06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (2.3)

Um ponto especifico que Ricardo Dias de Sousa refere de semelhança entre os estados sociais do pós-guerra e o fascismo é "lugares nos conselhos de administração para sindicatos"; isso pode efetivamente ter sido parte do programa de 1919 dos "Fascios Italianos de Combate", mas pouco ou nada disso foi na prática implementado durante o tempo em que Mussolini esteve no poder (talvez nos 2 anos finais, na "República Social Italiana" - a "República de Saló" -, tenha havido algumas medidas nesse sentido, mas na prática é duvidoso que algo tenha ocorrido, até porque a "República Social Italiana" era largamente uma fantasia).


Na mesma maneira, na Alemanha o regime nazi reduziu o poder dos "conselhos de empresa" que haviam sido criados pela República de Weimar, passando a ter funções essencialmente consultivas e sendo os seus membros eleitos a partir de uma lista previamente elaborada pela entidade patronal e pelo partido nazi,  e de qualquer maneira a partir de 1935 deixou de haver novas eleições [pdf] - e no Mein Kampf Hitler ataca decididamente a ideia de dar aos "conselhos de empresa" autoridade sobre questões relacionadas com a produção, considerando isso, a par da democracia e do parlamentarismo, um ataque ao "principio da personalidade" ("Just to the same degree in which the principle of personality is excluded from the economic life of the nation, and the influence and activities of the masses substituted in its stead, national economy, which should be for the service and benefit of the community as a whole, will gradually deteriorate in its creative capacity. The shop committees which, instead of caring for the interests of the employees, strive to influence the process of production, serve the same destructive purpose. They damage the general productive system and consequently injure the individual engaged in industry."). Mesmo a mudança de nome dos "conselhos de empresa" (de "Betriebsrat", "conselhos de empresa/de estabelecimento", para "Vertrauensrat", "conselhos de confiança", sendo seus membros chamados "Vertrauensmanner", "homens de confiança") indiciava uma intenção de mostrar um rutura com a forma que esses conselhos haviam adquirido na República de Weimar (e se calhar adotar um nome com menos conotações de luta de classes).

Um aparte - entre as medidas da República de Weimar que foram revertidas ou suavizadas pelo regime nazi temos a tal criação de "conselhos de empresa" (ressuscitados no pós-guerra sob a forma da cogestão), a nacionalização de várias empresas (privatizadas nos anos a seguir à subida de Hitler ao poder) e (penso que por pressão dos aliados) rígidas leis de desarmamento da população (nesse ponto o regime nazi foi ambíguo - reduziu as restrições à posse de armas e munições por "arianos" mas restringiu-as ainda mais para os judeus); tudo assuntos em que é fácil encontrar-se comentários em foruns na internet alegando que a política nazi foi ao contrário da que efetivamente foi.

Agora houve efetivamente uma vasta gama de fascistas, nacional-socialistas e afins defendendo modelos com elementos cogestionários ou autogestionários, como Ugo Spirito, Otto Strasser, Ramiro Ledesma Ramos, José António Primo de Rivera ou o José Miguel Júdice nos seus tempos de juventude; e uma ideologia com alguns pontos de contacto, o "distributismo" (a defesa de uma sociedade de pequenos proprietários) também foi bastante (ou ainda mais) popular nos meios fascistas e neofascistas - e também poderemos referir aqui a popularidade entre alguns meios neofascistas (p.ex, a Official National Front britânica e os grupos dela derivados), a partir dos anos 80, das teses do coronel Khaddafi, combinando nacionalismo com a defesa de uma economia em que o trabalho assalariado fosse substituído por trabalho associado.

Mas isso, como vimos acima, tudo pouco ou nenhuma influência teve no "fascismo realmente existente". E, de qualquer maneira, essas tendências cogestionárias/autogestionárias de certas vertentes do fascismo era algo difícil de compatibilizar com o resto - isto é, é difícil fazer a apologia do líder e da subordinação hierárquica, e ao mesmo tempo da cogestão ou da autogestão. é verdade que se poderia argumentar que a versão jugoslava do marxismo-leninismo tinha uma contradição similar (entre autoritarismo na esfera política e democracia na esfera económica) e funcionou durante algumas décadas, mas de uma maneira geral a retórica (mesmo que não a prática) comunista sempre cultivou mais a ideia da "direção coletiva", o que provavelmente diminuía a dissonância cognitiva.

