29/05/14
Jorge Bateira pede meças a Marine Le Pen
por
Miguel Serras Pereira
Leiam as declarações de Marine Le Pen, que estipula, contra a ameaça de uma Europa federal, a frente comum dos "patriotas de esquerda" e dos "patriotas de direita, transcritas neste retrato seu publicado pelo Nouvel Obs; comparem-nas com as de Jorge Bateira nesta sua crónica, e, por fim, se não tiverem outro passatempo mais divertido, tentem responder à seguinte pergunta: Qual dos dois é mais de "esquerda" — e qual dos dois é mais "patriota"? A "deles" ou o "nosso"?
27/05/14
Causas e consequências da desigualdade
por
Pedro Viana
Uma das características mais estruturais, ou inevitável consequência, do sistema capitalista é a existência de desigualdades. De modo mais óbvio, no rendimento monetário e na riqueza (i.e. capital) que cada pessoa tem à sua disposição, e que se reflecte na sua capacidade para influenciar as condições materiais em que vive. Mas também na capacidade de influência sobre as decisões que a afectam. Recentemente, o livro escrito por Thomas Piketty, Capital no Século XXI, relançou o debate público sobre as origens, desenvolvimento e consequências da desigualdade (de rendimentos e riqueza acumulada) no seio do sistema capitalista. De tal modo, que a revista Science resolveu incluir na sua última edição uma série de artigos sobre o tema, inclusivé um excelente escrito por Thomas Piketty em colaboração com Emmanuel Saez. Ao contrário do que é habitual, todos os artigos estão acessíveis de modo gratuito, mas apenas durante um mês após a publicação (a 23 de Maio). Entre estes podem-se encontrar artigos muito interessantes sobre as origens históricas da desigualdade, aqui e aqui.
25/05/14
Sobre a subida da extrema-direita a nível europeu. E sobre a tese de que a esquerda deveria captar simpatias a partir da fusão do social com o nacional
por
João Valente Aguiar
Excerto de um texto do colectivo Passa Palavra de 4 de Março passado, mas que me parece ter indicações preciosas para se perceber os riscos do nacionalismo, à esquerda e à direita, que ensombram a Europa.
«A coberto de uma ambivalência ou falsa neutralidade política, as propostas de saída da zona euro e de reforço das soberanias nacionais consegue, reconhecendo as devidas diferenças, criar pontos em comum entre a extrema-direita e uma certa esquerda e extrema-esquerda. E qualquer ponto em comum com a extrema-direita, ainda para mais com esta dimensão, é por si só perigoso. A história não se repete porque quando os acontecimentos sucedem de novo eles assumem outras formas. Mas o facto de essas formas sucessivas obedecerem sempre a certas características invariantes indica o estabelecimento de regras. Ora, em todos os exemplos históricos de conjugação do social com o nacional, sem excepção, foi a extrema-direita quem beneficiou, com resultados trágicos para a esquerda.
Em Itália, na Primavera de 1921, Gramsci procurou obter a colaboração de D’Annunzio e dos seus inúmeros seguidores na ala radical do fascismo, dando assim seguimento a uma campanha que ao longo de Janeiro e Fevereiro daquele ano havia conduzido no seu jornal L’Ordine Nuovo, em que se havia esforçado por agravar as fricções existentes entre os seguidores de Mussolini e os legionários de D’Annunzio e atrair estes últimos para o campo dos comunistas. Ainda no Verão de 1921 havia artigos em L’Ordine Nuovo a insistir no mesmo propósito, e catorze anos depois, na série de palestras que proferiu em Moscovo perante imigrados italianos, Togliatti repetiu que o Partido Comunista deveria ter sido capaz de disputar a Mussolini os legionários de D’Annunzio. Que ilusões! Em Maio de 1925, já depois de decretada a fascização do Estado, quando o antigo sindicalista revolucionário Edmondo Rossoni, chefe dos sindicatos fascistas, interrompeu em pleno parlamento um discurso de Gramsci para, a propósito do problema da emigração, observar: «Por isso a nação deve expandir-se no interesse do proletário», o dirigente comunista viu então erguer-se contra ele a política de convergência do social com o nacional que quatro anos antes imaginara que poderia convocar em seu favor. O único resultado dessa política foi abrir a esquerda social à penetração massiva da direita nacional.
Foi precisamente ao mesmo resultado que levou a política proseguida pelo Partido Comunista Alemão desde 1923 até 1933, quando convergia com os nacionais-socialistas no ataque à social-democracia. «Nacional e social são duas concepções idênticas», exclamou Hitler num discurso proferido nos primeiros anos da década de 1920. «Ser social significa edificar o Estado e a comunidade do povo […]». Entretanto iam-se tornando cada vez mais estreitas as malhas da rede ideológica e prática tecida entre os extremos do espectro político, e que Jean Pierre Faye tão atentamente estudou, até que no último ano da república de Weimar as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as SA, as milícias nacional-socialistas, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações. Hitler não mentiu quando, já durante a guerra, recordou aos seus comensais que na época da pancadaria nas ruas 90% do partido nacional-socialista era composto por elementos de esquerda. A outra faceta desta promiscuidade política foi a elevada instabilidade das filiações no Partido Comunista Alemão, onde entre 1930 e 1932 os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros. Enquanto o social imaginava que absorvia o nacional, o nacional-socialismo estava a construir-se.
«Desde as dezenas de milhares de militantes do Partido Comunista Alemão que aderiram às SA, até à passagem mais recente do eleitorado do Partido Comunista Francês para a Frente Nacional, muitos têm sido os exemplos de translação de alguns sectores da esquerda para o campo do fascismo», escreveu João Valente Aguiar na 2ª parte do artigo «Os teatros do tempo político», em 19 de Fevereiro de 2013. Nem sequer se trata de questões obscuras, que escapem à atenção dos nossos ciclistas, porque no referido artigo de 27 de Janeiro deste ano João Rodrigues, depois de destacar o «enraizamento popular» da Frente Nacional, afirma que «metade da classe operária declara votar FN». E não lhe ocorre, nem a ele nem aos outros, indagar por que motivo estas deslocações políticas se operam sempre em benefício da extrema-direita e não da esquerda.»
Enganam-se os que à esquerda pretendem concorrer com a extrema-direita mobilizando slogans e objectivos políticos muito semelhantes. Podem ter bons resultados eleitorais hoje, mas quando os temas da nação e da soberania nacional se tornam o senso comum das populações, é sempre a extrema-direita que vence. No actual contexto, mobilizar militantes, simpatizantes e votantes em torno de slogans isolacionistas e omitir o património político comum que une trabalhadores e trabalhadoras de todos os países, só dará força às potencialidades de crescimento de forças fascistas. Sendo assim, os resultados das forças promotoras de um ideário anti-europeu da CDU (em combinação com os de MRPP, MAS, MPT e PNR podem ultrapassar os 20%!) representam o papel da extrema-direita em Portugal: criar um campo político organizado numa base estatista, contrária a qualquer forma de democracia europeia e aspirar a um desmantelamento nacionalista da União Económica e Monetária.
«A coberto de uma ambivalência ou falsa neutralidade política, as propostas de saída da zona euro e de reforço das soberanias nacionais consegue, reconhecendo as devidas diferenças, criar pontos em comum entre a extrema-direita e uma certa esquerda e extrema-esquerda. E qualquer ponto em comum com a extrema-direita, ainda para mais com esta dimensão, é por si só perigoso. A história não se repete porque quando os acontecimentos sucedem de novo eles assumem outras formas. Mas o facto de essas formas sucessivas obedecerem sempre a certas características invariantes indica o estabelecimento de regras. Ora, em todos os exemplos históricos de conjugação do social com o nacional, sem excepção, foi a extrema-direita quem beneficiou, com resultados trágicos para a esquerda.
Em Itália, na Primavera de 1921, Gramsci procurou obter a colaboração de D’Annunzio e dos seus inúmeros seguidores na ala radical do fascismo, dando assim seguimento a uma campanha que ao longo de Janeiro e Fevereiro daquele ano havia conduzido no seu jornal L’Ordine Nuovo, em que se havia esforçado por agravar as fricções existentes entre os seguidores de Mussolini e os legionários de D’Annunzio e atrair estes últimos para o campo dos comunistas. Ainda no Verão de 1921 havia artigos em L’Ordine Nuovo a insistir no mesmo propósito, e catorze anos depois, na série de palestras que proferiu em Moscovo perante imigrados italianos, Togliatti repetiu que o Partido Comunista deveria ter sido capaz de disputar a Mussolini os legionários de D’Annunzio. Que ilusões! Em Maio de 1925, já depois de decretada a fascização do Estado, quando o antigo sindicalista revolucionário Edmondo Rossoni, chefe dos sindicatos fascistas, interrompeu em pleno parlamento um discurso de Gramsci para, a propósito do problema da emigração, observar: «Por isso a nação deve expandir-se no interesse do proletário», o dirigente comunista viu então erguer-se contra ele a política de convergência do social com o nacional que quatro anos antes imaginara que poderia convocar em seu favor. O único resultado dessa política foi abrir a esquerda social à penetração massiva da direita nacional.
Foi precisamente ao mesmo resultado que levou a política proseguida pelo Partido Comunista Alemão desde 1923 até 1933, quando convergia com os nacionais-socialistas no ataque à social-democracia. «Nacional e social são duas concepções idênticas», exclamou Hitler num discurso proferido nos primeiros anos da década de 1920. «Ser social significa edificar o Estado e a comunidade do povo […]». Entretanto iam-se tornando cada vez mais estreitas as malhas da rede ideológica e prática tecida entre os extremos do espectro político, e que Jean Pierre Faye tão atentamente estudou, até que no último ano da república de Weimar as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as SA, as milícias nacional-socialistas, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações. Hitler não mentiu quando, já durante a guerra, recordou aos seus comensais que na época da pancadaria nas ruas 90% do partido nacional-socialista era composto por elementos de esquerda. A outra faceta desta promiscuidade política foi a elevada instabilidade das filiações no Partido Comunista Alemão, onde entre 1930 e 1932 os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros. Enquanto o social imaginava que absorvia o nacional, o nacional-socialismo estava a construir-se.
Enganam-se os que à esquerda pretendem concorrer com a extrema-direita mobilizando slogans e objectivos políticos muito semelhantes. Podem ter bons resultados eleitorais hoje, mas quando os temas da nação e da soberania nacional se tornam o senso comum das populações, é sempre a extrema-direita que vence. No actual contexto, mobilizar militantes, simpatizantes e votantes em torno de slogans isolacionistas e omitir o património político comum que une trabalhadores e trabalhadoras de todos os países, só dará força às potencialidades de crescimento de forças fascistas. Sendo assim, os resultados das forças promotoras de um ideário anti-europeu da CDU (em combinação com os de MRPP, MAS, MPT e PNR podem ultrapassar os 20%!) representam o papel da extrema-direita em Portugal: criar um campo político organizado numa base estatista, contrária a qualquer forma de democracia europeia e aspirar a um desmantelamento nacionalista da União Económica e Monetária.
23/05/14
Reflexão pré-eleitoral e apelo (condicional) ao voto
por
Miguel Serras Pereira
Como acho que quem quer o mais quer o menos, embora sem nutrir ilusões sobre a democraticidade dos regimes representativos nem abandonar a participação igualitária nas decisões como critério da única democracia por que vale a pena lutar, julgo que, em princípio, o voto , ainda que em branco, nas próximas eleições europeias é preferível à abstenção. Num período de ofensiva oligárquica contra os direitos e liberdades constitucionais e de consolidação dos dispositivos económicos e políticos de exploração e expropriação dos cidadãos comuns, não parece aconselhável desprezarmos por completo as garantias defensivas — por insuficientes que sejam — do controle eleitoral dos governos e do sufrágio universal.
Mas julgo também dever introduzir uma reserva neste meu apelo ao voto. Com efeito, a utilidade que lhe atribuo será anulada ou inverter-se-á no seu contrário se o voto servir para reforçar a posição daqueles, nomeadamente o PSD/CDS e o PS, que, a pretexto da defesa da UE, têm vindo com as políticas austeritárias dos últimos anos, e desde muito antes delas, a defender a política que agora encontra expressão condensada e privilegiada num Tratado Orçamental, que, como escreve Alfredo Barroso, “implica necessariamente uma forma de austeridade perpétua, sobretudo para os países periféricos da União Europeia, aumenta acentuadamente o risco de explosão da Zona Euro e conduz inevitavelmente a uma retração brutal da democracia na Europa, que pode ser mortal, ao agravar impiedosamente o défice democrático de que sofre há décadas a União Europeia”.
Do mesmo modo, e segundo a mesma lógica, será preferível, apesar de tudo, a abstenção ao voto no PCP, que aposta directa e completamente na desagregação da União Europeia, na "explosão da Zona Euro", em alinhamentos geoestratégicos monstruosos e que recusa o federalismo como horizonte e via da democratização, em termos que correspondem à "nacionalização" da austeridade, ainda que à custa do seu reforço e peso sobre a grande maioria dos cidadãos portugueses. Votar no PCP — ou, para o efeito, na extrema-esquerda "anti-europeísta" — é simplesmente optar por uma via alternativa e mais musculada em todos os males que Alfredo Barroso denuncia: perpetuação da austeridade, explosão da Zona Euro, "retracção brutal", senão "mortal" das liberdades e direitos democráticos na Europa e no mundo.
22/05/14
Cenas da crise da democracia burguesa
por
Miguel Madeira
Neste momento, estão a decorrer golpes militares na Tailândia e na Líbia.
Se na Líbia, a "democracia parlamentar" nunca foi para levar a sério (o "parlamento" eleito há uns tempos nunca mandou nada), já o caso tailandês demonstra que o "dinheiro velho" nem sequer admite perder eleições para o "dinheiro novo" (como seria se alguma vez ganhasse um partido de esquerda?).
Mas mais que um golpe aqui ou ali, parece-me haver sinais que uma ideologia anti-democrática parece estar a levantar cabeça - na Tailândia, a oposição (bem, a partir de hoje se calhar já não é oposição) diz abertamente que é a favor de um governo não-eleito; a "comunidade internacional", perante golpes de estado, já não parece emitir aquelas condenações verbais que fazia há uns anos (parece estar a voltar-se aos tempos da Guerra Fria e à linha de que não há problema em apoiar ditadores, desde que sejam "nossos"); e mesmo entre as elites intelectuais dos países ricos ideias anti-democráticas estão a entrar na moda.
Se na Líbia, a "democracia parlamentar" nunca foi para levar a sério (o "parlamento" eleito há uns tempos nunca mandou nada), já o caso tailandês demonstra que o "dinheiro velho" nem sequer admite perder eleições para o "dinheiro novo" (como seria se alguma vez ganhasse um partido de esquerda?).
Mas mais que um golpe aqui ou ali, parece-me haver sinais que uma ideologia anti-democrática parece estar a levantar cabeça - na Tailândia, a oposição (bem, a partir de hoje se calhar já não é oposição) diz abertamente que é a favor de um governo não-eleito; a "comunidade internacional", perante golpes de estado, já não parece emitir aquelas condenações verbais que fazia há uns anos (parece estar a voltar-se aos tempos da Guerra Fria e à linha de que não há problema em apoiar ditadores, desde que sejam "nossos"); e mesmo entre as elites intelectuais dos países ricos ideias anti-democráticas estão a entrar na moda.
Um Esclarecimento do João Bernardo: "Ninguém é obrigado a ler o João Bernardo. Mas também ninguém é obrigado a criticar-me. O que não se deve é criticar-me sem me ler nem conhecer a minha actividade militante…"
por
Miguel Serras Pereira
Na sequência da publicação pelo Pedro Viana do post "O Movimento Zapatista", o João Valente Aguiar e eu recebemos do João Bernardo uma mensagem pessoal, que lhe pedimos autorização para divulgar e a seguir transcrevemos. Com efeito, parece-nos indispensável fazê-lo a fim de corrigir certas distorções factuais graves e de esclarecer alguns pontos prévios, sem o que continuar a discussão não faz sentido (JVA e MSP).
