21/03/10

Variação domingueira sobre fatalidades inultrapassáveis

É fútil acrescentar “inultrapassável” a fatalidade – pois toda a fatalidade o é. Mas, num contexto de discussão política, o emprego retórico na redundância é inaceitável - admitindo que o termo "fatalidade" o não fosse desde logo - por denotar uma ênfase no inelutável. Em política, em sentido forte, não há o inelutável. Poderia mesmo caracterizar-se o espaço do “político” pela luta contra a pretensa inelutabilidade de um estado de coisas e pela desmontagem dos discursos que o justificam. E isto nada tem que ver com moralismo acusatório...

Sim, Marx... Suponho que o título do post que desencadeou a polémica (“Volta Marx, estás perdoado”) procure piscar o olho à circunstância de Marx ter recusado uma concepção estritamente normativa/moralista da crítica do real (só assim se compreende o que o distingue da generalidade dos jovens hegelianos ou de Proudhon) – trata-se do ipsissimum de Marx. Nesta perspectiva, só se torna efectiva uma crítica teórico-prática do real que arranca de um confronto com as contradições desse mesmo real, não se limitando a opor-lhe um ideal normativo. Nesse sentido, para Marx, a crítica do real não é puramente livre. Certo.

Contudo - e trata-se de uma adversativa inescapável -, entre a exigência realista e a cedência ao pragmatismo da política institucional centrista – e ao modo como, no seu quadro actual ( “A Crise, meus senhores, a Crise...”), se vão impingindo diagnósticos e soluções como se de uma 2ª natureza se tratasse –, vai uma grande distância...

Confundir a recusa do pragmatismo de quem se limita a jogar com as regras do jogo com irrealismo é simplesmente chantagem.

4 comentários:

zé neves disse...

caríssimo,
de acordo. mas não é puramente livre a crítica do real, como não é puramente livre o que quer que seja. a crítica do real não precisa de ser mais impura do que outra coisa qualquer.
abç

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Pedro,
subscrevo quase palavra a palavra todo o teu post. Mas, já que chegas onde chegas, gostaria de lhe propor - e propor ao teu juízo - a seguinte precisão:

Quando se diz que a crítica do real não é puramente (ou absolutamente, incondicionalemte) livre, porque o fazer que implica tem de levar em conta o já feito, o "já sido" - de resto, reconhecendo nisso cristalizações provisórias do fazer que foi a história anterior -, convém dizer que a realidade social-histórica que condiciona a liberdade é também o seu solo natal e sua condição. Se a liberdade absoluta ou pura, fora da história, é uma fantasia inconsistente e compensatória, é a história, a substância da realidade que a condiciona, que também ao mesmo tempo a cria - sendo justamente a liberdade que a "imaginação crítica" introduz que nos permite reconhecê-la como criação, e assumir a possibilidade de a recriarmos e nos auto-recriarmos com ela.

Abrç

miguelsp

João Pedro Cachopo disse...

Zé, claro, a crítica não precisa de ser mais impura e menos livre do que qualquer outra coisa qualquer. Nem deve pretender sê-lo. Em todo o caso, eu parti da impureza da crítica para chegar a outro ponto (um em que estamos certamente de acordo): para dizer que, em nenhum momento, esta impureza pode servir de argumento para hipostasear as condições actuais contra as quais se exerce a crítica... Abraço

Caro MSP, posso dizer em relação ao teu comentário o mesmo que disseste relativamente ao meu post. Estou, portanto, inteiramente de acordo com a ideia de que a impureza da liberdade – o seu condicionamento pela realidade social e histórica – é, não um obstáculo, mas uma condição dessa mesma liberdade. E acrescentaria também que é no meio desse condicionamento que a “imaginação crítica” se torna fértil e a liberdade concreta. Trata-se de uma “negação determinada”: a crítica será menos a idealização de uma alternativa, que a “extracção” imaginativa de alternativas.
Em todo o caso – e foi nisso que tentei insistir–, é preciso impedir que o carácter não-puro da liberdade seja apropriado por um discurso que pretende tomá-lo como um argumento a favor do status quo... Curto circuitar essa apropriação foi o que procurei fazer no post. Abraço
jpc

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo João Pedro,
sem dúvida. Nunca pensei outra coisa - era só uma achega, de quem só lamenta - embora o compreenda e até te inveje por isso - que não postes mais.
Abç

miguelsp