24/08/10

Tomar partido: o caso da lapidação

O Renato Teixeira diz que é contra a lapidação mas que não se manifesta efusivamente neste caso concreto porque tal manifestação seria fazer o jogo dos que defendem uma ofensiva militar contra o Irão. É um argumento táctico. Que pode e deve ser discutido, até porque sabemos que por vezes os debates humanitaristas precedem intervenções militares, o que não quer dizer que as segundas sejam responsabilidades dos primeiros, mas nem por isso justifica que sejamos tontos face à dinâmica que as coisas tomam. Agora, o problema do Renato é que confunde humanitarismo com internacionalismo. É uma confusão legítima, porque a vida é confusa e as coisas, na verdade, andam sempre todas um pouco misturadas. O que deveria ser claro, para o Renato como para os comunistas e bloquistas que revelam alguma timidez neste debate, é que este tacticismo em torno da crítica da lapidação não parece fazer muita justiça a qualquer perspectiva radicalmente internacionalista. Porventura, dirão, não é tempo de assumir perspectivas radicalmente interancionalistas. Eu acho que é tempo, justamente, de assumir o internacionalismo mais radical em todos os debates: das greves proletárias às lutas feministas. Não que saiba exctamente como isso poderá e deverá ser feito. Mas há uma inércia nacional com a qual, à esquerda, devemos saber romper. Os sindicatos, apesar de tudo, tem sabido, desse ponto de vista, dar passos mais interessantes do que os partidos. Um tal internacionalismo radical, diga-se, e será essa a preocupação do Renato, terá também que saber marcar distâncias face a discursos de pendor humanitarista. De acordo. Da minha parte, não se trata, na verdade, e creio que o mesmo é válido para o Miguel Serras Pereira, que aqui tem escrito sobre este assunto, de lutar "por quem" vai ser lapidado. Mas de lutar ao lado de quem vai ser lapidado. A distância física, nesse sentido, só o é porque há uma filtragem nacional que a assinala. E essa filtragem, que não deve ser ignorada, não pode, porém, ser um critério táctico. Devemos agir como se não existissem nações (até porque sabemos que elas existem) e como se a lapidação que acontece no Irão fosse uma lapidação que acontece no Irão como poderia acontecer em qualquer outro lado. Porque a questão é que o tal do Irão, em parte (e uma parte que será tanto maior quanto a nossa capacidade de tomarmos partido num plano internacionalista), não existe mesmo. O Irão de que o Renato fala faz sobretudo sentido na cabeça dos militares do pentágono, dos diplomatas iranianos e de mais uns quantos peritos e jornalistas que, da esquerda à direita, insistem em falar de "um" Irão e não de quem, no Irão, esteja a lutar contra a lapidação. E que o faz independentemente do risco de acabar por levar com uma bomba em cima da cabeça daqui a uns meses. E é junto a esses que devemos estar. Até porque é o facto de se mostrar que há lutas internas que torna as campanhas em prol das ofensivas externas ainda mais ilegítimas. Lutamos não em jeito de auxílio humanitário às "vítimas", mas porque tomamos partido num conflito que acontece lá, ao lado de quem é, mais do que vítima, "resistente" e "combatente". Com efeito, o "lá" só é "lá" se olharmos para as coisas com os olhos de quem pensa a política através de unidades soberanistas. Nem é preciso, para não pensarmos a política assim, vir recordar a importância do chamado internacionalismo proletário, que supõe uma classe transnacional, que existe "lá" como "cá", internacionalismo que só concebe um mundo global (embora com tensões internas e não "plano"; combinado e desigual, dizem uns quantos). A questão feminista, por exemplo, anula igualmente as hipóteses do juízo tacticista do Renato. Porque basta pensar que quem vai ser lapidado é uma mulher e não uma iraniana. E que vai ser lapidada porque é mulher. E é também por aí que devemos tomar partido enquanto feministas. Há uma frase do Mario Tronti, escrita em 1966, se não estou em erro, que é sempre útil citarmos: «Se é verdade que é urgente e, talvez, preliminar a tudo, repor de pé urna estratégia internacional da revolução, devemos compreender que tal não se fará enquanto continuarmos a brincar com o mapa-mundo de crianças inventado pela geografia política burguesa e que, para comodidade didáctica, se encontra dividido em primeiro, segundo e terceiro mundo».