Caros Miguel e João, valerá a pena escrever isto?
Ninguém é obrigado a ler o João Bernardo. Mas também ninguém é obrigado a criticar-me. O que não se deve é criticar-me sem me ler nem conhecer a minha actividade militante. Senão diz-se o contrário da verdade, e a quem isso interessa? Para quê caluniar-me? E logo em Portugal, um país que não existe.
Colaboro no site Passa Palavra onde foi publicado o Manifesto aqui em discussão. Entre os numerosos artigos que dedicámos ao neozapatismo e a Chiapas, destaco dois. Um de Alex Hilsenbeck, um profundo conhecedor do tema, «Zapatismo: Entre a guerra de palavras e a guerra pela palavra» e outro de Leo Vinicius, «O neozapatismo e os velhos meios de produção», de grande relevância para as questões que aqui foram levantadas.
Quanto ao João Bernardo, desde que me afastei do leninismo, em 1972-1973, tenho procurado conceptualizar as condições de uma luta autogerida, um esforço teórico cujo primeiro fruto foi o livro Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista, editado em Portugal em 1975 e em Espanha dois anos depois. As minhas posições quanto ao marxismo situam-se nos antípodas do que foi repetidamente afirmado por Pedro Viana, como deixei claro desde 1977 com os três volumes do Marx Crítico de Marx. Nesses anos a minha militância em prol da autonomia e do anti-autoritarismo deixou traços no jornal Combate, que se encontra agora na internet. Como o Miguel conhece tão bem como eu a experiência do Combate, passo adiante.
No Brasil escrevi centenas e centenas de páginas criticando o que denomino marxismo das forças produtivas, a tal ponto que neste país a oposição que estabeleço entre marxismo das relações sociais e marxismo das forças produtivas tornou-se de uso corrente em vários meios. O meu livro Economia dos Conflitos Sociais, onde expus detalhadamente um modelo integrado que cobre tanto as operações económicas do capital como a economia dos processos revolucionários, depois de duas edições em papel está agora na internet à disposição de quem o quiser ler. Mas se não tiverem paciência para isso, há um curtíssimo texto intitulado «A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas», escrito a pedido de uma escola autogerida, entretanto encerrada, e que tem servido para numerosos cursos de formação militante, no Brasil e ainda em África. Encontra-se facilmente na internet em vários lugares.
Não seria necessário tanto trabalho, bastaria ler a 3ª parte do Manifesto que suscitou todo este arrazoado , precisamente a parte dedicada às questões de organização. Mas nem sequer isso foi feito.
Na vida militante habituamo-nos às calúnias e às màs-vontades, faz parte, ninguém se incomoda. Mas ser acusado de pensar exactamente o contrário do que penso e de agir de maneira exactamente contrária àquela que prossigo, isto não me sucedia desde os tempos do CMLP do Heduíno, em 1968-1969. É lastimável que eu tenha agora de proceder como se não tivesse escrito nada e como se nunca tivesse militado pela autonomia e contra o autoritarismo. E com que utilidade? Os leitores estarão interessados em ler ou apenas em zurzir no que não conhecem?
Abraços do
João Bernardo
Sobre a abundância
por
Miguel Madeira
Ali em baixo, o João Valente Aguiar escreve que "[n]ão existe um exemplo de luta social – reivindicativa e/ou de autogestão – que alguma vez tenha colocado como objectivo a redução da massa de bens e serviços a disponibilizar à população".
Será que todas as lutas pela redução do horário de trabalho (a começar pela que deu origem ao 1º de maio) não contarão? Afinal, para um dado nível de produtividade e de população empregada, menor horário de trabalho implica menor produção (logo menos "bens e serviços a disponibilizar a população").
Possíveis objeções:
a) mesmo que a redução do horário de trabalho implique menos produção, reduzir a produção não é o objetivo da luta; o objetivo é ter mais tempo de lazer, sendo a menor produção simplesmente um resultado colateral. Mas creio que o mesmo se passa com todos os críticos da "abundância" - acho que ninguém considera reduzir a "abundância" como um fim em si mesmo; suponho que todos os criticos da "abundância" vêem a redução da abudância, não como um bem, mas como um custo que vale a pena suportar para atingir outras coisas que, essas sim, são consideradas como positivas (ou mais tempo livre, ou preservação dos recursos naturais, ou mais autonomia/criatividade do trabalhador no processo de produção, ou outra coisa do género)
b) por vezes a redução do horário de trabalho é apresentada como uma medida para reduzir o desemprego - se passarmos todos a trabalhar menos, haverá mais gente a trabalhar. Efetivamente nesse caso a redução do horário de trabalho não levaria a uma redução da produção (até poderia levar ao seu aumento, se a diminuição do desemprego levasse a um aumento da procura); no entanto, não me parece que as lutas pela redução do horário de trabalho venham sempre (ou mesmo na maioria dos casos) enquandradas num programa de combate ao desemprego (nem me admirava nada que seja exatamente nas situaçãoes de pleno emprego que haja mais greves pela redução do horário de trabalho ou pelo aumento dos dias de férias, mas isto já é um palpite meu)
Será que todas as lutas pela redução do horário de trabalho (a começar pela que deu origem ao 1º de maio) não contarão? Afinal, para um dado nível de produtividade e de população empregada, menor horário de trabalho implica menor produção (logo menos "bens e serviços a disponibilizar a população").
Possíveis objeções:
a) mesmo que a redução do horário de trabalho implique menos produção, reduzir a produção não é o objetivo da luta; o objetivo é ter mais tempo de lazer, sendo a menor produção simplesmente um resultado colateral. Mas creio que o mesmo se passa com todos os críticos da "abundância" - acho que ninguém considera reduzir a "abundância" como um fim em si mesmo; suponho que todos os criticos da "abundância" vêem a redução da abudância, não como um bem, mas como um custo que vale a pena suportar para atingir outras coisas que, essas sim, são consideradas como positivas (ou mais tempo livre, ou preservação dos recursos naturais, ou mais autonomia/criatividade do trabalhador no processo de produção, ou outra coisa do género)
b) por vezes a redução do horário de trabalho é apresentada como uma medida para reduzir o desemprego - se passarmos todos a trabalhar menos, haverá mais gente a trabalhar. Efetivamente nesse caso a redução do horário de trabalho não levaria a uma redução da produção (até poderia levar ao seu aumento, se a diminuição do desemprego levasse a um aumento da procura); no entanto, não me parece que as lutas pela redução do horário de trabalho venham sempre (ou mesmo na maioria dos casos) enquandradas num programa de combate ao desemprego (nem me admirava nada que seja exatamente nas situaçãoes de pleno emprego que haja mais greves pela redução do horário de trabalho ou pelo aumento dos dias de férias, mas isto já é um palpite meu)
Algumas notas sobre o início do julgamento dos “acontecimentos do Chiado”
por
Diogo Duarte
Um texto de Miguel Carmo
Olá.
O meu julgamento começa amanhã à tarde no Campus de Justiça e prossegue, pelo menos, nas próximas duas quintas-feiras.
O Ministério Público (MP) acusa-me, com base no testemunho de um polícia que assina o Auto de Notícia em anexo, de ter projectado uma cadeira de uma das esplanadas do Chiado sobre uma linha de polícias que na Rua Serpa Pinto protegia a detenção de um manifestante. Não tendo sido identificado durante a manifestação, nem em nenhum outro momento anterior ou posterior, o Auto refere que se fez uso para tal de informações do Núcleo de Informações da PSP, na forma que passo a citar: “trata-se de um indivíduo que é presença habitual neste tipo de manifestações/concentrações, pautando sempre a sua conduta de forma agressiva para com as Forças de Autoridade”. Ainda não é certo se este julgamento servirá para esclarecer a qualidade de polícia política que a PSP parece requerer para si no documento citado.
Passaram agora mais de dois anos sobre os “acontecimentos do Chiado” e a memória dilui-se. Nada que a Internet e os jornais da altura não reponham num instante. Foi dia de greve geral combativa, com várias manifestações a atravessarem o Chiado em direcção a São Bento. Perante a passagem de uma delas a PSP tem a ideia genial de deter um estivador que vinha rebentando petardos ao longo do percurso. É um homem de meia-idade com um pacemaker, cuja detenção provoca o espanto e reacção imediata dos seus amigos e depois a indignação de toda a manifestação. Foi este o momento inicial de um descontrolo policial que varreu, a vários tempos e intensidades, todo o Chiado até ao Largo de Camões com um balanço final de dezenas de feridos entre manifestantes, jornalistas e transeuntes. Nesse dia temos o Ministro da Administração Interna na televisão a explicar-se e dias depois a ser requerido pelo Bloco de Esquerda para uma audiência parlamentar convocada de urgência para o efeito; temos um inquérito aberto pelo IGAI ao comportamento da PSP, preenchido com declarações de várias pessoas agredidas; e temos o MP a agrupar num mega-processo penal cerca de uma dezena de queixas.
De tudo isto nada reza a história. Macedo é ainda Ministro da Administração Interna, os resultados do IGAI são aparentemente nulos e o MP arquiva todos os processos na fase de instrução, por falta de provas, todos à excepção daquele contra mim. A PSP atacou uma manifestação em dia de greve geral, o Ministro da Administração Interna defende-a e responde politicamente no parlamento; as várias queixas apresentadas contra polícias, tanto no penal como junto do IGAI, são arquivadas e esquecidas, sobrando um processo contra uma pessoa que, como milhares de outras desde o último mandato de Sócrates, têm participado e organizado várias manifestações. É disto que fala, em específico, a ideia de que a história é sempre a história dos vencedores.
Junto algumas ligações de Internet,
As audiências serão sempre às 14h, no 5º Juízo Criminal de Lisboa, 1º Secção (edifício “B” do Campus de Justiça, na Expo)
Agradeço divulgação em blogues e fb pois não os tenho. Que a denúncia seja por ora a nossa arma. Se alguém quiser produzir opinião com mais folêgo sobre esse dia/julgamento posso enviar documentação vária do processo, nomeadamente o despacho de acusação e a nossa contestação.
Abraços e beijinhos
Miguel Carmo
Ligações:
Olá.
O meu julgamento começa amanhã à tarde no Campus de Justiça e prossegue, pelo menos, nas próximas duas quintas-feiras.
O Ministério Público (MP) acusa-me, com base no testemunho de um polícia que assina o Auto de Notícia em anexo, de ter projectado uma cadeira de uma das esplanadas do Chiado sobre uma linha de polícias que na Rua Serpa Pinto protegia a detenção de um manifestante. Não tendo sido identificado durante a manifestação, nem em nenhum outro momento anterior ou posterior, o Auto refere que se fez uso para tal de informações do Núcleo de Informações da PSP, na forma que passo a citar: “trata-se de um indivíduo que é presença habitual neste tipo de manifestações/concentrações, pautando sempre a sua conduta de forma agressiva para com as Forças de Autoridade”. Ainda não é certo se este julgamento servirá para esclarecer a qualidade de polícia política que a PSP parece requerer para si no documento citado.
Passaram agora mais de dois anos sobre os “acontecimentos do Chiado” e a memória dilui-se. Nada que a Internet e os jornais da altura não reponham num instante. Foi dia de greve geral combativa, com várias manifestações a atravessarem o Chiado em direcção a São Bento. Perante a passagem de uma delas a PSP tem a ideia genial de deter um estivador que vinha rebentando petardos ao longo do percurso. É um homem de meia-idade com um pacemaker, cuja detenção provoca o espanto e reacção imediata dos seus amigos e depois a indignação de toda a manifestação. Foi este o momento inicial de um descontrolo policial que varreu, a vários tempos e intensidades, todo o Chiado até ao Largo de Camões com um balanço final de dezenas de feridos entre manifestantes, jornalistas e transeuntes. Nesse dia temos o Ministro da Administração Interna na televisão a explicar-se e dias depois a ser requerido pelo Bloco de Esquerda para uma audiência parlamentar convocada de urgência para o efeito; temos um inquérito aberto pelo IGAI ao comportamento da PSP, preenchido com declarações de várias pessoas agredidas; e temos o MP a agrupar num mega-processo penal cerca de uma dezena de queixas.
De tudo isto nada reza a história. Macedo é ainda Ministro da Administração Interna, os resultados do IGAI são aparentemente nulos e o MP arquiva todos os processos na fase de instrução, por falta de provas, todos à excepção daquele contra mim. A PSP atacou uma manifestação em dia de greve geral, o Ministro da Administração Interna defende-a e responde politicamente no parlamento; as várias queixas apresentadas contra polícias, tanto no penal como junto do IGAI, são arquivadas e esquecidas, sobrando um processo contra uma pessoa que, como milhares de outras desde o último mandato de Sócrates, têm participado e organizado várias manifestações. É disto que fala, em específico, a ideia de que a história é sempre a história dos vencedores.
Junto algumas ligações de Internet,
As audiências serão sempre às 14h, no 5º Juízo Criminal de Lisboa, 1º Secção (edifício “B” do Campus de Justiça, na Expo)
Agradeço divulgação em blogues e fb pois não os tenho. Que a denúncia seja por ora a nossa arma. Se alguém quiser produzir opinião com mais folêgo sobre esse dia/julgamento posso enviar documentação vária do processo, nomeadamente o despacho de acusação e a nossa contestação.
Abraços e beijinhos
Miguel Carmo
Ligações:
http://versaletes.blogspot.pt/2012/03/miguel-macedo-brinca-com-o-fogo_27.html
http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.pt/2012/03/carga-policial-de-22-de-marco-mocao-de.html
http://jsgphoto.blogspot.pt/2012/03/22-de-marco.html
http://passapalavra.info/2012/03/54758
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O movimento Zapatista
por
Pedro Viana
De modo a que a discussão que tem decorrido não fique pelo abstracto, acho que seria relevante conversar sobre um exemplo concreto, potencialmente esclarecedor das diferentes posições em confronto. Esse exemplo é o movimento Zapatista, e o processo transformador por ele desencadeado há 20 anos.
Um dos elementos mais salientes deste processo é a valorização da autonomia e do anti-autoritarismo. Todas as decisões são tomadas de modo democrático, em assembleias onde se procura o consenso. Uma parte significativa da produção é comunal, sendo os trabalhadores quem define as relações sociais de trabalho (e portanto controla os meios de produção). Isto é, para mim, socialismo ou comunismo, no concreto, em construção. E basta-me. Não me interessa se tal processo contribui para o “desenvolvimento histórico” da Humanidade. Dum ponto de vista marxista, provavelmente não, pois tem efectivamente constituído um obstáculo ao desenvolvimento capitalista das “forças produtivas” em Chiapas. Não tenho grandes dúvidas sobre o modo como é visto o movimento Zapatista pelos defensores do “socialismo da abundância”. Mas, preferia dar-lhes a palavra.
Um dos elementos mais salientes deste processo é a valorização da autonomia e do anti-autoritarismo. Todas as decisões são tomadas de modo democrático, em assembleias onde se procura o consenso. Uma parte significativa da produção é comunal, sendo os trabalhadores quem define as relações sociais de trabalho (e portanto controla os meios de produção). Isto é, para mim, socialismo ou comunismo, no concreto, em construção. E basta-me. Não me interessa se tal processo contribui para o “desenvolvimento histórico” da Humanidade. Dum ponto de vista marxista, provavelmente não, pois tem efectivamente constituído um obstáculo ao desenvolvimento capitalista das “forças produtivas” em Chiapas. Não tenho grandes dúvidas sobre o modo como é visto o movimento Zapatista pelos defensores do “socialismo da abundância”. Mas, preferia dar-lhes a palavra.
