30/11/18

Interidentitarianismo proletário?

Henrique Raposo, no Expresso, escreve ("Graus de dor") que:
"A divisão de classe é a mais profunda de todas; é mais forte do que a questão racial, de género ou sexual, diz Quarry. Concordo. Mas a classe pode ser uma bênção paradoxal. Um negro pobre sofre mais por ser pobre do que por ser negro. Um gay pobre sobre mais por ser pobre do que por ser gay. Uma mulher pobre sofre mais por ser pobre do que por ser mulher. Eu não sou gay, negro ou mulher, mas sinto empatia imediata por estas personagens, porque partilham comigo um traço comum, a pobreza, o coming out enquanto filho ou filha de pobres. A pobreza, ao contrário das causas do politicamente correto, une diferentes homens e mulheres debaixo da mesma empatia."
Em primeiro lugar, um disclaimer - reconheço que tenho pouco autoridade para falar destas questões da opressão, porque (ao contrário do Henrique Raposo, que ao menos vem de famílias pobres), eu venho de uma coleção de privilégios: branco, homem, heterossexual, classe média-alta. O único aspeto em que se poderia dizer que eu poderia pertencer a um grupo desfavorecido seria a minha introversão (acerca do que poderíamos chamar "introvertion gap", ver aqui ou aqui), mas essa dimensão não costuma ter (pelo menos abertamente) relevância nas divisões políticas.

Mas o raciocínio de que  "a pobreza, ao contrário das causas do politicamente correto, une diferentes homens e mulheres debaixo da mesma empatia" (e até de que isso será uma bênção paradoxal) fará sentido? A mim parece-me que não há qualquer diferença entre a pobreza e qualquer outra categoria de desfavorecimento social nesse aspeto:  imagine-se que um negro pobre sofria mais por ser negro do que por ser pobre - ia poderíamos à mesma dizer que isso unia diferentes homens e mulheres debaixo da mesma empatia, já que criava algo em comum entre negros pobres e não-pobres (e um colunista negro de classe média poderia escrever, a respeito dos negros de outras classes sociais, sexos ou orientações sexuais, "Eu não sou gay, pobre ou mulher, mas sinto empatia imediata por estas personagens, porque partilham comigo um traço comum, a experiência da discriminação racial. A cor da pele, ao contrário das causas do marxismo, une diferentes homens e mulheres debaixo da mesma empatia.") Ou então o caso da "brigada do vison", as mulheres da alta sociedade novaiorquina que há uns 100 anos apoiavam as grevistas da indústria têxtil (em que portanto a categoria "sexo" levou-as a empatizar com mulheres de outra classe social)? Ou a fama que a subcultura gay tinha de um ambiente onde se juntavam homens de todas as origens sociais? Parece-me que essa espécie de internacionalismo interidentitarianismo proletário que Henrique Raposo está a evocar ("marxismo azul"?) não é algo especial, mas uma variante de um fenómeno mais vasto que pode acontecer com qualquer outra dimensão.

Generalizando, se alguém têm simultaneamente as características A, B e C, qualquer uma delas pode ser vista como uma categoria que une em vez de dividir - se a categoria A for a mais importante para a vida dessa pessoa, isso contribui para criar empatia com outras pessoas que também apresentam a característica A mas não as B ou C; mas se a mais importante for a B, é exatamente a mesma coisa - essa pessoa vai sentir empatia com outras pessoas que também tenham a característica B, mesmo que não tenham a A ou a C; e o mesmo para quem o mais importante seja a C. Seja qual for a característica mais importante na nossa vida, isso vai contribuir para empatizarmos com as pessoas que têm essa característica, mesmo que não tenham outras características que nós temos.

Pode-se argumentar que a pobreza une mais que a raça, sexo, orientação sexual, etc. porque os pobres são um grupo numericamente mais numeroso que a maior parte das outras "categorias oprimidas", logo se a pobreza for o ponto principal de sofrimento, isso vai-te fazer empatizar com mais gente, mas isso não acaba por ser largamente incidental? Afinal, poderíamos ter perfeitamente uma sociedade em que houvesse outros "grupos oprimidos" demograficamente maiores que os pobres (p.ex., não me surpreenderia se na África do Sul do apartheid houvesse mais negros do que pobres); e mesmo na sociedade ocidental atual, se se considerar que as mulheres são um grupo discriminado, serão uma categoria numericamente muito maior que os pobres (um aparte - quando, na altura de escrever o post, estava a pensar em exemplos de outras categorias que também unissem pessoas de origens diferentes, o primeiro exemplo que me ocorreu foi o a da "brigada do vison"; será coincidência ser também aquele em que a categoria em questão abrange mais gente?).

