06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (2.5)



Eu diria que a comparação entre o fascismo e afins versus os estados sociais do pós-guerra pode ser vista em função da teoria dos três tipos de liderança - autoritário (o chefe decide), democrático (o grupo decide) ou laissez-faire (cada um decide); e o que o fascismo e o estado social têm em comum é (pelo menos no que diz respeito à economia), não serem laissez-faire; mas o fascismo é autoritário, com o culto do chefe (tanto a nivel da nação como frequentemente também a nível microssocial - veja-se que na Alemanha nazi o Führerprinzip era aplicado a todas as instência sociais: estado, escolas, empresas, clubes), enquanto a filosofia do estados sociais do pós-guerra era democrática, empenhados em negociar tudo - concertação social, governos de coligação (com preferência pelo parlamentarismo e pela representação proporcional), por vezes co-gestão, etc.

Além de que mesmo o não-liberalismo da Europa do pós-guerra era praticamente quase apenas na economia - em matéria de liberdades civis e políticas era bastante liberal, pelo menos para os padrões históricos até então (com algumas exceções, como a política alemã de proibir partidos anti-sistema; mas mesmo essa exceção formal pouca relevância tem na prática; p.ex. bastou ao proibido "Partido Comunista da Alemanha" voltar a registar-se como o nome "Partido Comunista Alemão" para contornar a proibição); e é um bocado deslocado, acho eu, considerar a política económica como o critério principal para distinguir o "fascismo", quando os fascistas até tendiam a achar que demasiada preocupação com questões económicas era um sinal da decadência capitalista e marxista (ou, para os nacional-socialistas, da decadência judaica capitalista e marxista), por vezes com referências ao marxismo ser o "capitalista da classe operária" (exatamente pelo seu materialismo).

Aliás, o próprio Ricardo Dias de Sousa considera "Adenauer (...), Blum, ou De Gaspieri" como "liberais" - atendendo que Blum (se é o Blum que eu estou a pensar) era um socialista e Adenauer e De Gaspieri eram democratas-cristãos (e presumo que alinhados com as críticas da doutrina social da Igreja ao liberalismo económico), presumo que nesse ponto está a identificar "liberalismo" com liberalismo político (e não necessariamente com liberalismo económico); mas então, se a Europa do pós-guerra era politicamente liberal, porque não dizer que foi uma continuação do liberalismo em vez de uma continuação do fascismo?

Outra forma de vermos isso seria pelo prisma de Vilfredo Pareto, um economista italiano mais conhecido por conceitos como o "ótimo de Pareto" ou a "distribuição de Pareto", mas que foi também um dos influenciadores do fascismo, pela sua teoria das elites e dos "leões" e das "raposas":

Para Pareto, algumas elites dominam recorrendo sobretudo à força e à coragem (os "leões"); outras à astúcia (as "raposas"); perante obstáculos ou oposição, os governantes "leões" seguem em frente e tentam derrotar as resistências; os governantes "raposas" tendem a preferir negociações, a manipulação e os compromissos para atingir os seus objetivos. Isso estaria ligado a diferente predisposições psicológicas - nas "raposas" predominaria o "instinto das combinações" (a tendência para desenvolver novas ideias, que seria responsável pelo progresso intelectual e cientifico), nos "leões" o "resíduo da persistência dos agregados" (a tendência para manter as ideias e valores previamente adquiridos, que contribuiria para estabilizar as normas morais, familiares e religiosas).

Segundo Pareto, seria desejável para uma sociedade funcionar que entre o povo predomine o "resíduo das persistência dos agregados" e que o "instinto das combinações" ocorra mais na elite governante; mas isso teria um limite - há medida que uma elite dirigente se mantém há muito no poder, o peso do "instinto das combinações" vai aumentando e os governantes vão-se tornando cada vez mais "raposas" e menos "leões", cada vez mais procurando resolver todos os conflitos com soluções engenhosas que façam todos ficar contentes e cada vez menos capazes de recorrer à força e à crueldade para impor as suas decisões; e quanto este processo atinge um dado ponto, a situação torna-se insustentável e essa elite fraca e hiperintelectualizada de "raposas" acaba por ser substituída, possivelmente por uma revolução sangrenta, por uma nova elite violenta de "leões" vinda do povo (o tal povo onde predominaria o "resíduo da persistência dos agregados", recomeçando o ciclo. Pareto considerava que era neste ponto que estava a Itália do principio dos anos 20, com governos de coligação sempre a cair e agitação social crescente, e apoiou o fascismo por considerar que tinha chegado a altura de substituir as "raposas" por "leões" à frente do estado.

[Um aparte - acho que aquele meme que esteve na moda há uns tempos, dos "tempos duros criam homens fortes, homens fortes criam tempos bons, tempos bons criam homens fracos, homens fracos criam tempos duros" parece-me parecido com a teoria de Pareto, ou talvez com a de Spengler, que creio que tinha uma teoria parecida]

E o que tem isto a ver com toda a conversa anterior? É que a Europa do pós-guerra também me parece muito mais de "raposas" do que de "leões", de governantes que preferiam governar por acordos, negociações e tentando satisfazer o maior número de pessoas do que pela força e pela coragem; ou seja, exatamente o oposto do fascismo.

Uma exceção a tudo o que estou escrevendo - a França de De Gaulle, que em muitos aspetos realmente parecia o que, dentro do regime democrático, seria o mais parecido possível com o fascismo (um regime com um líder forte, herói de guerra, nacionalista, e, sim, também com o tal dirigismo económico, e surgido também na sequência de um periodo de governos fracos e instáveis).

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