26/02/14

Já que este primeiro e muito visto déjà vu fala por si, não poderia Ana Drago poupar-se-nos a secundá-lo por meio de um segundo da sua própria lavra?

Tenham sido ou não as de Ana Drago as melhores, o que se segue mostra bem que boas razões não lhe faltariam para a atitude que tomou no interior do BE:


Vídeo que assinala os 15 anos do partido deixou de fora ex-deputada que se demitiu da comissão política em Janeiro.

O vídeo dos 15 anos do Bloco de Esquerda projectado na última conferência nacional ignorou a participação de Ana Drago nas acções mais importantes do partido nos últimos anos.

A ausência da bloquista não deixou de ser notada por alguns militantes que acreditam que a demissão de Drago da comissão política em Janeiro, alegando uma “divergência profunda e fundamental” com a direcção de Catarina Martins e de João Semedo, terá sido determinante para apagar da memória colectiva do partido o contributo da ex-parlamentar bloquista.

Mas, quando Ana Drago "desvaloriza o incidente e admite nem sequer ter 'notado' que não aparecia no filme que foi projectado na Faculdade de Ciências de Lisboa, recusando fazer mais comentários", digamos que desvirtua irremediavelmente as boas razões que lhe sobrariam — e a nós, para nos solidarizarmos com elas — e opta por desculpar — Cesariny nos valha — os que lhe dão "para baixo em cima da cabeça com um pau".

A distopia de Atenas

(em sintonia com o [quase] epitáfio à Europa do Miguel Serras Pereira)

Um documentário sobre Atenas que explora as privatizações, o racismo e xenofobia, a militarização da cidade e o crescimento da violência policial, entre outras coisas. Revivescências da extrema-direita há muito dentro dum Estado europeu, mas que nem por isso têm feito soar as sirenes com o mesmo vigor com que as temos ouvido para outros palcos.

"this is a form of transformation that moves towards a kind of totalitarian state, which appears as democracy, it has a democratic façade, but it's actually explicitly focused on controlling behaviours and practices which are considered as anti-social, because they are resisting the destruction of society.", dito por Stavros Stavrides, um prof. de arquitectura que nele aparece


Europa: Quase um Epitáfio

É verdade que fomos inconstantes
O mesmo rio — bem vês — nunca é igual
Assim demos ao vento a cor em branco
do tempo e o vão da vaga ao singrar da alma


25/02/14

A Ucrânia e as certezas absolutas num tempo de incertezas (volume 2)

Toda a discussão política se torna no mínimo aborrecida quando esbarra numa doutrina. Alguns dos trejeitos presentes na discussão em torno da presença da extrema-direita na Ucrânia (que já abordei parcialmente aqui) não constituem nenhuma novidade e apenas têm de surpreendente a recorrência intemporal a uma fórmula gasta. Mas não deixa por isso de ser um bom motivo para revisitar certas formas de fazer e discutir política. Até porque, atrevo-me a dizer, podemos esperar debates semelhantes a propósito do que se poderá passar aqui no nosso quintal nos próximos anos (mesmo que seja inevitável reconhecer que tal não implica assumir os contornos ou a intensidade do que se vive na Ucrânia, obviamente).

Os sinais da ameaça autoritária são bens reais e recordam-nos constantemente que esta está mais perto de nós do que desejamos. “Extrema-direita” é, aliás, um termo que apenas dá parcialmente conta das formas dessa ameaça, como atesta o que acontece em países como Portugal. Além disso, alguns dos sinais desse autoritarismo sentam-se à mesa connosco e reclamam o nosso lado da barricada. Não que não estivessem lá antes, mas os tempos são outros e estamos em tempo de redefinição de posições num tabuleiro agitado. Uma das formas de nos começarmos a situar nele pode passar por perceber quem se nega ao debate e procura assumir, a todo o custo, o papel de guia daqueles que se movem em seu redor.

Por isso, antes de olhar mais concretamente para a Ucrânia e para o que sobre ela se tem dito, sublinhe-se o seguinte: não está em causa quem tem razão ou qual é a verdade no assunto em causa, mas a negação do próprio debate por um dos seus lados. Com a agravante de que esse enclausuramento do debate se dá em nome duma agenda política fechada e pré-determinada, cingida aos interesses particulares dum grupo político específico aparentemente saudoso da bipolaridade da guerra-fria. Acontece que nem o mundo é, hoje, tão bipolar quanto era no passado, nem as suas “rotinas” estão já definidas, permanecendo imprevisível e aberto, com diferentes sujeitos políticos a despontar a cada momento e em diferentes lugares, sem cessar. Há, em especial, uma crise (e, por isso, uma transformação) das formas de acção e intervenção política que não tem paralelo com nada do que sucedeu nesse período histórico. Mas já lá vamos.

22/02/14

Sobre os protestos na Bósnia-Herzegovina

Um site sobre o assunto:

Bosnia-Herzegovina Protest Files | News, statements and documents about protests in BH.

Um dos artigos:

Plenum Democracy or Anarchy

A Ucrânia e as certezas absolutas num tempo de incertezas

Não há expectativas muito positivas para o que está a acontecer na Ucrânia. Mas a verdade é que estas não existem seja para onde for. No entanto, não é por a revolução que desejamos não estar ao virar da esquina que alguma vez deixamos de lutar e de ir para as ruas quando surge a oportunidade. Se é inevitável que as nossas escolhas sejam condicionadas pelas condições (estruturais e conjunturais) do mundo em que nos movemos, não é inevitável que sejamos por elas determinados. As nossas escolhas fazem-se perante um conjunto imenso de opções. E, diria mesmo, nunca sem ambiguidades e alguns becos sem saída. Apesar disto, temos visto, nos últimos dias, perante o caos registado na Ucrânia, muita gente apressada em dividir o cenário entre “bons” e “maus” (ou entre “maus” e “terríveis”) e em escolher um desses lados sem hesitações, como se estivéssemos perante um jogo de xadrez e não houvesse outra hipótese senão cair para um de dois pólos. Acompanham a sua posição com a afirmação, comum em quem só tem certezas, que o que está acontecer “é óbvio” e que quem não se conforma com igual facilidade é “ingénuo”. Uma destas posições, sem que o assuma sempre com clareza, coloca-nos perante a inevitabilidade de aceitar o actual presidente Viktor Yanukovych e, como tal, os interesses russos, como forma de resistir ou aos interesses norte-americanos e da união europeia ou aos avanços da extrema-direita no país.

