06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (3.2)

Continuando com o artigo de Ricardo Dias de Sousa, na parte do novo marxismo dos anos 60:
Surgem na Europa vários grupos terroristas de esquerda como as Brigate Rosse em Itália, o Baader-Meinhof na Alemanha, o Provisional IRA na Irlanda, ou a ETA em Espanha. A componente nacionalista nestes grupos é evidente.

Eu não poria estes grupos todos no mesmo saco: 

- o Baader-Meinhof  (RAF) e as Brigadas Vermelhas são realmente mesmo típicos grupos nascidos da "nova esquerda", criados a partir das pessoas que uns anos antes andavam nas manifestações estudantis

- a ETA será talvez uma variante "proto", surgida  ainda no fim dos anos 50 (eu tinha a ideia que tinha sido influenciada pela revolução cubana, mas afinal ainda é anterior a isso); a ETA desenvolveu a sua doutrina no principio dos anos 60, numa altura em que a "nova esquerda" ainda estava em fase de germinação (podendo ser realmente considerada parte desse processo de germinação); mas pronto, admito que no final dos anos 60 poucas diferenças tivesse face aos grupos que então começaram a pulular pela Europa (mas, das várias ETAs dessa altura - "ETA Berri", "ETA 6", "ETA Político-Militar", "ETA Militar"... - não sei se a "Militar", ou seja, aquela a que em 99,9% das vezes chamamos simplesmente "ETA", até não seria das menos influenciadas pela "nova esquerda" internacional...)

- Já o IRA Provisório reivindica-se como a continuação do IRA histórico da luta pela independência, e, se alguma coisa, quando foi a rotura com o IRA Oficial, se calhar até seriam os "Oficiais" que estavam mais influenciados pelas ideias marxistas: penso que o motivo da cisão foi que a direção da altura do IRA não mostrava grande interesse em defender os bairros católicos dos ataques das milícias protestantes, considerando que isso era dividir a classe operária, levando a maioria dos operacionais a criarem um "novo IRA". Eu diria que na Irlanda do Norte a organização com mais paralelos com os grupos terroristas dos anos 70 da Europa continental seria o Exército de Libertação Nacional Irlandês, tanto pela ideologia como pela ligação (via Bernadette Devlin) à campanha de protestos cívicos do final dos anos 60 (fazendo lembrar as raízes do RAF e das Brigadas Vermelhas no movimento estudantil).

Quanto ao nacionalismo, se era (ou é) o aspeto fundamental da ETA e do IRA, não me parece que tivesse uma grande importância na ideologia proclamada do RAF ou das Brigadas - a menos, no caso do RAF e de outros grupos alemães (talvez ainda mais as "Células Revolucionárias") estejamos a falar do nacionalismo palestiniano e não do alemão (tantas eram as ligações que tinham e ações conjuntas com grupos da OLP), mas isso parece-me mais o típico "internacionalismo anti-imperialista" do que nacionalismo (ok, admito que por um raciocínio talvez algo retorcido se poderia tentar estabelecer uma ligação entre nacionalismo alemão e nacionalismo palestiniano com base em, digamos, semelhanças de "inimigo histórico"...).

Agora, efetivamente, a "nova esquerda" (ou pelo menos facções dela) tinha realmente alguma simpatia por movimentos separatistas e/ou regionalistas (nomeadamente em França, fez o regionalismo passar da extrema-direita - que era quem normalmente fazia grandes apologias da Vendeia, da Bretanha ou do Languedoque - para a esquerda ou mesmo a extrema-esquerda) - por alguma razão a maior parte dos partidos separatistas ou autonomistas no Parlamento Europeu sentam-se no mesmo grupo que os Verdes (que é provavelmente o grupo que mais representa no PE a "nova esquerda" dos anos 60/70; mais do que o grupo da Esquerda Unida Europeia - Esquerda Verde Nórdica, que é uma mistura de "novoesquerdistas", como o BE ou o SYRIZA, com comunistas tradicionais, como o PCP). As raízes dessa simpatia são provavelmente:

a) a influência "terceiro-mundista", maoista e castrista-guevarista, e do "usar as aldeias para cercar as cidades", que muitos transplantaram para dentro de fronteiras, convencendo-se que qualquer região mais pobre que o resto do país era uma "periferia" explorada pelo "imperialismo" (e, no caso espanhol, fazendo contorcionismo intelectual para se convencerem que as regiões mais ricas do país eram "periferias" exploradas)

b) a tal ideia do "poder popular" ou da "democracia participativa"; afinal, é mais fácil transferir o poder para "assembleias populares de base" ou algo do género em unidades políticas pequenas

Mas, de novo, será que isto é "nacionalismo"? Ou será simplesmente uma versão do clássico "internacionalismo anti-imperialista"? Eu diria que, no caso de um regionalista occitano, ainda poderemos suspeitar que é um nacionalista (sobretudo se for separatista e não apenas autonomista), mas de um parisiense que simpatize com o regionalismo occitano (e com o bretão, e com o corso...), penso que não..