21/05/14
A esquerda da escassez
por
João Valente Aguiar
Na senda do que neste espaço tem sido abordado a propósito da abundância (ver aqui e aqui), deixo o meu contributo.
A não ser que se considere – erradamente – a abundância como sinónimo de opulência, não vejo como uma política emancipatória não possa considerar a abundância como eixo central. Volto a repetir, a não ser que se veja a abundância como sinónimo de opulência não há razões para descartar a abundância. Claro que uma outra sociedade tem de basear-se na abundância, o que não quer dizer que seja a mesma que ocorre nos centros mais desenvolvidos do capitalismo.
Ora, com o capitalismo, a produção orienta-se para a criação de um mercado que absorva um volume crescente de bens e serviços colocados à disposição. Nesse sentido, parte do surgimento histórico da abundância advém da inserção da instituição mercado no seio das relações de produção capitalistas. Mas, em paralelo, a abundância surge como reivindicação explícita nas lutas dos trabalhadores. Não apenas na generalidade das obras socialistas do século XIX, mas a própria luta reivindicativa implica uma luta pelo acesso a um quinhão da abundância. Quando os trabalhadores lutam por melhores salários, estão a clamar por um maior poder aquisitivo. O mesmo é dizer que reivindicam uma maior parte no acesso à abundância. No caso das lutas em que a autogestão se coloca já não se trata apenas do acesso ao que consideram ser uma parte da abundância de bens e serviços disponíveis mas também, e sobretudo, na determinação de que bens e serviços podem ser fornecidos pelos seus organismos autónomos (comités de fábrica, comissões de trabalhadores, conselhos operários, etc. etc.). Não existe um exemplo de luta social – reivindicativa e/ou de autogestão – que alguma vez tenha colocado como objectivo a redução da massa de bens e serviços a disponibilizar à população.
Aliás, a expansão do mercado de bens de consumo tem uma genealogia partilhada entre, por um lado, a criação da procura pela produção e, por outro lado, as reivindicações operárias. Se se quiser ser rigoroso, no capitalismo uma face não existe sem a outra e foi a constante reivindicação dos trabalhadores por melhores salários ou pela redução do tempo de trabalho que ajudou a dinamizar a expansão do mercado dos bens de consumo.
Dei acima o exemplo de como a luta por melhores salários implica necessariamente uma reivindicação por um maior acesso a bens e serviços de consumo. Mas a luta pela redução do horário de trabalho foi igualmente um potente estímulo económico na reivindicação da abundância. Na medida em que um mesmo ou maior número de bens ou serviços teve de ser produzido num espaço mais curto de tempo, a produtividade do trabalho aumenta. O que acarreta eliminar desperdícios, rentabilizar recursos e qualificar a força de trabalho. Ora, uma força de trabalho mais qualificada não apenas passou a receber salários mais elevados como passou a deter um poder de compra muito maior. É este o engenho da mais-valia relativa: aumentar o rácio de bens produzidos por cada trabalhador, ao mesmo tempo em que este acede a um maior conjunto de bens, mesmo que a taxa de crescimento salarial seja inferior à taxa de crescimento da mais-valia produzida.
Esta dinâmica moderniza o capitalismo mas, em casos extremos como o que sucedeu no período entre 1968 e 75, pode desencadear graves problemas para as classes dominantes. É que se o aumento dos lucros e dos salários podem caminhar num mesmo sentido, mesmo que desafasados, e daí ocorrer um período de relativa paz social, a verdade é que a partir de um determinado ponto cresce a percepção social junto dos trabalhadores de que os bens e serviços (de saúde, alimentares, de lazer, etc.) a que aspiram são ainda assim insuficientes face ao bolo de riqueza que têm criado. É por isso que desde o pós-guerra que as mais importantes lutas sociais ocorrem precisamente fora de contextos de crise económica.
Mesmo recentemente, não é por acaso que, no Brasil a massiva luta pelo acesso a serviços de transportes públicos mais baratos e mais eficientes decorreu no seio de uma economia que tem vindo a crescer quase ininterruptamente nos últimos quinze anos. O mesmo se passou na última década na China onde os salários cresceram, em média, 10% ao ano e onde as lutas reivindicativas têm sido uma constante. É onde e quando os trabalhadores sentem que o seu acesso à abundância crescente está a ser insuficiente, que as lutas reivindicativas mais prosperaram nos últimos 70 anos.
Por outro lado, e para dar um exemplo distinto, não deixa de ser inusitado que, num contexto em que muitos trabalhadores em Portugal justificadamente se queixam de falta de acesso a cuidados de saúde, seja a esquerda anti-consumo que tem a lata de defender um modelo de sociedade que coarctaria ainda mais o acesso das populações à saúde. Sim, porque a saúde é um terreno inserido no plano da abundância. Se se entender a abundância no sentido que abordei acima – campo de redução da exposição das populações a contingências e riscos supra-individuais – então não vejo porque a saúde não esteja contemplada neste plano. Aliás, é a austeridade do actual governo que clama pelo encerramento de recursos (urgências, centros de saúde, exames complementares de diagnóstico, ambulâncias e serviços de emergência, etc.) precisamente a partir da tese de que os serviços públicos estariam numa situação de sobre-consumo por parte das populações.
Espantoso como nestes tempos em que as pessoas andam com imensas dificuldades para aceder a cuidados de saúde, à educação ou a bens essenciais, e é parte da esquerda que quer ampliar o receituário austeritário a níveis exponenciais.
Nas partes do globo em que a mais-valia absoluta impera de uma maneira grotesca e, portanto, onde problemas de fome, de doenças e de calamidades ainda fazem da vida de centenas de milhões de pessoas um autêntico inferno, clamar contra a abundância é clamar contra o acesso de toda essa população ao consumo e, por conseguinte, à abundância.
Nesse sentido, consignar que a abundância não faz parte das cogitações e reivindicações da classe trabalhadora é o resultado de um desconhecimento tremendo da história das classes trabalhadoras. Seria interessante que quem defende a irrelevância da abundância fizesse campanha política junto dos trabalhadores dizendo-lhes que se propõem reduzir o acesso a bens de consumo, a serviços de saúde ou a usufruir tempo de lazer. Repito, abundância não é opulência nem desperdício à la Nero. O acesso a uma determinada abundância (historicamente determinada) representa um processo de redução da exposição humana a contingências supra-individuais.
Em suma, já não bastava o processo de ajustamento definido pela troika andar a reduzir o consumo das famílias (nomeadamente das pertencentes à classe trabalhadora), e certa esquerda ainda acha que o padrão de consumo é uma mera ideologia/ilusão e que, por isso, ainda teria de ser reduzido. Aliás, esta esquerda é ainda pior do que a troika. Para a troika trata-se de reduzir o índice de consumo e de investimento por um determinado período de tempo, até que, limpos os balanços dos bancos e ajustado o mercado às empresas capazes de competir, um novo ciclo económico reactive o crescimento económico. Para esta esquerda, a que alguém com razão chama de socialismo da miséria, o consumo seria uma ilusão perniciosa de capitalistas e publicitários manipuladores, pelo que uma outra sociedade deveria reduzir drasticamente os índices de consumo. No fundo, a perenidade da austeridade é o modelo que esta esquerda tem para oferecer.
***
Penso que a esquerda que se considera anti-neoliberal/anti-capitalista/anti-qualquer coisa tem vindo a abandonar a luta pela abundância na medida em que neste campo, mas também noutros, o capitalismo liberal venceu e goleou as ditas experiências socialistas do século XX. A consciência dessa derrota em vez de levar a questionar o autoritarismo medonho dessas experiências estatistas, e em vez de levar a novas reivindicações pela abundância, levou boa parte da extrema-esquerda sobrevivente a recuar colossalmente neste plano, sendo hoje uma das pontas-de-lança da divulgação de formas irracionalistas do decrescimento económico. Felizmente a esmagadora maioria dos trabalhadores despreza esta esquerda.
A não ser que se considere – erradamente – a abundância como sinónimo de opulência, não vejo como uma política emancipatória não possa considerar a abundância como eixo central. Volto a repetir, a não ser que se veja a abundância como sinónimo de opulência não há razões para descartar a abundância. Claro que uma outra sociedade tem de basear-se na abundância, o que não quer dizer que seja a mesma que ocorre nos centros mais desenvolvidos do capitalismo.
Ora, com o capitalismo, a produção orienta-se para a criação de um mercado que absorva um volume crescente de bens e serviços colocados à disposição. Nesse sentido, parte do surgimento histórico da abundância advém da inserção da instituição mercado no seio das relações de produção capitalistas. Mas, em paralelo, a abundância surge como reivindicação explícita nas lutas dos trabalhadores. Não apenas na generalidade das obras socialistas do século XIX, mas a própria luta reivindicativa implica uma luta pelo acesso a um quinhão da abundância. Quando os trabalhadores lutam por melhores salários, estão a clamar por um maior poder aquisitivo. O mesmo é dizer que reivindicam uma maior parte no acesso à abundância. No caso das lutas em que a autogestão se coloca já não se trata apenas do acesso ao que consideram ser uma parte da abundância de bens e serviços disponíveis mas também, e sobretudo, na determinação de que bens e serviços podem ser fornecidos pelos seus organismos autónomos (comités de fábrica, comissões de trabalhadores, conselhos operários, etc. etc.). Não existe um exemplo de luta social – reivindicativa e/ou de autogestão – que alguma vez tenha colocado como objectivo a redução da massa de bens e serviços a disponibilizar à população.
Aliás, a expansão do mercado de bens de consumo tem uma genealogia partilhada entre, por um lado, a criação da procura pela produção e, por outro lado, as reivindicações operárias. Se se quiser ser rigoroso, no capitalismo uma face não existe sem a outra e foi a constante reivindicação dos trabalhadores por melhores salários ou pela redução do tempo de trabalho que ajudou a dinamizar a expansão do mercado dos bens de consumo.
Dei acima o exemplo de como a luta por melhores salários implica necessariamente uma reivindicação por um maior acesso a bens e serviços de consumo. Mas a luta pela redução do horário de trabalho foi igualmente um potente estímulo económico na reivindicação da abundância. Na medida em que um mesmo ou maior número de bens ou serviços teve de ser produzido num espaço mais curto de tempo, a produtividade do trabalho aumenta. O que acarreta eliminar desperdícios, rentabilizar recursos e qualificar a força de trabalho. Ora, uma força de trabalho mais qualificada não apenas passou a receber salários mais elevados como passou a deter um poder de compra muito maior. É este o engenho da mais-valia relativa: aumentar o rácio de bens produzidos por cada trabalhador, ao mesmo tempo em que este acede a um maior conjunto de bens, mesmo que a taxa de crescimento salarial seja inferior à taxa de crescimento da mais-valia produzida.
Esta dinâmica moderniza o capitalismo mas, em casos extremos como o que sucedeu no período entre 1968 e 75, pode desencadear graves problemas para as classes dominantes. É que se o aumento dos lucros e dos salários podem caminhar num mesmo sentido, mesmo que desafasados, e daí ocorrer um período de relativa paz social, a verdade é que a partir de um determinado ponto cresce a percepção social junto dos trabalhadores de que os bens e serviços (de saúde, alimentares, de lazer, etc.) a que aspiram são ainda assim insuficientes face ao bolo de riqueza que têm criado. É por isso que desde o pós-guerra que as mais importantes lutas sociais ocorrem precisamente fora de contextos de crise económica.
Mesmo recentemente, não é por acaso que, no Brasil a massiva luta pelo acesso a serviços de transportes públicos mais baratos e mais eficientes decorreu no seio de uma economia que tem vindo a crescer quase ininterruptamente nos últimos quinze anos. O mesmo se passou na última década na China onde os salários cresceram, em média, 10% ao ano e onde as lutas reivindicativas têm sido uma constante. É onde e quando os trabalhadores sentem que o seu acesso à abundância crescente está a ser insuficiente, que as lutas reivindicativas mais prosperaram nos últimos 70 anos.
Por outro lado, e para dar um exemplo distinto, não deixa de ser inusitado que, num contexto em que muitos trabalhadores em Portugal justificadamente se queixam de falta de acesso a cuidados de saúde, seja a esquerda anti-consumo que tem a lata de defender um modelo de sociedade que coarctaria ainda mais o acesso das populações à saúde. Sim, porque a saúde é um terreno inserido no plano da abundância. Se se entender a abundância no sentido que abordei acima – campo de redução da exposição das populações a contingências e riscos supra-individuais – então não vejo porque a saúde não esteja contemplada neste plano. Aliás, é a austeridade do actual governo que clama pelo encerramento de recursos (urgências, centros de saúde, exames complementares de diagnóstico, ambulâncias e serviços de emergência, etc.) precisamente a partir da tese de que os serviços públicos estariam numa situação de sobre-consumo por parte das populações.
Espantoso como nestes tempos em que as pessoas andam com imensas dificuldades para aceder a cuidados de saúde, à educação ou a bens essenciais, e é parte da esquerda que quer ampliar o receituário austeritário a níveis exponenciais.
Nas partes do globo em que a mais-valia absoluta impera de uma maneira grotesca e, portanto, onde problemas de fome, de doenças e de calamidades ainda fazem da vida de centenas de milhões de pessoas um autêntico inferno, clamar contra a abundância é clamar contra o acesso de toda essa população ao consumo e, por conseguinte, à abundância.
Nesse sentido, consignar que a abundância não faz parte das cogitações e reivindicações da classe trabalhadora é o resultado de um desconhecimento tremendo da história das classes trabalhadoras. Seria interessante que quem defende a irrelevância da abundância fizesse campanha política junto dos trabalhadores dizendo-lhes que se propõem reduzir o acesso a bens de consumo, a serviços de saúde ou a usufruir tempo de lazer. Repito, abundância não é opulência nem desperdício à la Nero. O acesso a uma determinada abundância (historicamente determinada) representa um processo de redução da exposição humana a contingências supra-individuais.
Em suma, já não bastava o processo de ajustamento definido pela troika andar a reduzir o consumo das famílias (nomeadamente das pertencentes à classe trabalhadora), e certa esquerda ainda acha que o padrão de consumo é uma mera ideologia/ilusão e que, por isso, ainda teria de ser reduzido. Aliás, esta esquerda é ainda pior do que a troika. Para a troika trata-se de reduzir o índice de consumo e de investimento por um determinado período de tempo, até que, limpos os balanços dos bancos e ajustado o mercado às empresas capazes de competir, um novo ciclo económico reactive o crescimento económico. Para esta esquerda, a que alguém com razão chama de socialismo da miséria, o consumo seria uma ilusão perniciosa de capitalistas e publicitários manipuladores, pelo que uma outra sociedade deveria reduzir drasticamente os índices de consumo. No fundo, a perenidade da austeridade é o modelo que esta esquerda tem para oferecer.
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Penso que a esquerda que se considera anti-neoliberal/anti-capitalista/anti-qualquer coisa tem vindo a abandonar a luta pela abundância na medida em que neste campo, mas também noutros, o capitalismo liberal venceu e goleou as ditas experiências socialistas do século XX. A consciência dessa derrota em vez de levar a questionar o autoritarismo medonho dessas experiências estatistas, e em vez de levar a novas reivindicações pela abundância, levou boa parte da extrema-esquerda sobrevivente a recuar colossalmente neste plano, sendo hoje uma das pontas-de-lança da divulgação de formas irracionalistas do decrescimento económico. Felizmente a esmagadora maioria dos trabalhadores despreza esta esquerda.