Há vários problemas com a firmeza destas posições. Estes começam logo com a adopção duma espécie de certeza absoluta perante um cenário que contém sempre algum grau de imprevisibilidade. Digamos que uma escolha que limita o conjunto de opções que temos ao nosso alcance não pode ser, creio eu, a melhor escolha. A forma simplista em que algumas leituras têm procurado arrumar o conflito ucraniano, empurrando-nos para uma posição definitiva, limita-nos da pior forma, com a agravante de implicar uma vinculação pelos termos em que é feita (neste caso, fazendo-nos assumir, por exemplo, que a escolha entre a Rússia e os EUA ou a União Europeia é evidente). Em parte, essas leituras derivam da armadilha de se basearem nos termos impostos pelas forças tendencialmente dominantes (sejam elas as forças imperialistas ou, mais discutivelmente, as de extrema-direita), o que leva ao desprezo de todos os outros lados presentes no conflito. Mas, por outro lado, essa arrumação simplista, e esse desprezo que lhe é inerente, não é necessariamente um equívoco. Ao procurar fugir a um pesadelo autoritário entregando-se “estrategicamente” a outro, revela, também, uma opção política – no mínimo assustadora, até pela facilidade com que tal passo é dado, mascarando-se, como é habitual nestas situações, de inevitabilidade ou fatalidade.

Se é verdade que não podemos ignorar alguns sinais tenebrosos presentes na Ucrânia como parte de uma tendência mais ampla (falo da emergência da extrema-direita e do racismo e xenofobia), também não podemos deixar de ver parte do que aí ocorre como ligado à onda global de protestos que explodem um pouco por todo o lado e exigem mais democracia, mais participação política, mais igualdade. Uma escolha que ignore ou menospreze isto carrega consigo o seu fracasso e anuncia a sua derrota. Parafraseando um dito célebre, tem um cadáver na boca.

Não há nenhuma luta, entre todas as que temos pela frente, que não traga consigo as ambiguidades e os riscos que vemos em jogo na Ucrânia. Em todos os potenciais cenários tumultuosos há sempre interesses obscuros em causa (geopolíticos ou de outra ordem) que fogem aos sonhos e desejos da multidão anónima que traz as lutas para a rua. Não podemos ignorá-los, é certo, mas tal não pode implicar uma rendição, especialmente quando desejamos um mundo radicalmente diferente. Não foi assim na Guerra Fria, não deve ser assim agora.

Estamos perante uma crise profunda dum sistema político e económico e é inevitável que múltiplas e antagónicas forças disputem esse tabuleiro agitado. Temos pela frente um horizonte que não pára de se abrir e não parece estar perto de se fechar. O futuro permanece imprevisível e as possibilidades são muitas, por isso não nos apressemos a encerrá-lo.

19/02/14

Marcos Antónios


Após uma juventude estroina, acumulando dívidas sem fim, Marco António fugiu aos credores em busca de um chefe que o levasse às alturas a que se via fadado. Aprendeu a arte da retórica; sem dominar a palavra, não se domina ninguém. Virou soldado, dando o litro para impressionar o líder com vigorosas espadeiradas nos inimigos de ocasião. Depois, a escalada não mais parou.
Pena foi que o denodo nas refregas não tivesse correspondência na administração da coisa pública; aí, as desgraças somaram-se sem glória nem feitos de jeito.
Há nomes proféticos. O Marco António acima não é o Costa mas sim o triúnviro romano. O Costa é peixe de águas mais pequeninas, mais poluídas e ainda menos transparentes. Já foi acólito de Santana, já largou o Parlamento pela  “necessidade imperiosa” de dedicar toda a sua energia ao município de Gaia (e a esse fenómeno político-freudiano que foi o Dr. Menezes).
Agora, ofende-se por o ligarem às dívidas colossais que lá deixou. Quem o ataca ignora que os grandes vogam bem acima de temas rasteiros como contas por pagar. Esta rapina não dorme, olhinhos semicerrados em mira sempre a tirar a medida a quem lhe passa pela frente. E lá vai cuidando da higiene do patrão, à laia de um daqueles peixes que limpam os dentes aos tubarões, sonhando vir um dia a ser tubarão.
300 milhões de dívida? Minudências, para o homem que terá forçado Passos Coelho a deixar cair Sócrates. Nunca ninguém o obrigará a pagar. Nem a mostrar alguma vergonha.

Publicado no i.

A "comunidade de destino" — de "pendor redistributivo e socializante" — que João Rodrigues nos promete através do "espectro da fusão do ideal de autodeterminação dos povos com a questão social"

João Rodrigues consegue a proeza de, em dois parágrafos, condensar todos os principais sofismas intelectuais e metas políticas catastróficas que caracterizam o nacionalismo económico a que, para usarmos o seu vocabulário, poderemos chamar de "pendor redistributivo e socializante".

Começa por dar-nos a notícia de que Vítor Gaspar é adepto de uma UE de modelo hayekiano, tendente a constitucionalizar o exercício do governo da região pelos aparelhos e postos de comando e regulação do poder económico "emancipados". Daí, passa à conclusão de que a alternativa a esse modelo hayekiano é a recuperação das soberanis nacionais, dada a impossibilidade de alterar a "vontade política à escala europeia".

Desta impossibilidade decorre a necessidade da alternativa que propõe: "Só o espectro da fusão do ideal de autodeterminação dos povos com a questão social, configurando na reestruturação da dívida, na libertação desta tutela monetária ou no controlo de capitais pode derrotá-lo" —porque "a diferenciação económica, social, política ou cultural entre as unidades estatais obstaculiza acordos supranacionais no campo dos valores de pendor redistributivo e socializante. Estes são mais fáceis onde existe uma noção de comunidade de destino".

Ficamos assim a saber, entre outras, as seguintes coisas:

1. a transformação democrática da "vontade política à escala europeia" através da acção e da iniciativa dos cidadãos europeus é impossível, mas a sua transformação pelo "Estado estratega", uma vez recupeda a sua soberania, é possível, apesar da "diferenciação económica, social, política ou cultural" interna a cada um deles.

2. A "autodeterminação dos povos" equivale à "fusão" da questão social e da questão nacional, garantida pelo "Estado estratega" e pela plenitude dos seus poderes governantes, sendo o Estado o garante e o juiz supremo dos "valores de pendor redistributivo e socializante" da alternativa ao poder dos aparelhos de decisão do poder económico.