Já agora a teoria implícita de que as "causas do politicamente correto" não unem pessoas diferente também me parece idiota por outra razão - porque aqueles movimentos cujos detratores chamam "politicamente correto" ou "identity politics" sempre seguiram (mesmo antes da palavra "interseccionalidade" ter entrado na moda) a linha da aliança dos oprimidos, a ideia de que os vários grupos oprimidos ou discriminados são aliados naturais contra o poder da elite branca, rica, masculina, heterossexual, cis-género, etc, etc. (outro aparte - as mesmas pessoas que de manhã acusam os movimentos "politicamente corretos" de serem "identitários" e de quererem dividir as pessoas em grupos separados, à tarde ficam chocadas com slogans estilo "Gays for Palestine"). Isso é ainda mais relevante se termos em atenção que não é raro os maiores preconceitos contra grupos desfavorecidas virem até mais de outros grupos desfavorecidos do que das elites (até há uma espécie de variante da "lei de Murphy" sobre isso), algo que os ativismos "politicamente corretos" costumam tentar combater (até pelo desejo de ter a maior coligação possível do seu lado) - veja-se, por exemplo, a popularidade crescente (pelo menos no mundo anglo-saxónico) da expressão "pessoas de cor" (que por vezes até é usada incluindo minorias étnicas brancas, como judeus ou imigrantes gregos); admito que é discutível se isso tem algum impacto na realidade, ou se só influencia uma minoria de ativistas, enquanto vastas minorias silenciosas continuam a odiar a outra minoria étnica do lado (e ambas a votarem "não" nos referendos sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo, e a baterem nas mulheres em casa), mas se assim o for é apesar do "politicamente correto" (que passa a vida a dizer que as minorias devem estar todas do mesmo lado), não por causa de.

29/11/18

Finalmente um momento de lucidez

Este post estava para ter como título o seguinte: "Where are you Mr Corbyn?". O desaparecimento do líder trabalhista, face ao desastre em que se transformou a negociação final do Brexit conduzido pela atarantada senhora May, chegou a parecer chocante. A contradição que manietou Corbyn tranformou o líder trabalhista numa caricatura algo grotesca daquilo que a sua acção política parecia anunciar. Corbyn quer o sol na eira e a chuva no nabal, quer os eleitores que votaram no Remain and Reform - pelo qual ele se bateu, com pouca convicção percebe-se agora - e aqueles que votaram no Leave e que são maioritários em áreas menos urbanas em que os trabalhistas são dominantes.
A proposta que Corbyn defende de um Brexit que preserva os direitos dos trabalhadores e as questões ambientais é uma brincadeira já que a UE não o irá admitir. A UE apenas é reformável a partir de dentro e sendo essa mudança liderada por um peso pesado. Como é o caso do Reino Unido, uma das maiores economias do mundo e um dos países mais desiguais à face da Terra. Era por isso que a campanha pelo Remain and Reform fazia tanto sentido.

Ainda faz. Clarificada esta questão e devolvido a Corbyn a liderança perdida - se é que o seu encanto não se perdeu nesta triste inacção em que se deixou enredar - o Labour tem um programa de governo que é a única esperança real de começar a desmantelar o poder das grandes corporações que domina as estruturas da UE e oprime os seus povos. Um programa de uma social-democracia que recupera a participação do Estado na economia e o seu reforço em sectores estratégicos, como a energia e os transportes, e que concretiza uma forte redistribuição da riqueza produzida. Isto tudo servido pela politização do dia a dia dos cidadãos, pela mudança de paradigma na vida dos partidos, de que o Labour é um bom exemplo, ou melhor o único exemplo no passado recente.

Vale por isso a pena prestar atenção à declaração de MacDonnell, um velho militante anti-UE, forte apoiante de Corbyn, responsável da parte mais interessante do seu programa económico, cuja declaração é, por isso, ainda mais relevante.

