29/12/12

Afinal há lados opostos que se tocam... Ou de como a esquerda nacionalista anda a subscrever as teses de matriz fascista sobre o capital financeiro

Uma explicação introdutória: No post anterior coloquei uma transcrição de alguém que condena a "parasitagem" do capital financeiro sobre a produção. Em suma, a banca alimentar-se-ia da depredação da produção. Produção essa que seria benévola e inocente à qual a banca se encarregaria de parasitar e de açambarcar como se as relações económicas fossem uma projecção do furto... Sendo essa uma tese altamente difundida à esquerda, coloquei provocatoriamente a transcrição de alguém que, vindo da direita mais extrema, partilhou e difundiu exactamente as mesmas posições sobre o mesmo assunto. Inusitado o facto de a esquerda que se diz patriótica e nacional se dedicar a replicar mecanicamente as mesmas teses e as mesmas palermices do passado. Que essa partilha de teses seja assumida como natural e que, ao mesmo tempo, se esqueça a sua origem no espectro político mais fascista, isso só demonstra a gravidade do actual momento histórico. Deixo os meus caros leitores com a transcrição integral e com as referências.

Versão integral

«Actualmente a ciência da bolsa e das finanças tornou-se um jogo com valores fictícios, um mágico ilusionismo de números, com que certos meios provocam uma distorção sistemática na passagem da produção para a comercialização. Os donos da bolsa recorrem hoje à hipnose de massas, adulterando as notícias, para gerar reacções de pânico. Excitam deliberadamente todos os impulsos patológicos, e a vida económica, que era uma actividade saudável de trocas, deu lugar a uma arbitrariedade e uma decomposição generalizadas. Esta ciência financeira nem sequer é internacional; é simplesmente judaica. As perturbações económicas sofridas por todos os povos nórdicos resultam das tentativas de subordinar o seu modo de vida a estas manipulações levantinas contranatura, baseadas em instintos meramente parasitários. Se acabar por ter êxito, este processo há-de destruir completamente todas as nossas condições naturais de vida».
Referências
Alfred Rosenberg (1986) Le Mythe du XXe Siècle. Bilan des Combats Culturels et Spirituels de Notre Temps, Paris: Avalon.
Alfred Rosenberg [s. d.] The Myth of the Twentieth Century. An Evaluation of the Spiritual-Intellectual Confrontations of Our Age (http://aryanism.net/downloads/books/alfred-rosenberg/myth-of-the-twentieth-century.pdf )
A passagem citada encontra-se na pág. 113 da versão em francês e na pág. 29 da versão em inglês.

27/12/12

A finança contra a economia...

Está a ter uma grande repercussão na Alemanha a obra de um arquitecto e engenheiro estónio, em que a situação económica é analisada numa perspectiva semelhante à da maioria dos sectores patrióticos e anti-imperialistas do sul da Europa. Parece-nos que basta esta passagem para chamar a atenção, mas se os leitores estiverem interessados forneceremos o link para a obra completa.
«Actualmente a ciência da bolsa e das finanças tornou-se um jogo com valores fictícios, um mágico ilusionismo de números, com que certos meios provocam uma distorção sistemática na passagem da produção para a comercialização. Os donos da bolsa recorrem hoje à hipnose de massas, adulterando as notícias, para gerar reacções de pânico. Excitam deliberadamente todos os impulsos patológicos, e a vida económica, que era uma actividade saudável de trocas, deu lugar a uma arbitrariedade e uma decomposição generalizadas. [...] As perturbações económicas sofridas por todos os povos nórdicos resultam das tentativas de subordinar o seu modo de vida a estas manipulações [...] contranatura, baseadas em instintos meramente parasitários. Se acabar por ter êxito, este processo há-de destruir completamente todas as nossas condições naturais de vida».

23/12/12

Ruy Belo: Um Rosto no Natal


Um Rosto no Natal

Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais
No dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
um rosto que falava quanto a voz calava
um rosto que chegava até junto de mim da nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava
em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra do natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz na indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastava olhar
tal rosto para ver que alguém nascia.

(Transporte no Tempo, 1973)

Indios maias a 21 de dezembro


21/12/12

Debt colony

"It is not an exaggeration to claim that Greece is a debt colony now, shackled to its lenders."

Onde estão as multidões em fúria, por essa Europa fora, com o tratamento que está a ser dado aos habitantes da região grega? O que mais é preciso acontecer-lhes para que tal ocorra? Irá o Syriza, quando chegar ao governo do Estado grego, apertar um pouco mais os grilhões em nome duma estratégia de que se não vê sinais de ser viável?

Mapa das Ligações Portuárias


(o meu artigo no i de ontem)
De passagem por uma cidade do Norte de Inglaterra, fui levado por amigos locais a uma rua em que dezenas de restaurantes indianos e paquistaneses deixavam no ar aquele aroma que sempre me traz à memória a infância passada ao lado da minha avó. Como querendo regressar ao mesmo sítio no dia seguinte, pedi que me assinalassem o local no pequeno mapa de turista que tinha comigo. Disseram-me “a rua não vem no mapa…” Essa mesma frase tinha eu ouvido pela última vez há cerca de dois anos, numas breves férias de Verão realizadas um pouco mais a sul, para o sudoeste alentejano. À procura de um caminho de terra batida, por onde havia passado e cujo rasto perdera, perguntei pelo troço junto de um aldeão que caminhava à beira da estrada e pacientemente me explicou o que fazer, no fim rematando, ele também, que o caminho “não vinha no mapa…”
Do que fica relatado concluo, em primeiro lugar, que não são poucos os lugares que existem mas que os mapas desconhecem. Dizem que a falha nem terá grande remédio. Todos os mapas enfrentam o dilema da escolha entre a maior extensão da área coberta e a atenção aos detalhes que infinitamente dividem todo e qualquer espaço. Em segundo lugar, conclui-se ainda do que acima se expôs que os mapas não reflectem apenas a realidade que cartografam, mas que simultaneamente delineiam a forma futura dessa realidade. Quando um habitante local nos diz que o seu sítio “não vem no mapa…”, partilha connosco, é certo, um pedaço de terra ainda por muitos desconhecido, mas faz jásoar, também, um lamento pelo futuro que se aproxima, mau agoiro de quem intui que cedo ou tarde se acabará por dar sumiço ao que não vem no mapa.
Esta conversa de geógrafo de segunda vem a propósito do ano que vem. Então começaremos, muito provavelmente, a olhar com redobrada atenção para os mapas, as suas formas e os seus feitios. O estado da crise cada vez mais convidará a que coloquemos no centro da agenda a questão da escala em que temos vindo a ser administrados. Até agora são dois os mapas que nos têm sido disponibilizados como ferramentas para analisar e superar a crise: um mapa que nos fala de um mundo global, plano e liso, onde todos circulariam com o mesmo à-vontade; e um mapa que divide o mundo aos quadrados nacionais, como um puzzle de estados encaixados uns nos outros, cada macaco no seu galho.
Ambos os mapas têm problemas que os tornam cada vez mais insuportáveis. O primeiro mapa, tendo a vantagem de querer ignorar os sectarismos nacionais, supõe que não existam clivagens de outro tipo, por exemplo relativas a diferenças entre classes sociais. O mapa das nações, por sua vez, se admite a existência de clivagens, fá-lo conotando-as com identidades nacionais, desde logo secundarizando as diferenças sociais internas e transversais às próprias nações.
Contra ambos os mapas, há quem venha sugerindo a hipótese de um mapa universal (por contrário às identificações nacionais e patrióticas que ameaçam medrar a partir das linhas do segundo mapa) e antagonista (por contrário à ilusão de uma paz social liberal que obedece ao sonho do primeiro mapa). O trabalho de Sandro Mezzadra, autor de “Direito de Fuga” (recentemente publicado em português), tem justamente apelado à capacidade de elaborarmos mapas capazes, por um lado, de diagnosticar o desenvolvimento a um tempo diferenciado e combinado de uma economia contemporânea que cria terceiros mundos no interior do primeiro e vice-versa; e mapas capazes, por outro lado, de mobilizar as forças e vontades susceptíveis de vencer essa economia. Neste sentido, mais que de um território global ou de mil e um territórios nacionais, precisaríamos de um mapa que tanto desse conta das ligações que fazem circular e fixar coisas e pessoas ao ritmo dos lucros privados e dos interesses estatais, como iluminasse relações determinadas por outras morais que não a do capitalismo e a do nacionalismo.
Quando o governo português refreia a sua intenção de avançar para um processo de requisição civil dos estivadores de Portugal porque os estivadores de outros países avisam que em retaliação boicotariam a descarga das embarcações vindas dos portos portugueses, é já um tal mapa que a luta dos estivadores delineia.

20/12/12

Para já, algumas críticas construtivas

Nos textos que o João Valente Aguiar (I, II e III), o João Rodrigues e o Jorge Bateira (I e II) publicaram existe muita matéria para discussão. Vou tentar pegar aqui em alguns temas.