20/05/14
Socialismo vs. desenvolvimentismo
por
Pedro Viana
Afirmar que “Quem impõe a abundância são os trabalhadores quando reivindicam maior poder de compra(…)” implica esquecer porque existe nos sistemas capitalistas o fenómeno da publicidade. Esta consiste tão somente numa tentativa de manipulação do interesse dos trabalhadores, levando-os a consumir mais (e portanto a exigir mais poder de compra) do que de outro modo fariam. Aliás, a única razão lógica para o consumo é a satisfação (ou felicidade) provocada por tal acto. Mas, na verdade, em média e em agregado, esta tem permanecido estável, ou até decrescido, nos países capitalistas mais avançados durante as últimas décadas, apesar do nível médio de consumo ter aumentado várias vezes. Portanto, tal aconteceu ou porque os trabalhadores têm agido de modo irracional, manipulados pelas estruturas sócio-económicas existentes, ou porque existem outros factores que têm afectado de modo negativo o incremento em satisfação que seria de esperar dum maior nível de consumo em absoluto. Na verdade, as duas causas coexistem, sendo um dos factores que explica a segunda, a constatação de que o nível de satisfação que decorre do consumo (a partir dum certo nível) é relativo. Isto é, uma fracção, que pode ser muito significativa a partir dum certo nível de rendimento, do consumo efectuado pelos trabalhadores é feito como forma de manterem o (ou a percepção do) seu estatuto social. Em qualquer caso, daqui decorre que não é possível afirmar que a “abundância” é algo que os trabalhadores “naturalmente” exigiriam no contexto dum sistema de relações sociais completamente distinto do actual. Em particular, se estiverem conscientes que tal “abundância” ocorreria em detrimento de outros objectivos pretendidos por esses mesmos trabalhadores. Não há qualquer evidência empírica, nem quaisquer características intrínsecas ao ser humano, que sustentem essa afirmação. No entanto, João Bernardo ao dizer que “E esta é uma questão de relações sociais de produção e não de votos num referendo” acaba por ser certeiro, mas não no sentido que pretendia. Na verdade, parafraseando-o, o nível de abundância exigido pelos trabalhadores resulta das relações sociais de produção, e de outras que destas decorrem. Isto é, apenas quando inseridos num sistema de relações sociais de produção não-capitalista, por exemplo do tipo socialista ou comunista, é que será possível perceber que “abundância” é desejada pelos trabalhadores.
Nota Marginal sobre o "O Papel Histórico da Abundância" do João Bernardo
por
Miguel Serras Pereira
As linhas que se seguem são um comentário ao texto do João Bernardo que o João Valente Aguiar ontem publicou no Vias, e que, devido à sua extensão, se tornaria pouco prático inserir na caixa de comentários do mesmo.
João,
Um dos aspectos mais convincente do que acabas de escrever é, na minha opinião, a tua ideia segundo a qual se trata de “entender as forças produtivas como contendo as, e sendo determinadas pelas, relações sociais de produção” sem esquecer que “as forças produtivas e o nível de produção que estas permitem [são] um factor decisivo”. Gostaria, no entanto, de explicitar aqui (mas suponho que tu próprio já o tenhas assumido) que um conceito tão amplo de "forças produtivas" já não é simplesmente económico, remetendo para nada menos do que as "forças" que dão forma à instituição da sociedade enquanto tal. E, do mesmo modo, poderíamos, ou deveríamos, dizer que as "relações sociais de produção" têm por base (não lhe vou, apesar de tudo, chamar "infra-estrutura") as relações de poder que a organização política (dê-se ou não como tal ao nível das representações) institui em cada caso (ou "formação social").
Por outro lado, o argumento sobre o que quer a classe trabalhadora não me parece, na formulação que lhe dás, demasiado conseguido. Com efeito, se evocarmos a classe trabalhadora como categoria sociológica particular para dizermos que ela quer a abundância ou outra coisa qualquer, teremos de dizer também que a mesma classe não só prefere o capitalismo actual ao “socialismo da miséria”, como, até mais ver, na medida em quem cala consente, prefere também a abstenção política, ou a privatização ou as lógicas corporativas à organização revolucionária da luta pela democracia revolucionária. É verdade que tu, não só não o ignoras, como até o sublinhas com todo o vigor necessário. No entanto, a evocação das "duas vidas" da classe trabalhadora não resolve, a meu ver, a dificuldade, uma vez que tira à "natureza de classe" a qualidade de traço distintivo entre uma ou outra das duas vidas — a uma ou outra via, a uma outra vis formativa ou motora dessa dupla vida. Assim, parecer-me-ia preferível dizer que a democracia revolucionária ou as lutas que tendem a fazê-la não podem deixar de reivindicar a abundância que referes, e que essa é uma das condições necessárias da transformação dos movimentos sociais em movimentos de democratização revolucionária (ou, passe o termo que não parece agradar-te por aí além, movimentos de conquista da “cidadania governante”). Tal é a ordem de razões que me leva também a insistir prioritariamente na direcção da economia e na orientação da produção, mais do que na sua expansão ou desenvolvimento — procurando não esquecer, contudo, a passagem que comecei por sublinhar no teu escrito. Uma coisa é dizer que o pôr termo à "exploração do homem pelo homem" e à dominação de classe são exigências e antecipações intrínsecas à acção da "democracia revolucionária", outra é definir essa acção em termos de classe ou como traço distintivo de uma classe.
Uma vez mais, quero crer que não dizemos coisas muito diferentes: o que distingue as nossas perspectivas parece-me residir no facto de tu pretenderes, a todo o custo, manter um quadro de referência marxista, ao passo que eu, sem subestimar a importância da problemática marxista enquanto inspiração, penso que a tentativa de revalidar a todo o custo, através da multiplicação de ressalvas e redefinições, os conceitos e vocabulário de Marx obscurece por vezes o essencial do que dizes. É o que acontece, por exemplo, quando tentas salvaguardar a ideia de uma "predestinação de classe" da acção (anti-classista) da "democracia revolucionária", correndo o risco suplementar de pareceres sustentar a ideia (que, se te leio bem aqui e não só, não aprovas) de que uma certa forma de marxismo (ainda que a do teu Marx Crítico de Marx [3 vols., Porto, Afrontamento, 1977]) é uma via necessária dela, ou um elemento necessário da sua via.
Em suma, os próprios termos da tua concepção da democracia revolucionária implicam, a meu ver, que — e para o dizer recorrendo a uma passagem de Castoriadis (cf. "A Questão da História do Movimento Operário", em A Experiência do Movimento Operário - 1, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979), que já tive ocasião de referir noutra troca de ideias contigo: "não se pode hoje nem manter uma posição privilegiada do proletariado no sentido tradicional, nem estender mecanicamente as características deste ao conjunto dos assalariados, nem, enfim, pretender que estes se comportem como uma classe, ainda que embrionária. Todas as camadas da sociedade moderna, à excepção das cúpulas dirigentes, vivem e agem na sua existência quotidiana a alienação da sociedade capitalista contemporânea, as contradições e o esgotamento profundo do sistema, a luta contra este sob uma variedade infinita de formas (…) As lutas operárias em torno das condições de trabalho iam e continuam a ir muito longe (…) [que] a empresa tenha sido, e em certa medida continue a ser, um lugar privilegiado de socialização sob o capitalismo, é decerto verdade e é importante - mas isso não reduz a importância de outros locais de socialização existentes nem, sobretudo, dos que estão por criar".
Com efeito, parece-me que a formulação de Castoriadis, quando afirma: "o projecto revolucionário tornou-se tal que não terá sentido nem realidade se a esmagadora maioria dos homens e das mulheres que vivem na sociedade contemporânea não vierem a assumi-lo e a fazer dele a expressão activa das suas necessidades e das suas aspirações. Não há salvador supremo, e nenhuma categoria particular tem a seu cargo a sorte da humanidade" —, parece-me, dizia eu, que esta formulação vale também, no essencial, para a democracia revolucionária tal como a entendes e caracterizas, do mesmo modo que para a minha proposta da "democratização" como "plataforma necessária e suficiente" de uma separação das águas que, como também tu mostras, deixou de ser possível traçar em nome da "esquerda".
19/05/14
O papel histórico da abundância (por João Bernardo)
por
João Valente Aguiar
Admito que a dialéctica de Hegel seja teleológica, embora a de Fichte não. Mas a dialéctica de Marx e de Engels não o é, ou não o é obrigatoriamente. Afirmar, como Marx e Engels afirmaram, que o desenvolvimento das forças produtivas proporcionado pelo capitalismo cria as condições para o comunismo não significa colocar um fim à história, já que ambos consideravam o comunismo precisamente como o fim da pré-história da humanidade — eram as palavras deles — e a abertura de uma época histórica cheia de possibilidades.
O cerne da questão reside, na minha opinião, e é nisto que sempre tenho insistido, na noção de forças produtivas. Trata-se somente de forças produtivas materiais? Ou, definindo eu a tecnologia como a materialização de relações sociais, devem as forças produtivas ser entendidas na perspectiva das relações sociais de produção? Marx oscilou entre estas duas alternativas e Engels oscilou menos, inclinando-se para a primeira. Há em O Capital (Livro I, 4ª secção, capítulo XIV) uma nota fascinante em que Marx citou Darwin na comparação entre os órgãos naturais e os utensílios das forças produtivas. (Recordo que O Capital seria dedicado a Darwin se ele não se tivesse escusado com a desculpa de que a esposa era muito religiosa e não lhe queria ferir os sentimentos.) Seria difícil afastar mais do que naquela nota as relações sociais das forças produtivas. Aliás, o modelo darwiniano da evolução, que é de uma simplicidade brilhante, começa a falhar quando se trata de analisar os animais sociais: formigas e abelhas.
Mas entender as forças produtivas como contendo as, e sendo determinadas pelas, relações sociais de produção não significa que as forças produtivas e o nível de produção que estas permitem não sejam um factor decisivo. Toda a discussão sobre o socialismo num só país, por exemplo, uma das discussões mais letais da história do movimento operário, rodou em torno dessa questão. Quem impõe a abundância são os trabalhadores quando reivindicam maior poder de compra e são eles ainda quem impõe o aumento da produtividade quando reivindicam a redução das horas de trabalho. E esta é uma questão de relações sociais de produção e não de votos num referendo.
Será muito difícil entender o que significa abundância no contexto em que emprego a palavra ou o desentendimento resulta apenas da má vontade de quem não encontra melhores argumentos? O que digo acerca do punk-rock devia servir de esclarecimento suficiente sobre a minha concepção de abundância, que reside nos antípodas da proliferação da futilidade. O problema central é que não se trata de satisfazer uma oferta limitada. O desenvolvimento histórico cria a necessidade de novos produtos e, portanto, de nova oferta. E se for exacto que uma sociedade sem classes corresponderá a uma aceleração e uma ampliação do desenvolvimento histórico — senão não valeria a pena lutar por ela — então a noção de abundância tornar-se-á ainda mais importante.
Agora, peço que invertam a ordem dos termos do que acabei de afirmar. Verão assim que tudo o que trave a abundância implica um retrocesso social. E voltamos ao problema central do socialismo num só país. Daí a minha insistência na questão. Aliás, a insistência não é minha, pois se o fosse pouco valia. A insistência é da classe trabalhadora que, como sublinho no § 21 do Manifesto sobre a esquerda e as esquerdas, prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria. Há muito quem tenha tentado convencê-la do contrário, mas sem o conseguir.
É certo que a classe trabalhadora está convencida também de outras coisas, de que deve ler a revista Caras e similares, assistir ao folhetim, ver o futebol e sei lá do que mais. Mas desde há muitos anos venho a repetir que os trabalhadores levam duas vidas, uma que cria e multiplica o capital e outra que luta contra o capital. É precisamente esta a contradição que está no centro do capitalismo e por isso Marx considerava que a classe trabalhadora, quando destruísse o capitalismo, se ultrapassaria a si mesma, destruindo-se também. Mas creio que a questão das duas vidas é mais complexa, porque as palavras e as mensagens são ambíguas e o que alguém lê na Caras, vê no folhetim ou com que se empolga no futebol não é o mesmo que afectaria outra pessoa. As duas vidas podem coexistir e articular-se num todo devido à capacidade dos trabalhadores para ruminarem em silêncio, que evoquei no § 7 daquele meu Manifesto. A crescente abstenção eleitoral é um sintoma disso e, quando vejo o que se chama esquerda, o aparente desinteresse e a apatia dos trabalhadores é para mim um dos raros factores de optimismo.
João Bernardo
O cerne da questão reside, na minha opinião, e é nisto que sempre tenho insistido, na noção de forças produtivas. Trata-se somente de forças produtivas materiais? Ou, definindo eu a tecnologia como a materialização de relações sociais, devem as forças produtivas ser entendidas na perspectiva das relações sociais de produção? Marx oscilou entre estas duas alternativas e Engels oscilou menos, inclinando-se para a primeira. Há em O Capital (Livro I, 4ª secção, capítulo XIV) uma nota fascinante em que Marx citou Darwin na comparação entre os órgãos naturais e os utensílios das forças produtivas. (Recordo que O Capital seria dedicado a Darwin se ele não se tivesse escusado com a desculpa de que a esposa era muito religiosa e não lhe queria ferir os sentimentos.) Seria difícil afastar mais do que naquela nota as relações sociais das forças produtivas. Aliás, o modelo darwiniano da evolução, que é de uma simplicidade brilhante, começa a falhar quando se trata de analisar os animais sociais: formigas e abelhas.
Mas entender as forças produtivas como contendo as, e sendo determinadas pelas, relações sociais de produção não significa que as forças produtivas e o nível de produção que estas permitem não sejam um factor decisivo. Toda a discussão sobre o socialismo num só país, por exemplo, uma das discussões mais letais da história do movimento operário, rodou em torno dessa questão. Quem impõe a abundância são os trabalhadores quando reivindicam maior poder de compra e são eles ainda quem impõe o aumento da produtividade quando reivindicam a redução das horas de trabalho. E esta é uma questão de relações sociais de produção e não de votos num referendo.
Será muito difícil entender o que significa abundância no contexto em que emprego a palavra ou o desentendimento resulta apenas da má vontade de quem não encontra melhores argumentos? O que digo acerca do punk-rock devia servir de esclarecimento suficiente sobre a minha concepção de abundância, que reside nos antípodas da proliferação da futilidade. O problema central é que não se trata de satisfazer uma oferta limitada. O desenvolvimento histórico cria a necessidade de novos produtos e, portanto, de nova oferta. E se for exacto que uma sociedade sem classes corresponderá a uma aceleração e uma ampliação do desenvolvimento histórico — senão não valeria a pena lutar por ela — então a noção de abundância tornar-se-á ainda mais importante.
Agora, peço que invertam a ordem dos termos do que acabei de afirmar. Verão assim que tudo o que trave a abundância implica um retrocesso social. E voltamos ao problema central do socialismo num só país. Daí a minha insistência na questão. Aliás, a insistência não é minha, pois se o fosse pouco valia. A insistência é da classe trabalhadora que, como sublinho no § 21 do Manifesto sobre a esquerda e as esquerdas, prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria. Há muito quem tenha tentado convencê-la do contrário, mas sem o conseguir.
João Bernardo
O essencial e o acessório
por
Pedro Viana
O pressuposto segundo o qual o socialismo ou comunismo requer um certo nível de produção é absurdo. Parafraseando o próprio João Bernardo: o combate ao capitalismo como modo de produção, ou seja, como sistema de relações sociais de trabalho é o que define o anti-capitalismo. E a sua transformação num sistema auto-gerido pelos trabalhadores é o que define o socialismo ou comunismo. Citando Miguel Serras Pereira: “(…)falar de assegurar mais e melhor do que o capitalismo a "abundância" exigiria, a meu ver, que se precisasse melhor o que se entende por esta: abundância de quê e para quê(…)”. Adicionaria ainda que tal é matéria para os trabalhadores decidirem, quando quiserem ou tiverem poder para tal. Epítetos como “socialismo de miséria” ou “socialismo da abundância”, que deliberadamente tentam associar socialismo e (um certo nível de) produção são o acessório que apenas serve para distrair do que é realmente essencial para a implementação do socialismo ou comunismo. Aliás, concordo inteiramente, e não tenho dúvidas que a esmagadora maioria daqueles que se consideram parte da “esquerda ecologista” também concordariam, com este parágrafo escrito pelo João Bernardo:
“O que afirmo é a necessidade de que as novas técnicas originadas pelo desenvolvimento das relações sociais de luta e a nova tecnologia em que futuramente se hão-de articular em conjunto sejam produtivas e gerem abundância mediante formas materiais e sociais distintas das usadas no capitalismo.”
