A direita vai ser chamada a governar depois de a coligação ter conseguido uma vitória eleitoral que, um mês atrás, poucos considerariam possível. Existe uma maioria de esquerda no Parlamento mas, a menos que alguma coisa mude, será a direita minoritária a governar. Há no País uma maioria política contra a austeridade que se arrisca a não ser traduzida numa maioria política de Governo. Os cidadãos manifestaram a sua vontade de mudar a política e de colocar um ponto final na austeridade. Fizeram-no através da dispersão de votos num grupo de forças de esquerda. PS+BE+CDU somam mais de 50% dos votos e elegeram mais de 50% dos deputados. Os actores políticos, tudo o indica, tenderão a ignorar essa vontade. Já
aqui tinha previsto que as coisas se iam passar desta maneira. A História da nossa democracia facilita este tipo de conclusão.
O inenarrável inquilino de S.Bento, com as atitudes de pequeno chefe partidário, está a forçar para que.a única solução seja um Governo da coligação de direita. A sua comunicação ao País para esclarecer que não considera uma opção aceitável um Governo de esquerda - invocando os espantalhos da NATO e do Euro/UE - foram um momento de uma enorme gravidade democrática. Ter-lhe-á faltado coragem para avisar previamente os eleitores que havia candidatos de primeira - os que são bons para governar - e de segunda, os outros, os que não o podem fazer. Triste.
As negociações que se iniciaram ontem entre PS e PCP podem ajudar a escrever esta História com outro epílogo. Vamos a ver como as coisas evoluem e que caminhos se irão percorrer para que tudo não acabe como habitualmente: com o PS a viabilizar, pela abstenção, um Governo da direita e a preparar dessa forma, quer o seu caminho para o purgatório, quer o caminho da direita para a maioria absoluta. O PS tem um caminho estreito, e conhecido, para percorrer e assegurar a sua futura irrelevância. Vera Jardim já o descreveu com a clareza de um
vidente: viabilizar um Governo da direitas, capaz de continuar a política de austeridade até aqui percorrida e por estes dias tão elogiada pelos nossos "parceiros" europeus.
No passado domingo o BE conseguiu um resultado que quase triplicou o anterior. A campanha determinou este excelente resultado. Sobretudo, acho eu, a postura não sectária adoptada pela líder - particularmente visível no debate com António Costa - e uma maior disponibilidade, pelo menos retórica, veremos agora, para o compromisso e para a governação.
Catarina Martins não fechou a porta a um entendimento com o PS - tendo no entanto referido as linhas vermelhas - uma postura considerada correcta por parte do eleitorado que varia entre o PS e o BE e que terá permitido perceber o BE como um parceiro para as soluções e não apenas um instrumento de protesto.
A CDU ficou aquém do que se esperava. Julgo que a emergência de um BE mais dialogante com o PS a penalizou, como seria, aliás, de esperar. Mas as posições sobre a UE e o Euro - muito explicitamente assumidas, apesar de a maioria da população manifestar pouca simpatia por essas posições - e o excesso de "tempo" dedicado ao PS na sua argumentação, penalizaram muito os comunistas. Julgo que uma rápida leitura poítica do resultado, do perigo de isolamento político, estarão a determinar a célere resposta do PCP na disponibilidade para viabilizarem um Governo do PS.
PCP e BE, no seu conjunto, não ultrapassam, no entanto, a barreira dos vinte por cento de votos.
Mas, o que me importa referir é o péssimo resultado do PS. Um resultado que parecia impensável no ínicío de Setembro mas que, há medida que o tempo foi passando, se tornou cada dia mais provável. Não parece que as razões para este resultado possam ser encontradas, nem na péssima campanha eleitoral, nem na aparente inadequação de Costa ao papel de candidato em campanha, que manifestamente não faz o seu estilo. Admito que o processo de "assalto ao poder" segurista protagonizado por Costa tenha causado as suas mossas.
O que penalizou o PS foi, como já tinha defendido antes das eleições, a sua colagem ao projecto da direita. O PS apresentou-se nestas eleições com um projecto político construído no quadro da austeridade imposta pelas instituições europeias. Este facto retirou-lhe grande parte da capacidade para se diferenciar da política da direita. Aqui, como acontecera recentemente em Inglaterra com o Labour de Ed Milliband, esta estratégia de mimetizar as políticas da direita acrescentando-lhe a "dimensão social perdida", uma espécie de projecto humanizador do neoliberalismo vigente, revelou-se um fiasco. Contrariamente ao que se escreveu por aí, os eleitores não penalizaram uma deriva esquerdista do PS, que não existiu, mas apenas a sua continuada deriva para o centro e para a direita.