25/11/18

As versões sobre o 25 de novembro

Durante muito tempo, circularam principalmente duas versões sobre o "25 de Novembro" - a direita e o centro diziam que tinha sido um (fracassado) golpe de esquerda, e esta tem sido essencialmente a versão oficial; já a extrema-esquerda radical dizia que tinha sido um (vitorioso) golpe de direita, que teria ficado à espera de algum motim nalguma unidade militar "de esquerda" (como acabou por acontecer com os paraquedistas) para lançarem um golpe há muito planeado podendo-o apresentar como se fosse um contragolpe (e colocando as autoridades da altura entre a espada e a parede - "ou proclamam a lei marcial e deixam-nos conduzir as operações, ou então vão também de virada").

No entanto, nos últimos anos, entre a direita começou a ser moda comemorar o 25 de Novembro, considerando-o como tão ou mais importante que o 25 de Abril - porque é que eu digo "no entanto"? Porque parece-me que isso só faz sentido se aceitarmos a versão da extrema-esquerda radical sobre o que foi o 25 de Novembro.

Afinal, de acordo com a versão dos vencedores, no fundo não aconteceu quase nada: houve uma tentativa de golpe contra a ordem vigente, mas esse golpe foi derrotado e o país continuou no caminho em que já estava em marcha desde pelo menos a Assembleia do MFA em Tancos (em Setembro), que afastou Vasco Gonçalves (e, na prática, o PCP, que ficou reduzido a um ministro) do governo - não foi nenhum momento de viragem. Por essa versão, comemorar o 25 de Novembro faz tão sentido como faria nos últimos anos da monarquia comemorar-se o 31 de Janeiro (revolta republicana), na I República, a partir de 1920 comemorar-se o 13 de fevereiro (derrota da Monarquia do Norte), no Estado Novo comemorar-se o 18 de janeiro (revolta anarco-sindicalista e comunista contra os "sindicatos nacionais"), ou na antiga União Soviética comemorar-se o 18 de março (derrota dos revoltosos de Kronstadt) ou nos EUA o 9 de abril (rendição do exército confederado em Appomattox); até imagino que todas essas datas fossem ou sejam comemoradas, mas mais como eventos militares, não como significativos eventos políticos. Em resumo, os regimes políticos não comemoram com grande pompa e circunstância o dia em que revoltas contra eles são derrotadas.

Comemorar o 25 de Novembro como uma data tão ou mais importante que o 25 de Abril só faz sentido se se considerar que foi mesmo uma data de viragem e mudança, mas parece-me que isso só faz sentido se se aceitar uma versão parecida com a da extrema-esquerda sobre o que aconteceu nesses dias.

17/11/18

Mais coisa menos coisa o valor do Resgate, não foi?

Há histórias que nunca nos contam. Temos que ser nós a descobrir. A infantilização dos cidadãos leva a que possamos ser tratados como crianças. Podem então os nossos governantes evitar falar connosco de certas coisas: "isso não são histórias que se contem às criancinhas".

A única novidade da  notícia é a quantificação: 69 mil milhões de euros. Que número tão jeitoso. Há um lado inequivocamente libidinoso na economia da austeridade.

15/11/18

Palpite

A Itália vai sair da UE antes do Reino Unido

14/11/18

"Oligarquização" no Bloco de Esquerda?

Em primeiro lugar, declaro que apoiei a moção A para esta Convenção, já que, apesar de tudo, considerei que era a melhor linha no conjunto da estratégia do Bloco de Esquerda.

No entanto, há uma evolução que acho péssima - algumas alterações aos estatutos aprovadas, nomeadamente a revogação do artigo dos estatutos que determinava que: o "secretariado nacional e os secretariados das comissões coordenadoras concelhias, distritais e regionais que vierem a ser eleitos são sempre renovados em pelo menos um terço dos seus membros" e que "Nenhum dos seus membros exercerá funções por mais de dois mandatos consecutivos."

Isso é abrir a porta para o surgimento de uma casta de dirigentes que se perpetuem nos cargos, e ainda mais marcante no contexto de um partido que se destacou na luta contra os dinossauros autárquicos (e que portanto percebe bem a necessidade de regras a limitar a perpetuação em cargos, já que, por mais democrática que seja uma eleição, quem já está no poder tem sempre alguma vantagem). É verdade que em pequenos concelhos pode se difícil arranjar pessoas para ir rodando os membros dos secretariados, mas a nível distrital e sobretudo nacional duvido que esse problema exista (e em núcleos extremamente pequenos talvez fosse de equacionar em vez disso a possibilidade de não haver secretariado formal); e, além disso, é estranho que seja quando o partido parece estar a crescer (e portanto esse problema menos se colocaria) que se decide acabar com a limitação aos mandatos.

