06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (3.1)

Agora vamos ao segundo ponto do artigo de Ricardo Dias de Sousa - a sua caracterização da esquerda surgida nos anos 60.

Para começar, vou pegar num ponto que até não tem exatamente a ver com a questão do "fascismo", mas é uma questão que até me interessa particularmente:
A partir de finais da década de 60, os intelectuais marxistas a Ocidente, confrontados com a falência definitiva do modelo soviético em Praga, deixaram de se interessar tanto pelos escritos da madurez do autor – o Marx materialista – para redescobrir os escritos da juventude – o Marx idealista, o Marx hegeliano, romântico, alemão.

Associar essa viragem no marxismo ocidental a "Praga" parece-me um bocado anacrónico - afinal, já Raymond Aron falava disso (de relance, para dizer que não ia gastar tempo com isso, que o que interessava era o que Marx publicou em vida e não os manuscritos da juventude não-publicados, mas falava - e também fala um bocado do marxismo de Frankfurt a respeito de um congresso realizado em 1964) em As Etapas do Pensamento Sociológico, publicado inicialmente em 1965 e depois em 1967 (e traduzido para português pelo nosso Miguel Serras Pereira); e mesmo o Maio de 1968, que representou a irrupção pública de um marxismo ou semi-marxismo heterodoxo, foi antes (uns meses) da invasão da Checoslováquia, em agosto.

Já agora, talvez seja melhor tentar explicar do que falo quando falo de "marxismo heterodoxo" (não estou 100% certo que seja exatamente disto que Ricardo Dias de Sousa esteja a falar, mas tenho 99% de certeza que, se não é disto, é de algo muito parecido e com uma vasta sobreposição) - refiro-me aquele marxismo tem pelo menos algumas destas diferenças face ao marxismo ortodoxo:



a) preocupar-se mais com a "alienação" do que com a "exploração", ou seja, achar que o maior problema dos trabalhadores no capitalismo não é tanto serem mal pagos, mas sobretudo terem um trabalho desinteressante e mecânico, sem espaço para aplicarem a sua criatividade, inteligência e iniciativa

b) questionar  não apenas a desigualdade económica, mas todas as relações de dominação e subordinação - na família, na escola, nas relações raciais, nos poderes da polícia, nas prisões, na psiquiatria, etc, etc chegando por vezes a ser contra a televisão (por ser um diversão passiva em que assistimos sem intervenção ao que nos mostram) ou as agências de viagens (por transformarem até os tempos livres numa atividade dirigida e planeada por outros, tal e qual como no trabalho)

c) rejeitar tanto a democracia representativa ocidental como os regimes burocráticos do bloco de Leste, em nome de alguma variante de "poder popular", "democracia participativa", "conselhos operários", etc.

d) achar que o principal sujeito revolucionário não é (ou já não é) a classe operária, mas os estudantes, as minorias étnicas ou sexuais, os camponeses pobres, os povos do Terceiro Mundo, etc. etc.

Como se fala do "redescobrir os escritos da juventude – o Marx idealista, o Marx hegeliano, romântico, alemão", diria que o relevante aqui será sobretudo o ponto a); o ponto c), se alguma coisa, será típico do Marx mesmo dos últimos anos, a partir da Comuna de Paris; o b), quando muito poderá ter um pouco - só um pouco - a ver com "As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado" de Engels; e o d) duvido que se encontre antepassados em algo que Marx ou Engels tenham escrito.

Diga-se que, embora estejamos aqui a falar de "marxismo", este conjunto de ideias pode largamente existir fora de um invólucro marxista - se na Europa (e em zonas de forte influência cultural europeia, como a América Latina ou as Caraíbas) estas ideias desenvolveram-se como sendo um tipo de marxismo, nos EUA muita gente aderiu a elas na mesma altura sem ser abertamente marxista, inspirando-se mais nas tradições anarquista, populista ou "liberal".