Em primeiro lugar, não acho que a Esquerda deva definir a sua estratégia de actuação preferencialmente, e muito menos exclusivamente, com base em argumentos económicos. Nomeadamente, defendendo que o objectivo principal de qualquer acção deva ser o aumento ou protecção do rendimento absoluto dos trabalhadores. Porque é óbvio que tal pode acontecer em simultâneo com a manutenção, ou mesmo agravamento, de situações de exploração, submissão e desigualdade. A Esquerda não deve perder de vista que os seus objectivos são a justiça na distribuição (relativa) dos recursos gerados pelo trabalho, e igualdade nas relações de trabalho e propriedade. E pugnar por eles, mesmo que isso implique uma menor produtividade do trabalho e capacidade de aquisição de bens materiais da parte dos trabalhadores. De outro modo, dificilmente poderíamos contestar o sistema Capitalista, que tem provado, ao longo da História recente, ser aquele que mais produtividade gera, em grande medida exactamente devido à exploração dos trabalhadores (que se vêm forçados a trabalhar mais do que precisariam para atingir os seus objectivos de bem-estar) e dos recursos naturais (com a consequente degradação ambiental, que afecta de modo desproporcionado os que têm menos Poder). Portanto, contestar a saída da zona euro com base (essencialmente) na eventual degradação (mesmo que duradoura) do rendimento absoluto dos trabalhadores não julgo ser o modo correcto de analisar a situação do ponto de vista da Esquerda. Aliás, não vejo como é que é possível qualquer alteração substancial no sistema sócio-económico, por exemplo através da tomada de controlo das unidades de produção pelos trabalhadores, sem que haja enormes perturbações sociais e económicas que inevitavelmente levariam à queda (potencialmente duradoura) dos rendimentos absolutos dos trabalhadores. As revoluções, a sério, não dão origem a transições suaves... Ou seja, apelar à manutenção da zona euro porque as perturbações sócio-económicas induzidas se esta desaparecesse seriam imensas não bate certo com um apelo simultâneo à tomada das unidades de produção pelos trabalhadores, que geraria potencialmente ainda mais instabilidade.

19/12/12

As preocupações de Luís M. Jorge nas Londres, já que nem todos declinam o que lhes vai na alma em palavras que tão bem caem ao seu vício de ousar pensar

Recomenda-se, no Declínio e Queda, a leitura na íntegra, é claro.

É certo que os pobrezinhos ingleses me pareceram mais gordinhos, mais rosados do que os nossos, e gostei de vê-los trajando de Pai Natal à porta dos grandes armazéns, exibindo a sua fé inabalável na caridade, que é fruto do amor, e um saudável desprezo pelo estado social, que é fruto do comunismo. Enquanto tivermos connosco os tontos, os bêbados e os andrajosos haverá sempre esperança para a doce utopia liberal. Mas não é fácil ser missionário tão longe da pátria.

Japão: a nova Hungria?

Um assunto a que ninguém tem ligado muito foram as eleições japoneses (e eu também só liguei depois de ler isto).

O sistema eleitoral japonês é confuso (é um sistema misto, em que alguns deputados são eleitos em círculos maioritários e outros em círculos uninominais e cada eleitor tem dois boletins de voto), mas nos resultados dos círculos proporcionais em primeiro lugar ficaram, com 27%, os conservadores tradicionais (e cada vez mais nacionalistas, sobretudo sobre a actual liderança de Shinzō Abe) do chamado Partido Liberal Democrata, e em segundo, com 20%, a extrema-direita do Partido da Restauração. Com os resultados dos círculos uninominais, os Liberais Democratas têm uma maioria sólida, provavelmente ultrapassando os 2/3.

Estes resultados (e primeiro lugar, com uma maioria esmagadora de deputados, um partido conservador-nacionalista, em segundo* a extrema-direita) fazem-me lembrar a Hungria, e quem sabe que mais se seguirão.... (a titulo de curiosidade, no período inter-guerras certos nacionalistas húngaros e japoneses chegaram a ter uma colaboração significativa, baseada em mitos de origens étnicas comuns).

*na Hungria a extrema-direita está em terceiro, mas a diferença não é muita; e de qualquer forma, nos circulos uninominias, a extrema-direita japonesa também ficou em terceiro

Ainda sobre saida do euro, desvalorização e salários

A respeito deste debate entre Octávio Teixeira, o nosso João Valente Aguiar e João Rodrigues, alguns apontamentos:

- Realmente, uma desvalorização de 30% do "novo escudo" face ao euro não iria originar uma quebra dos salários reais em 30%; mas pelos meus cálculos iria originar uma redução do poder de compra em 18%. como chego a este valor? Se o "escudo" desvalorizar 30%, os preços dos produtos importados irá aumentar 43% (já que uma desvalorização de 30% do escudo face ao euro significará uma valorização de 43% [1/0,3 - 1]  do euro face ao escudo); como penso que importamos para aí metade do que consumimos, uma subida de 43% do preços das importações levará para aí a uma subida de 21,5% do nível geral de preços; se os preços subirem 21,5%, os salários reais - se os nominais se mantiverem constantes -baixam 18% [1/1,215 - 1].

- O João Rodrigues argumenta que "só se a taxa de crescimento dos salários nominais fosse nula, hipótese pouco plausível"; mas a ideia da desvalorização da moeda é exactamente fazer baixar os custos (medido em moeda estrangeira) das empresas exportadoras (ou seja, o salário dos seus trabalhadores mantêm-se o mesmo na moeda nacional, mas como a moeda nacional desvaloriza, os produtos da empresa ficam mais baratos medidos em "moeda internacional" e a empresa "ganha competitividade"). Ora, se a desvalorização da moeda for acompanhada pelo aumento dos salários nominais é inútil nesse aspecto. Por outras palavras, se a desvalorização da moeda for acompanhada por um aumento dos salários nominais, a desvalorização terá que ser ainda maior ("comendo" esse aumento nominal) para ter efeito.

A ciclovia do nacionalismo: resposta a João Rodrigues (excertos)

No blog Ladrões de Bicicletas (leia aqui) o economista João Rodrigues apresentou uma crítica à primeira parte do meu artigo “A minhoca e a maçã. A esquerda nacionalista e o euro”. Para quem se interessar, a segunda parte que trata dos efeitos económicos e políticos à escala internacional de uma saída portuguesa ou grega do euro pode ser encontrada aqui.

Entretanto, publico aqui excertos da referida resposta a João Rodrigues que foi publicada hoje no Passa Palavra.

«O centro da minha crítica ao artigo de Octávio Teixeira, e que João Rodrigues deixou completamente à margem no seu texto: a saída do euro não representaria o fim da austeridade mas o seu aprofundamento, precisamente porque uma industrialização fora do euro implicaria o reforço dos mecanismos da mais-valia absoluta. E isto por duas razões fundamentais. E aqui repito o que já tinha dito na primeira parte do meu artigo e que JR passou completamente por cima:

«Uma reindustrialização na base da mais-valia relativa seria impossível nestas condições, por duas grandes ordens de razões:
 
Por um lado, o financiamento externo em euros ou dólares para a compra de maquinaria de alta intensidade tecnológica, de matérias-primas e mesmo de alimentos e produtos de consumo corrente seria muito mais caro, fruto da desvalorização cambial do escudo. A isto somar-se-iam taxas de juro elevadíssimas nos mercados de dívida. Se a economia portuguesa na actual situação já tem pouca credibilidade internacional junto dos investidores, sem o euro como a segunda moeda de reserva mundial e sem o Banco Central Europeu como entidade de garantia de última instância, a situação seria ainda pior do que já é hoje.
 
No entanto, a via preferida pela esquerda nacionalista não seria esta, mas a da emissão nacional e “soberana” de moeda nacional. Com efeito, a via da emissão de moeda para compensar essa ausência de crédito externo elevaria a já mencionada taxa de inflação de 8-9% a níveis estratosféricos, o que só contribuiria para desacelerar ainda mais a actividade económica. Octávio Teixeira fala numa inflação de 8 a 9% no caso de uma saída do euro e tomando como base a emissão de moeda nacional para cobrir os actuais gastos do Estado e actuais necessidades de financiamento da economia. Na realidade, isto não bate certo com a sua proposta de reindustrialização fora do euro. Se o país se reindustrializasse fora do euro e sem acesso aos mercados de dívida pública, a verdade é que, por exemplo, a necessidade de incrementar a compra de maquinaria de alta e de média-alta intensidade tecnológica e a reestruturação do parque industrial português exigiriam somas imensas de emissão de moeda. [Acrescento agora que o crescimento da emissão de moeda seria muito superior aos ganhos de produtividade, na medida em que esta não se poderia desenvolver fortemente num quadro de saída do euro]. O que, por seu turno, se reflectiria numa inflação muito superior aos tais 8 a 9% de que fala OT [e que JR subscreve]. Portanto, não só o acesso aos mercados financeiros seria inviável como a emissão maciça de moeda nacional não poderia corresponder a uma alternativa economicamente sustentável.
 
Como esta reindustrialização numa base de incremento da produtividade do trabalho se tornaria impossível, a saída só poderia ser uma: o aprofundamento do actual empobrecimento dos trabalhadores por via da redução da massa salarial e numa escala muito superior, pois só assim se elevaria o excedente económico passível de financiar uma política de reindustrialização. Por isso, a saída do euro não representaria o fim da austeridade mas o seu aprofundamento».

Não é por acaso que a primeira parte do meu artigo parte da produtividade e não da questão da desvalorização, como Octávio Teixeira e JR fizeram. Enquanto a desvalorização cambial recairá sobre os salários dos trabalhadores e apenas ajudará o sector exportador da burguesia, a abordagem desta questão a partir da produtividade coloca o problema do desenvolvimento do capitalismo no quadro da mais-valia relativa. Ao mesmo tempo, a abordagem da mais-valia relativa não é de todo irrelevante, pois foi no quadro desta (e contra ela) que as mais importantes lutas operárias dos últimos 50 anos se desenvolveram. Foi contra o fordismo plenamente desenvolvido e altamente produtivo para as condicionantes da época que no Maio de 68 ou no Outono Quente italiano se desenvolveram e se colocaram as lutas sociais num plano novo de rejeição da produção capitalista.

