29/09/20

Como se calcula a mortalidade da gripe

O que se conclui logo daqui é que aquelas comparações que frequentemente se fazem entre o número de pessoas que morreram "de Covid" e o número de pessoas que morreram "de gripe" é um bocado comparar alhos com bugalhos; a contagem dos mortos "de gripe" não é uma contagem feita pessoa a pessoa, como com os mortos "de Covid"; é uma estimativa feita no fim do ano, comparando a evolução da mortalidade total e a evolução do número de casos de gripe ao longo do ano.

Programa Nacional de Vigilância da Gripe Relatório da época 2018/2019 (páginas 63-65, PDF):
Durante a época de gripe 2018/2019 o nú- mero de óbitos por todas as causas esteve acima do esperado entre a semana 02/2019 e a semana 7/2019 (Figura 27 e Figura 28) 40. Aplicando um método de regressão cíclica foram construídas linhas de base que correspondem à mortalidade esperada sem o efeito de fatores externos e que permitem estimar os excessos de mortalidade por todas as causas pela diferença entre a mortalidade observada e a linha de base. Este cálculo foi efetuado para a população geral e estratificado por sexo, grupo etário e região de saúde. No total, estimou-se um excesso de 2.844 (IC95%: 2.229 a 3.459) óbitos em relação ao esperado, o que corresponde a uma taxa de 28 óbitos por cada 100.000 habitantes e a um excesso relativo à linha de base de 19 % (IC95%: 17 a 22 %). O excesso de mortalidade atingiu o seu valor máximo na semana 4 de 2019 (excesso relativo de 25 %).

(...)

Durante o período de excesso de mortalidade ocorreram dois eventos que podem explicar este aumento do risco de morrer. Nomeadamente, a epidemia de gripe sazonal cujo período epidémico decorreu entre as semanas 01/2019 e 09/2019, com um pico na semana 03/2019, e períodos com temperaturas mínimas abaixo do normal nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 (Figura 30). Para estimar a mortalidade atribuível à epidemia de gripe e às temperaturas extremas, aplicou-se um modelo de regressão de Poisson de forma a modelar a taxa de mortalidade observada em função do índice Goldstein (taxa de incidência de síndrome gripal multiplicada pela percentagem de casos de síndrome gripal positivos para o vírus da gripe) e das temperaturas extremas, ajustada para a tendência e sazonalidade (Figura 31). Esta metodologia foi desenvolvida no grupo de trabalho FluMOMO 41 do projeto Europeu EuroMOMO 42.

Com base nesta abordagem, e considerando um histórico desde a semana 40/2013 até à semana 20/2019, estimaram-se 3.331 (IC95% 3.115 a 3.552) óbitos atribuíveis à gripe e 397 óbitos (IC95% 315 a 489) atribuíveis às temperaturas extremas.

26/09/20

Trump quer sabotar as eleições? Duvido muito.

Nos últimos tempos tem-se tornado quase um dogma da fé em certos meios que Trump, caso perca, se estará a preparar para "roubar" as eleições; como disse aqui, eu duvido muito desses cenários.

Atendendo que toda a carreira de Trump, desde pelo menos os anos 80, tem assentando no primado da imagem sobre o conteúdo (hum, será que acidentalmente acabei também por descrever os anos 80 no geral?), eu suspeito que o grande desejo dele não é tanto permanecer na presidência, mas poder dizer (e ter muita gente a acreditar) que é o presidente, e todas essas conversas dele a pôr em causa o processo eleitoral se destinam, não a preparar o terreno para um "autogolpe", mas a preparar o terreno para, se perder, poder passar 4 anos a apresentar-se aos seus convidados em Mar-a-Lago como "o verdadeiro Presidente dos EUA", vítima das conspirações do "deep state" (em vez de ser um "looser" que não conseguiu a reeleição). Até imagino facilmente daqui a uns anos uma gravação dele dizendo "When you’re the President - the real President-, they let you do it. You can do anything. Grab ’em by by the pussy. You can do anything."

O problema aqui é se parte da base Republicana (incluindo as milícias armadas e grande parte do corpo policial) leva o show dele a sério e tenta por sua iniciativa um "contragolpe" contra os "golpistas" no poder.