Finalmente, ainda a respeito do anti-imperialismo, e face ao então chamado "Terceiro Mundo", dá-me a ideia que, pelo menos na retórica, havia quase uma inversão de posições entre "novos esquerdistas" e comunistas tradicionais, conforme estivessem no "Ocidente" ou no "Terceiro Mundo" (ou será que isso é em parte uma ilusão derivada de haver uma porção de correntes chamadas de "nova esquerda"?):

- Nos países "ocidentais", acho que era sobretudo a nova esquerda que fazia o discurso do "terceiro-mundismo" e do "anti-imperialismo" (com livros de Debray e Fanon nas prateleiras e posters de Leila Khaled nas paredes), enquanto os comunistas tradicionais (nos países em que tinham alguma influência) descartavam um bocado esses temas (como disse atrás, provavelmente uma das razões da cisão entre o comunistas tradicionais e a nova esquerda foi a guerra da Argélia, e o PCF não dar apoio explicito à FLN)

- Em compensação, nos países do "Terceiro Mundo", eram os comunistas tradicionais que faziam do anti-imperialismo o centro da sua estratégia, defendendo a estratégia das alianças com a "burguesia nacional progressista" ou a "democracia revolucionária" (Nasser, Sukarno, o Partido do Congresso indiano, o Baath, etc; a dada altura até regimes abertamente reacionários, como o Irão de Khomeini, eram incluídos) contra o imperialismo, mesmo quando esses regimes até perseguiam os comunistas (p.ex., o Egipto nasserista); no lado oposto, eram os movimentos que tinham pelo menos alguma proximidade à nova esquerda que recusavam as alianças "anti-imperalistas" com a "burguesia nacional progressista", considerando que já era altura de mobilizar os "operários e camponeses" contra a burguesia - o Partido Comunista da Índia (Marxista), o Partido Comunista Iraquiano - Comando Central, pelo menos em teoria a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, etc.

Talvez parte da razão tivesse a ver com a importância dada pelos comunistas tradicionais à classe operária industrial, o que os levava, no Ocidente, a descurar assuntos que supostamente não interessariam muito a essa classe operária (provavelmente o "anti-imperialismo" interessaria mais a jovens estudantes em risco de serem convocados para alguma guerra "imperialista" em África ou na Ásia), e, ao mesmo tempo, no Terceiro Mundo, a considerar que o que interessava era criar em larga escala a tal classe operária industrial (e até lá apoiar a "burguesia nacional" que supostamente iria industrializar os países). Ou, provavelmente, seria apenas uma questão dos tais regimes "progressistas" costumarem ser aliados da URSS na arena internacional, e portanto as ordens de Moscovo era para serem apoiados (mesmo quando prendiam ou enforcavam comunistas).

[Já hoje em dia, parece-me que os comunistas ortodoxos são, em qualquer sítio, os grandes apologistas da "soberania nacional", enquanto os herdeiros da "nova esquerda" até tendem por vezes a se aproximarem - talvez perigosamente? - de ideias estilo "ingerência humanitária"; ver a divergências na esquerda portuguesa sobre Angola ou mesmo Cuba]

De qualquer maneira, parece-me que a posição da "nova esquerda" (que acho que era enfatizar o anti-imperialismo em detrimento da luta de classes nos países do "centro", e enfatizar a luta de classes em detrimento do anti-imperialismo nos países da "periferia") seria o menos "nacionalista" possível.

[Atendendo que isto começou tudo com uma conversa sobre "fascismo", será que alguns dos tais regimes "nacionais progressistas anti-imperialistas" não terão sido o que existiu, na segunda metade do século XX, mais parecido com o fascismo? Sobretudo o nacionalismo árabe penso ter sido muito popular em certos círculos neofascistas e afins; e a República Árabe Unida consta que até pretendia copiar a constituição do Estado Novo salazarista].

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