3. Para João Rodrigues o papel dos agentes da extensão da esfera pública que, numa perspectiva democrática, caberia ao governo dos cidadãos igualitária e autonomamente organizados, é atribuído a essa instância de síntese, representação e totalização hierárquica que são os agentes e responsáveis pela autoridade do Estado soberano, que, inevitavelmente, governarão reforçando o seu poder e as suas posições dirigentes na divisão do trabalho político, impondo políticamente a divisão que mais os "indispensabilize" e reforce do "outro" trabalho e da organização correspondente da actividade económica. É que, parafraseando uma notável fórmula de Marx, a extensão da esfera pública associada à liberdade e à responsabilidade dos cidadão é inversamente proporcional à sua colonização pelo Estado.

4. Que tudo isto conduza a que a Europa possa tornar-se um "campo de batalha", já não da rivalidade entre duas supeerpotências, mas das múltiplas rivalidades reanimadas das suas "independências nacionais", e que, na antecipação/prevenção dessa eventualidade, a militarização e os traços ditatoriais se acentuem em todas as suas regiões, é um preço menor a cujo pagamento a salvaguarda da "comunidade de destino" da nação autodeterminada não quererá decerto escusar-se.

Ucrãnia

Entre uma ditadura pró-russa de Yanukovitch (que pode ter sido eleito democraticamente, mas tem cada vez mais governado de modo autoritário) e uma ditadura ultra-nacionalista do Svoboda?

16/02/14

Outra coisa

Em todos estes anos de noite lisboeta, assisti a uma cena impressionante: o Corpo de Intervenção (CI) fechou o perímetro entre o Arco da Rua Augusta e a Rua da Prata. Estava a regressar a casa [...]  e três tipos do CI pedem para atravessarmos o passeio. O aparato era impressionante: quatro carrinhas do CI, três carros da PSP, dezenas de agentes sob os arcos desse perímetro em três linhas de formatura, totalmente armados.

Ambiente de intimidação.


Alguma coisa se estava a passar, ou ia acontecer ali. Ficámos à espera para ver o que iria suceder.
Nisto, a primeira formatura atravessa a rua e manda parar os autocarros que saíram do Cais do Sodré e iam para a zona de Oriente - Odivelas.


O CI pára três autocarros e mandou sair uma série de passageiros, alinhá-los sob as arcadas e revistá-los. Toda a gente calada e encostada.


Dentro dos revistados, turistas alemães e brasileiros - os primeiros a sairem, confusos e assustados. Nunca vi um alinhamento de revistados assim.


Ao voltarmos de táxi para casa, o taxista disse que o CI começou a fazer este género de operações de há duas semanas para cá.


Este tipo de demonstrações de força e intimidação não são normais em Portugal.
Espero que isto não seja um prenúncio de outras coisas mais graves que possam estar latentes, ou prestes a explodir no nosso País, e digo isto com toda a sinceridade. Critico duramente o Cavaco e o Governo - mas estas situações são outra coisa.


Retirado do Facebook de Pedro Baptista-Bastos

14/02/14

Ainda sobre a UE, a soberania dos Estados e o euro

Aqui fica a chamada da atenção, através da citação de alguns dos seus parágrafos, para um artigo de Fernando Luengo e Lucía Vicent, que não subscrevo, mas que me parece pôr em termos interessantes alguns dos aspectos da questão do euro, da soberania e da UE, cujo debate o Vias tem vindo a procurar promover.


Este proceso de retirada de lo público y de la política, ámbitos capturados y contaminados de lógicas e intereses mercantiles, se ha dado, por supuesto, en los niveles comunitarios, que han conocido un empobrecimiento y perversión de las instituciones democráticas, un asalto del sector social público por parte de los mercados y un creciente sesgo del proyecto europeo hacia los intereses de las grandes corporaciones y de los lobbies que representan sus intereses.

Pero esa deriva también se ha materializado en la esfera de los estados, y en ámbitos más acotados, como en el caso español, las comunidades autónomas y los ayuntamientos. Así pues, asociar la salida o la disolución del euro y recuperación de soberanía, como si hubiera una relación de causa-efecto entre ambos asuntos, carece de justificación. O dicho de otra forma: “otra” moneda, por si misma, no garantizaría una situación mejor, si no va acompañada de un cambio radical en el modo de ejercer la soberanía, haciendo partícipe de ella a la ciudadanía.

Del mismo modo que tampoco se justifica la afirmación de que en ámbitos más acotados, en el de los estados o en espacios territoriales más reducidos, se dan, por definición, mejores condiciones para implementar otra política económica. La evidencia disponible invita más bien a la cautela, pues no son pocos los ejemplos donde observamos en países y territorios pequeños tendencias regresivas y autoritarias.

Además, y esto es lo más importante, no está en absoluto garantizado que la correlación de fuerzas (pues de eso se trata, en realidad), en un contexto de desintegración, rivalidad y colisión de intereses (el actual, pero más exacerbado), fuera favorable a una mayoría social que permitiera imprimir un giro progresista a la política económica.





Pura Heroína?



Depois de espremer até às derradeiras gotas o drama de Amy Winehouse, a indústria musical já encontrou novo pedaço de carne mártir para pendurar na sua montra. A neozelandesa Lorde, que nem maior de idade é, apresenta-se como a candidata perfeita ao papel de talento larger-than-life, intenso demais para um invólucro de aparência tão débil, quase esgarçado.
Uma cantora original, que ainda por cima cria as suas próprias canções, performer bizarra que dança como quem se arrasta para a crucificação... dir-se-ia um cruzamento entre Miley Cyrus e Jim Morrison – o sonho húmido de qualquer executivo de A&R.
A martiriologia está já a afinar a narrativa: nas letras vogam estilhaços do quotidiano suburbano de miúdos revoltados (“We don't care, we aren't caught up in your love affair”), os videoclips são esquálidos e violentos q.b.; tudo aqui transpira pathos plastificado, pronto a servir a legiões de adolescentes perdidos noutros tantos becos sem saída.
O espectáculo, mesmo se já rotineiro e de desenlace previsível, mesmo testemunhado assim ao longe, não deixa de causar angústia e até alguma repulsa. Como se pode justificar que uma editora deixe ir para a rua um CD de uma adolescente com o trocadilho ignóbil “Pure Heroine” por título?

O que é um poder destituinte?