Suporá João Bernardo, que alguém não vai utilizar as técnicas mais produtivas ao seu alcance, tendo em conta os objectivos que pretende atingir?... Ou, será da opinião que a produtividade é um fim em si? Produzir, produzir, sem olhar a quê?! Obviamente que as técnicas que diferentes colectivos de trabalhadores considerarão como passíveis de serem utilizadas, dependerão dos objectivos decididos democraticamente por eles. E, tal como se recusarão a utilizar certas técnicas que apenas poderiam ser implementadas num sistema assente na exploração do homem-pelo-homem, poderão igualmente recusar-se a trabalhar tendo como único fim a maximização do consumo, e independentemente das consequências para o meio material onde se inserem. Estarão no seu pleno direito se assim decidirem. E é, tão somente, pelo facto de tal decisão ser por eles tomadas que podemos aplicar os termos socialismo ou comunismo ao sistema de relações sociais por eles implementadas.
“O que afirmo é a necessidade de que as novas técnicas originadas pelo desenvolvimento das relações sociais de luta e a nova tecnologia em que futuramente se hão-de articular em conjunto sejam produtivas e gerem abundância mediante formas materiais e sociais distintas das usadas no capitalismo.”
Suporá João Bernardo, que alguém não vai utilizar as técnicas mais produtivas ao seu alcance, tendo em conta os objectivos que pretende atingir?... Ou, será da opinião que a produtividade é um fim em si? Produzir, produzir, sem olhar a quê?! Obviamente que as técnicas que diferentes colectivos de trabalhadores considerarão como passíveis de serem utilizadas, dependerão dos objectivos decididos democraticamente por eles. E, tal como se recusarão a utilizar certas técnicas que apenas poderiam ser implementadas num sistema assente na exploração do homem-pelo-homem, poderão igualmente recusar-se a trabalhar tendo como único fim a maximização do consumo, e independentemente das consequências para o meio material onde se inserem. Estarão no seu pleno direito se assim decidirem. E é, tão somente, pelo facto de tal decisão ser por eles tomadas que podemos aplicar os termos socialismo ou comunismo ao sistema de relações sociais por eles implementadas.
18/05/14
Quarta e última parte de "Sobre a Esquerda e as Esquerdas" do João Bernardo no Passa Palavra: o separar das águas
por
Miguel Serras Pereira
O Passa Palavra publicou hoje a quarta e última parte do ensaio-manifesto "Sobre a Esquerda e as Esquerdas" do João Bernardo. Importa, a meu ver, sublinhar sobretudo a grande conclusão que, de algum modo aflorava já em boa parte dos considerandos, mas que nesta última parte se precisa e define mais radicalmente: ou seja, que a alternativa às relações de poder vigentes nos actuais regimes capitalistas passa por aquilo a que o João Bernardo chama a "democracia revolucionária" e entende como um processo de transformação radical das instituições económicas e políticas que organizam e governam as sociedades de hoje.
O facto de o João Bernardo falar em "democracia revolucionária" tem um alcance político ao mesmo tempo imediato e profundo. Com efeito, assinala a necessidade de opormos às relações de poder capitalistas e burocráticas, não a ausência de instituições ou de poder político, mas a democratização das instituições e do exercício do poder político — como as suas reflexões sobre o dinheiro e o mercado demonstram em termos perfeitamente concludentes. E, no mesmo lance, esta última parte do ensaio-manifesto ilustra, com uma lucidez renovada, a actualidade da velha palavra de ordem da Internacional, de múltiplas maneiras recalcada por aquilo a que o João Bernardo chama a concepção punk da democracia: "não mais deveres sem direitos / não mais direitos sem deveres".
Por escrúpulo de consciência, esclareço que, tal como eu, muitos dos que se sentirão reconfortados por estas e outras conclusões do João Bernardo poderão ter dúvidas a respeito de uma ou outra formulação sobre a produtividade e a abundância presentes no texto (falar de assegurar mais e melhor do que o capitalismo a "abundância" exigiria, a meu ver, que se precisasse melhor o que se entende por esta: abundância de quê e para quê, etc. etc.). Mas, embora me pareça que importa discutir melhor questões deste tipo, julgo que isso só terá a ganhar se for feito sem perdermos de vista, os que nela estamos apostados, a prioridade de uma plataforma política como a que, no essencial, a "democracia revolucionária" do João Bernardo permite, ao mesmo tempo, abrir e tornar critério de "separação das águas".
16/05/14
Acho que já ouvi isto em qualquer lado. A saída do euro: primeira coisa a fazer assim que se chega ao governo
por
João Valente Aguiar
A ver entre os 20 e os 40 segundos. Será Linda Reis um dos reforços para a campanha eleitoral destas europeias? Patriotas honrados do PCP, MRPP, MAS, Ladrões de Bicicletas e Rubra, de que estais à espera? Aqui está a cara que pode unificar a esquerda patriótica e finalmente mobilizar e libertar o imorredoiro e heróico povo português da ingerência externa da maléfica "Almenha".
p.s. Tenho de agradecer ao Zé Nuno Matos por me ter dado a conhecer este vídeo sobre a vanguarda intelectual dos defensores da saída do euro.
15/05/14
Simbólica do quê, exactamente?
por
Ricardo Noronha
Para a abertura da campanha das eleições europeias o BE decidiu ocupar uma casa durante um dia, promovendo lá uma série de atividades com o objectivo de “chamar a atenção para a situação da habitação na capital, onde os aumentos das rendas e a incapacidade de pagar os créditos levam a que as casas sejam abandonadas para posteriormente serem vendidas a preços abusivos.” (http://www.esquerda.net/videos/ocupacao-simbolica-na-praca-da-alegria-em-lisboa/32576).A iniciativa começou na manhã de sábado e terminou por volta da meia noite desse mesmo dia, que foi preenchido com cinema, pintura de murais, debates, concertos e uma intervenção de Marisa Matias. O facto de a ação estar incluída na agenda de campanha para as eleições europeias não a tornaria, em princípio, menos capaz de se desenvolver naquilo que o uso de uma gramática de resistência (ou de alguns significantes de resistência?) promete: a rejeição da propriedade privada como formatadora da actuação através da ocupação de um lugar habitável e desocupado. A não ser que ao sair se feche a porta.Na análise das dinâmicas dos movimentos sociais devemos ter em conta que muitas das ações, no momento em que são desencadeadas, ganham uma relativa autonomia em relação àquilo que esteve na sua origem. E é fundamental que uma qualquer acção assuma uma forma, que a suscite e que não lhe fique sujeita.Já alguém disse que a desocupação ao fim de um dia era tão simbólica como a ocupação. Talvez seja. Mas para nós a questão não é tanto a duração da ocupação mas sim o facto de a porta ter sido cerrada a cadeado no momento de desocupação. De que modo o trancamento da porta, à saída, concorreu para a persecução dos objetivos enunciados pelo Bloco ou para a defesa real do direito à habitação?
11/05/14
Já que falamos em simbólico
por
Zé Nuno Matos
Numa ação de campanha para as próximas eleições europeias de
dia 25 de maio, o Bloco de Esquerda decidiu, conforme as suas próprias
palavras, invadir simbolicamente uma casa na Praça de Alegria fechada há cinco
anos, “uma forma de chamar a atenção para a situação da habitação na capital,
onde os aumentos das rendas e a incapacidade de pagar os créditos levam a que
as casas sejam abandonadas para posteriormente serem vendidas a preços
abusivos”. De acordo com o vídeo publicado no esquerda.net, os promotores da
inicativa querem que “estes espaços [abandonados] sejam abertos para as
pessoas, quer seja para elas poderem viver, quer sejam espaços culturais,
espaços de apoio”. Porém, para tal acontecer convém que ações como esta não
durem apenas um só dia. Caso contrário, poderá pensar-se que é apenas uma questão puramente eleitoralista, na qual o partido-movimento acaba por lhe dar mais no partido do que no movimento. Afinal, se é possível identificar uma clara carga
simbólica numa ação que passa por “invadir”, de forma aparentemente ilegal, uma
casa abandonada, limpá-la e organizar atividades no seu interior, que dizer do
seu abandono, 24 horas depois? Não terá este ato, igualmente, uma profunda
carga simbólica?
Atenção à 3ª Parte do Manifesto "Sobre a Esquerda e as Esquerdas" no Passa Palavra
por
Miguel Serras Pereira
O João Bernardo acaba de publicar no Passa Palavra a terceira parte do seu ensaio-manifesto "Sobre a Esquerda e as Esquerdas". Aqui fica a devida chamada de atenção, que este comentário que deixei no Passa Palavra, a par do debate a que as partes anteriores do texto deram lugar aqui no Vias, talvez ajude a justificar.
João,
subscrevo todas as ideias mestras desta terceira parte do teu Manifesto. As poucas observações que se seguem devem, portanto, ser lidas como propostas de desenvolvimento e explicitação de certos pontos da tua análise que creio dever sublinhar.
1. O facto de as relações pessoais estarem presentes em qualquer forma de organização política não permite reduzir a organização e muito menos a política de que ela pretende ocupar-se a relações pessoais ou "intersubjectivas". Ao mesmo tempo que a redução às relações interpessoais ou intersubjectivas da organização acaba por equivaler à tendencial recusa ou desvalorização desta última como necessariamente inautêntica ou opressiva.
2. Um outro aspecto desta deriva é que faz perder de vista que tanto a "pessoa" como as "relações pessoais" são institucionalmente configuradas, e garantidas por suportes social e historicamente instituídos. E estas instituições e suportes institucionais não são por seu turno produtos da subjectividade inter-pessoal, mas suas condições sociais e históricas (relevando da acção política).
3. O "fetichismo" que descreves tem assim por consequência escamotear a questão do poder que aquilo a que chamas — e muito bem — a "democracia revolucionária" não pode deixar de pôr sem renunciar a si própria. Ou melhor, quando não escamoteia a questão do poder, representa este como o domínio do mal por excelência, ao qual só poderíamos resistir, em nome da "cultura de si" ou da autenticidade intersubjectiva, mas sem reivindicarmos o seu exercício, necessariamente impessoal, enquanto cidadãos governantes, e não enquanto esta pessoa, e mais esta, e mais esta, membro desta ou daquela rede afinitária particular. Que se esqueça assim que a melhor garantia da liberdade subjectiva, e das relações pessoais afinitárias escolhidas por cada um, é justamente a participação de todos e de cada um, enquanto ninguém em particular, no exercício político do poder que governa as condições comuns de existência de todos e cada um — tal esquecimento é um efeito particularmente perverso do "fetichismo" que assinalas. Com efeito aproxima certas concepções e práticas da esquerda "pós-moderna" da célebre divisa de Margaret Thatcher, quando afirmava que a sociedade não existia, mas só existiam indivíduos e famílias (se dissesse "grupos afinitários", a coisa viria a dar quase no mesmo) — ao mesmo tempo que, através do exercício do poder instituído e da transformação das instituições, se esforçava, com o afinco que se sabe, por "validar" a sua ideia, através da “conversão das almas”.
Espero que estes meus sublinhados do teu Manifesto não te pareçam excessivos ou demasiado equivocados.
Abraço
miguel serras pereira
João,
subscrevo todas as ideias mestras desta terceira parte do teu Manifesto. As poucas observações que se seguem devem, portanto, ser lidas como propostas de desenvolvimento e explicitação de certos pontos da tua análise que creio dever sublinhar.
1. O facto de as relações pessoais estarem presentes em qualquer forma de organização política não permite reduzir a organização e muito menos a política de que ela pretende ocupar-se a relações pessoais ou "intersubjectivas". Ao mesmo tempo que a redução às relações interpessoais ou intersubjectivas da organização acaba por equivaler à tendencial recusa ou desvalorização desta última como necessariamente inautêntica ou opressiva.
2. Um outro aspecto desta deriva é que faz perder de vista que tanto a "pessoa" como as "relações pessoais" são institucionalmente configuradas, e garantidas por suportes social e historicamente instituídos. E estas instituições e suportes institucionais não são por seu turno produtos da subjectividade inter-pessoal, mas suas condições sociais e históricas (relevando da acção política).
3. O "fetichismo" que descreves tem assim por consequência escamotear a questão do poder que aquilo a que chamas — e muito bem — a "democracia revolucionária" não pode deixar de pôr sem renunciar a si própria. Ou melhor, quando não escamoteia a questão do poder, representa este como o domínio do mal por excelência, ao qual só poderíamos resistir, em nome da "cultura de si" ou da autenticidade intersubjectiva, mas sem reivindicarmos o seu exercício, necessariamente impessoal, enquanto cidadãos governantes, e não enquanto esta pessoa, e mais esta, e mais esta, membro desta ou daquela rede afinitária particular. Que se esqueça assim que a melhor garantia da liberdade subjectiva, e das relações pessoais afinitárias escolhidas por cada um, é justamente a participação de todos e de cada um, enquanto ninguém em particular, no exercício político do poder que governa as condições comuns de existência de todos e cada um — tal esquecimento é um efeito particularmente perverso do "fetichismo" que assinalas. Com efeito aproxima certas concepções e práticas da esquerda "pós-moderna" da célebre divisa de Margaret Thatcher, quando afirmava que a sociedade não existia, mas só existiam indivíduos e famílias (se dissesse "grupos afinitários", a coisa viria a dar quase no mesmo) — ao mesmo tempo que, através do exercício do poder instituído e da transformação das instituições, se esforçava, com o afinco que se sabe, por "validar" a sua ideia, através da “conversão das almas”.
Espero que estes meus sublinhados do teu Manifesto não te pareçam excessivos ou demasiado equivocados.
Abraço
miguel serras pereira
Que a terra lhe seja pesada
por
Ricardo Noronha
Caros amigos,
O Público, não só não publicou o meu pequeno texto (pelo menos até hoje) como arranjou espaço para um terceiro artigo elogioso de Veiga Simão, a duas colunas com foto, no verso da última página, que também nada diz sobre as zonas mais sombrias da sua actuação em vida.
Na realidade, não se trata da pessoa em si mas do que representa como exercício do poder e reescrita do passado.
Não quis invocar as minhas memórias pessoais mas, quando Veiga Simão era Ministro da Educação, em 70, 71 e 72, eu era estudante da Faculdade de Medicina e Dirigente da Associação Académica de Coimbra (AAC). Nessa condição, fui, com dezenas de outros colegas, preso em Caxias e torturado na sede da Pide e posteriormente (1972) julgado no Tribunal Plenário do Porto.
Nesse julgamento, houve cerca de 120 testemunhas de defesa, entre elas professores da Universidade de Coimbra e alguns dos mais brilhantes intelectuais, escritores, médicos, advogados e economistas do país.
Veiga Simão que tinha dado cobertura à brutal invasão da AAC pela polícia e ao seu imediato encerramento (em 1971) abriu as Faculdades, sob a sua jurisdição, à Pide e à Polícia de Choque que aí fizeram cargas e prisões, espancando estudantes e professores nos corredores.
Dos sete estudantes que foram julgados no Tribunal Plenário, um acabou por se suicidar como sequela da tortura (depois de uma primeira tentativa feita ainda em Caxias tendo estado em coma, nos cuidados intensivos, durante mais de uma semana) e uma outra querida companheira ficou com sequelas para toda a vida.
