17/03/10

Se isto é um partido político

Este governo não deveria cair nem pelo moralismo nem pelo economicismo que tomou conta do discurso de muitos dos críticos situados à sua direita. Este governo não deve cair porque Sócrates é mais ou menos cumpridor da chamada ética republicana, que agora parece ser descoberta por tantos saudosos da monarquia. Nem sequer porque o défice está de melhor ou pior com a vida. Deverá cair sobretudo por uma questão de moral e por uma questão de economia, mas nunca separadamente; moral e economia são duas palavras que devem andar juntinhas: este governo deverá cair por uma questão de economia moral. E não há nada de mais político do que isto. Este governo claudicará porque este governo e os seus apoiantes insistem em recusar a política e em negar o seu próprio poder político. Há muito que é assim, por certo, mas a questão não deveria deixar indiferente o PS, os seus militantes, os seus apoiantes – e essa indiferença parece ter atingido o seu máximo histórico. Parece-me que nunca um governo PS terá ido tão longe no culto da sua própria irresponsabilidade e impotência políticas, que apenas são disfarçadas pela pose enérgica – e concomitante adoração da personalidade – de José Sócrates, sendo que a mim não me interessa se aquele culto é táctico, se é estratégico, se estão a ver se há eleições antecipadas, se faz sol amanhã. Passado o fulgor inicial do primeiro mandato, a política de Sócrates foi-se refugiando no óbvio. E foi o óbvio que tomou conta da dinâmica do PS durante a última campanha.


Embalado pelo discurso do primeiro-ministro e da generalidade dos seus apoiantes, o PS insistiu e insiste em identificar-se demarcando-se através da agitação de dois papões de sinal contrário. Ora o papão anti-comunista contra a sua esquerda, ora o papão anti-fascista contra a sua direita. Desta retórica, que alguns dirão constitutiva do PS, mas que me pareceu acentuar-se nos últimos dois anos, devido ao recrudescimento das forças à sua esquerda e visando uma demarcação modernizante a nível de “costumes” (como dizem os analistas de modo leviano) face ao cavaquismo, foi resultando uma cultura do óbvio. Até o casamento gay, um dos poucos elementos dissonantes desta cultura do óbvio, foi sendo defendido, muitas vezes, apenas e só através da própria retórica do óbvio: a lei viria apenas reconhecer o que a sociedade já reconheceria, como se tivéssemos que temer uma lei que assumisse uma dimensão libertadora e não simplesmente constatadora.

O óbvio é uma constatação, mas como todas as constatações contém já a própria subjectividade de quem constata. Chamam-lhe realismo, objectividade e pragmatismo, contra o idealismo, radicalismo, vanguardismo, totalitarismo dos demais – mas a sua é uma opção como outras. E isto é felizmente válido para o casamento gay, como é infelizmente válido para a política económica. Este governo não gosta de estar sujeito à crítica, mas não é da crítica de José Manuel Fernandes, Mário Crespo, Moura Guedes e companhia de que falo aqui. Falo da crítica económico-moral, que sublinha que todas as opções económica são políticas e não apolíticas, que são opções e não o simples cumprimento de um qualquer desígnio teleológico. Diante desta crítica este governo e os seus apoiantes repetem os argumentos de autoridade nacionalista de sempre, sem grande pudor: que é preciso a unidade nacional e que é preciso dar sinal de responsabilidade ante o exterior. Isto é o grau zero da política e não creio que seja necessário relembrarmos que a pátria se discute. Com a retórica que acompanha o PEC, e que tem sido bem analisado neste blogue, o actual governo procura matar a política pela enésima vez: trata-se de uma demissão, que não passa por renunciar a qualquer cargo, mas de uma demissão do poder e da política. Estarão apenas a tratar do hoje e do agora e a ver se o barco não vai ao fundo, dizem-nos, mas, se as rotinas de gestão implicam medidas de engenharia social como as que agora se procurarão impor, não nos iludamos: a engenharia social de que o país será objecto é apenas e só uma medida de rotina tomada no quadro de uma gestão internacional da crise, da qual participam figuras secundárias como Vital Moreira e protagonistas principais como Durão Barroso (para verem como eu sou generoso…).

Salvação nacional e dinâmica internacional, nacionalismo e globalização, nunca foram coisas incompatíveis. E quem fala de crise global dos maus da finança ao mesmo tempo que fala do sucesso nacional dos bons do governo está apenas e só a ser ou mentiroso ou ignorante. Um partido político deve ser partido e deve ser político. O actual PS fala em nome da unidade nacional, recusando tomar partido; e abdica da política, limitando-se a argumentar que é a vida. Dos outros.

4 comentários:

asinus disse...

Curioso que a única ex-dirigente do PS que tem publicado artigos sobre questões ideológicas no seu partido seja votada à quase completa indiferença, a começar pelos seus camaradas e a acabar nos que se interessam por estes "assuntos da esquerda". Deve ser por se chamar Ana Benavente e não Pedro ou Paulo Benavente...

Justiniano disse...

Caríssimo Zé Neves,
"por uma questão de moral e por uma questão de economia, mas nunca separadamente; moral e economia são duas palavras que devem andar juntinhas:" Sem dúvida, caro Zé Neves, A. Smith diria o mesmo, sempre. Poderá não gostar do autor mas ele gostaria destas suas palavras...
Um bem haja para si.

zé neves disse...

caríssimo justiniano,
como sabe, existe mais do que um adam smith. e também existe mais do que um conceito de economia moral.

Justiniano disse...

Bem sei, caro Zé Neves...