 
Não sou grande admirador da vaga de filósofos-celebridades com que a esquerda académica nos tem brindado na última década e que ocasionalmente irrompem na comunicação social para nos explicar o presente estado de coisas. Alguns parecem-me mais interessantes do que outros, mas, tudo somado, continuo a preferir o que se vai escrevendo em registos mais anónimos e colectivos, posto a circular por meios mais modestos e sussurrado nas entrelinhas desse grande oceano turbulento que, à falta de melhor, responde pelo pomposo nome de "movimento".
Mas o texto que Giorgio Agamben foi recentemente ler em Atenas pareceu-me estimulante e cheio de coisas que vale a pena debater, que estão inscritas nos impasses do nosso tempo e que não receiam enfrentar vários territórios difíceis nos quais amiúde tropeço, a saber: soberania, governamentalidade,  estratégia e poder. Parece-me também que não sendo um texto (ou um pensador) propriamente fácil, presta-se a vários equívocos e leituras apressadas, que lhe retiram porventura leitores que de outra forma não deixariam de nele ponderar. 
Dá-se o caso de ter encontrado algures um outro texto de Agamben sobre o mesmo conceito de poder destituinte (e que clarifica alguns dos pontos levantados em Atenas), pelo que traduzi uma parte que me parece iluminar o que se entende por semelhantes palavrões. Tudo o que nele possa ser menos claro fica subsumido nas minhas costas largas. Tudo o que ele tornar mais claro, deve-se à fulgurante inteligência do leitor. Á falta do original italiano, tive mesmo que utilizar uma tradução inglesa, o que não tornou o labor mais fácil. Sejam generosos e destituam por aí, meus queridos seres-quaisquer.



Inoperância não significa inércia, mas designa antes uma operação que desativa e torna as actividades (da economia, da religião, da linguagem, etc.) inoperantes. É uma questão, isto é, de regressar ao problema que Aristóteles colocou agudamente na Ética para Nicomaco, quando, no âmbito da definição do objecto da epistēmē politikē, da ciência política, se interrogou relativamente ao facto de, tal como para o flautista, o escultor, o carpinteiro ou qualquer outro artesão existe um trabalho específico (ergon), também existirá para o homem enquanto tal qualquer coisa como um ergon ou se ele não é pelo contrário argos, destituído de efeito, inoperante. Ergon do homem significa neste contexto não apenas "trabalho", mas aquilo que define energeia, a actividade, o ser-em-acto especificamente humano. A questão relativa à actividade ou ausência de actividade do homem tem por isso uma importância estratégica decisiva, uma vez que dela depende não apenas a possibilidade de lhe atribuir uma natureza específica e uma essência, mas também, como pudemos ver, a de definir a sua felicidade e a sua política. O problema tem por isso um significado mais amplo e envolve a própria possibilidade de identificar a energeia, o ser-em-acto do homem enquanto homem, independentemente e para lá das figuras sociais concretas que este pode assumir. Aristóteles abandona rapidamente a ideia de uma argia, de uma inoperância essencial do homem.
Eu procurei, pelo contrário, recuperando uma tradição antiga que surge em Averróis e em Dante, pensar o homem enquanto um ser vivo sem trabalho, ou seja, desprovido de qualquer vocação específica: enquanto um ser de potência pura, que nenhuma identidade ou actividade poderia esgotar. Esta inoperância essencial do homem não deve ser entendida enquanto a cessação de toda a actividade, mas enquanto uma actividade que consiste em tornar inoperante os trabalhos e produções humanas, abrindo-as a uma nova utilização possível. É necessário colocar em questão a primazia que a tradição esquerdista concedeu à produção e ao trabalho e perguntar se uma tentativa de definir a actividade verdadeiramente humana não implica antes de mais a crítica destas noções.
A época moderna, a começar pelo cristianismo - cujo criador divino se definiu a si mesmo enquanto a origem, em oposição ao deus otiosus dos pagãos - é ontologicamente incapaz de pensar a inoperância a não ser na forma negativa de suspensão do trabalho. Assim, uma das formas na qual a inoperância tem sido pensada é a festa, que, segundo o modelo do shabbat Hebreu, foi concebida essencialmente enquanto a suspensão temporária da actividade produtiva, da melacha. Mas a festa é concebida não apenas por aquilo que nela não é feito, mas antes do mais pelo facto de que aquilo que é feito - que em si mesmo não se distingue do que se faz todos os dias - se ver desfeito, tornado inoperante, libertado e suspenso da sua "economia", das razões e objectivos que o definem durante os dias da semana (e não fazer é, neste sentido, apenas um caso extremo desta suspensão). Se alguém come, não o faz apenas para se alimentar; se alguém se veste, não o faz apenas para se cobrir ou proteger do frio; se alguém acorda, não o faz apenas para trabalhar; se alguém caminha, não o faz apenas para chegar a algum lado; se alguém fala, não o faz apenas para transmitir uma informação; se alguém troca objectos, não o faz apenas para vender ou comprar. Não existe festa que não envolva, nalguma medida, um elemento destituinte, ou seja, que não comece por tornar inoperante as actividades humanas.
Nas festas sicilianas dos mortos descritas por Pitrá, os mortos (ou uma mulher idosa denominada Strina, de Strena, o nome latino para as oferendas trocados durante as festividades no início do ano) roubam bens aos alfaiates, mercadores e padeiros, para depois os oferecer às crianças (algo semelhante ao que acontece em qualquer festa que envolva oferendas, como o halloween, no qual os mortos são personificados pelas crianças). Em todas as festas de carnaval, como as saturnalia romanas, as relações sociais existentes são suspensas ou invertidas: não só os escravos mandam nos seus donos, como a soberania é colocada nas mãos de um rei satírico (saturnalicius princeps) que toma o lugar do rei legítimo. A festa revela-se assim acima de tudo uma desactivação dos valores e poderes existentes. "Não existem festas antigas sem dança"m escreve Luciano, mas o que é a dança senão a libertação do corpo dos seus movimentos utilitários, a exibição dos gestos na sua pura inoperância? E o que são as máscaras - que desempenham diversos tipos de papéis nas festas de diversos povos - se não, no fundo, uma neutralização do rosto? Apenas desta perspectiva poderá a festa oferecer um paradigma para pensar a inoperância enquanto um modelo da política. Um exemplo permitir-nos-á clarificar de que forma podemos entender esta "operação inoperante". O que é um poema, de facto, senão uma operação levada a cabo na linguagem para a tornar inoperante, para desactivar as suas funções comunicativa e informativa, de forma a abri-la a um novo uso possível? Aquilo que o poema concretiza para a potencialidade do falar, a política e a filosofia devem concretizar para o poder de actuar. Ao tornar inoperantes as operações biológicas, económicas e sociais, revela-se aquilo que o corpo humano pode fazer, abrindo-o a uma nova utilização possível.
Se a questão ontológica fundamental hoje em dia não é o acto mas a inoperância, e se esta inoperância pode, contudo, ser concretizada apenas através de um acto, então o conceito político correspondente já não pode ser o de "poder constituinte", mas algo que poderia ser designado enquanto "poder destituinte". E se as revoluções e insurreições correspondem a um poder constituinte, ou seja, a uma violência que estabelece e constitui o novo Direito, para pensar um poder destituinte temos que imaginar estratégias completamente outras, cuja definição é uma tarefa para a política que vem. Um poder derrubado meramente por meio da violência emergirá novamente de outra forma, numa incessante e inevitável dialética entre poder constituinte e poder constituído, entre violência que produz o Direito e violência que o preserva. Trata-se de um conceito que está apenas a começar a surgir na reflexão política contemporânea. Segundo estas linhas, Tronti alude numa entrevista à ideia de um "poder destituinte" sem conseguir de alguma maneira defini-lo. Vindo de uma tradição na qual a identificação de uma subjectividade era o elemento político fundamental, ele parece associá-lo ao crepúsculo das subjectividades políticas. Para nós, que começamos a partir desse crepúsculo, e do questionamento do próprio conceito de subjectividade, o problema coloca-se noutrso termos. Foi uma "destituição" deste tipo que Benjamin imaginou no ensaio Crítica da violência, procurando definir uma forma de violência que escapou a esta dialética: "no quebrar deste ciclo que se desenrola na esfera da forma mítica do Direito, na destituição (Entsetzung) do Direito com todos os poderes do qual este depende (tal como eles dependem dele), em última análise, portanto, na destituição da violência do Estado, uma nova época histórica encontra a sua fundação" (Benjamin)
Nota: Em boa hora o João Viegas recomendou-me que corrigisse o título do livro de Aristóteles, de Ética para Nicomeu (como estava na versão inglesa) para Ética para Nicomaco. Aqui fica um agradecimento.