A conversão do antagonismo classista numa luta entre nações: nações proletárias contra as nações plutocráticas.
Quem defendeu esta tese no passado e quem a está a difundir nos dias de hoje?
É a partilha de ambiguidades políticas que torna possível a circulação de temas e de teses entre extremos do panorama político.


(...)

Eu e vários outros autores temos falado dos riscos económicos e também políticos de uma saída do euro. E aqueles que dizem que o fascismo está na zona euro estão a confundir empobrecimento com aquele fenómeno político. Na verdade, o fascismo é muito mais do que um regime repressor e autoritário. Se assim fosse, todos os regimes da modernidade seriam, em maior ou menor grau, fascistas… Para a tipologia política, os critérios da repressão e do empobrecimento são muito escassos. O fascismo é, para simplificar a minha abordagem, a utilização de um movimento de massas desarticulado e sem um grau mínimo de auto-organização, em prol de uma reorganização do capitalismo sobre novas bases. Geralmente o fascismo constitui-se a partir de uma aliança dos trabalhadores com os capitalistas “produtivos” contra a finança, para regenerar a nação. E é este ponto que a esquerda, representada pelo PCP em Portugal, e a extrema-direita um pouco por toda a Europa parecem estar apostadas em concretizar: devolver a soberania nacional às forças vivas e produtivas da sociedade portuguesa (italiana, grega, etc.) contra os ocupantes alemães e os seus feitores. Não estou com isto a pretender que o PCP é fascista. Estou a dizer que a partilha de elementos comuns entre as forças políticas declaradamente fascistas e a esquerda herdeira do Cominform deveria ser objecto de reflexão. É daí que surgem os fascismos. Fascismos que podem perfeitamente depois engolir as forças que à esquerda ajudaram a defender a nação contra a Europa.
 
E aqui termino com a questão mais de perto relacionada com o nacionalismo. «O nacionalismo não vive apenas de aspectos mais directamente conotados com a vivência histórica nacional tais como D. Afonso Henriques, Aljubarrota, as quinas ou a comemoração do Primeiro de Dezembro», algo que as correntes mais à direita gostam de utilizar para definir o seu nacionalismo. «De facto, o nacionalismo expressa-se no modo de pensar a realidade, tomando os países como realidades económicas unas, transcendendo assim os antagonismos de classe. Ou, noutro sentido, equivalendo a burguesia e os gestores ao conjunto dos países ricos do norte da Europa e equivalendo o conjunto dos trabalhadores às nações periféricas» (confira aqui). É isto o nacionalismo: a elisão dos antagonismos de classe na sociedade e a aposta num trabalho ideológico e político de harmonização da classe trabalhadora com sectores das classes dominantes. Se JR fizer questão de empregar o termo nacionalismo é lá com ele. Há muito quem se considere patriota e não nacionalista. Também há quem benza a cadeira, a baptize de poltrona e pense que está sentado mais confortavelmente.
 
Longe vão os tempos em que a esquerda internacionalista apostava na derrota das suas próprias nações, como na Primeira Guerra Mundial, para que o proletariado se organizasse internacionalmente e por cima das fronteiras nacionais. Essa esquerda reivindicava-se de antipatriótica e, apesar de minoritária, era expressiva. Alguns chegaram mesmo a reunir-se em Zimmerwald, alguém se lembra dos nomes? E se recuarmos mais ainda, ainda mais distantes estão os tempos em que a esquerda internacionalista defendia o livre-cambismo contra o proteccionismo nacionalista. Houve mesmo um alemão que escreveu um livro nesse sentido, alguém se lembra do nome?

Não tenho qualquer nostalgia por aqueles tempos. Procuro apenas enquadrar historicamente as discussões que hoje a esquerda tem lançadas em cima da mesa. Num mundo capitalista completamente globalizado e transnacionalizado, apostar na nação como resposta de esquerda só pode representar um retrocesso político e ideológico profundíssimo, sendo uma garantia maior para que os capitalistas e os gestores continuem a controlar a vida social a seu bel-prazer.

18/12/12

Guns & Amo de Filipe Nunes Vicente: não é todos os dias que um post põe tão a nu os nossos


GUNS & AMO

O nível actual do pensamento infantil-mediatizado: Se restringirem a posse de armas, os massacres  acabam / A existência de armas é a causa para os massacres.

Em Portugal existe mais de um milhão de caçadeiras legalizadas. Deve haver uns dez massacres por ano. Se os americanos  deixarem de ter acesso fácil a armas, os psicopatas vão passar a usar fisgas.

Na ausência de um mecanismo superegóico de controlo ( o machista e psicanalítico, o derivado da  cultura judaico-cristã etc), os povos viram-se para  a magia. Os Omaha ( Turner-High) acreditavam que o wakanda decretara o  fim da guerra , do ódio e da vingança e que os povos  tinham de se submeter. Acontece que os Omaha acreditavam também na superioridade da lei natural, que via  a guerra como anti-vida e o casamento como pró-vida: assim, um homem que fosse para  a guerra ficava a seco.

Como já só acreditamos no período sensório-motor da  infância, a magia consiste num fetichismo ( feitiço) lançado sobre as clavas ( as armas): se estiverem enterradas, ficam enterradas.

FNV

16/12/12

Pelo debate

Começo por agradecer o convite manifestado pelos companheiros do "Vias de Facto" para escrever neste espaço. Destas lides, e de outras, uma palavra especial ao Miguel, ao Zé Neves e ao Pedro Viana pela constante partilha e troca de impressões. Neste momento tão conturbado da nossa vida colectiva só a racionalidade e a capacidade crítica nos podem valer de alguma coisa. Quando falo aqui em racionalidade não me refiro nem ao pensamento puro e desfasado da realidade, nem ao facto de que existem outras dimensões na vida. O que me parece relevante é a possibilidade de se perspectivar a actividade política e de intervenção na sociedade a partir de um exercício de reflexão crítica. Como escrevi muito recentemente noutro espaço: «Nunca se trata de ter ou não ter razão. Trata-se de ser ou não ser racional». Acrescento agora, se nem a racionalidade nos pode valer completamente contra as forças políticas e as classes dominantes que nos impõem cada vez maiores dificuldades, então sem um mínimo de racionalidade temo que qualquer iniciativa genuinamente nascida de uma intenção emancipatória pode mesmo degenerar no seu oposto.

Creio que a lógica binária e dicotómica não é suficiente para dar conta dos problemas que as classes dominadas se vêem hoje confrontadas. Não tenho dúvidas de que existe um antagonismo entre o capital e o trabalho. Para mim, isso é pacífico. Todavia, separar águas entre funções socioeconómicas antagónicas implica passar desse campo económico para o espaço da política. E aí esta dicotomia complexifica-se. E, para ser sucinto, ela complexifica-se porque, por exemplo, as intenções emancipatórias provindas do campo do trabalho e das organizações que se proclamam suas defensoras podem resultar numa nova reordenação da dicotomia trabalho-capital. Ou seja, não basta confrontar as classes dominantes que num momento controlam os processos de tomada de decisão e os processos de controlo do processo de trabalho. Processos revolucionários e emancipatórios do passado foram derrotados pela acção dos dominantes mas também pela acção de organizações políticas progressistas e que, fruto de vários factores, colocaram os seus dirigentes nos postos de comando da nova sociedade. E, por inerência, reproduziram os mesmos princípios sociais.
Perante este cenário não basta criticar e lutar contra as políticas abjectas da actual classe dominante. A formação de novas hierarquias inamovíveis a partir de intenções emancipatórias contribuíram igualmente para a reprodução expandida do capitalismo.

Haja reflexão franca, colectiva e democrática para não voltarmos a lançar-nos no abismo.

Boas vindas, João Valente Aguiar


O João Valente Aguiar não precisa de apresentação junto dos leitores do Vias de Facto, dada a frequência com que as suas tomadas de posição, não raro polémicas, têm sido objecto de discussão entre vários colaboradores deste blogue — ou directamente formuladas pelo próprio João nas caixas de comentários dos nossos posts.

Mas, se o seu nome dispensa apresentações, nem por isso podemos deixar de saudar e noticiar aqui que a sua pessoa passa a partir de hoje a fazer parte da tripulação do Vias e a assumir a sua quota-parte de responsabilidades na sua aventura.

Bem-vindo a bordo, João!

"Que fazer das fronteiras?" — uma boa pergunta e algumas melhores respostas do Passa Palavra


Prolongando uma série de textos, para os quais tenho regularmente chamado a atenção neste blogue, sobre as ameaças que a recrudescência do nacionalismo, que tenta canalizar e capitalizar em seu proveito os efeitos da "austeridade, o Passa Palavra publica hoje uma nova análise que, retomando o tema, precisa a articulação entre a resistência à referida austeridade e as tarefas da democratização anticapitalista, adiantando o que me parecem ser algumas excelentes respostas à pergunta "Que fazer das fronteiras?" que toma como ponto de partida e dá como título à sua proposta. Sem que isso dispense a leitura na íntegra do documento subscrito pelo colectivo, aqui ficam alguns parágrafos e o link, à laia de convite à discussão.

