05/05/14

João Bernardo: "Sobre a Esquerda e as Esquerdas" no Passa Palavra (continuação)


Seguem-se algumas breves observações sobre o ensaio-manifesto do João Bernardo para o qual chamei ainda há pouco a atenção. Da profunda solidariedade entre a inspiração do João Bernardo e o essencial das minhas posições políticas sobre a questão social do nosso tempo, quase tudo o que tenho escrito neste blogue (e não só) é a melhor e sobeja prova. Assim, as dúvidas ou interrogações que esquematicamente lhe endereço a seguir não ambicionam mais do que vincar a necessidade de generalizar o debate e uma reflexão interna à acção que retome e assuma os problemas que o JB formula — tanto mais que lhe darão ensejo, se ele assim o entender, de explicitar melhor alguns dos seus pressupostos e propósitos.

Pertinência e insuficiência da "perspectiva de classe"

1. Quando o JB usa certas formulações do tipo "uma classe trabalhadora mundial e unificada" ou "uma renovada identidade da classe trabalhadora" — ainda que entendidas como agente em processo de construção através da acção política —, creio que poder objectar-lhe que formular em termos de classe a luta contra a sociedade de classes, a luta contra a dominação classista e hierárquica do capitalismo governante, abre a porta a equívocos e obscurece que o traço distintivo e fundamental de uma alternativa democrática ao capitalismo. Este traço distintivo e fundamental — as relações de poder igualitárias, o exercício igualitário aberto a todos sobre as decisões que os governam em sociedade — é, sem dúvida e necessariamente anti-classista, e inclui as (embora não se esgote nas) relações sociais de produção. Mas é por isso mesmo que me parece preferível precisá-lo falando, por exemplo, em termos de cidadania, de superação da distinção estrutural e permanente entre governantes e governados em todos os domínios institucionais — tanto mais que, se bem o leio, até mesmo para o JB, tanto a "classe trabalhadora mundial e unificada" como a "renovada identidade da classe trabalhadora" em processo de construção têm por definição a vocação de se extinguir no momento em que logrem afirmar-se como governantes ou acedam ao exercício do poder. E, sendo assim, uma vez que não preexistem como realidades ou classes "em si", nem persistem como classe ou identidade de classe a partir do momento em que governam, ficamos sem saber ao certo do que falamos quando falamos delas.

Em suma, se é difícil encontrarmos uma crítica mais certeira do multiculturalismo do que aquela que o JB nos oferece, quando escreve, por exemplo: "Tudo somado, os multiculturalistas propõem-se preservar apenas identidades e culturas já estabelecidas e recusam a priori uma cultura [mundial e unificadora] em processo de construção", concluindo que se trata, por isso, "de combater o multiculturalismo, tomando as mesmas matérias-primas culturais que ele pretende congelar no estado actual e na fragmentação geográfica, e construir com elas algo de muito diferente ou oposto, uma realidade nova e mundialmente integradora. É a luta do futuro contra a conversão do presente num mosaico de tradições" — não se segue de uma crítica semelhante, como já tive ocasião de lhe objectar noutro debate, "que seja necessário fazer corresponder a uma classe ou grupo social precisos e dados de antemão o sujeito histórico da transformação revolucionária. Podemos e, a meu ver, devemos pensar antes que a construção desse sujeito é, desenvolvendo-se com ela, inseparável da transformação visada a partir, não de uma classe ou grupo universal que já o fosse antes de o ser, mas da grande maioria dos homens e mulheres que somos, assumindo como cidadãos comuns um projecto de autonomia e autogoverno que nos permita concebermo-nos e agirmos como responsáveis pelas leis e instituições que nos vinculam. Nesta perspectiva, a haver agente revolucionário identificável este seria o conjunto dos cidadãos comuns empenhados na instituição da sua cidadania como governante. Ao mesmo tempo que esta cidadania governante se definiria como exercício livre, igualitário e responsável do poder político (incluindo evidentemente as áreas do trabalho, da economia, etc. entre os assuntos vitais da cidade) por aqueles mesmos que governa ou que através dele se governam. Assim, a divisa da 'cidadania governante' preservaria e aprofundaria, retomando a sua verdade permanente, a universalização proposta pela velha divisa: 'A emancipação dos trabalhadores será obra dos mesmos trabalhadores'".

Os limites da "razão instrumental"

