01/07/20

Re: Verdade inconveniente sobre o racismo e sexismo dos Democratas nos EUA (II)

No post anterior, em resposta a Cristina Miranda, argumentei que durante grande parte do século passado havia grandes diferenças ideológicas entre o Partido Democrático do Sul dos EUA e o Partido Democrático do "resto", e que o moderno Partido Democrático deriva largamente do "resto" (enquanto muitos Democratas sulistas tradicionais se passaram para os Republicanos).

Mas nos EUA é díficil (e no século passado ainda mais dificil era) associar partidos a ideologias; como um Republicano disse em 1923, "Any man who can carry a Republican primary is a Republican. He might believe in free trade, in unconditional membership in the League of Nations, in states' rights, and in every policy that the Democratic Party ever advocated; yet, if he carried his Republican primary, he would be a Republican." Talvez mais relevante do que ver as posições dos partidos (que nos EUA pouco mais são que linhas num boletim de voto, sem grande estrutura real por detrás), é ver a de movimentos ideológicos mais homogéneos; nomeadamente do chamado "conservadorismo", que quase que se pode dizer que foi inventado nos anos 50 para nas décadas seguintes ter tomado o controlo do Partido Republicano (de tal forma que hoje em dia os dois conceitos às vezes são usados quase como sinónimos). E qual era a posição do movimento conservador que se desenvolveu a partir dos anos 50 sobre a questão sulista?


"Why the South Must Prevail"[pdf], por William F. Buckley Jr., National Review, pp. 148–49, 24 de agosto de 1957 (creio que numa edição posterior, Buckley alterou um bocado a linha, escrevendo que além de não dar o direito de voto aos negros, talvez se devesse também retirá-lo aos brancos com pouco instrução).

De qualquer forma Buckley (e penso que essa era a linha dominante na National Review, a principal revista conservadora desde os anos 50) na altura estava claramente ao lado dos segregacionistas sulistas; e quando a nova direita "Buckleyista" conseguiu nomear o candidato Republicano em 1964 (Goldwater), este, como já vimos, acabou por quase só ter votos no Sul (provavelmente por causa do seu discurso de defesa dos direitos do Estados e o voto contra o Civil Rights Act, mesmo que Goldwater fosse pessoalmente anti-segregação).

[Já agora, e mudando um pouco de assunto, este texto de Buckley é interessante para a questão do "racismo biológico versus cultural": para quem leia o texto completo, o autor coloca-se no campo de que a cultura dos negros é menos avançada que a dos brancos, não fala em nenhuma inferioridade biológica; mas, com base nisso, opõe-se ao alargamento do direito de voto aos negros; questão - essa posição é "racista"?]

Se formos ao outro ideólogo do conservadorismo norte-americano, Russel Kirk, ele também parece reivindicar a tradição política sulista para o conservadorismo (ainda que de forma algo elíptica). Vamos ao seu livro The Conservative Mind, ao capítulo "Southern Conservatism: Randolph and Calhoun":
Conservative  political policy in the Southern states, wich can be traced all the way from George Mason at the Constitutional Convention to the present generation of Southern congressmen, has been rooted in four impulses: a half-indolent distaste for alteration; a determination to preserve an agricultural society; a love of local rights; and a sensitivity about the negro question - the "peculiar institution" before the Civil War, the color-line there-after. (...)

Human slavery is bad ground for conservatives to make a stand upon; yet it needs to be remembered that the wild demands and expectations of the abolitionists were quite a slipery a foundation por political decency (...) So far as it is possible, we shall try to keep clear here of the partisan controversy over slavery and penetrate instead (...) to those conservative ideas wich Randolph and Calhoun enunciated. (...)

So far as preservation of the Old South was concerned, their conservatism was impotent - indeed, it hurried the Southern states along the road to the Civil War, wich in five year did more to extripate Southern society than a generation of civil domination by the North could have effected.  (...)

The modern South cannot be said to obey any consciously conservative ideas - only conservative instincts, exposed to all the corruption that instinct unlit by principle encounters in a literate age. The affection for state sovereignity, the duties of a gentleman, and the traditions of society that Calhoun and Randolph extolled found their finest embodiment in General Lee; and, with Lee, these ideas yealded to superior force at Appomatox. The political representantive of those principles was a man of parts less exemplary than Lee's, but still a man of high courage and dignity, Jefferson Davis. Eighty years later, the progressive vulgarization of those Southern instincts put in the Mississipi senatorship that had been Davis' such a man as Theodore Bilbo.
Pegando nesta conversa de Kirk (e convem ler a passagem toda, se possível, em vez de apenas estes  trechos), parece-me que ele coloca na tradição conservadora John Randolph e John Calhoun (recorde-se que este último foi o provavelmente o principal ideólogo da defesa da escravatura nos EUA) e também os confederados Lee e Jefferson Davis e finalmente o que ele chama os "modern Southern congressman" (não é muito claro a que se refere o "modern", já que o livro foi tendo várias versões desde os anos 50 aos 80, mas quase de certeza que inclui os congressistas do tempo dos "direitos civis", que estavam ativos nas décadas em que o livro foi sendo publicado). Sim, é uma inclusão um pouco a contragosto, e tentando deixar o mais possível de lado as questões da escravatura e do racismo (e lamentado que o conservadorismo sulista seja cada vez menos uma ideia e mais um puro instinto), mas uma inclusão mesmo assim (e aliás a dada altura escrevendo que a sociedade dos plantadores sulistas era conservadora por natureza, mesmo que a dada altura [suponho que se refira a Thomas Jefferson e aos seus aliados] tenha querido ser igualitária).

Diga-se que, aliás, seria provavelmente difícil a Kirk excluir o Sul da tradição conservadora mesmo que o quisesse, já que creio que ele tinha simpatia pela ideia de uma sociedade liderada por uma elite de proprietários rurais, e o que mais parecido terá havido com isso na história dos EUA terá sido o Sul antebellum.

O que talvez pudesse ser discutido é se toda a tradição conservadora descrita por Kirk, englobando pessoas tão diversas - e no seu tempo politicamente opostas - onde cabem tanto centralistas nortistas como Hamilton e localistas sulistas como Randolph faz algum sentido ou se foi largamente uma criação retroativa tentando dar antepassados aos conservadores dos anos 50; mas o meu ponto é menos se os defensores do "Velho Sul" eram conservadores, mas sim se o moderno conservadorismo norte-americano os considera ou considerava como parte da sua geneologia ideológica, e claramente considerava.

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