Veiga Simão, nunca mostrou qualquer arrependimento nem teve nenhuma palavra de desculpa. O 25 de Abril foi também para as pessoas mudarem (mas não demasiado depressa e com amnésias selectivas). Não podemos deixar que reescrevam a História e que apaguem a memória. E é isso que está a acontecer.
Obrigado pelo apoio
Abraço amigo
Jorge Seabra
PS - Faz amanhã, 9 de Maio, 43 anos que uma manifestação dos estudantes de Coimbra frente ao Teatro Gil Vicente (1970), foi reprimida a tiro. Um estudante, Fernando Seiça, foi alvejado à queima roupa , esteve à beira da morte e perdeu o baço e o rim. As paredes e vidros da Associação ficaram crivadas de balas - numas escadas as marcas estavam ao nível da cabeça - o que prova que só por sorte não houve mais vítimas.
Aqui, Maria de Lourdes Rodrigues confirma que não há limites para a infâmia:
Hoje, gostava de lembrar Veiga Simão como Ministro da Educação. Assumiu o cargo entre 1970 e 1974. Estávamos no final do Estado Novo e foi nesse contexto político improvável que Veiga Simão se afirmou como reformador progressista. Governou a educação com sentido de urgência e a noção de que não havia tempo a perder.
07/05/14
Recomendação de Leitura: João Bernardo, "O Tempo — Substância do Capitalismo" (2005)
por
Miguel Serras Pereira
Acabo de fazer com entusiasmo, avidez e de um fôlego a primeira leitura de um escrito que o João Bernardo me enviou numa mensagem pessoal e que tomo a liberdade de publicar a seguir. A lucidez e a clareza do texto do João Bernardo dispensam comentários, e tudo o que me importa dizer, evocando a troca de pontos de vista que temos mantido aqui nos últimos dias, é que o meu acordo é praticamente completo sobre todos os pontos: a análise da expropriação tecnológica que acompanha a exploração económica; as relações de poder (controle ou governo) que subjazem à e fundam a separação entre os produtores e os meios de produção e a apropriação do excedente (da qual a propriedade burguesa é somente uma versão, apesar da sua enorme eficiência histórica); o absurdo e/ou mistificação de uma concepção da democracia e da cidadania que deixe de fora, como nunca se cansou de reiterar Castoriadis, os lugares onde a grande maioria dos indivíduos passa a maior parte da sua vida desperta — o que tem como consequência a necessidade de devolvermos a um espaço público efectivamente democrático e governante toda a esfera da economia (a repolitização democrática da economia política traduz-se na prática pela republicização democrática da produção e da direcção da economia). A única reserva, mas menor: não sei se é sensata a modéstia com que o JB apresenta como “marxista” um modelo da mais-valia que implica de facto a superação de conceitos fundamentais da teoria económica de Marx. Voltei ontem também às páginas do ensaio de Castoriadis “Valeur, égalité, justice, politique : de Marx à Aristote et d’Aristote à nous” (o que me deu, de resto, ensejo de descobrir duas leituras bastante certeiras — http://pasdequerre.blogspot.pt/2008/09/castoriadis-dans-le-labyrinthe-22-marx.html e http://labyrinthes.wordpress.com/2013/02/18/economie-et-democratie-castoriadis-contre-marx/ — sobre a economia e a democracia no seu pensamento), e é curioso que sinto agora que as ideias do JB e as de Castoriadis se corroboram bem mais do que opõem, e que a maior parte das objecções (o Claude Orsoni dizia-me que, senão “irrefutáveis”, pelo menos, até mais ver, “irrefutadas”) que o segundo coloca ao hegelianismo, ao “(al)quimismo”, ao economicismo de Marx dificilmente poderão ser rejeitadas numa perspectiva como a do primeiro.
O texto do João Bernardo, publicado originalmente em Cadernos de Ciências Sociais [Fundação Santo André], no 1, 2005 (publicado na realidade em 2006), aqui fica, pois.
A lógica do texto escrito difere do impulso da viva voz, e o que exige no papel uma explanação detalhada pode às vezes ser resumido por um gesto de mão a acompanhar meia dúzia de palavras. Dentro destas limitações, empregando termos diferentes mas mantendo a sequência das ideias, reproduzo aqui uma palestra proferida a 19 de Outubro de 2005 na Fundação Santo André.
1
Os dois campos de desenvolvimento tecnológico invocados correntemente para definir as condições de produção que sucederam ao fordismo são a informática e a automatização. Nos meios universitários e nos meios jornalísticos – já que os dois andam cada vez mais juntos no mesmo afã de apresentação superficial dos fenómenos – tem sido considerado que a informática pôs termo ao carácter material do trabalho, generalizando em vez dele a actividade virtual, e que a automatização tornou obsoletos os próprios trabalhadores, substituindo-os por máquinas inteligentes. Se o trabalho deixou de ser real e se os seres humanos estão a dar lugar a máquinas, então a mais-valia e a teoria do valor teriam perdido o significado e estaríamos a viver uma era que os apologistas insistem em classificar como pós- moderna.
De imediato, a respeito do carácter virtual que os computadores imprimiriam ao trabalho, pode argumentar-se que a insistência dos administradores de empresa em instalar cadeiras ergonómicas, teclados adequados à disposição dos dedos, iluminações especiais e não sei quantas mais formas de melhorar o rendimento físico dos digitadores revela o carácter material desta nova modalidade de acção humana. Ou será que as lesões por esforço repetido são virtuais também?
Quanto à automatização, recordo, como já fiz noutros textos, o que foi várias vezes afirmado em The Economist, uma revista que exprime de maneira muitíssimo competente as necessidades e os interesses do grande capital transnacional, e que ninguém poderá suspeitar de ter simpatia pelos trabalhadores. Em 21 de Maio de 1988, ao analisar a diferença entre os robots introduzidos no fabrico de automóveis durante a década de 1970 e os introduzidos durante a década seguinte, The Economist sublinhou que o principal efeito da nova tecnologia consistia no aumento do nível de qualificação exigido aos trabalhadores encarregados de a operar. Este artigo concluía que «à medida que as fábricas automatizadas se tornam mais complexas e passam a depender mais dos computadores, o que surge como a questão decisiva é a qualidade do pessoal e não a sua redução numérica». Em 14 de Abril de 1990 The Economist insistiu no tema, escrevendo que «a General Motors aprendeu numa joint venture formada com a Toyota que o que realmente interessava no processo de produção eram as pessoas». Mais detalhadamente, podemos ler em The Economist de 10 de Agosto de 1991 que os administradores da General Motors, depois de terem estudado as razões que haviam levado ao fracasso do processo de automatização prosseguido pela sua empresa durante uma dezena de anos e de o terem comparado com o exemplo japonês, aprenderam que «eram evidentes duas coisas». «Os robots não eram seguramente a chave do sucesso. E agora que o processo de fabrico japonês estava a ser exportado com êxito para os Estados Unidos tornava-se evidente que trabalhadores japoneses fanáticos e mal pagos não se comportavam como robots. [...] É certo que o grau de automatização nas fábricas de propriedade japonesa é ligeiramente superior ao existente nas de propriedade norte-americana ou europeia. Mas isto deve-se ao facto de os japoneses terem descoberto que é mais fácil automatizar depois de ter havido uma enorme insistência na qualidade. Só a partir do momento em que a produção está a decorrer sem problemas é que os japoneses automatizam ou introduzem novos modelos. [...] tornou-se evidente que a verdadeira chave do sucesso para uma indústria automobilística competitiva não era a alta tecnologia, mas o modo como os trabalhadores eram treinados, geridos e motivados. [...] A lição custou caro, mas a General Motors acabou por aprender que o seu bem mais importante e mais valioso não eram os robots, mas a sua própria força de trabalho». Não se trata da simples substituição de pessoas por máquinas automáticas mas da substituição de umas pessoas por outras mais qualificadas. A qualificação da força de trabalho, de modo a aproveitar cada vez mais a capacidade intelectual dos trabalhadores, é esta uma das principais lições dadas pelos administradores da Toyota, e que os gestores de todo o mundo se têm esforçado por aprender e aplicar. Só a esquerda arrependida continua surda, hoje como ontem, aos ensinamentos ministrados pelo grande capital.
Se passarmos do nível dos processos particulares de fabrico para o do conjunto da sociedade, verificamos que a tecnologia informática e a automatização constituem a infra- estrutura que permite que a dispersão física dos trabalhadores não comprometa as economias de escala, e que sustenta a actual fragmentação da classe trabalhadora e a precarização do trabalho. A ligação das máquinas aos computadores aumentou muitíssimo o grau de concentração das decisões e ao mesmo tempo dispersou a sua execução, de maneira que os trabalhadores, onde quer que exerçam a actividade, são vigiados pela administração e obedecem às suas directrizes. A cooperação entre os trabalhadores passou a dispensar a reunião nos mesmos locais de trabalho, bastando o facto de eles dependerem de um mesmo centro de decisões para colaborarem uns com os outros. Os chefes de empresa podem, assim, explorar o esforço conjugado dos assalariados enquanto diminuem as probabilidades de uma acção reivindicativa conjunta. Em vez de terem substituído as pessoas por máquinas e de terem tornado virtual o trabalho, a automatização e a informática reforçaram o enquadramento dos trabalhadores e agravaram a exploração do trabalho.
Mas a questão deve ser vista também noutra perspectiva, que permite extrair lições mais profundas.
2
Contrariamente ao que sucede com a esmagadora maioria dos autores de formação marxista, eu considero que existem duas classes capitalistas: a burguesia e os gestores. Na verdade, a definição de uma classe formada por gestores – qualquer que seja o nome dado a esta entidade social – tem-se confundido com a acção prática e a crítica teórica prosseguidas por alguns sectores da extrema-esquerda contra a burocratização dos partidos socialistas durante a época da Segunda Internacional e, mais tarde, contra o desenvolvimento do capitalismo de Estado soviético. Foi o combate dos trabalhadores às novas modalidades de exploração surgidas a partir do interior das suas lutas que exigiu a identificação dos gestores enquanto exploradores.
Mas a afirmação da existência de uma classe social formada por gestores não tem consequências apenas sobre a análise do capitalismo de Estado e influencia a maneira como se considera o próprio fundamento do capitalismo. Os burgueses exercem a supremacia económica e social graças à propriedade dos meios de produção, e é através da transmissão hereditária destes bens que eles asseguram aos filhos a condição de capitalistas. Todavia, a superioridade económica e social dos gestores não provém de qualquer propriedade, mas do controlo que, através da administração, exercem sobre os processos de trabalho e sobre a vida social em geral. E os filhos dos gestores podem suceder aos pais graças à aquisição de um estatuto social fornecido pela frequência dos melhores estabelecimentos de ensino e pela participação nas redes de relações da elite. Em resumo, a exploração tanto se realiza através do exercício da propriedade como através do exercício do controlo.
Isto significa que no capitalismo a exploração não consiste somente na apropriação final dos bens materiais e dos serviços produzidos pelos trabalhadores, mas também no controlo do processo de produção. Por outras palavras, os trabalhadores não perdem apenas o direito aos frutos do seu trabalho mas igualmente o direito a decidirem a maneira como trabalham. Contrariamente ao que sucedia nos sistemas económicos baseados na cobrança de tributos, em que os explorados detinham o controlo sobre o seu processo de trabalho, no capitalismo os trabalhadores podem ser expropriados do resultado do trabalho precisamente porque começam por ser afastados do controlo sobre o processo de trabalho.
Nestas circunstâncias, a autoridade dos capitalistas, antes de incidir sobre a materialização ou a concretização do processo de trabalho, incide no próprio processo, que deve portanto ser considerado plenamente como tal, ou seja, como decurso no tempo. Muito mais fundamentalmente do que uma apropriação de bens, a exploração capitalista é um controlo exercido sobre o tempo.
No capitalismo o explorador controla o seu próprio tempo e o tempo alheio, enquanto o explorado não controla o seu tempo nem o dos outros. Se entrarmos pela primeira vez numa empresa em que todos andem vestidos com as mesmas batas e quisermos determinar através da observação empírica imediata se uma dada pessoa exerce funções de gestor ou de trabalhador, basta observar qual é a sua relação com o tempo. Qualquer trabalhador sabe, embora os teóricos por vezes o esqueçam, que o que ele vende ao patrão é o seu tempo e não a concretização do seu esforço. O que vai suceder com os resultados do trabalho, isso não diz respeito ao trabalhador nem lhe interessa. Uma catástrofe pode destruir os objectos fabricados e deixar sem efeito os serviços cumpridos, uma crise pode impedir a venda dos bens, nada disto altera o facto primordial de que o trabalhador foi expropriado do seu tempo, e portanto explorado.
Se a exploração capitalista resulta do controlo exercido sobre o tempo dos trabalhadores, o progresso no capitalismo define-se exclusivamente como produtividade, o que é o mesmo que dizer como um conjunto de operações efectuadas sobre o tempo. Trabalhar menos e ganhar mais é o desejo expresso de viva voz por todos os trabalhadores, e que qualquer deles aplica na prática quotidiana através de pequenas e grandes astúcias. Esta pressão exercida permanentemente sobre os patrões é responsável pelo desenvolvimento económico.
Se por um lado os capitalistas aceitam a diminuição do número de horas de relógio que compõem a jornada de trabalho, por outro lado eles impõem o aumento da intensidade do trabalho dentro dos limites de cada hora e treinam os trabalhadores de modo a serem capazes de aumentar a qualidade e a complexidade do seu esforço. Em vez de cancelar a intervenção dos trabalhadores, a automatização acresceu o ritmo dos gestos de trabalho e passou a exigir novas qualificações. E assim, uma hora de trabalho, que nos alvores do capitalismo era preenchida por uma actividade simples, representa hoje uma actividade muitíssimo intensa e complexa, equivalente a um grande número de horas simples. Este aumento da produtividade do trabalho tem como efeito a redução do tempo necessário ao fabrico de cada objecto e à execução de cada serviço, de modo que a remuneração dos trabalhadores, que medida em volume de bens adquiridos tem aumentado consideravelmente ao longo da história recente, tem-se reduzido drasticamente se for medida pelo tempo de trabalho necessário ao fabrico de cada um desses bens. Com o progresso do capitalismo, os trabalhadores ficam sujeitos a jornadas menores, mas trabalham mais tempo económico real; e adquirem mais bens concretos, mas que correspondem a menos tempo de trabalho incorporado. É este o mecanismo fundamental do que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa, ou seja, o agravamento da exploração através do progresso da produtividade. Toda a dinâmica do capitalismo e toda a sua capacidade de recuperação das lutas sociais têm a mais-valia relativa como motor.
Em última análise, o desenvolvimento do capitalismo consiste numa conjugação de tempos com sentido inverso. Aumenta a complexidade de cada hora de trabalho, e portanto aumenta o tempo económico real contido nos limites dessa hora. E diminui o tempo incorporado em cada um dos bens adquiridos pelos trabalhadores, diminuindo portanto o tempo total incorporado na formação de cada trabalhador e na sua reprodução, apesar de aumentar a quantidade de bens e serviços necessários a essa formação e a essa reprodução.
É nesta perspectiva que se devem criticar as teorias que, começando por reduzir o trabalhador no capitalismo a um produtor de bens materiais, decretaram o fim do capitalismo e a extinção do próprio trabalho quando aumentou a importância da produção de bens imateriais e de serviços. Falar hoje de trabalho virtual ou é um logro ou é abrir uma porta já aberta, porque o capitalismo tem por base, desde os seus primórdios, não bens concretos mas processos de trabalho entendidos como processos no tempo. O tempo, não os objectos, é a substância do capitalismo. Antes de ser material, a exploração deve entender-se na sua imaterialidade temporal, e precisamente graças ao controlo exercido sobre estes processos temporais os gestores têm sido capazes de agravar a exploração e, o que é sinónimo, desenvolver o capitalismo. Tudo se resume a tempos e a desfasamentos temporais.
