30/03/10

Da Pedofilia Privada aos "Vícios Públicos" da Igreja de Roma

Retomo aqui, adaptando-o, o texto de um comentário que deixei ontem a um brilhante e brilhantemente polémico post, Magister dixit?, que a Joana Lopes publicou no seu Brumas.
A minha ideia não é desvalorizar as questões que o escândalo dos casos de pedofilia sacerdotal nos impõe que consideremos. Mas mostrar que essa árvore faz parte de uma floresta muito mais densa, sem cujas condições ambientes não pooderia ela própria, a árvore pedófila, ter alcançado as proporções que alcançou. Na realidade, sem as prerrogativas, o estatuto privilegiado, que uma instituição como a Igreja de Roma concede aos seus pastores enquanto corpo hierárquico governante, detentor de um poder justificado pela vontade de Deus e instaurando uma razão hierárquica não questionável pelos fiéis, o prolongado encobrimento dos factos que começam agora a ser conhecidos e a imposição da mordaça às vítimas não seriam sequer concebíveis.
Quanto ao texto de Anselmo Borges que o post da Joana cita, tomando a sua recepção como ponto de partida, não creio que implique desvalorizá-lo desmitificar os pressupostos adoptados pelas leituras que o trasnformam numa espécie de carta de princípios suficiente para uma transformação da Igreja de Roma. A crónica de Anselmo Borges está muito bem construída, evita o sensacionalismo e põe os pontos nos ii que decide analisar. Mas não aborda, nem pretende fazê-lo, o conjunto da questão política com que o estatuto também político, de superioridade e excepção, que a Santa Sé reclama e, confrontada com o presente escândalo, não se tem cansado de reafirmar.

Do meu ponto de vista, é, com efeito, de recear que o escândalo dos padres predófilos e da protecção de que gozaram, que as imputações que a esse propósito são feitas a Ratzinger no desempenho das suas altas funções anteriores às do pontificado, que, em suma, a crítica dos maus costumes que encontraram abrigo no espaços mais intra muros eclesiástico, desviem a atenção da questão de fundo que uma concepção minimamente exigente da democracia não pode deixar de levantar perante as pretensões políticas da Igreja de Roma em geral e da sua reiteração particularmente intensa por parte do actual papa, que nisso permanece idêntico ao que já sustentava com insistência nos tempos do seu antecessor.


Bento XVI, que nem a alegada inspiração do Espírito pôde desfazer do seu ratzingerianismo anterior, destaca-se, na realidade, pela reafirmação dos direitos de supervisão e intervenção que competiriam à Santa Sé em matéria política, direitos que equivalem a outras tantas limitações da democracia.
Nos termos da sua concepção, o debate e a liberdade democráticos só seriam legítimos mediante a subordinação dos seus participantes à interpretação da "lei natural" de que Roma e a hierarquia eclesiástica, que gozam como se sabe de uma via de comunicação privilegiada e autorizada com a divindade, são detentoras. Fora disso, ou contra o magistério papal e eclesiástico na matéria, a liberdade democrática torna-se abominação, usurpação e ilegitimidade. Pelo que aos poderes políticos, espiritualmente aconselhados por Roma, em troca da consagração por esta da sua legitimidade, competem o direito e o dever de subordinar a liberdade de deliberação e decisão dos cidadãos ao "esplendor da verdade" (para me servir do título de uma das mais ratzingerianas encíclicas do anterior chefe de Estado do Vaticano).
Acontece que este "paradigma" do esplendor de uma verdade revelada, superior ao que é acessível ao juízo falível da simples razão humana entregue a si própria, e cuja interpretação correcta é objecto de administração hierárquica, é na realidade a negação da democracia e do regime peculiar de liberdade de interrogação e crítica que é condição necessária da sua extensão e desenvolvimento. Bem pode o papa dizer depois que "só a verdade liberta" e que o esplendor da verdade é seu penhor. Porque, se não há verdade senão a que cabe na interpretação romana da "lei natural" e/ou na revelação autorizadamente interpretada, a liberdade deixa de ser escolha e responsabilidade dos humanos, deixa de ser deliberação pelos cidadãos das suas formas de vida e convivência, decisão pelos mesmos cidadãos do quadro dos trabalhos e dias da sua cidade. Ao autogoverno, autodeterminação e autonomia da política democrática, secularizada e não-profissional, substitui-se o objectivo de assegurar que o rebanho será bem governado, por um lado, e que, por outro, todos deverão integrar-se, em princípio, no rebanho e, enquanto não o fizerem, ser controlados na sua liberdade de movimentos de maneira a não prejudicarem a segurança das ovelhas ou a autoridade do pastor e o seu magistério.
Acrescento ainda que este paradigma se mantém sob aspectos essenciais e continua a ser uma negação fundamental da democracia se à revelação e à interpretação da "lei natural" substituirmos o "esplendor da verdade" - dita só ela "revolucionária" - detida pelo Partido Comunista, "consciência organizada dos trabalhadores", e cientificamente aplicada ao governo da sociedade, sem complacências para com as falsas ou ilusórias representações da classe empírica, tributárias de um desconhecimento das leis da história, das exigências da infra-estrutura ou do saber superior dos "revolucionários profissionais".