Já agora, ver este post de Noah Smith no Twitter e respetiva thread, onde ele sugere um cenário parecido (e muita gente acha que é mesmo o cenário mais provável).

16/09/20

"OK, Boomer"

Esta sequência de posts no twitter de Noah Smith, dizendo que afinal os maiores apoiantes de Trump não são os "boomers" (nascidos algures entre 46 e 64), mas sim a ala conservadora da "Geração X" (nascidos para aí entre 65 e 80), fez-me lembrar algo que há muito tempo estava a pensar escrever (este post estava nos rascunhos desde dezembro, ou seja, comecei a escrevê-lo ainda antes dos "boomers" entrarem na lista de espécies ameaçadas da WWF; depois deixei-o de molho exatamente porque o assunto tinha largamente sido abandonado).

É que desde para aí uns dois anos,  parecia ter havido uma inversão quase total dos estereótipos ideológicos tradicionalmente associados à geração "boomer".
Isto é, de há uns tempos para cá, surgiu a ideia que os "boomers" seriam uma geração particularmente conservadora (exemplo) - quando eu passei toda a minha juventude a ouvir falar que a "geração de 60" (a geração de Gloria Bunker e Michael Stivic, e também a de Steven e Elyse Keaton) era A GERAÇÃO PROGRESSISTA por excelência, não apenas mais progressista que as anteriores (o que é normal) mas até que as posteriores (era esse o ponto da série "Quem sai aos seus..." - o contraponto entre a progressista "geração de 60" e a conservadora "geração de 80").

Já agora, cá em Portugal eu passei a minha adolescência com as escolas secundárias dominadas pela JSD, e na primeira campanha eleitoral que dei nota, o liceu estava a abarrotar de autocolantes "P'rá Frente Portugal" - embora em Portugal houvesse a peculiaridade que a geração "progressista" não era tanto a dos nosso pais, mas sim  mas sim um misto de tios mais novos, primos afastados mais velhos e professores no principio de carreira (o pessoal na casa dos 30 anos, que tinha sido jovem nos nossos "anos 60" - 1974 e 1975; pelo menos uma prima afastada minha, então com 30 e tal anos, consta que ex-simpatante do PRP e típica "progressista nos costumes", era fã de uma série que havia na altura que era "Os Trintões" e dizia que representava bem a geração dela; essa série era por vezes descrita como o contraponto a "Quem sai aos seus...").

Sinais da mitificação da "geraçao de 60": ainda me lembro de há muitos anos (para aí em 1990) ter lido um artigo (penso que do João Martins Pereira, o já falecido ex-marido da Fátima Bonifácio... - ou será que mesmo isto é um exemplo da mudança do que se espera dum boomer?) que algures dizia "todos as pessoas entre os 30 e os 60 anos tendem a descrever-se como da geração de 60, grande abrigo anti-sismico mais seguro que as de 50 e de 70"; e alguém se lembra de por volta de 1973 ter surgido (com o impacto que teve) algum filme similar a "Os amigos de Alex", mas a evocar os anos 50? (o mais parecido seria o American Graffiti, mas muito longe - nem que seja porque o período que evoca é já o principio dos anos 60).

Isto talvez seja uma especificidade da chamada "Geração X", mas nós crescemos a ouvir associar a geração de 60 à geração dos contestatários e dos progressistas (sempre que havia um protesto de estudantes nos anos 80, alguém falava em "regresso aos anos 60?"), pelo que agora me dá alguma dissonância cognitiva a conversa do "OK Boomer"; por outro lado, també é verdade que "boomer" não é sinónimo de "geração de 60" - se adotarmos a definição de "nascido entre 1946 e 1964", isso incluirá também muitos dos então tão atacados yuppies dos anos 80 (mesmo o Alex P. Keaton era suposto, in-universe, ter nascido em 1965, logo só não seria um boomer por um ano).


Nota 1: suspeito que nestas coisa de conservadorsmo versus progressismo por gerações, há também 
uma grande mistura entre a função e a derivada, ou talvez até a segunda derivada...