2. Ao que o JB escreve sobre a "razão instrumental", nada me parece haver a objectar grandemente, a não ser na medida em que, à falta de maiores precisões ou desenvolvimentos (mas ninguém pode escrever tudo a todo o momento), possa ser utilizada para obscurecer que a técnica não é neutra, por um lado, e que a "razão instrumental", ainda que nos termos em que JB a concebe, não satisfaz nem esgota a exigência de racionalidade da autonomia democrática. A questão social não é, no essencial, uma questão técnica nem de competência técnica, e a racionalidade política da sua posição democrática é de outra natureza. Refiro-me aqui à racionalidade — dialógica e poiética, se se quiser — que é necessária à criação lúcida dessa "realidade nova e mundialmente integradora" a que o JB se refere no seu ensaio-manifesto, ou, como eu próprio escrevi noutra altura, "reunir gente que vem de tradições e horizontes diversos e cujas antecipações dos conteúdos substantivos de uma sociedade autónoma permanecem abertas ao debate". Acresce que, continuava eu então, "quem quer a liberdade de decidir em pé de igualdade com todos os outros do governo das dimensões comuns ou colectivas da sua própria existência, quer essa liberdade em vista de alguma coisa a que poderíamos chamar aristotelicamente as condições de uma vida boa. O que aqui se sustenta é que essa questão essencial e múltipla só pode ser plenamente posta e indefinidamente retomada por todos e cada um daqueles a quem diz respeito através de uma acção de democratização instituinte" que se confunde com a da cidadania governante e a sua universalização. "O ponto que me importa marcar não é o do relativismo, mas o da criação. A 'vida boa' não pode nem deve ser concebida como um estado de coisas final ou, menos ainda, uma organização estatal cientificamente definitiva" — ou tecnicamente processada —, "mas como um fazer quotidiano, que quotidianamente se interroga e explicita, mantendo-se interminavelmente em aberto à posição de novos fins, imaginados, criados e propostos a partir das encruzilhadas comuns dos (…) trabalhos e ócios [de cada um e do curso conjunto] dos nossos dias". A meu ver — e espero que aos olhos do JB, também —, é tendo em conta tudo isto que poderemos legitimar e limitar adequadamente a "razão instrumental".

Ecologismos

3. É sobre a caracterização — que julgo unilateral — que o JB faz do "ecologismo" ou do papel político da "questão ecológica — não sem excessos polémicos que comprometem a boa parte de boas razões por ele mobilizadas — que as minhas reservas são mais densas. Com efeito, estando embora mais do que de acordo com o JB contra a ideia de opor, em benefício da primeira, a "preservação" e a "transformação" do meio, introduzo uma ressalva que, até ao momento, creio que ele não tem considerado como seria necessário: a gestão do ambiente, a “transformação da natureza” (que é sempre auto-transformação humana, social e histórica, etc.), não é meramente técnica, nem política e socialmente neutra (como, de resto, já vimos que a técnica, também não). Assim, chame-se-lhe ou não "ecológica", a questão do ambiente configura uma área de intervenção e acção política que não devemos descurar, tanto mais que a sua relevância, ainda que distorcidamente representada pelo ecologismo que o JB denuncia, é imediatamente sensível na vida quotidiana. Por outras palavras, se o JB acerta em quase tudo o que diz, deixa por dizer alguma coisa que se torna fundamental não perder de vista. Porque digam este e outros escritos do JB o que disserem a propósito do "inimigo oculto", não é verdade que as preocupações ambientalistas ou a politização das questões ambientais sejam forçosamente uma mistificação ou manobras de diversão, alimentadas por uma espécie de "ódio à rua" (mais ou menos próximo do confessado pelo funcionalismo de certa arquitectura moderna) e de declaração de guerra à polis, entendida como condição da democracia.

Esquematizando muito, o meu ponto é o seguinte. As questões ambientais e da gestão dos recursos, etc. podem e devem, uma vez que fazem parte das condições comuns de existência, ser objecto de deliberação e decisão democráticas, e se, de facto, certas concepções do "equilíbrio natural", da naturalização da "ordem do mundo", etc., como paradigmas do comportamento humano, ou leis imutáveis dos seus meios e fins podem desempenhar, desempenharam por vezes e com frequência continuam a desempenhar o papel de uma sacralização da dominação hierárquica de tipo fascista, não é forçoso colocarmos as questões ambientais nesses termos, nem esquecer que a "natureza", excepto na sua mitificação sob as formas invocadas pelo JB ou outras afins, é bem menos "natural" e equilibrada, para já não dizer "sábia" ou "esclarecida" do que o conservacionismo a pinta, uma vez que, mais não seja, a própria cultura ou sociedade é ab initio uma transformação interna às condições naturais, uma criação tornada necessária, embora não sob uma forma definida e predeterminada, pelo estado natural anterior.

Gostaria de terminar com uma observação um tanto à margem da leitura do ensaio-manifesto do JB, ainda que inspirada por ela. A ideia comum ao optimismo produtivista e tecnológico e à ideologia do ecologismo naturalista, ideia segundo a qual, no fundo, a política é dispensável, e as questões políticas e sociais são passíveis de receber uma solução técnica (soft ou hard, conforme os gostos) ou, se se quiser, "tecno-científica". Esta ideia, partilhada por campos e lógicas aparentemente opostas, é ela, sim, radicalmente antidemocrática, e tão hierárquica ou sacralizadora da ordem estabelecida ou a estabelecer, através da sujeição dos cidadãos à soberania de um bem sobre o qual lhes é interdito pronunciarem-se, quer se manifeste sob a forma do credo religioso e teocrático da ecologia "profunda, quer prospere a coberto de qualquer outro fundamentalismo assente no "esplendor da verdade" revelada — e reservada a autoridades competentes cuja legitimação pressupõe, estipula e perpetua a destituição política do comum dos cidadãos.

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