Melhor do que ninguém, Ricardo Paes Mamede (RPM), socorreu-se dos
números para mostrar uma tendência pesada na evolução das votações socialistas entre 2005 e 2015: perda de mais de 850 mil eleitores. Num período em que abdicou de construir um projecto político de natureza social-democrata, que visasse, tão somente, diminuir a desigualdade, melhorar a democracia, estimulando a participação política, e defender os valores do trabalho e os serviços públicos, o PS viu a sua base de votantes emagrecer significativamente. Pode-se concluir que em 2011 terá havido uma transferência de votos directamente do PS para o PSD, mas nestas eleições esses votos não recuperados foram-no para a abstenção - a tal que esteve para ser extraordinariamente baixa e se revelou a mais alta em legislativas - já que a direita perdeu mais de 700 mil votos no mesmo período.
Esta degradação da votação no PS tem uma consequências; tal como referido por RPM ela permite à direita ganhar eleições com cada vez menos votos. Além desta consequência este facto legitima a retirada de uma conclusão política : apesar desta erosão do PS, a esquerda à sua esquerda não consegue ultrapassar a barreira dos 20%. A tese da reconfiguração da esquerda, que permitira trocar as posições relativas do PS e do PCP/BE, não se concretiza, não adianta à esquerda, e torna mais fácil à direita ganhar eleições ainda que sem maioria absoluta. Desde o 25 de Abril que a esquerda do PS se foi confinando a um universo próximo dos 20% dos votos. A única reconfiguração que se tem verificado é entre o BE e a CDU.
Quando esses votos estiveram todos concentrados na mesma força política - PCP entre 1975 e 1987- as representações parlamentares chegaram à meia centena de deputados (clicar no gráfico abaixo), sendo que eram todos eleitos pelo PCP e pelas suas coligações (existiu apenas um deputado da UDP a assinalar a hegemonia comunista). Mas, com a diminuição dos resultados e o aparecimento do BE existiu uma maior divisão dos votos e dos deputados e uma redução do número de deputados eleitos.
As flutuações verificadas nos resultados do PS não parece reflectirem-se directamente nos resultados obtidos á sua esquerda. A conclusão - que é tirada há décadas - de que o definhamento do PS se traduzirá automaticamente num crescimento do PCP e do Bloco, carece de rigor.
Parece pois que resta uma única alternativa para sair deste atoleiro em que o País está metido. Um Governo do PS com apoio do BE e da CDU ou, em alternativa, um Governo do PS+CDU+BE. Um Governo que execute um programa de matriz social-democrata comprometido com a defesa dos serviços públicos - com destaque para a Escola Pública, o Serviço Nacional de Saúde e uma Política de Habitação inclusiva - capaz de promover a nacionalização dos serviços que estão a funcionar mal nas mãos de privados, como se propõe fazer Corbyn em Inglaterra relativamente aos caminhos de ferro, e que promova uma diminuição importante da desigualdade, devolvendo ao factor trabalho uma parte da riqueza que lhe foi retirada. Um Governo comprometido com a União Europeia e determinado a permanecer no Euro, mas que irá lutar, com todos os disponíveis internacionalmente, para alterar as políticas europeias a favor dos cidadãos e dos Estados, deixando de servir apenas e só os interesses das empresas, financeiras e outras. Um governo comprometido com o desarmamento internacional, a defesa da paz e a eliminação dos conflitos.
Um projecto assim não é apenas difícil de engolir para o PS. O PS de centro direita que tem governado durante décadas não é suficiente para viabilizar este projecto. É necessário recuperar e modernizar a sua matriz social-democrata, um esforço que não é pequeno. À esquerda ver-se-á quem não recorrerá ao Tratado Orçamental e ao Euro para torcer o nariz a uma efectiva participação no Governo. Não foi por acaso que o militante do PSD que ocupa S.Bento referia a NATO e o Euro para separar os bons dos maus. Estava ele, empenhado e militante, a avivar as trincheiras que desde sempre legitimam a desunião na esquerda.