Nota 2: tenho também uma ainda maior desconfiança face ao conceito de "geração X" (tenho também um post nos rascunhos sobre isso), que em Portugal abrangeria tanto a geração "Prá Frente Portugal" como a "geração rasca", largamente opostas; eu suspeito que há uma diferença marcada entre as pessoas da minha idade ou mais velhas (a típica geração de 80), e as mais novas que eu (a "geração rasca", e também a do grunge e, em Portugal, do rap).

08/09/20

Palavras com e sem género

Porque é que as pessoas que mais se esforçam por arranjar palavras ou expressões sem género (ver a questão do "Cartão de Cidadão" e "Cartão de Cidadania"), o que não é fácil numa língua latina, são normalmente também as que querem pôr género numa das única palavras portuguesas sem género?

06/09/20

Cidadania e Desenvolvimento - Ano 2030

Na sequência da reportagem da CMTV revelando que muitas crianças de famílias imigrantes não frequentam a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, André Ventura, líder da coligação CHEGA/PSD/CDS, exige que essas famílias percam acesso a subsídios (ou que sejam mesmo deportadas nos casos mais graves) e que os candidatos à naturalização tenham que fazer um exame com os conteúdos dessa disciplina, a fim de averiguar o seu grau de integração nos valores da sociedade portuguesa.

Também o Observador e o Expresso publicam vários artigos de opinião sobre o caso, marcando a importância de um chão comum de valores para a manutenção de uma sociedade livre e democrática, e como isso está a ser ameaçado pelo multiculturalismo relativista e pela balcanização identitária (como escreve um dos articulistas do Expresso "são estas situações, que toda a gente conhece mas a imprensa dita de referência e os bem-pensantes do Bairro Alto fingem ignorar, que levam as pessoas comuns, que cumprem as regras mas veem-se abandonadas pelo sistema, a votarem no Ergue-te").

Em contraponto, um investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em entrevista à RTP, apresenta a sua visão de que a filosofia estruturante da disciplina deriva de um paradigma iluminista-mecanicista, que apresenta como factos objetivos fenómenos e mundividências que só existem realmente numa perspetiva de intersubjetividades e de construções identitárias mediatizadas culturalmente, e que como tal é problemática, porque essa ideia de que é possível definir uma verdade objetiva independente das subjetividades e representações sociais é intrinsecamente ocidentalocentrica e (mesmo que alguns conteúdos até possam parecer "feministas") masculinocentrica; assim, considera que seria boa ideia suspender a cadeira (ou pelo menos todos os seus efeitos na avaliação) e repensá-la numa perspetivas de tornar a escola numa multi-escolas, genuinamente aberta aos várias saberes e culturas. No dia seguinte, aparece um post no Blasfémias divulgando todas as ligações entre o investigador e o Bloco de Esquerda.

Entretanto, um grupo de jovens de uma comuna ao pé da Almirante Reis divulgam (tanto por panfletos como por um texto viral na net) um manifesto apelando ao fim da escola ("A forma-valor começa na forma-escola"); do outro lado do espectro político e social, uma feminista de direita ex-NeverTrumper anuncia no Twitter que vai participar num novo projeto, junto com os seus antigos colegas de blogues do principio do século.

04/09/20

Drama e horror nas aulas de Cidadania

A grande devassa da vida privada nas aulas da tal disciplina - um exercício em que se pergunta o que é que os pais faziam nos tempos livres quando eram crianças.

Se a Helena Matos soubesse o exercício que o nosso professor de economia nos mandou fazer no 10º ano (perguntar às nossas mães quantas horas por semana gastavam na lida da casa e depois multiplicar pelo salário/hora de uma mulher a dias para ver quanto dava)…

Já agora, diga-se que eu tenho realmente grandes dúvidas face ao principio geral da obrigatoriedade de assistir a aulas, seja de que disciplina forem (eu tenho alguma simpatia pelo modelo Summerhill), mas quando há uns anos se falou em acabar com os chumbos por faltas isso deu uma enorme polémica e tiveram que voltar atrás.

01/09/20

As aulas de Cidadania e Desenvolvimento

Palpita-me que a questão da objeção de consciência às aulas de Cidadania e Desenvolvimento ainda vai dar muitas voltas (sobretudo se conjugada com a imigração) - ainda vamos ver os que são a favor serem contra e os que são contra serem a favor.