É esta dimensão e longo alcance tanto da "questão religiosa" como daquilo a que tenho chamado a exigência (democrática) de destituição política da religião e do seu paradigma de governo que receio ver obnubilada pelo escândalo da pedofilia sacerdotal e do seu encobrimento pela hierarquia eclesiástica romana. Estes devem sem dúvida ser denunciados e condenados, mas sem perdermos de vista que a questão religiosa tem mais que se lhe diga - um pouco do mesmo modo que é insuficiente, sempre do ponto de vista democrático, denunciarmos os casos de corrupção sem levantarmos o problema do governo da actividade económica no seu conjunto e o das condições da instauração pelos cidadãos do seu poder de deliberação e decisão nessa esfera. A verdade é que, se certos meios eclesiásticos se mostraram particularmente favoráveis à pedofilia privada de alguns sacerdotes, ao exercício por estes de um direito de pernada particularmente aberrante,  denunciar esses desvios não deve fazer-nos esquecer os bem mais vastos "vícios públicos" da instituição e da sua acção política.

10 comentários:

Joana Lopes disse...

Muito bem, Miguel.
A discussão passará agora para outro patamar, aquele que de facto interessa. Cá voltarei.

asinus disse...

http://ruadopatrocinio.wordpress.com/2010/03/29/igreja-fenomeno-pos-moderno/

Anónimo disse...

" A Roma jesuítica e papal é uma monstruosa aranha que se dedica perpetuamente a reparar cismas e cisões, causadas por acontecimentos que nunca consegue prever no novelo que tece sem fim, com a finalidade de poder tirar partido dessa engrenagem para asfixiar de forma total a inteligência e a liberdade do Mundo ". M. Bakounine. Prefácio a Revolução Social em França.OC.VII.

Meu caro: Envio já este testemunho. Até já. Urge não perder de vista a diferença capital entre Teologia e Sentimento Religioso, claro. Niet

Manuel Vilarinho Pires disse...

Boa tarde, caro Miguel
Parece-me notar nas suas palavras uma convicção ou, pelo menos, uma esperança de que o mundo, deixado ao livre arbítrio dos indivíduos com liberdade de escolha, mesmo que a escolha de alguns possa ser determinada pelos seus interesses individuais e egoístas, e tendo como limites apenas as escolhas que colidem com a liberdade de outros indivíduos, pode funcionar melhor do que o mundo conduzido por líderes iluminados.
Que, ainda que funcione melhor se todos os indivíduos forem bem informados, e de forma mais decente se todos os indivíduos forem decentes e solidários, o mundo funciona melhor em liberdade, com os indivíduos tal como eles são, com as suas grendezas e misérias, do que em ditadura, por mais esclarecidos que sejam os ditadores.
Parece-me ler que acredita na "mão invisível".
Peço-lhe perdão se fiz uma interpretação abusiva do que escreveu.
Se não me enganei, envio-lhe as mais cordiais saudações liberais...
Se sim, envio-lhe as habituais saudações republicanas, igualmente cordiais...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Manuel,
lamento desiludi-lo, mas não, não acredito na "mão invisível" - do mesmo modo que não acredito na visibilidade absoluta ou numa transparência final ou coincidência definitiva da sociedade consigo própria.
Sou um democrata apostado naquilo a que chamo a "cidadania governante". A divisa desta poderá ser, na linha de Castoriadis, qualquer coisa como: Somos e/ou queremos ser aqueles que se dão as suas próprias leis, sabendo que o fazemos, falivelmente sem dúvida, a título provisório, sem as sacralizarmos nem ignorarmos a sua (reflexo da nossa) mortalidade.
Noutros termos, se os revolucionários norte-americanos formularam a sua posição perante a Coroa de Inglaterra nas palavras: naõ aos impostos sem representação, a divisa da autonomia democrática seria: não às decisões da lei sem participação.
Em certo sentido, o grande passo em frente que aqui se dá em relação a Aristóteles é a universalização da cidadania, tendo presente que o Estagirita definia o cidadão como o indivíduo capaz, graças à paideia (educação/formação) que a cidade lhe impusera, de simultaneamente governar e ser governado.
Implícita em tudo isto está ainda a aposta de uma relação diferente de cada um de nós com a instituição ou o conjunto das instituições: reconhecê-las como criações humanas e históricas, como obra que nos fez e compete recriar, assumindo-nos, ao entrar na cidadania adulta, como co-autores instituintes e responsáveis da ordem da cidade, dos seus trabalhos e seus dias.