Há outra alteração que inicialmente me pareceu pior do que é, mas também não me tranquiliza - a substituição da regra que dizia que "A MN será composta, no momento da sua eleição, por um mínimo de 50% de membros que não sejam deputadas ou deputados, nacionais ou europeus, funcionárias ou funcionários do Bloco, ou exerçam cargos remunerados de assessoria a representantes eleitas e eleitos pelo Movimento." por "A MN será composta, no momento da sua eleição, por um mínimo de 60% de membros que não sejam  funcionárias ou funcionários do Bloco, ou exerçam cargos remunerados de assessoria a representantes eleitas e eleitos pelo Movimento"; inicialmente não reparei na mudança de 50% para 60% mas apenas na parte dos deputados deixarem de contar, e pareceu-me que serviria apenas para haver mais funcionários e assessores nos órgãos dirigentes (se há um limite para o número de deputados + funcionários + assessores, e os deputados deixam de contar, sobram mais lugares para funcionários + assessores); vendo melhor, não é necessariamente assim, já que por outro lado o máximo de funcionários+assessores baixou de 50% para 40%, portanto nesse ponto não é claro qual o efeito líquido dessa alteração - mas de qualquer maneira abre caminho a meter, se não mais funcionários, pelo menos mais deputados na Mesa Nacional. Isso provavelmente é feito a pensar na elevada probabilidade de eleger mais deputados nas próximas eleições, mas de qualquer maneira parece-me um passo para ter na Mesa mais profissionais da política e menos cidadãos comuns, com a sua vida e profissões, e que uma (?) vez por mês se metem no comboio para ir à reunião (e, aliás, talvez reforçando a tendência para o Bloco se concentrar no trabalho parlamentar e descurar a ação política nas ruas, bairros, locais de trabalho, etc.).

Uma nota final - poder-se-á perguntar porque é que eu só escrevo isso agora; afinal, antes da convenção o Bloco publicou dois cadernos de debates para onde os aderentes podiam mandar as suas contribuições; não teria feito melhor figura ter mandado este texto (adaptado ao momento) para lá antes da Convenção, para um sitio e numa altura em que ainda poderia influenciar alguma coisa em vez de escrever um post num blogue na semana a seguir, quando já não vai afetar nada? E realmente tinha feito melhor figura, mas só me lembrei que poderia ter apresentado um texto para os Debates agora, quando estava a escrever este.

07/11/18

As votações de ontem nos EUA

A respeito das votações tinha falado ontem:
Quanto à Alexandria Ocasio-Cortez, teve 78%, mais 3 pontos percentuais que os 74,8% os Democratas tinham tido em 2016.

06/11/18

As votações de hoje nos EUA

Como de costume, hoje há mais uma carrada de referendos nos EUA; entre eles temos:
Além disso, a título de curiosidade poderá ser de se ver os resultados no Distrito 14 de Nova Iorque, que era (e ainda é) representado no Congresso pelo presidente do grupo parlamentar dos Democratas, Joe Crowley, mas onde este foi derrotado nas primárias pela "insurgente de esquerda" Alexandria Ocasio-Cortez; ainda que a relevância seja puramente simbólica, será interessante ver se ele consegue mais ou menos do que os 74,8% que Crowley em 2016.

02/11/18

Sérgio Moro e outros ministros

Helena Matos parece achar que a nomeação de Sérgio Moro por Bolsonaro é equivalente à nomeação de um juiz da Audiencia Nacional (creio que o Supremo lá do sítio) para o governo espanhol.

Mas há uma diferença, pelo que vejo - o Moro está conotado com um processo judicial que objetivamente terá contribuído para a vitória de Bolsonaro (podendo levantar questões do tipo "a mulher de César...", a respeito da sua isenção nesse processo - toda a polémica com a nomeação do Moro anda à volta disso); já o Grande-Marlaska (de quem eu nunca tinha ouvido falar) não parece (pelo menos pelo que diz no artigo que Helena Matos linka) estar associado a processos relevantes (pelo menos relevantes ao ponto de serem referidos no perfil) que tenham beneficiado o PSOE (os processos relevantes dele parecem ter sido em casos contra a ETA, o que, no momento atual - em que o PSOE está aliado aos separatistas - até contaria como processos desfavoráveis ao atual governo).