13/02/14

Assim também eu

Responsabilizar a democracia direta pelos resultados do referendo suíço é tão demagógico quanto responsabilizar a democracia representativa pela ascensão da família Le Pen.

10/02/14

Sinais de Peste

A extrema-direita nacionalsita suíça vence um referendo contra a liberdade de circulação de estrangeiros, e o Front National aplaude e exosta os franceses a fazerem o mesmo, reafirmando a sua soberania, a sua economia, a sua identidade — a "preferência nacional", em suma. Para piorar estas perspectivas de peste, fome e guerra, não faltam vozes que se reivindicam de esquerda, ou reivindicam direitos de propriedade sobre essa marca, que recomendam o reforço da soberania e das prerrogativas do Estado-nação, bem como a recusa do aprofundamento federalista da UE, como via privilegiada do combate à austeridade económica e política crescentes que assolam a Europa. As suas recomendações e argumentos — mais ênfase na "identidade", menos ênfase nela — não se distinguem demasiado claramente das que Marine Le Pen, também ela animada de preocupações sociais, reiterou ao saudar os resultados do referendo suíço e ao convidar os franceses  a que "sigam o exemplo dos suíços em defesa 'da liberdade, da soberania, da economia, do sistema de proteção social e da identidade'". Quem tenha dúvidas pode conferir, na caixa de comentários de um artigo do Passa Palavra que o João Valente Aguiar aqui lembrou há dias, as posições do teórico marxista Jacques Sapir, ao qual toda uma série de adeptos portugueses da saída do euro e do nacionalismo económico sob a égide daquilo a que um deles chamava o "Estado estratega" tem por costume dispensar calorosas aclamações.

07/02/14

Por um Poder Destituinte

Numa palestra pública recente, Giorgio Agamben, filósofo italiano, defende que a classe dominante, em particular através das estruturas de Estado, tem vindo a mudar o modo como aborda a contestação às medidas que tenta implementar e as crises sistémicas do capitalismo. Aqui podem encontrar a transcrição dessa palestra muito interessante. Segundo Giorgio Agamben, cada vez mais a governação tem substituído o planeamento estratégico, que pretendia evitar crises futuras que pudessem colocar em causa o Poder da classe dominante, pelo desenvolvimento de instrumentos de controlo da contestação ao sistema, que se agudiza em situação de crise (sociais, económicas, ambientais).

"(…)Since governing the causes is difficult and expensive, it is safer and more useful to try to govern the effects. I would suggest that this theorem by Quesnay is the axiom of modern governmentality. The ancien regime aimed to rule the causes; modernity pretends to control the effects. And this axiom applies to every domain, from economy to ecology, from foreign and military politics to the internal measures of police. We must realize that European governments today gave up any attempt to rule the causes, they only want to govern the effects. And Quesnay’s theorem makes also understandable a fact which seems otherwise inexplicable: I mean the paradoxical convergence today of an absolutely liberal paradigm in the economy with an unprecedented and equally absolute paradigm of state and police control. If government aims for the effects and not the causes, it will be obliged to extend and multiply control. Causes demand to be known, while effects can only be checked and controlled.(…)"

"(…)The state in which we live now is no more a disciplinary state. Gilles Deleuze suggested to call it the État de contrôle, or control state, because what it wants is not to order and to impose discipline but rather to manage and to control. Deleuze’s definition is correct, because management and control do not necessarily coincide with order and discipline. No one has told it so clearly as the Italian police officer, who, after the Genoa riots in July 2001 declared that the government did not want for the police to maintain order but for it to manage disorder.(…)"

Esta mudança resulta da percepção no seio da classe dominante que a frequência e a severidade dessas crises vai aumentar, pouco podendo fazer para o evitar, pelo menos sem abdicar duma fracção muito substancial do seu Poder. As implicações desta mudança de paradigma para a contestação ao sistema ainda não são claras, mas não as podemos deixar de discutir, sob pena de continuarmos a insistir em processos que acabam por reforçar o sistema na vã tentativa de o derrubar.

06/02/14

Como assim 'meramente'?