Cordiais saudações republicanas

msp

Anónimo disse...

Nietzsche, Bertrand Russell e o nosso Tomaz da Fonseca ousaram criticar o Cristianismo. Deparei em Bakounine passos muito profundos na tentativa de crítica ao" empobrecimento, à subjugação e ao aniquilamento da Humanidade em favor da Divindade ". Alguns tópicos plenos de força: 1) " Deus sendo tudo, o mundo real e o homem acabam por ser nada "; 2) " Deus sendo a verdade, a Justiça, o bem, o belo, a potência e a vida- o Homem é mentira, iniquidade, o mal,a fealdade, a impotência e a morte "; 3). " Deus sendo o mestre, o homem representa o escravo";4) " Escravos de Deus, os homens devem sê-lo também da Igreja e do Estado, enquanto que este é aprovado pela Igreja ".

I-Abdicação da Razão e da Justiça

" De todas as seitas cristãs, o catolicismo romano foi a única a ser proclamada e realizada com uma rigorosa determinação. É por isso que o Cristianismo é a última das religiões, a religião absoluta; e a razão pela qual a Igreja apostólica e romana é a única, consequente, legítima e divina. Mesmo que ofenda os metafísicos e os idealistas religiosos, filósofos, políticos e poetas: A ideia de Deus implica a abdicação da razão e da Justiça Humana, constitui a negação mais decisiva da Liberdade Humana, e termina necessariamente pela escravatura dos homens, tanto na teoria como na prática ".

II-Todas as Religiões são cruéis

" Todas as religiões são cruéis, todas são fundadas no sangue;Porque todas se baseiam na ideia de sacrifício, isto é,sobre a imolação perpétua da humanidade à inextinguível vingança da Divindade. Neste sangrento mistério, o homem é sempre a vítima, e o padre, homem também, mas homem privilegiado pela Graça, é o carrasco divino. Isso explica o facto de todos os padres de todas as religiões, os melhores, os mais humanos e os mais doces- terem sempre no fundo do coração- na sua imaginação e no seu espírito- qualquer coisa de cruel e de sanguinário ". M. Bakounine.OC VII. Niet

Anónimo disse...

E qual seria o limite do poder desse auto-governo? É admissível que uma sociedade em auto-governo permita a eugenia ou a pedofilia seja considerada lícita, como era pedido pelo FLIP (Front de libération des Pédophiles) nos anos 70? Na sua democracia auto-governada, o que estaria vedado, como e porquê?

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo,
estaria vedado o que a lei declarasse vedado - tal como hoje acontece. A diferença estaria no modo de deliberar e decidir das leis que nos governam. É o que implica claramente tudo o que disse acima.
Saudações cordiais

msp

Anónimo disse...

A forma da decisão não isenta a lei de perigos graves.
Podia-se cair em situações abomináveis.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo,
nada pode garantir em absoluto que um poder humano jamais adopte uma lei abominável. Ainda que você ponha ou decrete uma lei acima de todas as leis e a declare uma constituição inalterável, isso não impedirá que seja possível a abolição dessa lei constitucional última.
Um regime que se baseie na cidadania governante não é uma graça sobrenatural nem uma ordem institucional miraculosa. Limita-se a tornar todos responsáveis e activos na definição das leis por que se governam, definição sempre provisória e falível, tendo por fundo uma interrogação permanente sobre a justiça e as suas condições. Tem a vantagem - do ponto de vista da prevenção das abominações e tiranias - de não sacralizar nem a lei nem o poder, de os reconhecer como acção humana e sujeitos ao juízo de todos e cada um. Mas não é o regime das Bodas de Caná nem do Pai Natal.
Saudações republicanas

msp