoxo do João Galamba e o parecer jurídico da Isabel Moreira

A Isabel Moreira veio agora secundar o João Galamba na discussão. A ideia de fundo é a mesma, parece-me: no entender da Isabel Moreira a discussão política só pode ter lugar tendo em conta a realidade. So far, so good. O problema começa quando percebemos que a ordem dos termos da frase não é susceptível de ser invertida. E assim resulta que a realidade não pode ter em conta a discussão política. (Ou pelo menos a realidade não pode ter a discussão política tão em conta quanto a discussão política deve ter a realidade). Isto é, a política vem depois da realidade.

Continuo a achar que isto não é nem político nem democrático.

Quadros de Honra nas escolas?

O CDS/PP propôs o regresso dos "quadros de honra" às escolas. Eu em tempos escrevi algo no Vento Sueste sobre isso*, e repito aqui: tenho algumas dúvidas sobre a eficácia dessas politicas de distinção aos "bons alunos" (sob a forma de certificados, quadros de honra e afins) - por achar essas politicas "elitistas" e prejudiciais para a "auto-estima" dos alunos menos bons? Não.

O meu argumento é outro: é que parece-me que, em regra, os "bons alunos" tendem a ter uma personalidade "inner-directed", no sentido de confiarem mais no seu juízo do que no dos outros (e penso que faz sentido: é natural que aquelas crianças que, ao montar um carro de brinquedo, querem ser elas a descobrir como o carro se monta venham, no futuro, a ser melhores alunos - já que exercitam mais os neurónios - do que aquelas que preferem pedir ao pai que lhes explique como se monta o carro); e, sendo pessoas que confiam mais na sua própria opinião do que na da "sociedade", não sei se lhes fará grande diferença a escola dizer ou deixar de dizer "és um excelente aluno" (afinal, se eles já sabem que são bons alunos, que diferença em termos de incentivo fará o reconhecimento de tal pela escola?).

E, já agora, cito o que o Tárique (que até recebeu um prémio de melhor aluno, logo sabe do que fala) disse sobre o assunto:
A desenvolver melhor, a minha opinião por agora é que os quadros de honra clássicos são contraproducentes.

E parece-me que acertas quase na mosca quando falas na componente "inner-directed" .

No entanto, existem opiniões avaliativas que interessam aos bons alunos tanto quanto a sua: as dos seus pares. Não acho é que seja correcto nem eficaz (apesar de ser muito neo-liberal) fazer do egoísmo e soberba cobiçosa o motor da excelência académica. As desvantagens sobrepor-se-iam às vantagens.

1 - acho importante haver incentivos aos alunos para estudarem para ter 20 em vez de 19. E acho que isso é algo a mudar na escola pública.

2 - Os quadros de honra só servem para desmotivar e segregar os alunos. Cerimoniazinhas para a escola toda é um fréte, um martírio que só envergonhará uns e outros. Mas se se quer seguir mesmo este caminho, mais inteligente seria fazer saber aos melhores alunos que o seu esforço "extra" será recompensado com, por exemplo, uma viagem a um museu em espanha, um livro ou coisa do género, mas nada de cerimónias parvas.

3 - há formas muito melhores e mais horizontais de incentivar a excelência. uma que eu adorava eram as Olímpiadas da Matemática (nas quais cheguei a ganhar o bronze nacional). Os "clubes da matemática" em que nos podemos dedicar a resolver problemas mais complexos do que o básico programa oficial são outra.

4 - O prémio pontual, no fim do curso, com as notas já tiradas, incentivou-me pouco ou nada à excelência. Melhor teria sido que um prof um dia viesse falar comigo e dizer "olha, tu gostas destes desafios? que tal um mais complicado? vamos preparar-nos para o Prémio Bento de Jesus Caraça/Mário Silva? Eu ajudo-te!"