Segundo a agência Lusa, o primeiro-ministro afirmou que, em matéria de ciência e tecnologia, o Governo está "a romper com as políticas passadas", baseadas na ideia de que "mais dinheiro público" produz qualidade em termos de resultados.
Passos Coelho explicou que durante vários anos foi possível "transferir mais recursos para o sistema científico e atribuir mais bolsas de investigação". Mas "quando medimos o número de patentes registadas e de artigos científicos publicados, quando medimos o resultado e a qualidade desse resultado", Portugal passa "de indicadores que pareciam comparar muito bem com os países com que gostamos de nos comparar", para se comparar "muito mal sempre que olhávamos para a substância dos indicadores".  
Por isso, o primeiro-ministro defendeu: "Temos de garantir que as bolsas que usamos para financiar os doutoramentos, os pós-doutoramentos e a investigação que é feita, não corresponde meramente a uma política de recursos humanos de empregar os melhores", mas resulte "em ter mais gente do lado das empresas, altamente qualificada, que traga valor para a economia".

05/02/14

BARBARA: Prévert e Kosma interpretados por Marcel Mouloudji

Este post da Joana Lopes fez irromper das brumas da minha própria memoria a que, sem desprimor para a antologia do Brumas, considero a mais bela — ou antes, talvez, convulsiva — das versões que conheço da Barbara de Prévert. Aqui fica.

A EXCELÊNCIA DA AUSTERIDADE. SOBRE O DESENVOLVIMENTO E A CRISE DA INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA EM PORTUGAL


A excelência da austeridade
Sobre o desenvolvimento e a crise da investigação científica em Portugal

por José Neves 

Artigo publicado no Le monde diplomatiqueedição portuguesa, número de janeiro de 2014


Em 1974 doutoraram-se 87 indivíduos em Portugal e em 2012 doutoraram-se 2209, números que indicam o amplo processo de desenvolvimento do sistema científico português ao longo das últimas décadas. Mas os números são apenas uma parte da história. Foram igualmente alimentados por uma narrativa, a qual, por sua vez, deles também se foi nutrindo. E, se bem que plural e até contraditória, tal narrativa conferiu legitimidade político-social àquele processo de desenvolvimento, nomeadamente associando-o a dois desígnios maiores de que a ciência se fez parte: a consolidação de um regime democrático e o desenvolvimento da economia.


A Ciência da Democracia e do Desenvolvimento

Desde 1974, na senda do papel atribuído à ciência pela cultura política antifascista portuguesa – mas podíamos também dizer pela tradição iluminista em geral –, a ciência foi entendida como condição de democracia, inimiga de um obscurantismo de cujo passado teriam sido testemunha as elevadas taxas de analfabetismo da população e sua subordinação ao pastoreio clerical. Mais tarde, assistiríamos à indexação da ciência ao desenvolvimento da economia nacional. O rasto desta valorização económica da ciência pode ser encontrado, ele também, desde a tradição antifascista, ou mesmo a partir do interior do Estado Novo, mas foi a partir dos anos de 1990 que ela se intensificou.

Uma análise dirigida ao tempo longo e que parta de uma escala global sugere-nos que esta intensificação reflectiu o desenvolvimento em Portugal – no quadro da vaga liberal europeísta e pós-soviética e em resposta à resistência operária à disciplina fabril – daquilo que alguns autores têm chamado de “capitalismo cognitivo” ou, mais latamente, de “pós-fordismo”. Por sua vez, a partir de um olhar atento ao curto prazo, e também mais localizado, podemos dizer que a valorização económica da ciência igualmente deve a um desvio no curso da ideia de um Portugal europeu: com efeito, em inícios dos anos de 1990, ao Portugal cavaquista do alcatrão e betão contrapor-se-ia o lema guterrista da “paixão pela educação”, no seio da qual a ciência – à imagem da comunicação, com as futuras “auto-estradas do conhecimento” – viria a assumir um lugar importante.

À escala portuguesa, a tese que recomendava uma tal mobilização económica da ciência era relativamente simples: perdidas as colónias, e à falta de recursos naturais próprios, o país deveria enveredar por uma política de “qualificação da população”, tanto mais que os baixos salários dos operários e operárias do Vale do Ave ficariam sempre a dever à penúria que acompanhava o surto industrial de países como a China. Na senda global do desenvolvimento, a Portugal restava a via do famigerado “capital humano”.

Em suma, a educação em geral e a ciência em particular foram objecto de investimento por um regime democrático cioso de si, mas também constituíram uma aposta estratégica a nível da chamada economia nacional.


Excelência e Utilidade da Austeridade

Hoje, porém, está em curso uma mudança. E é já da crise do sistema – não do seu desenvolvimento – que estamos a falar. O prenúncio de cortes significativos nas bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento de 2013 e o reduzido número de contratos de Investigador FCT até agora outorgados pelo novo governo indiciam-no. Contudo, importa compreender que em jogo não está apenas um corte orçamental determinado num contexto de austeridade geral. E, tal como o aumento de financiamento ao longo das últimas décadas foi participado por uma dada narrativa, à crise de hoje assiste um discurso que se alimenta e nutre da austeridade. Os dois pilares fundamentais desse discurso são a “excelência” e a “utilidade”.

Este jargão da “excelência” e da “utilidade” não é inédito, mas agora parece tornar-se a pedra-de-toque do discurso de quem governa a ciência, no plano ministerial como a nível das próprias faculdades, bem convivendo com as políticas de subfinanciamento. O critério da excelência – que, sublinhe-se, exclui do sistema científico aqueles que o próprio sistema classifica com “muito bom” – legitima o aumento do desemprego científico. O critério da utilidade, por sua vez, permite ainda uma outra exclusão, a dos que se dedicam ao que se considera como “investigação fundamental”.

À secundarização desta, de há muito – talvez mesmo desde sempre – que subjaz uma política de controlo que faz imperar como factor de selecção do conhecimento a sua eventual utilidade para as práticas de governo e administração estatal da sociedade (por exemplo, uma investigação no domínio das ciências sociais e das humanidades deve promover a “coesão social”). Mas hoje, não apenas este critério de utilidade é reforçado, como ganha maior relevo uma ideia de utilidade de índole mais económica: com a hegemonia de ideologias liberais em que é o potencial de comercialização de uma actividade que assume a prioridade na condução da economia, o campo científico passa a ser valorizado, antes de mais, por poder permitir que uma mercadoria – incorporando ela mesma, ou o seu processo de produção, determinadas inovações científicas – resulte mais competitiva no espaço de comércio global.


Que fazer?

