19/05/14

O essencial e o acessório

O pressuposto segundo o qual o socialismo ou comunismo requer um certo nível de produção é absurdo. Parafraseando o próprio João Bernardo: o combate ao capitalismo como modo de produção, ou seja, como sistema de relações sociais de trabalho é o que define o anti-capitalismo. E a sua transformação num sistema auto-gerido pelos trabalhadores é o que define o socialismo ou comunismo. Citando Miguel Serras Pereira: “(…)falar de assegurar mais e melhor do que o capitalismo a "abundância" exigiria, a meu ver, que se precisasse melhor o que se entende por esta: abundância de quê e para quê(…)”. Adicionaria ainda que tal é matéria para os trabalhadores decidirem, quando quiserem ou tiverem poder para tal. Epítetos como “socialismo de miséria” ou “socialismo da abundância”, que deliberadamente tentam associar socialismo e (um certo nível de) produção são o acessório que apenas serve para distrair do que é realmente essencial para a implementação do socialismo ou comunismo. Aliás, concordo inteiramente, e não tenho dúvidas que a esmagadora maioria daqueles que se consideram parte da “esquerda ecologista” também concordariam, com este parágrafo escrito pelo João Bernardo:

O que afirmo é a necessidade de que as novas técnicas originadas pelo desenvolvimento das relações sociais de luta e a nova tecnologia em que futuramente se hão-de articular em conjunto sejam produtivas e gerem abundância mediante formas materiais e sociais distintas das usadas no capitalismo.

Suporá João Bernardo, que alguém não vai utilizar as técnicas mais produtivas ao seu alcance, tendo em conta os objectivos que pretende atingir?... Ou, será da opinião que a produtividade é um fim em si? Produzir, produzir, sem olhar a quê?! Obviamente que as técnicas que diferentes colectivos de trabalhadores considerarão como passíveis de serem utilizadas, dependerão dos objectivos decididos democraticamente por eles. E, tal como se recusarão a utilizar certas técnicas que apenas poderiam ser implementadas num sistema assente na exploração do homem-pelo-homem, poderão igualmente recusar-se a trabalhar tendo como único fim a maximização do consumo, e independentemente das consequências para o meio material onde se inserem. Estarão no seu pleno direito se assim decidirem. E é, tão somente, pelo facto de tal decisão ser por eles tomadas que podemos aplicar os termos socialismo ou comunismo ao sistema de relações sociais por eles implementadas.

Aparentemente, o epíteto “socialismo da abundância” terá também como objectivo convencer os trabalhadores de que socialismo não implica miséria, associação reforçada pela imagens de penúria que (também) chegam e chegavam dos países ditos aderentes ao “socialismo real”. Patente, por exemplo, nesta afirmação: “O que se passa, no entanto, é que a classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer exemplos de miséria.” Mas, estranhamente, o João Bernardo não consegue indicar nenhum exemplo concreto desse “socialismo da abundância”. Aliás, nem me parece que seja da opinião que algum dia tal exemplo fique disponível, dado que tem recusado enfaticamente a possibilidade da implementação do socialismo ou comunismo ao nível local, regional, ou “nacional”. Ou seja, tanto quanto percebo, mas posso estar enganado, o João Bernardo acha que só será possível implementar o socialismo ou comunismo (“da abundância”) quando houver condições para o fazer ao nível planetário. Mas, sendo assim, decorreria que nunca seria possível oferecer qualquer exemplo concreto e realista de tal sistema antes da sua implementação plena. E ficaríamos assim reduzidos à mera fé. A possibilidade da revolução assentaria apenas e somente na crença utópica no socialismo ou comunismo (“da abundância”). Difundir a ideia do socialismo ou comunismo consistiria num acto evangelizador. Conclusão irónica, tendo em conta a crítica e condenação constante do que se considera o irracionalismo dos outros.

O socialismo ou comunismo só se implementará de modo sustentável, se os trabalhadores interiorizarem que o essencial da sua luta é, repito, a auto-gestão, a autonomia, a democracia como modo de organização de todos os sistemas de relações sociais. Não é a “abundância”. Ou a “produtividade”. E a auto-gestão, a autonomia, mesmo que resultando numa menor “abundância” ou “produtividade”, são possibilidades que se concretizam diariamente um pouco por todo o planeta. Constituem exemplos da existência concreta e material do socialismo ou comunismo, e servem de inspiração a todos os que pretendem viver sob as mesmas condições. É pela reprodução destes exemplos, diversificação, e agregação solidária em redes regionais e trans-nacionais, que será possível construir passo-a-passo a autonomia, o socialismo ou comunismo. A crescente massa crítica permitirá ir cortando as ligações ao sistema capitalista, apressando o seu colapso e substituição. A escala temporal associada a este processo dependerá de modo crítico da longevidade dos recursos materiais ao dispor do actual sistema capitalista, essenciais à sua manutenção, como tenho vindo a discutir nesta série de textos. Processo cujos resultados pretendidos não estão de modo nenhum assegurados à partida. A sobrestimação da capacidade de resistência do actual sistema de relações de produção, e super-estrutura sócio-política que as enquadra, ao embate com a finitude dos recursos materiais que o sustentam, será um erro que poderemos pagar caro, abrindo caminho à manutenção e mesmo aprofundamento do autoritarismo em todas as formas de relações sociais.

1 comentários:

Libertário disse...

"Na clássica dicotomia socialismo ou barbárie, o socialismo não se confronta só com a barbárie do capitalismo. Confronta-se igualmente com a ameaça de barbárie proveniente daquela esquerda ecologista que, pretendendo ultrapassar o capitalismo ou fundar microcosmos paralelos, se propõe restaurar formas sociais e níveis de produtividade pré-capitalistas."

Isto é para ser levado a sério?