Essa mistura de autoritarismo político e democracia ou semi-democracia económica tem, realmente, uma raiz; em larga medida, é uma derivação de Charles Maurras e da sua ideia "o rei, protetor das repúblicas francesas", isto é, da defesa de uma monarquia autoritária, anti-parlamentar e descentralizada, em que por um lado o rei teria autoridade absoluta sobre o governo central, mas por outro esse governo central teria pouco poder, tendo os municípios, associações profissionais, universidades, etc. (isto é, as tais "repúblicas francesas") grande autonomia. Depois foi só pegar nesse "nacionalismo integral" de Maurras, de extrema-direita, misturá-lo com o sindicalismo revolucionário de George Sorel, de extrema-esquerda (sindicalistas revolucionários e integralistas concordavam na valorização das associações profissionais e na oposição ao estado democrático centralizado, portanto talvez não fosse uma síntese tão contra-natura como parece) e pronto, para depois defender uma combinação de "sindicalismo" na economia e de autoritarismo e nacionalismo na política foi só um saltinho - foi isto que aconteceu, primeiro em França (com o Círculo Proudhon), e depois o produto foi exportado para Itália (onde deu origem ao movimento fascista), e para Espanha e Portugal (sobre a forma do "nacional-sindicalismo").

Agora, poderá ser levantada a questão (que provavelmente alguns já pensaram quando usei a expressão "fascismo realmente existente") - então assim, não se poderá dizer que a Itália de Mussolini, afinal, também "não foi o verdadeiro fascismo"? Mas um problema de dizer isso é que, em larga medida, Mussolini foi o seu próprio Marx, Lenine e Estaline - o fundador do movimento, o líder da revolução e o construtor do estado; isto é, Mussolini tem claramente "direitos de autor" sobre a ideologia fascista muito mais sólidos dos que tinha o regime soviético sobre o socialismo, o marxismo ou o comunismo; e é indicativo que no processo de consolidação do poder, o partido fascista não tenha tido nada comparado ao período 1918-1927 no partido bolchevique russo/soviético, em que surgiam em catadupa facções oposicionistas a dizer que o regime se estava a desviar do "verdadeiro socialismo": o fascismo italiano não teve a sua versão do Kommunist, da Oposição Operária, do Grupo do Centralismo Democrático, do Partido Socialista dos Operários e Camponeses, do Grupo Operário, da Verdade Operária, dos trotskistas, etc. Na Itália de Mussolini o mais parecido com um "oposicionista" em nome da "pureza revolucionária" é capaz de ter sido Ugo Spirito, mas esse nunca chegou a ser um oposicionista a romper com o regime (apenas teve um livro proibido por Mussolini). A esse respeito, parece-me relevante a opinião de "pseudoerasmus": "fascism was always a kind of pseudo-ideology made on the fly, without a long history of thought and debate like socialism" (Jaime Nogueira Pinto também escreveu algo parecido - ."Enquanto, no caso do marxismo, existe um amplo e controverso corpus de doutrina polémica, heresias, cisões anteriores à investidura da ideologia como Poder, na Rússia de 1917, ou seja, à função e cristalização de uma ortodoxia, com as suas subsequentes heresias e desviacionismos, no fascismo entre o acto fundacional e o triunfo decorrem escassos anos; e tudo acaba em 1945. As interpretações coevas do fascismo foram, à partida, as dos próprios fascistas, que, no rasto de Mussolini e (...) Giovanni Gentile...", Fascismo, Enciclopédia Polis).

Diga-se que a respeito do nacional-socialismo alemão seria mais fácil argumentar "não foi o verdadeiro nacional-socialismo" - afinal, o partido nazi (ainda que não com esse nome) já existia antes de Hitler a ele ter aderido, havia na Alemanha um porção de potenciais "Marxs" do nacional-socialismo (isto é, autores nacionalistas, anti-capitalistas e anti-marxistas bastante divulgados na altura - Oswald Spengler, Gotfried Feder, Moeller van den Bruck, Ernest Junger, etc.), para não falar dos "Trotskys" (os irmãos Strasser, um morto e outro exilado) ou da "purga dos velhos bolcheviques" (a eliminação das SA na Noite das Facas Longas). E o strasserismo sobrevive até aos dias de hoje como um nacional-socialismo alternativo ao de Hitler (em compensação, não tenho ideia que tenho surgida nada similar do fascismo italiano). Um aparte: há uns anos, li num grupo liberal do Facebook alguém comentar que preferia discutir com nazis do que com comunistas, porque os nazis não dizem que a Alemanha de Hitler "não era o verdadeiro nacional-socialismo"; e eu pensei "Não? Não é isso que strasseristas, terceiro-posicionistas, nacional-anarquistas, nacional-bolcheviques e afins andam há anos ou décadas a dizer? E pelo menos na internet não são tão raros como tudo isso".

[Finalmente, no que diz respeito à Espanha de Franco, penso que hoje em dia não haverá dúvidas que "não foi o verdadeiro falangismo"]

Já agora, lembro este meu post sobra a Branca de Neve e os Sete Anões e este sobre o nacional-socialismo, onde falo também um bocado disto.


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