06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (2.2)

Continuando o post anterior, a maior semelhança aparente entre o fascismo e os estados sociais da Europa do pós-Guerra parece ser mesmo a política de concertação social (e, pelo menos no caso dos democratas-cristãos, essa politica talvez possa ter algum ADN comum com o corporativismo fascista, no sentido de em ambos se poder encontrar alguma influência do catolicismo social, e também do "nacionalismo integral" estilo Ação Francesa, que valorizavam as associações profissionais e a negação da luta de classes), de pôr o estado, os sindicatos e as associações patronais à mesma mesma para negociarem salários, férias, reformas, etc.

No entanto, há uma diferença fundamental, que nalguns aspetos até inverte o significado real de processos que formalmente parecem similares: o autoritarismo fascista, com a arbitragem obrigatória (ou algo muito parecido com isso) e a proibição das greves (não digo que isso por vezes também não acontecesse nalguns casos da Europa do pós-guerra, mas numa versão muito mais branda). E porque isso muda tudo? Porque um sistema de concertação social com direito à greve e em que sindicatos e associações patronais têm longas negociações até chegar a um acordo muito provavelmente dá mais poder ao "trabalho" do que teria num mercado livre; em compensação, num sistema em que as greves estão proibidas, e em que as negociações entre sindicatos e patrões funcionam mais na base de cada parte apresentar as suas exigências, e se não chegarem rapidamente a acordo, o representante do estado decide como vai ser, até pode dar à parte patronal mais poder que num mercado livre (se conseguirem que o estado se ponha do lado deles - mas há vários aspetos do sistema fascista que, por mais acima das classes digam que sejam, os acabam por levar mais para o lado do "capital" do que do "trabalho") - para um exemplo de como a política laboral da Alemanha nazi desequilibrou as relações laborais a favor do capital, ver o post de "pseudoerasmus" Nazi political economy.


Além disso, a concertação social do pós-guerra tem uma conotação de diálogo, negociação, e até implicitamente de decisões lentas, tentando que todos fiquem contentes (uma nota, que parece uma divagação, mas é ilustrativa para o que vou dizer a seguir: nos Países Baixos, esse modelo de negociação entre parceiros sociais é conhecido por poldermodel, e ao fim de algum tempo o significado dessa palavra alargou-se para designar a norma holandesa de governos com amplas coligações e com longas negociações para se decidir seja o que for); isso tem alguma coisa a ver com o fascismo, que pelo contrário faz o culto do líder e do "acreditar, obedecer, combater"??? A mim parece-me, na sua essência, quase o oposto.

Um assunto especifico que me parece merecer uma comparação entre a concertação social-democrata e o corporativismo autoritário é na famosa (para quem se interesse por macroeconomia) questão da rigidez nominal dos salários nas recessões; à partida suspeito que um sistema de concertação social-democrata provavelmente aumentará essa rigidez (no sentido de tornar mais difícil baixar salários nominais, devido à necessidade de acordos e negociações) face a um sistema puramente liberal; em compensação, num sistema de corporativismo autoritário, é provavelmente mais fácil baixar os salários nominais (se for essa a política do governo) do que num sistema liberal (em que, mesmo que não haja direitos especiais para os sindicatos, continua a haver muitas fricções que tornam difícil que, a nível das empresas individuais, se consiga baixar salários) - e pelo menos em Itália parece ter havido, no final dos anos 20 e no principio dos anos 30, uma política de cortes salariais por ordem governamental (tenho a ideia de também ter havido uma queda muito rápida dos salários nominais na industria conserveira algarvia depois da adoção do sistema corporativo, mas não tenho à mão a fonte onde acho que vi isto).

Já agora, porque é que eu digo que é de esperar que, num sistema fascista, o estado, por mais que diga que é o arbitro imparcial entre as classes, acabará por defender mais os interesses do patronato?

- Para começar, porque, pela própria natureza das coisas, é de esperar que os governantes e altos funcionários tenham mais interação social com empresários do que com assalariados; isto acontece em qualquer sistema político (ou pelo menos em qualquer sistema político com empresas privadas), mas numa democracia é contrabalançado por os trabalhadores terem mais votos, e no fascismo não existe esse contrapeso

- Em segundo, porque o nacionalismo e a oposição à luta de classes levam facilmente a uma atitude de menosprezar as questões da repartição da riqueza (se tanto uns como os outros fazem parte da "nação", não há grande motivo para querer tirar de uns para dar a outros), ainda mais se conjugados com uma atitude anti-materialista; e isto parece-me uma situação em que a neutralidade acaba por beneficiar o grupo que à partida está em vantagem.

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