A resposta pode apenas surgir do aprofundamento de um debate colectivo que, em Portugal, os investigadores só agora começam a travar. Nesse debate há, porém, um risco que deverá ser evitado: santificar a história do desenvolvimento do sistema científico português. Bem sei que não é difícil projectar na figura de Mariano Gago todas as virtudes que não se encontram em Nuno Crato; afinal, o primeiro é o ministro do tempo do desenvolvimento do sistema científico e o segundo é o ministro da crise. A antinomia torna-se menos operacional, porém, se nos detemos mais demoradamente em torno de alguns dos problemas referidos anteriormente.

Em primeiro lugar, cabe perguntar até que ponto a identificação entre democracia e ciência, a que começámos por nos referir, já conteria o princípio de elitização em que hoje se funda o discurso da excelência. Com efeito, tal identificação não apenas tende a ignorar uma história de utilização da ciência pelos regimes ditatoriais, como a reduzir a política e a democracia ao universo de grupos sociais e de práticas culturais particulares. Precisamos, como tal, de afirmar que a educação ou a ciência não são, em si mesmo, favoráveis ou inconvenientes a uma ideia genérica de democracia.     

Em segundo lugar, cabe perguntar até que ponto a valorização económica da ciência, que a partir dos anos de 1990 levou a uma enfatização da aposta estratégica na formação de capital humano, conteria já a celebração da lei da comercialização que hoje justamente se critica. É que o desenvolvimento do sistema científico português assentou numa política de exploração laboral que tem sido por demasiadas vezes ignorada. Ainda não se criticava a subordinação da investigação científica aos interesses do mercado, como hoje bem se faz, e já os investigadores que se formava eram submetidos a relações de compra e venda – sem exclusão de mecanismos de vassalagem – da sua força de trabalho. O capital humano não é apenas a humanização do capital, é também a capitalização do humano; e uma história em que Mariano Gago pontue como o responsável pelo desenvolvimento do sistema científico português deverá também identificá-lo como um dos ministros que mais incrementou a precariedade e a perda de direitos fundamentais, como por exemplo o subsídio de desemprego.    

No debate que nós, investigadores, travaremos por estes dias, há, pois, dois vícios que deverão ser evitados: o elitismo de quem reivindica o “avanço” da ciência pressupondo como “atrasado” quem está voluntária ou involuntariamente excluído da ciência; e o utilitarismo de quem legitime o investimento na ciência secundarizando a utilidade ou a inutilidade de outras actividades. Se evitarmos estes vícios, nós, investigadores, podemos ser uma parte importante de um processo mais amplo de transformação do presente, sem o qual, aliás, não se vislumbra futuro para uma actividade científica compaginável com uma cultura económica democrática.



Rui Tavares, Arménio Carlos e a Europa

Como —  apesar das perigosas (e suicidas) fantasias sobre unitárias frentes com o PCP que por vezes publicita, ponde entre parênteses as suas concepções políticas distintivas — o Rui Tavares não é propriamente a que se entrega uma correia de transmissão de Arménio Carlos, resta conjecturar, perante esta notícia hoje vinda a lume, que Arménio Carlos anda a ler clandestinamente Rui Tavares e a colher nele, conscientemente ou não, inspirações claramente desviantes em relação ao primado da soberania nacional advogada pelo seu partido, chegando ao ponto de ameaçar o actual governo de recorrer a instâncias internacionais — invocando nomeadamente, ainda que sem a citar, a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais —que o metam na ordem,  e, interferindo legitimamente nos assuntos internos do país,  ponham cobro à ilegalidade da troika. Enfim, muito será perdoado ao Rui Tavares se o seu "federalismo", tão vilipendiado por figuras de primeira linha do BE, servir afinal para, fazendo pelo BE o que dele alguns esperavam, promover na "esquerda" a ideia de que alguma coisa de útil se pode fazer com a Europa e por aí passa a defesa, não da "independência nacional" ou do "esplendor de Portugal", mas das liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos comuns da região portuguesa.

04/02/14

Eurocépticos, Democépticos & Cia

Querem "sair do euro", voltar a exigir passaportes nas fronteiras com Espanha e a UE, criar postos de trabalho nas alfândegas e na guarda fiscal, incentivar o contrabando, lucrar nos câmbios dos turistas e reanimar as pequenas indústrias cujos pequenos salários serão compensados pelas hortas dos trabalhadores, reafirmar os valores da portugalidade por meio do isolamento cultural do país, cativar o investimento angolano e reintroduzir a parcimónia e a modéstia na casa portuguesa — é de prever que, para tanto, estejam generosamente dispostos a sacrificar a sua existência partidária num bloco de união nacional, cuja política seja Portugal d'abord, e ponha fim às estéreis divisões ideológicas entre os nacionais. Nada disto é propriamente novo, mas torna-se bastante assustador quando vemos a esquerda soberanista e, no fundo, cada vez mais hegemonizada pelo democepticismo que é timbre do PCP promover, adoptar em boa medida, com a sua aposta na saída do euro, na autarcia económica e num governo de salvação nacional que a assegure, um programa cujos efeitos práticos seriam bastante semelhantes, tendo também por condição uma divisão do trabalho político que só poderia agravar as condições que a actual divisão (política) do trabalho impõe à grande maioria dos cidadãos.

Os portos são um ponto de partida…

Estas palavra de António Mariano mostram bem como a afirmação das liberdades e direitos em Portugal passa pela Europa, do mesmo modo que a defesa e conquista da democracia na Europa passa pelos portos portugueses.


Um pouco por toda a Europa os Estivadores levantaram-se em solidariedade com a luta dos companheiros em Portugal. Durante todo o dia os Portos Europeus fecham duas horas, dando um sinal claro de que estão comprometidos na luta contra a liberalização dos Portos e que às negociatas dos governos e dos patrões vão responder com a luta.

Trata-se de uma nova fase da luta, no plano internacional, que recupera uma tradição sindical que tantos frutos já deu aos trabalhadores, e que deixa em sentido quem porventura pensasse que os de baixo já não têm a força que precisam para defender a dignidade dos seus postos de trabalho.

A articulação da luta entre os Estivadores Europeus faria sentido não só porque todos percebem que a estratégia que está em curso para precarizar o sector em Portugal mais não é do que o balão de ensaio do que querem exportar para todos os Portos onde ainda existam Estivadores profissionais, e porque o trabalho feito pelos precários, contratados para os substituir, coloca em causa não só a sua integridade física como a de todos os profissionais que trabalham nos portos.

