18/08/10

A Literatura como veneno

A arte tem mesmo a capacidade de, sem aviso prévio, irromper no momento mais ramerraneiro e interpelar-nos com emoções, perplexidades e outras visitas incómodas. Por vezes, devolvendo-nos reflexos nada lisonjeiros de nós mesmos, a propósito da nossa visão dos outros. Ocorreu-me ontem um episódio assim, nascido na mais anódina das circunstâncias. Estava num comboio a ler Se Isto É um Homem, de Primo Levi, quando mesmo ao meu lado se sentou um grupo de jovens turistas alemães. Louras, quase bonitas, sossegadas, limpas, altas, bem musculadas; as ninfas teutónicas do estereótipo.
Em minutos, a contaminação deu-se. Comecei a sobrepor ao seu palrear alegre a ilusão de ouvir «os bárbaros latidos dos alemães, quando dão ordens, que parecem libertar uma raiva velha de muitos séculos». Lembrei-me destas imagens e de tudo o mais que sei e que Levi me lembra: a aniquilação absoluta da alma, bem antes da incineração do corpo, esgotado o seu potencial económico para a indústria alemã. A máquina de degradação que mói os prisioneiros até os reduzir a «pó humano». Os muitos que desapareceram logo à chegada, cinzas a chover sobre casas, animais e pastagens, num verniz maligno e pegajoso que nem um século de penitência poderia lavar. A minuciosa e alucinada burocracia que asfixia o mais ínfimo procedimento no lager. As marchas tocadas para marcar a partida e chegada dos escravos. E, acima de tudo, a resposta do SS, a resumir a essência do local onde o homem já não é ente capaz de perguntar, nem de imaginar, nem de sonhar; é coisa perdida num lugar que é também apenas uma coisa inominável, inexplicável, incompreensível: «Hier ist kein Warum».
Os alemães que mantinham o mecanismo da ignomínia em boa ordem, produzindo sempre mais braços para trabalhar e mais cinzas para se amaldiçoarem, não eram Himmlers nem celebridades com nomes poéticos como Anjo da Morte. Eram camponeses, escriturários, estudantes, operários. Jovens como as que de repente já quase odiava, ali num comboio tão longe de Auschwitz. E nada as redime a meus olhos; muito menos as palavras de Sebald, que me lembro de ler há meses, sobre a ausência de um grande banho de culpa que lavasse mesmo aquelas almas tão eficazes, aquela nação tão lesta a imolar o vizinho judeu, a abominar todos a quem tatuava a palavra da inumanidade – "Untermenschen".
Mas claro que a Literatura é apenas umas palavras bonitas sobre papel manhoso. Fechei o livro, saí no meu destino e claro que sei agora que as turistas não me fizeram mal algum. Mal faz-me ler de mais.

4 comentários:

Diogo disse...

Uma figura mais mediática do que Primo Levi é Elie Wiesel.

Elie Wiesel é um judeu nascido na Roménia a 30 de Setembro de 1928. Aos 15 anos é deportado para Auschwitz, onde esteve prisioneiro durante dez meses, e depois para Buchenwald. Sobrevivente dos campos de concentração nazis, torna-se cidadão americano em 1963 e obtém uma cátedra de ciências humanas na universidade de Boston. Em 1980, Elie Wiesel funda o Conselho para o Holocausto americano. Condecorado em França com a Legião de Honra, recebeu a Medalha do Congresso americano, recebeu o título de doutor honoris causa em mais de cem universidades e recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1986. O Comité norueguês do Nobel denominou-o "mensageiro para a humanidade."

As suas obras, quase 40 livros, edificadas para resgatar a memória do Holocausto e defender outros grupos vítimas de perseguições receberam igualmente vários prémios literários. Em Outubro de 2006, o Primeiro-ministro israelita Ehud Olmert propôs-lhe o cargo de Presidente do Estado de Israel. Elie Wiesel preside, nos EUA, desde 1993, à Academia Universal de Culturas.

Elie Wiesel, no seu livro autobiográfico «Noite», onde descreve os dez meses em que esteve prisioneiro no campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, não refere uma única vez nenhuma das cinco enormes câmaras de gás que funcionaram em Auschwitz-Birkenau.

E quando os Russos estavam prestes a tomar conta de Auschwitz em Janeiro de 1945, Elie e o seu pai escolheram ir para a Alemanha com os nazis em retirada em vez de serem libertados pelo maior aliado de América. Se tivessem permanecido no campo, teriam podido, dentro de dias, contado ao mundo inteiro tudo sobre o extermínio dos judeus perpetrado pelos nazis em Auschwitz - mas, Elie e o pai escolheram, em vez disso, viajar para oeste com os nazis, a pé, de noite, num Inverno particularmente frio, e consequentemente continuarem a trabalhar para a defesa do Reich.

Excerto do livro «Noite» de Elie Wiesel:

- O que é fazemos, pai?
Ele estava perdido nos seus pensamentos. A escolha estava nas nossas mãos. Por uma vez, podíamos ser nós a decidir o nosso destino: ficarmos os dois no hospital, onde podia fazer com que ele desse entrada como doente ou como enfermeiro, graças ao meu médico, ou, então, seguir os outros.
Tinha decidido acompanhar o meu pai para onde quer que fosse.
- E então, o que é que fazemos pai?
Ele calou-se.
- Deixemo-nos ser evacuados juntamente com os outros – disse-lhe eu.
Ele não respondeu. Olhava para o meu pé.
- Achas que consegues andar?
- Sim, acho que sim.
- Espero que não nos arrependamos, Elizer!



A escolha aqui feita em Auschwitz por Elie Wiesel e o seu pai, em Janeiro de 1945, é de extrema importância. Em toda a história do sofrimento judeu às mãos dos nazis, que altura poderia ser mais dramática do que o precioso momento em que um judeu podia escolher entre a libertação pelos Soviéticos ou fugir com os genocidas nazis para a Alemanha, continuando a trabalhar para eles e ajudando-os a preservar o seu regime demoníaco?

Luis Rainha disse...

Já li algumas coisas de Wiesel. Prefiro o Levi.

Gonçalo Marcelo disse...

Coitadas das ninfas teutónicas da actualidade que, apesar da culpabilidade dos seus avós, pouco têm que ver com a realidade de antanho. Levi e os outros milhões de vítimas dos KZ sofreram, em parte pela atrocidade brutalmente eficaz da máquina nazi e de quem a dirigia, em parte pela atitude marcadamente passiva de todo o povo alemão perante tais atrocidades.

No entanto, a Alemanha de hoje é uma sociedade tão desmilitarizada e tão desconfortável com o passado recente que tende para uma posição quase completamente pacifista, grandes sectores da população crêem que nunca mais um soldado alemão deveria pegar em armas. Isso coloca grandes problemas, por exemplo, em relação à participação das missões no Afeganistão.

Quanto às ninfas, é deixá-las andar por aí tranquilas. Pode ser que venham inspirar algum poeta incauto que por aí deambule.

Luis Rainha disse...

Pois, mas, mesmo assim, foram os primeiros a entrar na dita "coalition of the willing" com a sua força aérea...