Bem, mas então, se esta viragem no marxismo não teve a ver (sobretudo) com Praga, então veio de onde? Várias causas:

- Budapeste; a revolução de 1956 levou a muitas dissidências nos partidos comunistas ocidentais (até com Lucáks, provavelmente o maior filósofo comunista da altura a nível mundial, a apoiar os rebeldes);e, além disso, os conselhos de trabalhadores criados durante a revolução deram um modelo a seguir aos radicais de esquerda anti-estalinistas.

- No geral, a desestalinização, que dá-me a ideia que teve dois efeitos paralelos: levar muitos intelectuais marxistas a pensar "se foi possível um tirano sanguinário exercer o poder durante décadas na pátria do socialismo, algum problema já deveria haver no sistema em si e na ideologia que o sustenta; temos que repensar alguns postulados" e outros intelectuais marxistas a pensar "isto é tudo mentira; mas se foi possível o poder na URSS cair nas mãos do bando de oportunistas que anda a caluniar o camarada Estaline, algum problema já deve haver no sistema em si e na ideologia que o sustenta; temos que repensar alguns postulados"

- Em França (que na altura era largamente a capital intelectual da Europa) um factor que se calhar foi muito mais importante do que normalmente se tem consciência foi a guerra da Argélia, e a linha do PCF de não apoiar abertamente a Frente de Libertação Nacional argelina e de até votar a favor dar "poderes especiais" ao governo para combater a revolta; tal gerou grande descontentamento nas bases do PCF, dando origem a uma oposição interna que veio a abandonar  (ou ser expulsa) o partido no principio dos anos 60

- A Revolução Cubana; eu suspeito que se não houvesse descontentamento prévio com o comunismo ortodoxo, a Revolução Cubana provavelmente até o teria reforçado ideologicamente ("se até um grupo de rebeldes que inicialmente não eram comunistas, ou pelo menos não afetos ao Partido Comunista, depois de tomar o poder se tornam comunistas, querem maior prova que o comunismo soviético é o futuro?"); mas, num contexto em que já havia descontentamento com os PCs pró-Moscovo, levou muita gente a concluir que afinal podia haver um caminho fora dos PCs oficiais (e o caráter voluntarista  e aventureiro da revolução, do grupo de vinte guerrilheiros que fogem para a montanha e a partir daí derrubam um governo, contribuiu involuntariamente para por em causa princípios da ortodoxia marxista-leninista, como a importância do aparelho e da organização)
 
- O cisma sino-soviético: passando a haver dois centros rivais no marxismo, isso deu aos intelectuais marxistas no ocidente uma certe liberdade para explorarem diversas perspectivas, porque deixou de existir uma autoridade supostamente infalível a determinar a linha correta

- Nos anos 50 e 60, tínhamos o período de maior crescimento dos níveis de vida que provavelmente houve na história da Europa ocidental e da América do Norte, pelo que o problema da pobreza do proletariado perdeu grande parte da sua relevância (pelo menos em comparação com as décadas e séculos anteriores); mas em compensação, tínhamos os jovens das classes trabalhadores a se juntarem a gangues de motociclistas e os da classe média a pensarem em ir até à Índia para "se encontrarem" (ou então a tornarem-se simplesmente "vadios de praia", ou poetas boémios nos bares da "margem esquerda" em Paris ou de Greenwich Village, Nova Iorque). Face a isso, os marxistas, se queriam que o marxismo continuasse relevante, tinham que o adaptar no sentido de desvalorizar as questões da repartição do rendimento e valorizar as questões do estilo de vida.