Em resumo: os (bons) alunos não precisam de prémios, reconhecimento, quadros de honra, etc. Precisam de desafios intelectuais! De acompanhamento. De elementos mais aliciantes. É típico da dialética neo-liberal dizer que as pessoas só trabalham para "se armar", para chegar a "alpha-male/female"
*é um facto, grande parte dos meus posts começam a ser repetições de coisas que escrevei há anos atrás, mas pelos vistos os temas em debate na sociedade não têm mudado muito.

Pedofilia e água benta - Adenda


Ontem, quando falei de encobrimento de abusos sexuais por parte da ICAR, não media a extensão do mesmo.

Entretanto, via Diário Ateísta, cheguei a uma carta, não de tempos pré-históricos mas de 2001, em que o cardeal Ratzinger, enquanto perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, define que «ofensas» estão reservadas ao Tribunal Apostólico da Congregação a que então presidia, especificando que «casos deste tipo estão sujeitos a segredo pontifício». Entre eles, «o delito cometido por um sacerdote contra o Sexto Mandamento do Decálogo com um menor de 18 anos».

Comentários, para quê.

(A carta de Ratzinger pode ser lida aqui na íntegra, em inglês.)

P.S. - Cartoon publicado no Libération e enviado por um leitor.

A reforma da saúde nos EUA

Foi aprovada a reforma do sistema de saúde nos EUA.

Quem ganha?

- As pessoas doentes
- As pessoas de rendimentos baixos
- As companhias de seguros

Quem perde?

- As pessoas saudáveis
- Os contribuintes

(claro que muita gente estará simultaneamente em vários grupos)

Porquê?

Aviso à Navegação


Já crescemos: o Rui Bebiano acaba de se juntar à equipa do «Vias de Facto».

21/03/10

Ainda o marxismo ortodoxo do João Galamba

Nova resposta do nosso deputado.

O João Galamba chama frequentemente Marx às críticas que dirige contra os que se situem à sua esquerda. Não é bonito. Aqui, pelas esquerdas, já todos levámos com um qualquer verdadeiro Marx, arremessado contra um qualquer falso Marx, que nos assolaria corruptoramente. A conversa não fez com que abadonássemos Marx (a mim não fez, pelo menos) mas levou a que valorizássemos o modo de uso. Até os mais ortodoxos marxistas, os que não reconhecem (e bem) a auto-suficiência de Marx, e acrescentam a Marx a necessidade (e aqui menos bem) de Lenine, acabam assim, e não sem ironia, por reconhecer a incompletude de Marx. E é a partir desta incompletude que um tipo deve levar Marx a sério: um autor inacabado, sem uma verdade primeira, que por isso não pode ser atirada à cara de quem quer que seja. Galamba termina o seu post dizendo que não sou um digno herdeiro de Marx. Mas a sua estocada final não magoa. A actualidade de Marx depende justamente da sua incompletude. Autor feito é autor morto.

Pedofilia e água benta


Já muito foi escrito sobre a carta que o papa dirigiu anteontem aos católicos da Irlanda (na íntegra, em espanhol, aqui), a propósito de pedofilia. Que ele se diga consternado e exprima remorsos e arrependimentos colectivos por tudo o que agora vem à luz do dia, não só na Irlanda mas um pouco por todo o mundo, talvez seja importante mas diz-me muito pouco. E é certamente música para violinos de orquestras celestiais que, numa secção intitulada «Medidas concretas para abordar a situação», a primeira seja que «a Quaresma deste ano se considere um tempo de oração» (…), com um convite para que seja «oferecida para esse fim, durante um ano, desde agora até à Páscoa de 2011, a penitência das sextas-feiras».

Mas dou importância, sim, e estou 200% de acordo, com alguns porta-vozes das reacções das vítimas, que se indignam por Bento16 não ter reconhecido o papel da igreja no encobrimento de tudo isto, durante décadas ou mesmo séculos. Também quando dizem ser absolutamente inaceitável que o cardeal Brady, principal responsável da igreja irlandesa, não assuma a sua parte de responsabilidade e não resigne, e que bispos e padres implicados no escândalo continuem a exercer as suas funções.