(…)

Pensamos que a classe trabalhadora beneficia de melhores condições de luta no interior da zona euro por se tratar de um espaço multinacional, ideologicamente mais aberto a uma superação dos nacionalismos do que o são os espaços estritamente nacionais, e onde as fronteiras são permeáveis e os contactos físicos são mais fáceis. Além disso, sendo o euro uma das moedas de reserva mundiais, a manutenção de um país na zona euro ergue um poderoso obstáculo ao nacionalismo económico, para cujos pressupostos demagógicos e consequências nocivas temos repetidamente alertado.
Mas para que a classe trabalhadora aproveite este quadro é indispensável que ocorra uma alteração no rumo das lutas. Em vez de se reclamar o abandono do euro, na ilusão de que isso traria o fim da austeridade, torna-se necessário exigir transferências compensatórias das economias mais prósperas para aquelas que se encontram em situação gravemente deficitária. Ora, para que essas transferências compensatórias possam ocorrer e comecem a fazer parte dos mecanismos económicos normais é necessário que a zona euro não se limite a ser uma união monetária e se converta numa verdadeira união fiscal. Mas para que a zona euro progrida rumo a uma união fiscal é indispensável que ela avance em direcção a uma união política. Só assim as transferências compensatórias entre as economias europeias mais prósperas e as menos prósperas serão tão óbvias como o são hoje as transferências entre as regiões mais e menos desenvolvidas de um mesmo país.

Assim, as transferências compensatórias devem ser o programa imediato; a união fiscal deve ser o quadro a curto-médio prazo; e a união política deve ser o quadro a médio-longo prazo.

(…)

Devemos estar conscientes de que o processo de unificação fiscal e política europeia já está a ocorrer e muito provavelmente irá realizar-se. Se nos próximos anos a situação económica da periferia meridional da zona euro melhorar relativamente — ou, se preferirmos, piorar menos — os gestores, tanto governamentais como empresariais, terão base política para avançar nesse processo de unificação. Esta base política tornar-se-á mais sólida se as instituições internacionais de controlo bancário forem providas de autoridade e de poderes de fiscalização suficientes para refrear os excessos de crédito que agravaram a crise iniciada em 2008.

O maior perigo que se ergue perante o processo de unificação fiscal e política europeia é a convergência entre a extrema-direita nacionalista e a esquerda nacionalista, que em conjunto mobilizem trabalhadores e pequenos e médios patrões, todos eles desesperados com a situação económica, e provoquem o descalabro do euro e a balcanização da Europa.

Mas se não cabe à classe trabalhadora servir uma vez mais de massa de manobra para a instauração de um capitalismo de Estado à direita ou à esquerda, não lhe cabe também servir de base de apoio ao programa europeísta tal como ele é concebido pelos gestores capitalistas mais lúcidos. Nas actuais circunstâncias e na actual correlação de forças, parece-nos que a classe trabalhadora deve usar em seu próprio benefício as dificuldades e as contradições que o capitalismo atravessa. E os trabalhadores ganham muitíssimo mais em lutar no quadro de uma integração europeísta do que no quadro de uma fragmentação nacionalista, pelas seguintes razões:

- porque os custos económicos serão menores;
- porque o estabelecimento de relações internacionais, sem as quais a classe trabalhadora não existe enquanto classe, é mais fácil num processo que tenda à unificação política europeia;
- porque, de imediato, a opção europeísta permitirá aos trabalhadores concentrarem-se nos efeitos mais sensíveis da exploração — a descida dos salários, a precariedade do trabalho, o desemprego;
- porque, a prazo, se pressionarem nos seus próprios termos um processo de unificação fiscal e política, os trabalhadores poderão impor condições práticas vantajosas para o desenvolvimento de uma organização de base em que se coloque o programa de uma democratização interna das relações políticas e de uma democratização interna das relações de trabalho.

(…)

Mas uma estratégia de luta desenvolvida no quadro da institucionalização das transferências compensatórias, da união fiscal e da união política não poderá ser prosseguida dentro de limites nacionais. Esta estratégia terá de ocorrer desde início num plano internacional.

Será a internacionalização da luta uma utopia a tal ponto irrealizável que impossibilite aquela estratégia?
Vejamos. No dia 14 de Novembro houve uma greve dita geral e europeia. Mas não foi europeia, limitou-se a ocorrer simultaneamente em vários países europeus, o que é muito diferente e, neste caso, é mesmo o contrário. Será que a CGTP é tão pobre que num país cuja largura oscila entre 112 quilómetros e 218 quilómetros não consiga fretar autocarros [ônibus] para transportar contingentes de grevistas para o país ao lado, ou do país ao lado para este, numa demonstração física de solidariedade? Ora, foi isto mesmo que sucedeu quinze dias depois, a 29 de Novembro, na manifestação dos estivadores, em que estiveram presentes delegações de mais sete países europeus (Bélgica, Chipre, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França e Suécia), tanto do Norte — só existe um país europeu que chegue mais ao norte do que a Finlândia — como do Sul — dificilmente se arranja um país europeu ao sul de Chipre. Este é um começo, mas começa-se sempre por algum lado.

A questão não é de meios, mas de vontade política.

14/12/12

Ópera Bufa

Se daqui a meses o venal Berlusconi se transformar no campeão da periferia contra a chanceler Merkel, será chegado o momento em que a tragédia europeia desaguará numa ópera bufa. Poderá esperar-se tudo, mas dificilmente um final feliz — conclui uma crónica de proveitosa leitura, publicada hoje por Viriato Soromenho Marques no DN (ler o resto aqui).

O euro à luz do Tratado de Lisboa

O João Valente Aguiar (I e II), o João Rodrigues e o Jorge Bateira (I e II) publicaram recentemente textos que enriquecem claramente o debate em curso sobre qual a melhor estratégia de actuação, no actual contexto político e sócio-económico, para quem se considere de Esquerda. Em particular, no que se refere à postura perante a possibilidade do Estado Português decidir criar uma nova moeda com curso legal (legal tender, ou aqui para uma definição mais simples).

Antes de abordar, num próximo post, de forma crítica, mas construtiva, o que é dito nesses textos, parece-me conveniente tentar esclarecer uma dúvida que me parece fundamental no debate em curso: quais são as consequências legais, em termos de inserção do Estado Português na União Europeia, do acto acima descrito?

No Tratado de Lisboa, que determina o actual modo de funcionamento da União Europeia, o artigo 128 da versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, tem a seguinte redacção:

"1. O Banco Central Europeu tem o direito exclusivo de autorizar a emissão de notas de banco em euros na União. O Banco Central Europeu e os bancos centrais nacionais podem emitir essas notas. As notas de banco emitidas pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais nacionais são as únicas com curso legal na União.

2. Os Estados-Membros podem emitir moedas metálicas em euros, sem prejuízo da aprovação pelo Banco Central Europeu do volume da respectiva emissão. O Conselho, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu e ao Banco Central Europeu, pode adoptar medidas para harmonizar as denominações e especificações técnicas de todas as moedas metálicas destinadas à circulação, na medida do necessário para permitir a sua fácil circulação dentro da União."

Note-se que este artigo não diz respeito apenas ao países integrados na zona euro, mas a todos os que fazem parte da União Europeia (UE). Ou seja, todos os Estados membros da UE são obrigados a respeitar este artigo, a menos que tenham negociado para si uma excepção à sua aplicação (casos da Dinamarca e Reino Unido). No entanto, antes dum Estado membro da UE poder ser obrigado a respeitar o artigo mencionado, tem de cumprir os chamados "critérios de convergência", descritos no artigo 140 da actual versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. É devido a tal que o Estado Sueco não é obrigado a respeitar o artigo 128 da actual versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Porque deliberadamente decidiu (continuar a) desrespeitar um dos "critérios de convergência" (não aderindo ao denominado MTC II).

Portanto, parece-me claro que se o Estado Português decidisse criar uma nova moeda com curso legal, tal infringiria o ponto 1 do artigo 128 da actual versão consolidada do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. O que também aconteceria se o Banco de Portugal decidisse começar a emitir euros sem autorização prévia do Banco Central Europeu (BCE). O que isto quer dizer é que, tal acontecendo, as instituições da União Europeia poderiam abrir um processo contra o Estado Português, que poderia levar à imposição de multas e à suspensão dos direitos que resultam do seu estatuto de membro da UE. Neste último caso, tal procedimento teria de apoiar-se no artigo 7 da actual versão consolidada do Tratado da União Europeia. Mas este só pode ser invocado

"Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.o por parte de um Estado-Membro."

em que o artigo 2.o tem a seguinte redacção:

"A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres."

Note-se que a suspensão dum Estado membro da UE não pode tornar-se numa expulsão. Segundo o Tratado de Lisboa, a saída da UE apenas é permitida de forma voluntária.

Nos próximos dias tentarei analisar as possíveis consequências práticas de diferentes cursos de acção, tendo em conta a situação que acabei de descrever.

13/12/12

Wolfgang Münchau sobre a saída do euro, a "suspensão da democracia" e a ruptura com a UE

Um interessante artigo de Wolfgang Munchau  — defensor da ideia de que Portugal e a Grécia deveriam falir dentro da UE e (co)responsabilizá-la persistindo no interior dela —sobre a "suspensão da democracia" que a "saída unilateral do euro" implicaria. Parte das medidas que tornariam "tecnicamente" necessário algo de muito parecido com um estado de sítio antes ainda de a decisão da ruptura ser anunciada já tinham sido, entre nós, postas em evidência, há largos meses, por Francisco Louçã, e por muitos outros, antes e depois dele — alguns dos quais têm intervindo neste blogue ou sido aqui trazidos à colação. Mas a análise de Munchau é mais expressiva e precisa do que a de Louçã, além de que o seu texto indica em termos convincentes como e porquê a saída unilateral do euro por parte da Grécia ou de Portugal seria, na realidade e no mínimo, um primeiro passo para a secessão e a saída da UE, ao mesmo tempo que acarretaria a suspensão da ordem constitucional e das suas garantias fundamentais.  Aqui fica um excerto e o link que permitirá a aconselhável leitura na íntegra.