3
A inclusão dos ócios no quadro do capitalismo reforça a importância do tempo enquanto substância do modo de produção.
Esta perspectiva de análise prolonga o modelo económico globalizante que apresentei pela primeira vez em dois artigos, «O Proletariado como Produtor e como Produto», Revista de Economia Política, 1985, vol. 5 no 3 e «A Produção de Si Mesmo», Educação em Revista [FaE, UFMG], 1989, ano IV no 9, e que tenho vindo a reelaborar em vários livros. Em termos demasiado simples, trata-se de considerar que o modelo da mais-valia, tal como Marx o apresentou, é insuficiente se se limitar à produção de bens, devendo incluir a produção dos próprios trabalhadores. É neste sentido que analiso a função dos ócios.
Até uma época bastante recente, mesmo nos países desenvolvidos o consumo dos assalariados durante os períodos de lazer ocorria geralmente em formas pré-capitalistas, sobretudo em modalidades de economia doméstica. Nas últimas décadas, porém, com a substituição dos restaurantes familiares pelo fast food, a substituição das pequenas lojas pelos hipermercados e pelos shopping centers, a difusão das viagens organizadas e a proliferação de serviços destinados a acompanhar, enquadrar e dirigir todas as diversões imagináveis, os ócios passaram a oferecer ao capitalismo inesgotáveis oportunidades de mercado. Todavia, apesar do volume de negócios que representa, este aspecto está longe de ser o mais importante.
É impossível aumentar as qualificações da força de trabalho sem prolongar o tempo de formação dos trabalhadores, e as instituições de ensino são insuficientes para este fim, porque as inovações tecnológicas continuam a ocorrer depois de cada pessoa sair da escola. Os capitalistas encontraram-se perante uma situação paradoxal. Como manter os trabalhadores actualizados e adestrados sem comprometer os horários de trabalho? O problema foi solucionado mediante a conversão dos ócios em processo de qualificação da força de trabalho.
Com o aparecimento dos microcomputadores, a electrónica permitiu, pela primeira vez na história da humanidade, que um instrumento destinado ao trabalho servisse também de meio de divertimento. Todas as formas electrónicas de lazer constituem, por si só, uma forma de adestramento da força de trabalho, o que significa que as pessoas passam alegremente a maior parte dos seus ócios adquirindo habilitações que as tornam mais produtivas. Aliás, a questão é mais complicada ainda, porque os vídeos musicais e publicitários – se é que uns se distinguem dos outros – e os jogos electrónicos habituaram todas as pessoas a modalidades de tempo interseccionado que antes eram apanágio das técnicas vanguardistas de escrita ou de pintura. É durante os lazeres que os indivíduos adquirem a capacidade de lidar com as organizações temporais complexas indispensáve is aos actuais processos de trabalho.
Essa banalização das formas tem correspondido a uma completa indigência dos conteúdos, mas é exactamente isto que se pretende. Provocou-se a habituação dos trabalhadores à modernidade sem lhes suscitar inquietações de espírito, e temos aqui o ideal da pós-modernidade, a simbiose da técnica e da moda numa conjugação que só é fútil para a população comum, porque se carrega para os capitalistas do seu pleno significado. Funcionalmente analfabetos mas ágeis em todas as facetas da vida urbana, dotados de uma percepção imediata da comunicação audiovisual, atentos aos caprichos mais efémeros – mesmo sem passarem por qualquer curso de qualificação profissional estes jovens adquirem as habilitações básicas para lidar com as novas tecnologias.
O que é, então, mais importante: o conteúdo, enquanto conteúdo ideológico dos lazeres, ou a forma, enquanto quadro temporal em que os lazeres decorrem? As novas noções práticas do tempo, indispensáveis para fazer progredir a produtividade na era da tecnologia electrónica, é nos lazeres, muito mais do que nas escolas ou nas empresas, que os trabalhadores as assimilam. Em vez de constituírem uma fuga à exploração, os lazeres tornaram-se uma parte indispensável dos mecanismos da mais-valia.
4
Subjacente a esta linha de raciocínio está a questão da autoridade exercida pelas empresas não só sobre os assalariados, durante o horário de trabalho, mas igualmente sobre camadas populacionais mais amplas, e ao longo das vinte e quatro horas do dia. Tenho insistido desde há bastantes anos, em livros, artigos e cursos, na distinção entre o que classifico como Estado Restrito, quer dizer, o aparelho clássico de poder, formado por governo, parlamento e tribunais, e o que classifico como Estado Amplo, ou seja, o exercício da soberania pelas próprias empresas. Este Estado é amplo porque o seu perímetro se sobrepõe ao perímetro das classes capitalistas.
Hoje, na era da transnacionalização, em que as fronteiras entre países e as legislações nacionais não opõem qualquer barreira eficaz à movimentação do capital e à actuação dos capitalistas, as grandes empresas tornaram-se incomparavelmente mais poderosas do que os órgãos clássicos do Estado. E a inclusão dos ócios nos mecanismos da exploração veio ampliar mais ainda a soberania das empresas, permitindo que elas presidam a todos os momentos da nossa vida.
Neste contexto, que significado adquirem a democracia e a luta política? Os democratas de todos os matizes, desde a direita liberal até à esquerda bem comportada, apelam para a difusão da cidadania no âmbito das instituições clássicas do Estado, mas como pode vigorar aí a democracia quando as empresas exercem um poder cada vez mais totalizador? Em A Opção Imperialista, uma obra notável publicada em 1966 e que é ur gente retirar do esquecimento, escreveu Mário Pedrosa (pág. 347): «Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na emprêsa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?».
Para que a disciplina de empresa continue a pautar os comportamentos fora da empresa é necessário que o ócio dos trabalhadores, bem como as vinte e quatro horas dos desempregados, não sejam tempo livre mas tempo controlado. É nece ssário que os pensamentos não vôem mas sigam trilhas. Este resultado não se obtém apenas através da concentração das indústrias cinematográfica e televisiva num escasso número de mãos, com a consequente futilidade de conteúdo das diversões.
Hoje, não é apenas nos níveis económico e ideológico que os capitalistas controlam os ócios, mas ainda no nível directamente repressivo. Dentro das empresas, a electrónica permitiu a fusão do processo de fiscalização com o processo de trabalho. Esta conjugação, inédita na história da humanidade, ampliou-se à sociedade em geral quando os bancos e as lojas começaram a sujeitar os clientes a formas de vigilância que até então haviam reservado para os assalariados. Depois, o facto de os computadores e outros instrumentos electrónicos servirem tanto de meio de trabalho como de meio de divertimento permitiu a fiscalização automática dos ócios. Desde as virtuais às palpáveis, não existe hoje qualquer modalidade urbana de diversão que não seja fiscalizada. Entre o mais intenso dos gestos de trabalho e o mais espreguiçado dos gestos de repouso existe um continuum preenchido pela vigilância electrónica.
E como as firmas de segurança particulares ultrapassaram em verbas e pessoal as polícias oficiais, e como são as próprias empresas quem regista, armazena e selecciona o vastíssimo rasto de informação que cada um de nós deixa ao longo dos nossos lazeres, cabe- lhes a elas, e não ao aparelho tradicional de Estado, formar a infra-estrutura repressiva.
Uma tradição muito difundida na extrema-esquerda considera que a consciência política se obtém na passagem da luta contra os patrões para a luta contra os governantes. Mas será possível nas condições actuais sustentar que o Estado clássico, enquanto órgão de decisões, prevalece sobre as empresas, enquanto instituições dotadas de soberania? Desde a década de 1960 que as movimentações dos trabalhadores ocorridas fora dos quadros sindicais e partidários vêm a entender que o Estado clássico não é mais o alvo supremo das lutas e a considerar a questão da democracia como uma necessidade da estrutura interna das próprias organizações de luta. Sem a transformação das relações sociais de trabalho, de modo a pôr fim ao totalitarismo empresarial, é ilusório pretender que a liberdade possa vigorar em qualquer outro domínio. É esta a lição que Mário Pedrosa resumiu com uma lucidez tanto mais notável quanto o seu livro A Opção Imperialista foi escrito e publicado enquanto vigorava no Brasil o regime militar. Apesar disso, Mário Pedrosa compreendeu que era sobretudo no local de trabalho que a autocracia estava instalada.
Todavia, nos últimos anos os trabalhadores têm deparado com enormes dificuldades para se organizar em lutas colectivas no âmbito das empresas. A terceirização e a subcontratação fragmentaram os trabalhadores, e esta situação agravou-se devido à introdução de horários flexíveis, à expansão dos contrato a prazo e da actividade a tempo parcial e à proliferação de firmas que alugam força de trabalho. Os obstáculos são maiores ainda quando se tenta mobilizar conjuntamente empregados e desempregados. Em alguns países, especialmente onde o desemprego e a economia paralela assumem maiores dimensões, os piquetes e os boicotes urbanos parecem ser uma tentativa de ultrapassar as dificuldades erguidas à acção no interior das empresas. Estas novas modalidades de luta são internas à sociedade capitalista, porque operam num espaço e num tempo – os lazeres – de que o capitalismo se apoderou. Mas como assegurar continuidade às movimentações desse tipo, como consolidar convergências pontuais fora das relações de trabalho estáveis? Isso exigirá que os trabalhadores teçam novas redes de solidariedade nos locais de residência, opondo-se à desagregação e à dispersão dos velhos bairros proletários que constitui hoje um dos principais objectivos do urbanismo.
É um dos sintomas reveladores da fase actual do capitalismo, que as acções de protesto no espaço e no tempo de lazer substituam ou coadjuvem as acções de protesto no espaço e no tempo de trabalho.
O texto do João Bernardo, publicado originalmente em Cadernos de Ciências Sociais [Fundação Santo André], no 1, 2005 (publicado na realidade em 2006), aqui fica, pois.
A lógica do texto escrito difere do impulso da viva voz, e o que exige no papel uma explanação detalhada pode às vezes ser resumido por um gesto de mão a acompanhar meia dúzia de palavras. Dentro destas limitações, empregando termos diferentes mas mantendo a sequência das ideias, reproduzo aqui uma palestra proferida a 19 de Outubro de 2005 na Fundação Santo André.
1
Os dois campos de desenvolvimento tecnológico invocados correntemente para definir as condições de produção que sucederam ao fordismo são a informática e a automatização. Nos meios universitários e nos meios jornalísticos – já que os dois andam cada vez mais juntos no mesmo afã de apresentação superficial dos fenómenos – tem sido considerado que a informática pôs termo ao carácter material do trabalho, generalizando em vez dele a actividade virtual, e que a automatização tornou obsoletos os próprios trabalhadores, substituindo-os por máquinas inteligentes. Se o trabalho deixou de ser real e se os seres humanos estão a dar lugar a máquinas, então a mais-valia e a teoria do valor teriam perdido o significado e estaríamos a viver uma era que os apologistas insistem em classificar como pós- moderna.
De imediato, a respeito do carácter virtual que os computadores imprimiriam ao trabalho, pode argumentar-se que a insistência dos administradores de empresa em instalar cadeiras ergonómicas, teclados adequados à disposição dos dedos, iluminações especiais e não sei quantas mais formas de melhorar o rendimento físico dos digitadores revela o carácter material desta nova modalidade de acção humana. Ou será que as lesões por esforço repetido são virtuais também?
Quanto à automatização, recordo, como já fiz noutros textos, o que foi várias vezes afirmado em The Economist, uma revista que exprime de maneira muitíssimo competente as necessidades e os interesses do grande capital transnacional, e que ninguém poderá suspeitar de ter simpatia pelos trabalhadores. Em 21 de Maio de 1988, ao analisar a diferença entre os robots introduzidos no fabrico de automóveis durante a década de 1970 e os introduzidos durante a década seguinte, The Economist sublinhou que o principal efeito da nova tecnologia consistia no aumento do nível de qualificação exigido aos trabalhadores encarregados de a operar. Este artigo concluía que «à medida que as fábricas automatizadas se tornam mais complexas e passam a depender mais dos computadores, o que surge como a questão decisiva é a qualidade do pessoal e não a sua redução numérica». Em 14 de Abril de 1990 The Economist insistiu no tema, escrevendo que «a General Motors aprendeu numa joint venture formada com a Toyota que o que realmente interessava no processo de produção eram as pessoas». Mais detalhadamente, podemos ler em The Economist de 10 de Agosto de 1991 que os administradores da General Motors, depois de terem estudado as razões que haviam levado ao fracasso do processo de automatização prosseguido pela sua empresa durante uma dezena de anos e de o terem comparado com o exemplo japonês, aprenderam que «eram evidentes duas coisas». «Os robots não eram seguramente a chave do sucesso. E agora que o processo de fabrico japonês estava a ser exportado com êxito para os Estados Unidos tornava-se evidente que trabalhadores japoneses fanáticos e mal pagos não se comportavam como robots. [...] É certo que o grau de automatização nas fábricas de propriedade japonesa é ligeiramente superior ao existente nas de propriedade norte-americana ou europeia. Mas isto deve-se ao facto de os japoneses terem descoberto que é mais fácil automatizar depois de ter havido uma enorme insistência na qualidade. Só a partir do momento em que a produção está a decorrer sem problemas é que os japoneses automatizam ou introduzem novos modelos. [...] tornou-se evidente que a verdadeira chave do sucesso para uma indústria automobilística competitiva não era a alta tecnologia, mas o modo como os trabalhadores eram treinados, geridos e motivados. [...] A lição custou caro, mas a General Motors acabou por aprender que o seu bem mais importante e mais valioso não eram os robots, mas a sua própria força de trabalho». Não se trata da simples substituição de pessoas por máquinas automáticas mas da substituição de umas pessoas por outras mais qualificadas. A qualificação da força de trabalho, de modo a aproveitar cada vez mais a capacidade intelectual dos trabalhadores, é esta uma das principais lições dadas pelos administradores da Toyota, e que os gestores de todo o mundo se têm esforçado por aprender e aplicar. Só a esquerda arrependida continua surda, hoje como ontem, aos ensinamentos ministrados pelo grande capital.
Se passarmos do nível dos processos particulares de fabrico para o do conjunto da sociedade, verificamos que a tecnologia informática e a automatização constituem a infra- estrutura que permite que a dispersão física dos trabalhadores não comprometa as economias de escala, e que sustenta a actual fragmentação da classe trabalhadora e a precarização do trabalho. A ligação das máquinas aos computadores aumentou muitíssimo o grau de concentração das decisões e ao mesmo tempo dispersou a sua execução, de maneira que os trabalhadores, onde quer que exerçam a actividade, são vigiados pela administração e obedecem às suas directrizes. A cooperação entre os trabalhadores passou a dispensar a reunião nos mesmos locais de trabalho, bastando o facto de eles dependerem de um mesmo centro de decisões para colaborarem uns com os outros. Os chefes de empresa podem, assim, explorar o esforço conjugado dos assalariados enquanto diminuem as probabilidades de uma acção reivindicativa conjunta. Em vez de terem substituído as pessoas por máquinas e de terem tornado virtual o trabalho, a automatização e a informática reforçaram o enquadramento dos trabalhadores e agravaram a exploração do trabalho.
Mas a questão deve ser vista também noutra perspectiva, que permite extrair lições mais profundas.
2
Contrariamente ao que sucede com a esmagadora maioria dos autores de formação marxista, eu considero que existem duas classes capitalistas: a burguesia e os gestores. Na verdade, a definição de uma classe formada por gestores – qualquer que seja o nome dado a esta entidade social – tem-se confundido com a acção prática e a crítica teórica prosseguidas por alguns sectores da extrema-esquerda contra a burocratização dos partidos socialistas durante a época da Segunda Internacional e, mais tarde, contra o desenvolvimento do capitalismo de Estado soviético. Foi o combate dos trabalhadores às novas modalidades de exploração surgidas a partir do interior das suas lutas que exigiu a identificação dos gestores enquanto exploradores.