Mais ainda, e como muito bem pergunta o incansável Hans Kung: não seria este o momento adequado para o próprio Bento16 se reconhecer como co-responsável directo, ele que foi arcebispo de Munique entre 1977 e 1982, local e época onde, sabe-se agora, houve centenas de casos de abusos?

Nada disso aconteceu ou vai acontecer. Dentro de dois meses, o papa já terá vindo a Portugal, numa vista não só religiosa mas também de Estado, que deveria, mas não vai ser, um pouco chamuscada por tudo isto.

Variação domingueira sobre fatalidades inultrapassáveis

É fútil acrescentar “inultrapassável” a fatalidade – pois toda a fatalidade o é. Mas, num contexto de discussão política, o emprego retórico na redundância é inaceitável - admitindo que o termo "fatalidade" o não fosse desde logo - por denotar uma ênfase no inelutável. Em política, em sentido forte, não há o inelutável. Poderia mesmo caracterizar-se o espaço do “político” pela luta contra a pretensa inelutabilidade de um estado de coisas e pela desmontagem dos discursos que o justificam. E isto nada tem que ver com moralismo acusatório...

Sim, Marx... Suponho que o título do post que desencadeou a polémica (“Volta Marx, estás perdoado”) procure piscar o olho à circunstância de Marx ter recusado uma concepção estritamente normativa/moralista da crítica do real (só assim se compreende o que o distingue da generalidade dos jovens hegelianos ou de Proudhon) – trata-se do ipsissimum de Marx. Nesta perspectiva, só se torna efectiva uma crítica teórico-prática do real que arranca de um confronto com as contradições desse mesmo real, não se limitando a opor-lhe um ideal normativo. Nesse sentido, para Marx, a crítica do real não é puramente livre. Certo.

Contudo - e trata-se de uma adversativa inescapável -, entre a exigência realista e a cedência ao pragmatismo da política institucional centrista – e ao modo como, no seu quadro actual ( “A Crise, meus senhores, a Crise...”), se vão impingindo diagnósticos e soluções como se de uma 2ª natureza se tratasse –, vai uma grande distância...

Confundir a recusa do pragmatismo de quem se limita a jogar com as regras do jogo com irrealismo é simplesmente chantagem.

Situacionismo

O João Galamba respondeu a este meu post e disse: “Somos seres situados - situados numa determinada realidade histórica, social e económica. Daí a situação ser...uma fatalidade. Até aqui não há ideologia, só ontologia: limitei-me a dizer que os direitos não são independentes das condições históricas que os tornam possíveis”. Deixo de parte o que se entenda por fatalidade, ideologia, ontologia. E convém talvez recordar o pano de fundo desta discussão: o João Galamba entende que o PCP, o BE, e já agora o Miguel Serras Pereira, fazem propostas que não são “realistas”, independentemente da bondade dessas propostas. E eu volto a lembrar que o argumento do realismo é uma questão de ponto de vista. Sim, todos vivemos numa dada situação, mas não nos entendemos acerca de que situação seja essa e este desentendimento é condição do debate político. Para alguns é irrealista que quem não tem emprego recuse um emprego mal pago e sem direitos; para quem recusa esse emprego é a proposta que é feita que é irrealista. O que é importante sabermos é se o João Galamba entende que existem processos de definição de uma situação e de uma determinada realidade histórica em que a subjectividade de quem define não se implica na objectificação/definição de uma situação. Se o João Galamba acha que essa subjectividade em todo o caso se implica, então não deve utilizar o realismo enquanto argumento no debate político. Postular direitos, sugere o João Galamba, é um gesto idealista… Mas nenhum idealismo é menos material do que aquilo que se idealiza como sendo a matéria…