(…)

The euro is the currency of the EU. Just as Scotland cannot break out of the pound, Greece cannot break out of the euro. Britain has an opt-out, and so does Denmark, but for the others, the euro is obligatory. Once you are in, you are in. The only way to get out is to leave the EU, which is possible under the Lisbon Treaty. So the strict legal answer is that, to leave the euro, Greece would have to leave the EU.

European law has many trapdoors. A European official once told me that Greece could leave the EU on Sunday night, and re-enter on Monday morning. Sure, this is not what Article 50 of the Treaty on European Union intended, but who knows what the European Court of Justice might decide if such a case landed on the bench.

At this point, we have to assume a number of different scenarios. Is this exit agreed with the others, and if so, will they support it financially? Or is it a unilateral act, which Angela Merkel learns about in the newspapers? An agreed exit could come about when a consensus is reached both inside and outside Greece that the adjustment burden is too high, and that the costs of subsequent rescue programmes would become economically and politically indefensible. A sudden exit could be the result of an accident, or a mistake. I would assume Greece would remain in the EU in the first scenario, but not in the second.

In the worst-case scenario, an enraged Greek prime minister gets his cabinet to vote to exit the euro on a Friday afternoon. At this point, he cannot go to parliament. He must issue a decree—a temporary act to be ratified by parliament later—to leave the euro and reintroduce a national currency.

When he leaves the cabinet meeting, he will have to commit a raft of legal and constitutional breaches, possibly even crimes. He will immediately have to do the following: close the borders; enforce a prolonged bank holiday; stop all transactions; and cut off the banks from international communication, including via satellite. He might have to send in the police or army to enforce the transactions ban. The bank holiday will last as long as it takes, perhaps a week.

Once he has secured the borders and throttled the banks, he goes on television and announces the decision. Of course, he will ask parliament to ratify this decree subsequently, but first he will have created all the facts. It is, of course, impossible to leave a monetary union while going through an open parliamentary procedure. The banking system would have collapsed before the opposition leader had a chance to speak. Secrecy is important for this to work. For a country to leave the eurozone, democracy will have to be suspended.

(…)

O projecto da nova constituição egípcia

Versão em inglês. Análises no Fruits and Votes e na Al-Jazeera.

04/12/12

O "anticapitalismo" e o "critério da democracia" — com um abraço para o João Valente Aguiar


João,

pego na tua pergunta certeira — "A questão que se coloca é: é toda a esquerda que se diz anticapitalista realmente anticapitalista?" —, que pesquei na caixa de comentários de um teu recente post no 5dias,  e adianto um começo de resposta.

O que penso é vai sendo mais do que tempo de dizermos bem alto, e de tirarmos as consequências disso em vista da acção, que para ser anticapitalista a luta tem de começar por ser democrática (tanto nos seus objectivos como na sua organização, ou regime que instaura), e que o grau de anticapitalismo de um movimento se mede pela democratização que instaura por onde passa e está, a começar pelas suas próprias fileiras. Podes chamar-lhe a tese da democracia - ou da democratização - como critério do anticapitalismo, e creio que se adequa bem ao que aqui tens procurado fazer valer.

Bom combate, pois, o teu, camarada.

Abraço

miguel serras pereira

As metáforas são importantes

A propósito deste post do Nuno Teles no Ladrões de Bicicletas, recomendo a leitura deste comentário de George Lakoff, que discute a importância da escolha das metáforas que utilizamos.

03/12/12

Citando "Os Donos da Dívida" do José Maria Castro Caldas…


Se o José Maria Castro Caldas tem razão na análise que propõe no texto intitulado Os Donos da Dívida, que acaba de publicar na página da IAC, a conclusão a tirar é, uma vez mais, que a ofensiva oligárquica europeia, visando a absolutização do seu poder atraves da precarização e da destruição das liberdades e dos direitos dos trabalhadores e da imensa maioria dos cidadãos da Europa, é um traço comum da situação política de todos os países da zona euro e da UE, e que, por isso mesmo — embora assuma formas e graus diferentes nuns e noutros casos —, exige deles uma resposta política comum.

Significa isto que ao longo da intervenção da troika os credores privados internacionais terão passado de uma situação, em 2008, em que detinham 75% da dívida portuguesa, para uma outra, em 2014, em que deterão apenas 20%. De 2008 a 2014 os credores privados internacionais ter-se-ão livrado dos títulos de dívida pública portuguesa.

Para isso mesmo pode ter servido a intervenção da troika: para limpar os balanços das instituições financeiras estrangeiras (sobretudo europeias) de títulos da dívida portuguesa tornados demasiado arriscados. Para onde transitou o risco? Para os fundos europeus e o FMI, isto é, para os cidadãos dos países da eurozona que estão a garantir as emissões de títulos destes fundos destinadas aos empréstimos a Portugal. 

Com efeito, não se vê como a secessão soberanista seja uma resposta, porque, em primeiro lugar, debilitaria a força dos trabalhadores e do conjunto dos cidadãos no país que a praticasse como medida de resistência, aumentando ao mesmo tempo os traços dependentes da sua economia; e porque, em segundo lugar, tornaria mais provável a implosão nacionalista da UE, abrindo caminho à sua fragmentação em Estados e/ou coligações de Estados autoritários e militarizados, cujas rivalidades reforçariam a ameaça do fascismo ou desta ou daquela variante de "socialismo nacional" no plano interno de cada um deles, enquanto faria descer sobre o seu horizonte comum o espectro da balcanização armada e da guerra.

02/12/12

Memorável post internacionalista de um camarada que muita falta faz neste Vias por onde já andou

Basta pensar nos 400 milhões de euros de prejuízos alegadamente provocados pelas paralisações dos estivadores, segundo o Secretário de Estado dos Transportes, para ter uma ideia da produtividade do seu trabalho e do seu peso na economia portuguesa. Se uma greve efectuada meramente às horas extraordinárias envolve valores dessa ordem, então como poderiam ser incomportáveis os níveis salariais actualmente praticados no sector? Semelhante pergunta parece não interessar à generalidade das reportagens que se ocupa do assunto, talvez porque o grande desígnio nacional de empobrecimento generalizado e de contracção salarial ocupou há muito o lugar que outrora se encontrava reservado ao jornalismo, que tinha, entre outras, a incumbência de fazer perguntas incómodas para as pessoas que não costumam ser incomodadas. Neste sítio e nesta hora, em que governo e patronato falam do povo como um rebanho inquieto mas apesar de tudo obediente, em que os trabalhadores são apresentados como vítimas pelos seus próprios representantes sindicais e os desempregados como um conjunto de pessoas cheias de azar, o facto de haver um sector operário que responde a tudo isso com um sorriso que ameaça tornar-se feroz escandaliza todos os escribas do partido da ordem. 

Segunda e última parte de "Sinal vermelho ou farol?" no Passa Palavra:

"O Passa Palavra tem alertado para os perigos de capitalismo de Estado decorrentes de um abandono do euro. Que ingenuidade a nossa! Julgávamos que erguíamos um sinal vermelho e tudo o que conseguimos foi acender um farol. Julgávamos que ao apresentar o capitalismo de Estado como horizonte previsível estaríamos a afastar alguma gente de esquerda deste cenário quando, pelo contrário, lhes tornámos esse futuro muito atractivo".

É assim que abre a segunda e última parte do artigo "Sinal vermelho ou farol? 2) o farol", cuja primeira parte foi publicada há oito dias, dando de resto origem a uma viva discussão neste blogue, e no qual o colectivo do Passa Palavra procede a uma abordagem política, económica e sociologicamente informada, dos riscos de fascização veiculados pelas propostas de saída unilateral do euro e de "recuperação da soberania" cada vez mais insistentemente repetidas por porta-vozes altamente colocados na área política hegemonizada pelo PCP e pela hierarquia da CGTP, bem como por outros sectores de "esquerda", minoritários mais influentes, como os que, por exemplo — exemplo meu — reiteram a urgência de um "Estado estratego" como alternativa ao federalismo, que apresentam como submissão frente a uma UE que consideram, no curto e médio prazo pelo menos, irremediavelmente governada pelo neoliberalismo, em termos claramente convergentes com as fórmulas do PCP sobre a sua natureza "irreformável".

Não vou nem retomar nem resumir aqui os argumentos com que o colectivo do Passa Palavra mostra — a meu ver mais do que suficientemente — que o regime de capitalismo de Estado defendido pelo PCP e pela hierarquia da CGTP (não se devendo aqui esquercer que "a influência política de que o PCP dispõe não lhe vem tanto da sua militância envelhecida como sobretudo da hegemonia que detém sobre a central sindical") significaria, do ponto de vista tanto das necessidades imediatas como da emancipação democrática grande maioria dos trabalhadores e dos cidadãos comuns da região portuguesa, não um passo em frente, mas um agravamento extremo dos traços mais odiosos da situação actual, comprometendo profundamente as perspectivas de quaisquer avanços e formas de luta capazes de começar a inverter as relações de força que governam a zona euro e a UE, de travar a ofensiva oligárquica em curso e de abrir caminho a acções e movimentos que reforcem os direitos, liberdades e o exercício pelo conjunto dos trabalhadores e cidadãos comuns de formas alternativas de participação igualitária. Acrescentarei apenas que, em meu entender, a ameaça de fascização, contra a qual,  através da sua exemplar análise crítica de um cenário que concretizasse de perto as propostas políticas e o "projecto de sociedade" característico do PCP, alerta o colectivo do Passa Palavra alerta, pode tomar vias que, não se deixando representar com a mesma clareza intelectual do que o cenário considerado pelo artigo "Sinal vermelho ou farol?", não desembocariam em paisagens menos mortíferas.