Mas a afirmação da existência de uma classe social formada por gestores não tem consequências apenas sobre a análise do capitalismo de Estado e influencia a maneira como se considera o próprio fundamento do capitalismo. Os burgueses exercem a supremacia económica e social graças à propriedade dos meios de produção, e é através da transmissão hereditária destes bens que eles asseguram aos filhos a condição de capitalistas. Todavia, a superioridade económica e social dos gestores não provém de qualquer propriedade, mas do controlo que, através da administração, exercem sobre os processos de trabalho e sobre a vida social em geral. E os filhos dos gestores podem suceder aos pais graças à aquisição de um estatuto social fornecido pela frequência dos melhores estabelecimentos de ensino e pela participação nas redes de relações da elite. Em resumo, a exploração tanto se realiza através do exercício da propriedade como através do exercício do controlo.
Isto significa que no capitalismo a exploração não consiste somente na apropriação final dos bens materiais e dos serviços produzidos pelos trabalhadores, mas também no controlo do processo de produção. Por outras palavras, os trabalhadores não perdem apenas o direito aos frutos do seu trabalho mas igualmente o direito a decidirem a maneira como trabalham. Contrariamente ao que sucedia nos sistemas económicos baseados na cobrança de tributos, em que os explorados detinham o controlo sobre o seu processo de trabalho, no capitalismo os trabalhadores podem ser expropriados do resultado do trabalho precisamente porque começam por ser afastados do controlo sobre o processo de trabalho.
Nestas circunstâncias, a autoridade dos capitalistas, antes de incidir sobre a materialização ou a concretização do processo de trabalho, incide no próprio processo, que deve portanto ser considerado plenamente como tal, ou seja, como decurso no tempo. Muito mais fundamentalmente do que uma apropriação de bens, a exploração capitalista é um controlo exercido sobre o tempo.
No capitalismo o explorador controla o seu próprio tempo e o tempo alheio, enquanto o explorado não controla o seu tempo nem o dos outros. Se entrarmos pela primeira vez numa empresa em que todos andem vestidos com as mesmas batas e quisermos determinar através da observação empírica imediata se uma dada pessoa exerce funções de gestor ou de trabalhador, basta observar qual é a sua relação com o tempo. Qualquer trabalhador sabe, embora os teóricos por vezes o esqueçam, que o que ele vende ao patrão é o seu tempo e não a concretização do seu esforço. O que vai suceder com os resultados do trabalho, isso não diz respeito ao trabalhador nem lhe interessa. Uma catástrofe pode destruir os objectos fabricados e deixar sem efeito os serviços cumpridos, uma crise pode impedir a venda dos bens, nada disto altera o facto primordial de que o trabalhador foi expropriado do seu tempo, e portanto explorado.
Se a exploração capitalista resulta do controlo exercido sobre o tempo dos trabalhadores, o progresso no capitalismo define-se exclusivamente como produtividade, o que é o mesmo que dizer como um conjunto de operações efectuadas sobre o tempo. Trabalhar menos e ganhar mais é o desejo expresso de viva voz por todos os trabalhadores, e que qualquer deles aplica na prática quotidiana através de pequenas e grandes astúcias. Esta pressão exercida permanentemente sobre os patrões é responsável pelo desenvolvimento económico.
Se por um lado os capitalistas aceitam a diminuição do número de horas de relógio que compõem a jornada de trabalho, por outro lado eles impõem o aumento da intensidade do trabalho dentro dos limites de cada hora e treinam os trabalhadores de modo a serem capazes de aumentar a qualidade e a complexidade do seu esforço. Em vez de cancelar a intervenção dos trabalhadores, a automatização acresceu o ritmo dos gestos de trabalho e passou a exigir novas qualificações. E assim, uma hora de trabalho, que nos alvores do capitalismo era preenchida por uma actividade simples, representa hoje uma actividade muitíssimo intensa e complexa, equivalente a um grande número de horas simples. Este aumento da produtividade do trabalho tem como efeito a redução do tempo necessário ao fabrico de cada objecto e à execução de cada serviço, de modo que a remuneração dos trabalhadores, que medida em volume de bens adquiridos tem aumentado consideravelmente ao longo da história recente, tem-se reduzido drasticamente se for medida pelo tempo de trabalho necessário ao fabrico de cada um desses bens. Com o progresso do capitalismo, os trabalhadores ficam sujeitos a jornadas menores, mas trabalham mais tempo económico real; e adquirem mais bens concretos, mas que correspondem a menos tempo de trabalho incorporado. É este o mecanismo fundamental do que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa, ou seja, o agravamento da exploração através do progresso da produtividade. Toda a dinâmica do capitalismo e toda a sua capacidade de recuperação das lutas sociais têm a mais-valia relativa como motor.
Em última análise, o desenvolvimento do capitalismo consiste numa conjugação de tempos com sentido inverso. Aumenta a complexidade de cada hora de trabalho, e portanto aumenta o tempo económico real contido nos limites dessa hora. E diminui o tempo incorporado em cada um dos bens adquiridos pelos trabalhadores, diminuindo portanto o tempo total incorporado na formação de cada trabalhador e na sua reprodução, apesar de aumentar a quantidade de bens e serviços necessários a essa formação e a essa reprodução.
É nesta perspectiva que se devem criticar as teorias que, começando por reduzir o trabalhador no capitalismo a um produtor de bens materiais, decretaram o fim do capitalismo e a extinção do próprio trabalho quando aumentou a importância da produção de bens imateriais e de serviços. Falar hoje de trabalho virtual ou é um logro ou é abrir uma porta já aberta, porque o capitalismo tem por base, desde os seus primórdios, não bens concretos mas processos de trabalho entendidos como processos no tempo. O tempo, não os objectos, é a substância do capitalismo. Antes de ser material, a exploração deve entender-se na sua imaterialidade temporal, e precisamente graças ao controlo exercido sobre estes processos temporais os gestores têm sido capazes de agravar a exploração e, o que é sinónimo, desenvolver o capitalismo. Tudo se resume a tempos e a desfasamentos temporais.
3
A inclusão dos ócios no quadro do capitalismo reforça a importância do tempo enquanto substância do modo de produção.
Esta perspectiva de análise prolonga o modelo económico globalizante que apresentei pela primeira vez em dois artigos, «O Proletariado como Produtor e como Produto», Revista de Economia Política, 1985, vol. 5 no 3 e «A Produção de Si Mesmo», Educação em Revista [FaE, UFMG], 1989, ano IV no 9, e que tenho vindo a reelaborar em vários livros. Em termos demasiado simples, trata-se de considerar que o modelo da mais-valia, tal como Marx o apresentou, é insuficiente se se limitar à produção de bens, devendo incluir a produção dos próprios trabalhadores. É neste sentido que analiso a função dos ócios.
Até uma época bastante recente, mesmo nos países desenvolvidos o consumo dos assalariados durante os períodos de lazer ocorria geralmente em formas pré-capitalistas, sobretudo em modalidades de economia doméstica. Nas últimas décadas, porém, com a substituição dos restaurantes familiares pelo fast food, a substituição das pequenas lojas pelos hipermercados e pelos shopping centers, a difusão das viagens organizadas e a proliferação de serviços destinados a acompanhar, enquadrar e dirigir todas as diversões imagináveis, os ócios passaram a oferecer ao capitalismo inesgotáveis oportunidades de mercado. Todavia, apesar do volume de negócios que representa, este aspecto está longe de ser o mais importante.
É impossível aumentar as qualificações da força de trabalho sem prolongar o tempo de formação dos trabalhadores, e as instituições de ensino são insuficientes para este fim, porque as inovações tecnológicas continuam a ocorrer depois de cada pessoa sair da escola. Os capitalistas encontraram-se perante uma situação paradoxal. Como manter os trabalhadores actualizados e adestrados sem comprometer os horários de trabalho? O problema foi solucionado mediante a conversão dos ócios em processo de qualificação da força de trabalho.
Com o aparecimento dos microcomputadores, a electrónica permitiu, pela primeira vez na história da humanidade, que um instrumento destinado ao trabalho servisse também de meio de divertimento. Todas as formas electrónicas de lazer constituem, por si só, uma forma de adestramento da força de trabalho, o que significa que as pessoas passam alegremente a maior parte dos seus ócios adquirindo habilitações que as tornam mais produtivas. Aliás, a questão é mais complicada ainda, porque os vídeos musicais e publicitários – se é que uns se distinguem dos outros – e os jogos electrónicos habituaram todas as pessoas a modalidades de tempo interseccionado que antes eram apanágio das técnicas vanguardistas de escrita ou de pintura. É durante os lazeres que os indivíduos adquirem a capacidade de lidar com as organizações temporais complexas indispensáve is aos actuais processos de trabalho.
Essa banalização das formas tem correspondido a uma completa indigência dos conteúdos, mas é exactamente isto que se pretende. Provocou-se a habituação dos trabalhadores à modernidade sem lhes suscitar inquietações de espírito, e temos aqui o ideal da pós-modernidade, a simbiose da técnica e da moda numa conjugação que só é fútil para a população comum, porque se carrega para os capitalistas do seu pleno significado. Funcionalmente analfabetos mas ágeis em todas as facetas da vida urbana, dotados de uma percepção imediata da comunicação audiovisual, atentos aos caprichos mais efémeros – mesmo sem passarem por qualquer curso de qualificação profissional estes jovens adquirem as habilitações básicas para lidar com as novas tecnologias.
O que é, então, mais importante: o conteúdo, enquanto conteúdo ideológico dos lazeres, ou a forma, enquanto quadro temporal em que os lazeres decorrem? As novas noções práticas do tempo, indispensáveis para fazer progredir a produtividade na era da tecnologia electrónica, é nos lazeres, muito mais do que nas escolas ou nas empresas, que os trabalhadores as assimilam. Em vez de constituírem uma fuga à exploração, os lazeres tornaram-se uma parte indispensável dos mecanismos da mais-valia.
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Subjacente a esta linha de raciocínio está a questão da autoridade exercida pelas empresas não só sobre os assalariados, durante o horário de trabalho, mas igualmente sobre camadas populacionais mais amplas, e ao longo das vinte e quatro horas do dia. Tenho insistido desde há bastantes anos, em livros, artigos e cursos, na distinção entre o que classifico como Estado Restrito, quer dizer, o aparelho clássico de poder, formado por governo, parlamento e tribunais, e o que classifico como Estado Amplo, ou seja, o exercício da soberania pelas próprias empresas. Este Estado é amplo porque o seu perímetro se sobrepõe ao perímetro das classes capitalistas.
Hoje, na era da transnacionalização, em que as fronteiras entre países e as legislações nacionais não opõem qualquer barreira eficaz à movimentação do capital e à actuação dos capitalistas, as grandes empresas tornaram-se incomparavelmente mais poderosas do que os órgãos clássicos do Estado. E a inclusão dos ócios nos mecanismos da exploração veio ampliar mais ainda a soberania das empresas, permitindo que elas presidam a todos os momentos da nossa vida.
Neste contexto, que significado adquirem a democracia e a luta política? Os democratas de todos os matizes, desde a direita liberal até à esquerda bem comportada, apelam para a difusão da cidadania no âmbito das instituições clássicas do Estado, mas como pode vigorar aí a democracia quando as empresas exercem um poder cada vez mais totalizador? Em A Opção Imperialista, uma obra notável publicada em 1966 e que é ur gente retirar do esquecimento, escreveu Mário Pedrosa (pág. 347): «Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na emprêsa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?».
Para que a disciplina de empresa continue a pautar os comportamentos fora da empresa é necessário que o ócio dos trabalhadores, bem como as vinte e quatro horas dos desempregados, não sejam tempo livre mas tempo controlado. É nece ssário que os pensamentos não vôem mas sigam trilhas. Este resultado não se obtém apenas através da concentração das indústrias cinematográfica e televisiva num escasso número de mãos, com a consequente futilidade de conteúdo das diversões.
Hoje, não é apenas nos níveis económico e ideológico que os capitalistas controlam os ócios, mas ainda no nível directamente repressivo. Dentro das empresas, a electrónica permitiu a fusão do processo de fiscalização com o processo de trabalho. Esta conjugação, inédita na história da humanidade, ampliou-se à sociedade em geral quando os bancos e as lojas começaram a sujeitar os clientes a formas de vigilância que até então haviam reservado para os assalariados. Depois, o facto de os computadores e outros instrumentos electrónicos servirem tanto de meio de trabalho como de meio de divertimento permitiu a fiscalização automática dos ócios. Desde as virtuais às palpáveis, não existe hoje qualquer modalidade urbana de diversão que não seja fiscalizada. Entre o mais intenso dos gestos de trabalho e o mais espreguiçado dos gestos de repouso existe um continuum preenchido pela vigilância electrónica.
E como as firmas de segurança particulares ultrapassaram em verbas e pessoal as polícias oficiais, e como são as próprias empresas quem regista, armazena e selecciona o vastíssimo rasto de informação que cada um de nós deixa ao longo dos nossos lazeres, cabe- lhes a elas, e não ao aparelho tradicional de Estado, formar a infra-estrutura repressiva.
Uma tradição muito difundida na extrema-esquerda considera que a consciência política se obtém na passagem da luta contra os patrões para a luta contra os governantes. Mas será possível nas condições actuais sustentar que o Estado clássico, enquanto órgão de decisões, prevalece sobre as empresas, enquanto instituições dotadas de soberania? Desde a década de 1960 que as movimentações dos trabalhadores ocorridas fora dos quadros sindicais e partidários vêm a entender que o Estado clássico não é mais o alvo supremo das lutas e a considerar a questão da democracia como uma necessidade da estrutura interna das próprias organizações de luta. Sem a transformação das relações sociais de trabalho, de modo a pôr fim ao totalitarismo empresarial, é ilusório pretender que a liberdade possa vigorar em qualquer outro domínio. É esta a lição que Mário Pedrosa resumiu com uma lucidez tanto mais notável quanto o seu livro A Opção Imperialista foi escrito e publicado enquanto vigorava no Brasil o regime militar. Apesar disso, Mário Pedrosa compreendeu que era sobretudo no local de trabalho que a autocracia estava instalada.
Todavia, nos últimos anos os trabalhadores têm deparado com enormes dificuldades para se organizar em lutas colectivas no âmbito das empresas. A terceirização e a subcontratação fragmentaram os trabalhadores, e esta situação agravou-se devido à introdução de horários flexíveis, à expansão dos contrato a prazo e da actividade a tempo parcial e à proliferação de firmas que alugam força de trabalho. Os obstáculos são maiores ainda quando se tenta mobilizar conjuntamente empregados e desempregados. Em alguns países, especialmente onde o desemprego e a economia paralela assumem maiores dimensões, os piquetes e os boicotes urbanos parecem ser uma tentativa de ultrapassar as dificuldades erguidas à acção no interior das empresas. Estas novas modalidades de luta são internas à sociedade capitalista, porque operam num espaço e num tempo – os lazeres – de que o capitalismo se apoderou. Mas como assegurar continuidade às movimentações desse tipo, como consolidar convergências pontuais fora das relações de trabalho estáveis? Isso exigirá que os trabalhadores teçam novas redes de solidariedade nos locais de residência, opondo-se à desagregação e à dispersão dos velhos bairros proletários que constitui hoje um dos principais objectivos do urbanismo.
É um dos sintomas reveladores da fase actual do capitalismo, que as acções de protesto no espaço e no tempo de lazer substituam ou coadjuvem as acções de protesto no espaço e no tempo de trabalho.
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