[Outra maneira de ver o ponto anterior é que os anos 50/60, além de serem o tal período de grande crescimento económico, também foram a época por excelência das grandes empresas - e quase forçosamente dos "homens de fato cinzento" ou "da organização"; portanto, se por um lado as pessoas ganham mais, mas por outro tendem a ter - como tende a ser em grandes organizações - um trabalho mais padronizado e com menos margem para improvisação, é natural que a questão da "alienação" se torne mais premente que a da "exploração"; mas aqui já sou eu armado em "velho marxista" - ou se calhar simplesmente como economista? - a querer explicar as mudanças nas ideologias a partir de mudanças na infra-estrutura económica]

Os motivos acima apresentados parecem-me os principais (e mais consensuais); mas acrescentaria mais alguns, que têm todos uma componente de "para a ideia X surgir, antes tem que se popularizar a ideia Z que influencia X":

- Os "Manuscritos Económico-Filosóficos" e "A Ideologia Alemã" só foram publicados em 1932/33 (é "A Ideologia Alemã" que Aron dizia que não lhe interessava para compreender Marx, já que o próprio Marx disse que deixava esse manuscrito para os ratos); atendendo a que nos anos 30 e 40 as pessoas politicamente motivadas tinham mais que fazer do que estudar obscuros tratados filosóficos, e as ideias demoram algum tempo a fermentar (tem que ser lidas, os leitores que pensar nelas, depois escrever artigos a falar delas, as ideias originais e os artigos sobre elas chegarem a outras pessoas, etc.), provavelmente já começou a haver uma massa crítica de pessoas suficientes as lê-los e discuti-los no final dos anos 50, principio dos 60

- A influência do "trotskismo dissidente"; com "trotskismo dissidente" refiro-me aqueles autores e grupos (como Socialisme ou Barbarie em França e o shachtmanismo ou a Tendência Johnson-Forest nos EUA) oriundos do trotskismo mas que romperam com este a propósito da questão na natureza da URSS: enquanto a posição trotskista é de que era um regime transitório entre o capitalismo e o socialismo e que os "burocratas" (isto é, os dirigentes do partido e do estado) eram uma "casta" privilegiada, estes "dissidentes" achavam que era, ou um terceiro tipo de sociedade distinto tanto do socialismo como do capitalismo ("coletivismo burocrático"), ou uma variante de capitalismo ("capitalismo de estado"), e que os "burocratas" eram mesmo uma classe privilegiada (e não apenas uma "casta"); ora, uma das implicações disso era considerar que a questão da propriedade era secundária (afinal, tanto os altos dirigentes do PCUS como os mineiros do Donbass eram "assalariados" não-proprietários) e o que era o principal eram as relações de autoridade - e a partir do momento em que se conclui isso, é um saltinho para se chegar ao que eu no principio referi em "b" (considerar todas as relações de subordinação e não apenas as económicas ) e dai facilmente se chega a "d" (começar a identificar outras classes revolucionárias além do operariado).

E porque é que a influência desse "trotskismo dissidente" (termo que não é correto, já que estes grupos que referi deixaram de se considerar "trotskistas", mas não encontro um melhor) começou a manifestar-se sobretudo nos anos 60? De novo, uma questão de cronologia quase inevitável - primeiro era preciso que o tal regime de economia estatizada na URSS existisse (o que só aconteceu a partir dos anos 30); depois que surgisse gente a dizer que "não é o verdadeiro socialismo" (sim, essa conversa já existia desde pelo menos 1918, mas enquanto o regime não se estabilizou essa ideia era difícil de ganhar asas - afinal, é difícil argumentar que um regime que ainda está a se está a definir é ou não é "o verdadeiro seja-o-que-for"); depois que entre essas pessoas surgissem discussões sobre "porque é que não é o verdadeiro socialismo?" e "o que é então?" (que foram as discussões no movimento trotskista no final dos anos 30 e, depois, após a II Guerra Mundial); depois que emergisse uma corrente definida dizendo "os burocratas são uma classe dominante e as relações de poder interessam mais que as de propriedade" (o que aconteceu nos EUA nos anos 40 e em França nos anos 50); e finalmente que essas ideias começassem a ter suficiente circulação para influenciar pessoas foram do circulo restrito do movimento (o que começou a acontecer no final dos anos 50, princípios dos 60).