28/11/12

Que Ciência para a Crise?


O tabu da violência


Salazar ficcionou a cómoda brandura dos nossos costumes. Franco, camarada ibérico de barbárie, resumiu-nos como uma nação de cobardes. Governo após governo apostaram no comodismo que nos levaria a preferir o resmungo clandestino às dores e ao sangue do confronto; ideia arriscada, face a um povo que tem por tradição enfrentar touros de mãos nuas. 
 No dia 14, a aposta começou a esgarçar-se sob uma chuva de fogo, pedras e fúria. A resposta policial foi vista pelo bom senso do costume como inevitável, exemplar até. Sempre ordeiras, as almas consensuais tranquilizaram-nos-nos: trata-se apenas de “uma dúzia” de desordeiros; malta sombria, estranha, talvez estrangeira, anarquistas, quiçá criminosos comuns, de cadastro e tudo. Haja obediência, respeitinho. O monopólio estatal da violência é coisa a venerar, pilar da ponte que vai de quem manda a quem obedece. 
E quando os violentos começarem a ser dezenas, milhares? E se andar por aí um rastilho subterrâneo a arder, rumo ao coração de multidões, atiçado por cada novo sopro de insensibilidade, de “ai aguentas”, de desvergonha autoritária? 
Até Gandhi cartografou as fronteiras entre a cobardia e a autodefesa: “arriscaria mil vezes a violência antes de arriscar a castração de uma raça.” E a Constituição garante-nos o direito “de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” Se esta se couraça e arma até aos dentes com a fúria cega de feras fardadas e bem treinadas, resta o quê?



27/11/12

Egito, hoje



[Al Jazeera]

Uma confissão - as minhas esperanças que o Egito consiga escapar ao Cila de uma teocracia e ao Caribdis de um regime militar não são muitas

Um editorial do jornal Combate em Março de 1975 sobre o "significado político e económico das nacionalizações"

Nos últimos dias de Março de 1975, o jornal Combate, já ontem mencionado pelo João Bernardo, concluía, nos termos que a seguir se podem ler (mas o texto pode também ser consultado aqui), um editorial que analisava os acontecimentos e traçava as perspectivas do momento. No essencial, eu voltaria a subscrever — com algumas actualizações ou explicitações terminológicas — o documento que o colectivo então publicou, e penso que é pertinente retomá-lo nas circunstâncias actuais, tendo em conta as discussões em curso neste blogue e noutros lugares sobre o nacionalismo, o capitalismo de Estado, o que pode e não pode ser uma democratização efectiva das relações de poder dominantes.

Adenda: O João Valente Aguiar — achando, e com razão, ser difícil ler o texto do editorial que inicialmente publiquei em JPEG — acaba de me enviar a sua transcrição, que aqui "posto" em substituição da versão anterior, agradecendo calorosamente ao meu amigo o seu trabalho e solidariedade:


Significado político e económico das nacionalizações   

A fase actual inaugura-se com as «grandes» nacionalizações: Bancos e Seguros.

Vimos já o contexto em que essas nacionalizações se inserem. Mas, a palavra «nacionalização» é hoje em Portugal um termo ambíguo. Significa coisas diferentes para diferentes estratos, constituindo assim uma plataforma de entendimento entre classes antagónicas.

Para os operários «nacionalização» significa, a curto prazo, garantia dos salários. Pode aparecer, portanto, como um dos objectivos práticos da luta, sem que, no entanto, se possa inferir sobre o objectivo último que visam conscientemente nas suas lutas.

Para outros trabalhadores pode significar ainda, que na sua estratégia consciente, não vão mais longe do que a luta contra a instabilidade do emprego, e que tudo o que pretendem conscientemente é continuarem assalariados, mas estavelmente.

Para outros operários «nacionalização» significa o desaparecimento do capitalismo em todo o país e a passagem da economia ao conjunto dos trabalhadores. Trata-se mais de uma aspiração, do que de uma estratégia definida. Sobretudo não colocam o problema da mediação ou não mediação entre os trabalhadores e o controlo da economia, ou seja, o problema dos gestores e da gestão não é pensado.

Para os tecnocratas e os capitalistas de Estado já existentes, significa, conscientemente, a sua expansão como classe, a realização integral do Capitalismo de Estado.

Para muitos pequenos accionistas significa a garantia dos seus capitais nas empresas em vias de falência. Inconscientes de que a longo prazo isso significa o fim do capitalismo privado satisfazem-se com a possibilidade de manterem, a curto prazo, o rendimento das suas acções.

Vemos assim que o termo «nacionalização» alia ambiguamente operários, capitalistas de Estado, tecnocratas e pequenos accionistas.

Se a «nacionalização» é hoje terreno de conciliação entre classes antagónicas é porque uma dessas opções é formulada difusamente, permitindo assim que realidades antagónicas se cubram com o mesmo nome.

Cabe aos trabalhadores desfazer esta ambiguidade desenvolvendo lutas autónomas com a simultânea criação de formas organizativas que possibilitem o desenvolvimento da democracia operária em ruptura completa com o modo de produção capitalista e que sejam a base de novas relações de produção – as relações de produção comunistas, que levam ao desaparecimento do salariato e da sociedade de classes.

Em Portugal o proletariado não está enquadrado em partidos de massas ou sindicatos (como se constata pelo desenvolvimento da luta operária, que escapa ao enquadramento dos partidos e sindicatos), apenas vê com maior ou menor simpatia alguns desses partidos, sem demasiado seguidismo. No entanto, tem demonstrado uma extraordinária confiança no Estado, e nas instâncias mais hierarquizadas e repressivas desse Estado: as forças armadas. Este é um aspecto grave da ambiguidade que reina em torno do termo nacionalização.

«Nacionalização» significa por si só Capitalismo de Estado, significa controlo do Estado de toda a vida económica e social.

Significa continuação do salariato.

Significa que uma camada destacada dos trabalhadores e não controlada por eles, a quem aqueles delegam o poder económico e social – os gestores – passam a ser os novos exploradores. São estes os interessados no Capitalismo de Estado.

O Comunismo, que os trabalhadores visam nos seus objectivos últimos, tem como base a democracia dos trabalhadores, tem como base a democracia dos trabalhadores. No comunismo os trabalhadores não delegam o poder noutras camadas sociais, exercem-no directamente, através de instituições próprias, que criam na sua própria luta.

A Democracia Operária pratica-se e desde já nas próprias lutas que hoje se travam. É na prática de luta, com formas de organização que hoje se criam, que se desenvolve a consciência dos trabalhadores pelo comunismo.

Para que o capitalismo de Estado não se confunda com o socialismo, para que estas duas realidades sejam vistas conscientemente como distintas, é necessário que o proletariado em Portugal desenvolva a sua prática de luta no sentido de experiências novas.

A alternativa para os trabalhadores não é entre capitalismo privado e capitalismo de Estado, mas entre capitalismo, de um lado, e democracia dos trabalhadores organizados autonomamente, por outro.

Resposta ao João Bernardo

Antes de mais agradeço ao Miguel Serras Pereira e ao João Bernardo as suas respostas às questões que tenho levantado em posts e comentários. É a conversar, e a divergir, que se torna possível explorar todo o leque de vias e destinos que se abrem à nossa frente. Aliás, onde talvez mais divergimos é exactamente na aferição da amplitude das possibilidades futuras, resultado da presente crise sistémica na UE.

Mas vamos aos pontos indicados no post anterior:

1) Nunca coloquei em causa a plausibilidade das consequências para a economia portuguesa, decorrentes duma eventual saída da zona euro, que têm vindo a ser defendidas como inevitáveis no Passa Palavra. Apesar de haver quem discorde, nomeadamente outros economistas de Esquerda, entre os quais se destacam alguns dos que escrevem no blogue Ladrões de Bicicletas. O erro na análise do Passa Palavra consiste numa abordagem exclusivamente económica, tecnocrata, de questões que possuem também uma componente social. Por exemplo, a dada altura na resposta do João Bernardo pode-se ler: "Isso significa (...) que nenhuma economia pode desenvolver-se sem investimentos externos directos(...)". O que esta frase assume implicitamente é que há uma definição concreta do que significa desenvolvimento económico, sendo este obviamente desejável (de outro modo a crítica não faz sentido). Mas que significa desenvolvimento económico? Crescimento do PIB, do PNB? Mesmo que tal crescimento seja absorvido exclusivamente por uma minoria da população? Mesmo que tal crescimento resulte em degradação social e ambiental? É realmente desejável o crescimento económico? Ou o que pretendemos à Esquerda é a democratização, e equalização, das relações sociais, inclusivamente as de carácter económico? Será que o investimento estrangeiro ajuda ou prejudica o desenvolvimento que realmente deveríamos desejar à Esquerda?