5 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Grande Zé Neves, maré alta. Não podias ter dito melhor, camarada.
Acabava eu de deixar este comentário (a que retirei a primeira frase) na caixa do post do Renato quando li o teu. Fica aqui como apoio e à laia de abraço solidário

miguel sp

"quando condenamos um regime que pratica a lapidação, a pena de morte, a censura, a interdição das liberdades políticas e sindicais, e é um Estado confessional que considera crime penalmente punível com a tortura e a morte qualquer ofensa à fé que professa – quando condenamos esse regime e o seu Führer estamos não só a cumprir um dever de solidariedade e de combate à opressão, como a defender os nossos próprios direitos e a sua extensão, aprofundamento, generalização a nível global, contra todas as formas de prepotência oligárquica e classista. Na realidade, se aceitarmos, invocando considerações tácticas, cálculos de relações de forças, razões instrumentais e utilitárias, que os direitos elementares, que são condição necessária (ainda que não suficiente) da liberdade e igualdade democráticas, podem ser sacrificados em nome de “bens” superiores, estaremos, não só a justificar a utilização como arma de eventuais exércitos de escravos e/ou súbditos servis que mais não podem do que reproduzir ou reciclar a tirania e a desigualdade, como a enfraquecer e a comprometer fatalmente a nossa posição quando defendemos, AQUI, os nossos direitos e liberdades, tendo em vista a nossa própria emancipação dos jugos oligárquicos locais.
Mais ainda, como se sabe os regimes de tipo iraniano reivindicam não só o direito de oprimir, em nome da sua identidade de portadores da verdade universal revelada, os povos que já governam, mas também o direito de aplicar o seu direito penal a cidadãos de outros países. Nesse sentido, são, para alguns de nós de facto e potencialmente para todos, uma ameaça imediata e directa. Basta pensar no caso Rushdie e na fatwa contra ele – e, já agora, contra os tradutores dos Versículos Satânicos, entre os quais me conto – para nos darmos conta de que é assim. Mais recentemente, o caso das caricaturas de Mafoma e outros episódios confirmam que nada mudou, ou que, melhor dizendo, o mesmo sanguinário zelo expansionista parece ter adquirido novos fôlegos.
É também em legítima defesa que agimos quando nos manifestamos contra as repúblicas islâmicas que começam por fazer guerra aos seus próprios povos."

Niet disse...

Grande texto e óptimas perspectivas para o avanço do combate ideológico que, estou convicto, estimulará decisivamente, caro Z. Neves, o curso da agenda para a construção de uma alternativa consequente e vitoriosa para as classes em luta contra todas as formas de discricionário poder. Com ênfase e alegria transparente constato que deparamos no seu trabalho teórico com um ideólogo de grande perseverança,com um enragé sentido e universalismo e rigor: qualidades que já constatei na edição de bolso da sua tese sobre o " Comunismo e Nacionalismo em Portugal ". O Miguel Serras Pereira invoca muito justamente a legítima defesa para nos opormos ao processo de Estado no assassinato por lapidação de Sakineh Mohammadi Ashtiani por alegado crime de adultério no Irão. A opinião pública mundial ergue um colossal grito de protesto contra mais esta iniquidade do regime ditatorial dirigido por Ahmadinejad, que se encontra sumamente enfraquecido pela crescente distância que o clero shiita, garante do regime, lhe manifesta. Será uma hipótese para ver nascer focos de luta revolucionária no Irão, que resgatem 30 anos de ditadura medieval e arbitariedade cripto-fascista? Salut! Niet

Anónimo disse...

"É um argumento táctico."

Pois a mim parece-me um argumento completamente despropositado apesar da política estrangeira Iraniana reflectir de forma inequívoca a natureza insidiosa do regime em causa. O que eles fazem no exterior é uma reflexão do que fazem internamente. Chama-se a isto a coerência do dogmatismo.

Além disso, não parece ter ocorrido ao Renato que é perfeitamente possível criticar a natureza hedionda do regime Iraniano sem defender as políticas estrangeiras dos países que ele abomina (EUA, Israel e a UE)

Anónimo disse...

Zé Neves, está tudo mais ou menos certo. Acho.

Ficou no entanto perdido, no calor do debate, a questão que levanta a discussão em torno da manifestação: porquê centrar a luta contra a lapidação no Irão?

A questão táctica não se coloca para quem no Irão deve dar o combate emancipatório. Nem tão pouco deixar de abraçar a luta contra a lapidação porque isso de alguma maneira fere um inimigo do imperialismo.

O central é perceber se, porque estamos a "lutar por" e não "ao lado de", as convulsões da nossa boa consciência não fazem o jogo de alguém tão ou mais obscuro que a República Islâmica.

Do que me chega, das petições às manifestações, é mais o cheiro do esturro do que da boa vontade.

É que no barulho da conversa ainda ninguém explicou porque é que o chamado resvala para uma lógica de discurso anti-Irão e porque é que omite a maioria das mulheres e dos homens vítimas dessa barbaridade. Principalmente na Arábia Saudita.

Tens resposta para isso? Nem que seja assim como esta? Mais ou menos certa?

Renato T.

Zé Neves disse...

renato,

percebo o teu ponto, como julgo já ter deixado claro no meu post. acompanho a tua reflexão e preocupação. mas por isso mesmo, contra a lapidação é importante que exista um discurso internacionalista e feminista radical, que se autonomize dos discursos que aqui tenho chamado (não sem simplismo) humanitaristas.

abç