As diferenças eram tão ténues, que o paradigma do Estado do Bem-Estar, o modelo austro-escandinavo, foi implementado na Escandinávia por sociais-democratas e na Áustria por democratas-cristãos. Ambos com mais esqueletos fascistas na administração do que gostariam de admitir.
E aí eu pensei "neste ponto tenho que concordar, sobretudo na Áustria - além de ter herdado uma administração pública dos tempos fascistas, o próprio partido democrata-cristão austríaco, o Partido Popular Austríaco, é a continuação dos partidos «austrofascistas» de antes da guerra, o Partido Social-Cristão e a Frente Patriótica"; mas depois lembrei-me que, se o Partido Popular foi criado a partir do "austrofascismo" (o regime que governou a Áustria entre 1934 e 1938, antes da anexação com a Alemanha), o Partido da Liberdade foi criado largamente com base nos antigos nazis; e se o Partido da Liberdade hoje em dia é considerado um partido de extrema-direita, associado internacionalmente à Frente Nacional francesa e ao Chega, durante décadas foi visto como um partido liberal, filiado na Internacional Liberal, e provavelmente o mais liberal economicamente dos grandes partidos austríacos e menos comprometido exatamente com o tal modelo austro-escandinavo.
Mesmo na Alemanha, isso hoje em dia está largamente esquecido, mas nos anos a seguir à guerra o partido liberal clássico FDP (tal como na Áustria, os mais liberal economicamente dos grandes partidos, ou se calhar de todos os partidos alemães da altura) foi um dos alvos preferenciais do "entrismo" dos ex-nazis, ao ponto do partido a dada altura ter criado uma comissão de inquérito para controlar a infiltração (o chamado "caso Naumann", referente a Werner Naumann, "Ministro da Propaganda" do governo imaginário que Hitler nomeou antes de suicidar, e que seria o organizador da infiltração).
E mesmo na outra Alemanha verificou-se um fenómeno parecido: no regime comunista na RDA, havia pseudo-partidos (similares ao PEV em Portugal) para os políticos não-comunistas que estavam dispostos a colaborar com os comunistas - a União Democrata-Cristã (sim, com o mesmo nome que na RFA) para os que vinham da área da democracia-cristã, o Partido Liberal Democrático (LDPD) para os que vinham dos partidos liberais dos tempos de Weimar e o Partido Nacional Democrático (NDPD) para os antigos nazis
Após a reunificação, esses partidos integraram-se nos seus congéneres da RFA: a CDU na CDU (surpreendente...) e o LDPD no FDP (da mesma maneira, nos partidos oposicionistas criados em 1989, o Partido Social Democrata foi absorvido pelo SPD, o Novo Forum pelos Verdes e o Fórum Alemão e o Partido Democrático Livre pelo FDP); bem, e o que foi feito do Partido Nacional Democrático? Teve alguns contactos com partidos de extrema-direita da RFA, mas acabou por se integrar também no FDP.
Claro que se pode dizer que, 45 anos depois, já não haveria nenhuns ex-nazis no NDPD - mas de qualquer maneira era um "partido" que tinha a função de na política da RDA interpretar o papel "partido para representar as pessoas que de outro modo poderiam ser nazis".
Já agora, se alguns nazis e ex-nazis foram parar ao liberalismo depois de 1945, também muito apoio aos nazis veio do liberalismo antes de 1933 - a curva eleitoral do partido nazi alemão é quase o simétrico da dos partidos liberais de Weimar (enquanto socialistas, comunistas e católicos mantiveram mais ou menos as suas votações, os liberais foram perdendo votos e os nazis ganhando), o que indicia uma transferência de votos de uns para os outros; e na Áustria o movimento liberal (desde 1848 defensores entusiásticos da unidade alemã) a partir dos anos 30 largamente fundiu-se com o partido nazi local.
E indo para Itália, temos um fenómeno parecido: o partido mais liberal economicamente após 1945 seria provavelmente o Uomo Qualunque, a Frente do Homem Comum, que acabou mais ou menos por se fundir com o Partido Liberal (provavelmente o segundo partido economicamente mais liberal); mas entre os qualunquistas que não aderiram aos Liberais, muitos foram depois parar ao Movimento Social Italiano, neofascista.
Onde quero chegar com isto? Se, em vários países, se observa este canal comunicante entre fascistas/nazis e liberais, é de pensar 10 vezes antes de aceitar a ideia de que a essência do fascismo é o dirigismo económico.
Eu diria que provavelmente o que se passa em todos estes casos é o predomínio da sociologia sobre a ideologia - tanto o fascismo como o liberalismo têm ou tiveram um apoio desproporcionado da classe média secularizada (sobretudo se trabalhadores por conta própria), enquanto a social-democracia e o comunismo tradicional se baseiam mais nas classes baixas e trabalhadores por conta de outrém, e a democracia-cristã e o conservadorismo nas pessoas mais religiosas e culturalmente tradicionalistas; portanto, mesmo que a sua ideologia pareça quase o oposto, acaba por atrair as mesmas pessoas. Já agora, diga-se que a "nova esquerda" também recruta muito o seu eleitorado entre a classe média secularizada (embora aí essencialmente entre os trabalhadores por conta de outrem), o que poderia ser usado para alegar alguma semelhança profunda tanto com o fascismo como com o liberalismo...
Para uma análise mais profunda das ligações sociológicas entre fascismo e liberalismo, recomendo o artigo de Seymour Martin Lipset "Fascism - Left, Right and Center" (atenção que isto abre um PDF gigantesco; indo aqui têm uma transcrição desse artigo e uma análise minha).
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