2) Em primeiro lugar, quantos incumprimentos financeiros de Estados já tiveram lugar no passado? Provavelmente muitas dezenas. Quantos desse países estão neste momento numa situação de isolamento internacional como resultado desses incumprimentos? Não conheço nenhum. O que acontece sempre após o incumprimento financeiro dum Estado? Credores e Estado negoceiam a fracção da dívida que será paga. É que os credores sabem que alguma coisa é melhor do que nada... Em segundo lugar, o sistema jurídico é subordinado ao poder político. É-me inconcebível que alguém à Esquerda defenda a inviolabilidade dum contrato, o que consistiria na prática a defender que, no caso de ser o Estado a assiná-lo que tal responsabiliza automaticamente todos aqueles que formalmente estão sob a sua dependência, e no caso de serem indivíduos a assiná-lo que o fazem sempre de livre e espontânea vontade, na posse de toda a informação relevante e de alternativas reais. Os contratos, quaisquer que sejam, devem poder ser alterados por vontade soberana dos cidadãos no exercício democrático da sua autonomia para decidir colectivamente. O sistema jurídico baseia-se em Leis. E estas podem ser em qualquer momento alteradas pelo exercício político atrás mencionado. Leis claras não deixam margem para qualquer interpretação jurídica, ou confusão.

3) Bom neste ponto transparece algo que lamentavelmente tem-se tornado cada vez mais claro. Quando se afirma que "(...)a estatização (...) é o oposto ao controlo social sobre a economia(...)" não é por acaso que se esquece de mencionar a privatização. Aonde é que cabe a privatização da economia nesta dicotomia estatização - controlo social que tanta atenção tem merecido do Passa Palavra? Será que acham que a privatização, que é o processo que está em curso em Portugal, nos aproxima mais do controlo social da economia? Será que a privatização de todas as empresas estatais em Portugal, mesmo as Águas de Portugal ou as Estradas de Portugal, nos aproximam mais do controlo social da economia?!... Porque se assim não é, se afinal a privatização de empresas estatais não nos aproxima mais do controlo social da economia, então logicamente tal só pode querer dizer que afinal o oposto de controlo social sobre a economia é a privatização e não a estatização. Ainda, nesta diabolização da estatização existe uma incapacidade de aceitar que existem e existiram empresas estatais em muitos países, com sistemas políticos distintos, em que o controlo social dessas empresas, pode ir de nulo a considerável, nomeadamente por parte dos seus trabalhadores. Ou seja, a estatização não condena as empresas à submissão a uma burocracia auto-nomeada. Mas, dá sempre jeito a um argumento apresentá-lo como inevitável. Dúvidas são para os outros.

4) Parte da resposta já foi dada no ponto 1). Queria só relembrar que não, não é verdade que "os problemas sentidos pela periferia meridional da zona euro são problemas económicos". Existe um problema económico que está a tentar ser solucionado através da criação de problemas políticos e sociais. E portanto qualquer resposta ao primeiro problema tem de incluir também uma resposta aos segundos problemas. Não é possível? Então há que prioritizar. Admitindo que a resposta ao primeiro problema exige a privatização quase total das relações sócio-económicas em Portugal (porque é o que é exigido pela troika, e não podemos dizer não à troika, porque senão corta-nos o financiamento, e lá temos de sair - teremos? - da zona euro), o que resultará num agravamento dos problemas políticos e  sociais, interrogo-me se a resolução destes (ou antes o impedir o seu aprofundamento) não exige uma resolução diferente, mas admito menos "conseguida" ou "eficiente" do primeiro problema. O que eu gostaria era de ver esta prioritização discutida, em vez de se ignorar (nem quero acreditar que seja uma questão de minorizar) os atuais problemas políticos e  sociais.

Cumprimentos,

Pedro

26/11/12

O "sinal vermelho" do Passa Palavra: resposta do João Bernardo a um comentário do Pedro Viana

Sobre o artigo do Passa Palavra, Sinal Vermelho, que referi num post anterior, o Pedro Viana escreveu um comentário, ao qual tentei responder de imediato, e que, a seguir, enviei ao meu amigo João Bernardo, membro do colectivo do Passa Palavra, sugerindo-lhe que seria excelente que procurasse também responder-lhe, contribuindo assim para avivar o debate sobre aquilo que ele e eu próprio, com alguns mais, entendemos ser o risco de regressão brutal representado pelo nacionalismo que certos sectores da "esquerda", de um modo ou de outro, alimentam. A extensão do comentário redigido pelo João Bernardo e a importância das respostas que dá aos argumentos mobilizados pelo Pedro Viana levam-me a publicá-lo aqui sob a forma de post, alargando assim o espaço do debate em curso na caixa de comentários da chamada de atenção para o Sinal Vermelho que publiquei esta manhã.



Apesar de o comentário de Pedro Viana se dirigir ao Miguel Serras Pereira (e se Pedro Viana quisesse dirigir-se ao Passa Palavra certamente teria colocado o seu comentário nesse site) pareceu-me conveniente intervir. A minha ligação ao Passa Palavra é conhecida e, embora aquele artigo seja colectivo e assinado pelo colectivo, poderei adiantar o seguinte:

1) Em numerosos artigos, tanto colectivos como assinados pelo Manolo, pelo João Valente Aguiar, por mim mesmo e por outros autores, o Passa Palavra tem mostrado a impossibilidade de reflectir sobre a economia actual em termos nacionais. Nem sequer é o inconveniente político de o fazer, é a sua impossibilidade de facto. A transnacionalização do capital deixou as fronteiras totalmente inoperantes, no caso de pequenas economias, ou parcialmente inoperantes, no caso dos cinco grandes países subcontinentais. Isso significa, entre outras coisas, que nenhuma economia pode desenvolver-se sem investimentos externos directos, a tal ponto que uma parte considerável e crescente do que é contabilizado como comércio externo é hoje constituído por comércio intrafirmas. Não é com homilias que se inverte esta situação nem é ignorando-a que ela desaparece.

2) A adopação de uma moeda nacional depreciada, em situação de inadimplência, provocaria o descalabro jurídico da vida económica sobretudo no interior do país. Os compromissos assumidos com o estrangeiro, em termos de euro ou de dólar, teriam de ser cumpridos nessas moedas — embora com muito mais dificuldades — sob pena de corte das relações internacionais. Mas tanto no caso de cumprimento como de incumprimento a situação para o exterior seria juridicamente clara. O caos jurídico verificar-se-ia nos compromissos assumidos internamente, firmados em euros e a cumprir na nova moeda, mas a que taxa? Na estipulada oficialmente, o que corresponderia à ruina dos credores? Numa que correspondesse ao valor real do compromisso assinado, o que seria impossível para os devedores? Se estes litígios fossem levados a tribunal o sistema jurídico ficaria praticamente paralisado.

3) Quando Pedro Viana atribui àquele artigo do Passa Palavra «a crítica da nacionalização, em particular como meio de controlo social sobre a economia, vista como inevitavelmente conducente ao totalitarismo», só posso concluir que ou não leu o artigo ou está a tresler. Nesse artigo nunca se menciona a «nacionalização», mas sempre a «estatização», precisamente porque o Passa Palavra, tanto enquanto colectivo como os seus colaboradores individualmente, não consideram que naquelas circunstâncias política haja possilidade de os trabalhadores exercerem o seu controlo sobre a economia. Para todos nós, no Passa Palavra, a estatização — e repito que foi este o termo que usámos — é o oposto ao controlo social sobre a economia. E é porque defendemos o controlo social sobre a economia que atacamos a estatização. Para mim, pessoalmente, é uma posição que assumo desde há muito, e que assumimos todos os que a seguir ao 25 de Abril criámos e mantivemos (até 1978) o jornal Combate, Miguel Serras Pereira incluído.

4) A mesma alternativa que me vi obrigado a colocar há pouco tenho de a colocar de novo quando Pedro Viana escreve que existe naquele artigo «uma argumentação apenas e só assente em considerandos económicos». Em primeiro lugar, o que preocupa o colectivo do Passa Palavra é que um capitalismo de Estado instaurado em condições de miséria pressupõe um autoritarismo político reforçado. Isto está claramente dito naquele artigo, como aliás nos artigos anteriores sobre o mesmo assunto. É como sinal vermelho para o autoritarismo político que o Passa Palavra se preocupa com o risco de estatização da economia. Em segundo lugar, por muito que custe aos diletantes da demagogia, os problemas sentidos pela periferia meridional da zona euro são problemas económicos. E quem não os quiser — ou não os souber — analisar em termos económicos estará a dar o aval a soluções economicamente catastróficas e politicamente nocivas.

Finalmente, uma observação. Todos nós, no Passa Palavra, lamentamos muito ter de analisar a situação portuguesa no plano estrito do capitalismo. Fazêmo-lo apenas porque não existe nem parece despontar nenhuma alternativa revolucionária, anticapitalista. E sob a estatização económica e o autoritarismo político será mutíssimo mais difícil criar condições de desenvolvimento de uma alternativa anticapitalista.

Mas a indignação de pessoas como Pedro Viana e tantos outros explica-se quando observamos a facilidade com que, onde o Passa Palavra escreveu «estatização», ele leu «nacionalização». Esse será o tema da 2ª parte do artigo, que analisará por que motivos o capitalismo de Estado e o autoritarismo político podem servir, para toda essa gente, de farol.

João Bernardo


Mais um "sinal vermelho" do Passa Palavra: "Um novo totalitarismo é o preço da mísera 'independência nacional'"

Citando, na conclusão, um post que o Jorge Valadas deixou há dias no Vias, o Passa Palava volta a publicar um "sinal vermelho", alertando para os riscos de fascização que toda uma parte da "esquerda soberanista" parece apostada em alimentar. A primeira parte de Sinal vermelho ou farol?, subintitulada 1) o sinal vermelho, apareceu ontem (25.11.2012); a segunda parte será publicada no próximo dia 2 de Dezembro.  A ler e discutir com atenção. Mas, ainda que se possam levantar questões sobre o cenário concreto  apresentado pelo texto como o mais provável em caso de "saída unilateral do euro", a tese mais geral do texto é convincente e não podia ser mais oportuna: Como escreveu Jorge Valadas no artigo que citámos, «este regresso à dita “soberania nacional” implicará necessariamente, não só mais miséria, mas também o regresso do autoritarismo por parte do poder politico. Um novo totalitarismo é o preço da mísera “independência nacional”».