Experiências auto-gesticionárias

Numa fábrica ocupada, e gerida, pelos seus trabalhadores, em Marselha, teve lugar recentemente um encontro sobre fábricas em auto-gestão na Europa. Juntou não só trabalhadores envolvidos em processos auto-gesticionários, mas também académicos, activistas, sindicatos e organizações que promovem e estudam a auto-gestão.

Haverá quem considere que estas experiências estão condenadas ao fracasso: acabarão por vergar-se aos ditames do mercado, transformando-se em pouco mais do que empresas onde apenas a propriedade é controlada pelos trabalhadores-accionistas. Mas, como foi discutido no encontro, talvez seja possível escapar a tal destino se estas experiências se inserirem em processos autonómicos mais amplos, ao nível da comunidade local.

Ou tomamos o Estado. Ou induzimos/esperamos o seu colapso. No segundo caso, se estruturas alternativas, necessárias para assegurar as funções mais básicas de coordenação sócio-economica, não existirem, o Estado voltará inevitavelmente, nas suas formas mais primitivas.

03/02/14

Jornada Europeia de Luta Contra a Precariedade nos Portos Europeus




Texto de António Mariano no 5dias e n'O Estivador:

Amanhã, solidários com a greve que estamos a levar a cabo em Portugal, os Estivadores Europeus irão parar os Portos durante duas horas. Nesse mesmo dia o mesmo se passará em Setúbal e na Figueira da Foz. O alargamento das fronteiras da nossa luta é uma resposta cabal à tentativa de isolarem a luta dos Estivadores de Lisboa que, como se sabe, enfrentam um conjunto de medidas que está a ser programada para aplicar em Portugal e exportar para toda a Europa. Se o que nos oferecem é a globalização da austeridade, dos despedimentos fraudulentos e da precarização do trabalho portuário, nós ripostamos com as lutas e a solidariedade internacionalistas.


Federalismos

Emenda: ao contrário do que escrevo abaixo, afinal o Bloco não defendeu um "salário mínimo europeu"

Texto original:

Em todas estas polémicas entre supostos defensores e supostos adversários do "federalismo" como solução para a UE, há uma coisa que nunca ficou bem clara: o que é que querem exactamente dizer com "federalismo"?

Em teoria, o que distingue um Estado federal de uma confederação ou de uma simples aliança entre Estado é que os estados federados não podem abandonar unilateralmente a federação; diga-se que nem sempre os nome coincidem com as coisas - a Etiópia é uma confederação (constitucionalmente qualquer estado etíope pode declarar a independência) mas chama-se "República Democrática Federal da Etiópia", enquanto a Suíça é uma federação mas chama-se "Confederação Suíça".

Já agora, a diferença entre um estado federal e um estado unitário é que um estado federal não pode abolir unilateralmente a autonomia dos estados federados, enquanto um estado unitário, por mais autonomia que dê às suas regiões, provincias, etc., pode sempre abolir essa autonomia (na prática, essa diferença consubstancia-se em que, num estado federal, é suposto que os estados federados tenham alguma forma de participação nas revisões constitucionais [pdf], seja através da revisão ser votada não só no parlamento federal mas também nos parlamentos dos estados, seja tendo que ser aprovado nalgum orgão federal mas composto por representantes dos estados federados).

Diga-se que a diferença entre uma confederação, uma federação e um estado unitário não tem necessariamente a ver com a maior ou a menor centralização - podemos ter um estado unitário cujas provincias tenham mais autonomia que os estados de uma federação (há quem argumente que é o caso de Espanha), e também podemos ter uma confederação cujo estados membros tenham menos autonomia que os estados de um federação (talvez fosse o caso da antiga URSS, embora aí não é muito claro se se tratava de um confederação centralizada, ou se era mais uma confederação super-descentralizada governada por um partido único super-centralizado). O que distingue uma confederação, um federação e um estado unitário é sobretudo a questão "quem tem poder para mudar as regras do jogo?".

E agora regressamos à questão do federalismo europeu; a verdade é que, no sentido estrito do termo, não me parece existir praticamente "federalistas" - pode haver uma caso ou outro, mas até agora ainda não vi/li/ouvi ninguém defender que os países membros da UE deveriam deixar de poder abandonar a UE (o que é o sinal distintivo de um estado federal); na verdade, quando se fala em "federalismo" o que toda a gente quer dizer (seja adversários ou defensores) é, simplesmente, reforço das compentências da UE face aos estados nacionais.

E agora vamos ao ponto a que eu quero chegar - a recente descoberta do Bloco de Esquerda de que é contra o federalismo, e que o PS e o PSD (imagino que o LIVRE também esteja incluído) serão a favor. Se definirmos "federalismo" no sentido rigoroso do termo, ninguém é a favor do "federalismo"; se usarmos o termo simplesmente no sentido de "reforço das competências das instituições europeias", parece-me que o Bloco é (ou, pelo menos, era) dos mais "federalistas" dos partidos portugueses - afinal, penso que foi o primeiro partido a defender os eurobonds, a harmonização fiscal e acho que há tempo até defendia um salário mínimo europeu.

01/02/14

Patriotas americanos ensinam às crianças o abecedário da soberania nacional


Não seria já um "pauzinho na engrenagem", se a leitura desta notícia publicada em El País deixasse de pé atrás o cidadão a quem tentam vender a ideia de que a defesa das liberdades e direitos democráticos passa pelo reforço das fronteiras e da soberania nacional?


La actividad consiste en mirar a la doble valla que separa Estados Unidos y México, apuntar el arma y disparar bolas de pintura. El objetivo es una silueta de hombre vestida con unos pantalones anchos y una camiseta, que los activistas denuncian que semeja a un migrante que acaba de cruzar ilegalmente a suelo americano. El entretenimiento para niños formó parte de la celebración que la Fundación Roberto J. Duran, creada por varios agentes fronterizos en memoria del agente Duran, fallecido en 2002, realiza desde hace 10 años en la zona fronteriza de San Ysidro (California) para recordar a los agentes caídos.

Varias fotos, algunas publicadas en el perfil de Facebook del evento y otras dadas a conocer por el Comité de Servicios Amigos Americanos, muestran aparentemente a menores de edad, ayudados por supuestos agentes fronterizos, tratando de hacer blanco en la silueta el día 8 de junio de 2013, última edición de la celebración. Los niños, con unas edades que podrían ir de los cinco años a la adolescencia, según las imágenes, tienen la opción de escoger el arma entre un arsenal dispuesto sobre una mesa antes de disparar.