- A influência da psicanálise freudiana, que com a sua ideia de neuroses provocadas por desejos reprimidos por força das normas sociais pode, com alguns passos pelo meio, derivar facilemente nos pontos a) e b) referidos no início; mas de novo a questão da cronologia: teve que haver Freud para haver Reich, e provavelmente teve que haver Reich para haver Marcuse; logo, uma derivação de esquerda do freudianismo dificilmente se tornaria popular antes dos anos 50 (aliás, penso que mesmo a versão não-adulterada do freudianismo só se popularizou nos anos 50).

Mas se calhar estamos a ver isto ao contrário, e se calhar muito do que aconteceu não foi nos anos 60 muitos marxistas terem adotado posições heterodoxas, mas sim muita gente com essas posições ter-se considerado marxista (mas isto é capaz de ser uma teoria já um pouco arrevezada da minha parte); explicando melhor

- Sobretudo o tema do trabalho "alienado" e desinteressante tem séculos na filosofia e na literatura, desde pelo menos o Sturm und Drang (ver, p.ex., Johann Gottfried Herder, no século XVIII, a falar dos efeitos da artilharia sobre a coragem e o heroísmo individual do combatente, reduzido a pouco mais que uma máquina), e alimentado por gerações de intelectuais e artistas (inclusive na direita mais conservadora, dada a uma romantização do artesanato contra a sociedade industrial; ver, p.ex., Bonald: "quanto mais máquinas há para aliviar o trabalho dos homens, mais homens há que apenas são máquinas"); será que o que simplesmente aconteceu não foi que como na Europa dos anos 50/60 o marxismo estava na moda, esses críticos da sociedade estabelecida consideraram-se "marxistas" e decidirem criar uma variante de "marxismo" que acolhesse essas ideias? O facto de nos anos 50/60, nos EUA (onde o marxismo NÃO estava na moda) terem surgido movimentos contraculturais, como os beatniks e os hippies, pegando em temas parecidos sem serem marxistas (atenção, não confudir hippies com yippies), pode indiciar isso

- E, para finalizar, o Concílio Vaticano II e o processo que abriu, que levou muitos católicos para a esquerda; e da doutrina social católica se calhar é mais fácil saltar (via a subsideriadade e o distributismo) para visões autogestionárias ou comunitárias de "socialismo" do que para visões estatistas tradicionais ; e a parte da crítica à "alienação do trabalho" não anda muito longe da tal crítica conservadora à sociedade industrial referida no ponto anterior. Ou seja, mais um caso de "pessoas que acreditam num dado conjunto de ideias terem passado a considerar-se marxistas" em vez de "marxistas passaram a acreditar num dado conjunto de ideias.

E agora todos estarão a perguntar se este post não é uma espécie de overkill - afinal, por causa de dez palavras ("confrontados com a falência definitiva do modelo soviético em Praga"), que nem tinham relevância para o tema central (o do fascismo), eu decidi fazer um post gigantesco de quase 30 parágrafos, provavelmente maior que o artigo original (e que, ironicamente, até se pode considerar que, se alguma coisa, reforça a tese central de Ricardo Dias de Sousa, já que enfatiza dois pontos, a crítica ao trabalho monótono e a influência do catolicismo social, em que o "novo marxismo" até tinha efetivamente algo em comum com certas variantes do fascismo).

Pois - a minha ideia era fazer só um pequeno apontamento, que ficaria no principio de um post respondendo ao conjunto do que ele escreve sobre a nova esquerda, mas depois fui desenvolvendo o meu raciocinio e acabei por me ficar por um post só para isto (é em parte a razão porque os capítulos da série acabaram por ter uma numeração peculiar - o 3.1, 3.2... eram para ser inicialmente um post 3).

Mas acho que este assunto é importante, porque parece em certos setores haver uma tendência para dizer que a nova esquerda surgiu na sequência do fracasso ou da perda de popularidade do comunismo tradicional (alguns vão ainda mais longe e dizem que foi resultado do fim dos regimes comunistas em 1989; ao menos o Ricardo não diz isso...). Mas a verdade é que a nova esquerda até surgiu numa altura em que (apesar da desestalinização e dos cismas internos) o comunismo até parecia estar de vento em poupa pelo mundo.

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