24/11/12

Polarizar para sobreviver

O Zé Neves (aqui), e o Rick Dangerous (I, II, III), acabam de publicar textos muito relevantes para a compreensão da génese e impacto futuro dos acontecimentos frente à Assembleia da República que tiveram lugar no dia 14 de Novembro . No entanto, tal como outros textos que li, não aludem ao que me parece ter sido um dos objectivos mais importantes de quem delineou a estratégia de actuação das forças policiais para o período que culminou naquele dia: a re-agregação e radicalização quer das forças policiais quer do campo social que pode ajudar a sustentar este governo. Ou seja, tal estratégia terá tido como objectivo não tanto a intimidação daqueles que estão mais predispostos a manifestarem-se (não deixando de ser útil nesse sentido), seja porque razão for, mas principalmente (re-)criar uma divisão que parecia estar a esboroar-se entre as forças policiais e os manifestantes (vide a força crescente da contestação pública dos sindicatos da polícia às medidas do governo que afectam os seus membros, e a relativamente branda actuação das forças policiais na manifestação do 15 de Setembro) e entre diferentes classes sociais (patente na manifestação do 15 de Setembro, nas sondagens de opinião e no re-posicionamento de vários comentadores políticos e económicos perante a actuação deste governo). Era preciso criar um momento polarizador, que não permitisse ambiguidades de posicionamento. Ao endurecimento e crescente popularidade da contestação, aqueles que o governo, e os interesses que serve, espera constituam obstáculos à sua queda respondiam com sinais de cedência, até compreensão. Era preciso re-lembrar-lhes quão ameaçadores são os "outros". Daí, em particular, a decisão de permitir o apedrejamento durante algumas horas das forças policiais posicionadas ao fundo das escadarias da Assembleia da República. Tal também serviu para atiçar as próprias forças policiais, criando suficiente tensão para que se tornasse inevitável a violência exercida durante a carga policial. Esta tinha de ser suficiente forte para obrigar quem se pretendia radicalizar contra a contestação social às medidas governamentais, a (re-)aceitar o exercício da violência extrema como meio legítimo para a manutenção do sistema. O governo pretendeu embrutecer quem espera que o apoie em face dum endurecimento da contestação, porque sabe que mais e maior violência por parte das forças policiais será necessária em breve para impedir uma degradação das relações de subordinação económica e social que poderá ser fatal para o sistema vigente.

Mas, qualquer estratégia que assente no incentivo à polarização social e radicalização do confronto é extremamente arriscada, porque difícil de controlar e potenciadora de instabilidade política, económica e social. É por isso particularmente incompreensível quando patrocinada por um governo, que por definição é quem tem mais meios de controlo social, a não ser quando este se sente numa situação de extrema fragilidade, e desesperado por se manter no Poder. Veremos o que se passará no próximo dia 27 de Novembro, a quando das manifestações contra a aprovação final do orçamento de estado para 2013.

23/11/12

Já todos atirámos uma pedra

o meu artigo no i de quinta-feira. clicar aqui.

A propósito de Gaza e da Síria — um post do João Bernardo para o Vias de Facto

Acabo de receber o seguinte post do João Bernardo que mo propõe para publicação no Vias de Facto. Aqui fica, pois, o seu contributo, que não podia ser mais oportuno e muito me apraz publicar.


O Passa Palavra publicou hoje o último artigo de uma série cuja redacção me fez ressuscitar do reino dos mortos. Pretendi dar elementos para desmontar o mito da culpabilidade alemã e no artigo de hoje exponho a forma como, durante a segunda guerra mundial, os governos e os aparelhos militares aliados fecharam os olhos perante o genocídio dos judeus cometido pelas autoridades do Terceiro Reich. Fecharam os olhos e as fronteiras e outras coisas mais. Este artigo de certo modo completa outro que escrevi há dois anos e meio, intitulado «De perseguidos a perseguidores: a lição do sionismo». Lembro-me de que o Vias de Facto chamou a atenção para esse artigo e outros sites portugueses fizeram o mesmo, tal como o fizeram alguns sites brasileiros. O artigo foi ainda publicado em dois ou três sites de outros países da América Latina, que o traduziram para espanhol, e foi divulgado em inglês por sites britânicos. Se estou a estofar assim as minhas credenciais anti-sionistas é porque abordar certos assuntos nesta época do politicamente correcto é como pisar ovos, ou como dizer palavrões há três séculos atrás em Salem. Mas porquê tantas precauções?

Nos últimos dias a esquerda, um pouco por todo o mundo, tem-se mobilizado em apoio à população de Gaza, vítima de mais um ataque do militarismo sionista. Até nestas montanhas da América do Sul presenciei ontem um pequeno comício de apoio a Gaza. E ainda bem. Todos os pedacinhos de solidariedade serão úteis.

No entanto, perto de Gaza, do outro lado das fronteiras, há uma população que sofre há bastante tempo um ataque continuado e muitíssimo mais mortífero, provocado não pelos descendentes de um ocupante sobre os habitantes originários, mas por um governo sobre o seu próprio povo. Refiro-me aos sírios, claro, e ao governo de Bashar al-Assad. E apesar disto não vejo a generalidade da esquerda, em lugar nenhum do mundo, manifestar indignação ou sequer incómodo. Pelo contrário, quando não aprova explicitamente a actuação do governo sírio reconhece sotto voce que é óptimo o que ele está a fazer. É certo que entre os insurrectos sírios há salafistas e outros fanáticos, e a esquerda prefere, em princípio, o laicismo do partido Ba’ath. Digo em princípio, porque esquece esse detalhe quando decide apoiar o governo do Irão. Mas que garantia temos nós de que não haja também em Gaza fanáticos religiosos? Aliás, sabemos perfeitamente que os há, e não é isto que nos faz hesitar um segundo em apoiar a população de Gaza contra os bombardeamentos israelitas. As razões da generalidade da esquerda são outras.

A generalidade da esquerda apoia Bashar al-Assad e os seus aviões, as suas bombas, os seus soldados e os seus torcionários porque eles se opõem ao governo dos Estados Unidos. O que me faz logicamente desconfiar que se, por uma qualquer reviravolta, o Hamas seguisse amanhã em Gaza uma política favorável aos Estados Unidos e o governo israelita se tivesse zangado com Obama, seria Israel e não Gaza que aquela esquerda estaria a apoiar. Quando os regimes soviéticos se desagregaram e a guerra fria terminou conjecturei que a esquerda, perdida a razão para defender um dos lados, abandonaria os critérios geopolíticos e regressaria aos critérios de classe que originariamente a haviam caracterizado. Que ingenuidade a minha! Essa esquerda adoptava uma linha geopolítica não porque amasse a União Soviética, ou não fundamentalmente por esse motivo, mas porque era intrínsecamente nacionalista e só nestes termos conseguia pensar as situações. E assim continua a ser, mesmo com a geopolítica manca que agora se lhe depara, em que existe apenas um lado para odiar e nenhum lado para venerar.

Um regime que se afirme contrário aos Estados Unidos pode chacinar dezenas de milhares dos seus cidadãos com o aplauso ou a indiferença da mesma esquerda capaz de verter lágrimas de indignação quando dezenas de pessoas de outro povo são mortas por um governo aliado dos Estados Unidos. Futuro róseo o nosso, se alguma vez nos revoltarmos contra governantes que não contem com o apoio norte-americano.

21/11/12

Sobre "a ideia de matar provisoriamente uma vizinha com quem embirro": excerto de um mail do João Bernardo ao signatário deste post comentando as actualidades nacionais…


…e podendo ser lido como resumo e balanço de muito do que continua a ser necessário dizer e repetir sobre o nacionalismo (contra-)revolucionário, a aposta na implosão da zona euro e na desagregação da UE, o irracionalismo vanguardista e o "ódio à democracia" — bem como a cumplicidade que encontra por parte de "belas almas" patrióticas de todos os matizes — que boa parte da "esquerda da esquerda" regional tem propagandeado, com destque, mas sem exclusivo, para a que pertence à área do PCP e dos seus "companheiros de jornada".

Penso que as pessoas não têm a mínima percepção de que um capitalismo de Estado pressupõe um quadro nacionalista, pelo menos a nível económico, com todas as inviabilidades e distorções que isso implica. E talvez de tanto ouvirem dizer que o Partido Comunista estava vendido aos soviéticos e era traidor à pátria ignorem que é o mais patriótico dos partidos portugueses, desonra lhe seja feita.

Enquanto isso, nas hostes dos indignados discute-se se é bom ou mau atirar pedradas aos polícias, parecendo-me a mim que uma maioria acha que é mau porque é contra o humanismo e o pacifismo. Ao mesmo tempo leio pessoas a escreverem que, com a carga policial de 14 de Novembro, vivemos em Portugal sob uma ditadura como a do Pinochet e que é preciso reclamar ao Provedor de Justiça. Aparentemente não se dão conta da contradição nos termos.

Entretanto, há dias li um comentador no Vias de Facto que propunha que abandonássemos provisoriamente o euro. Isso deu-me a ideia de matar provisoriamente uma vizinha com quem embirro. Depois se verá.

João Bernardo (20 de Novembro de 2012)