Sim. Sim.
[A respeito da discussão entre Sérgio Barreto Costa, do Blasfémias, e António Araújo]
Uma conversa longínqua em 1995, no ISEG, entre mim e R. (alguém que atualmente é um economista de esquerda com algum destaque - muito mais que eu - e que também escreve regularmente num blog e nas redes sociais):
R. - Então, onde é que estás a trabalhar?Mas deixando conversas do século passado, porque acho que um socialista (mesmo daqueles que querem acabar com a propriedade privada dos meios de produção) pode ter ações e um liberal ser funcionário público (mesmo naqueles sectores em que ele acha que o estado não deveria intervir):
Eu - Estou a fazer um estágio no Deutsche Bank
R. - Como é que um gajo do PSR vai trabalhar para o Deutsche Bank?
Eu - No âmbito da produção material necessária à sua existencia, os indivíduos estabelecem relações sociais independentemente da sua vontade.
R. - Muito bem, vejo que tens mantido as tuas leituras em dia
Imagine-se um socialista que ache que a propriedade privada dos meios de produção leva à exploração dos trabalhadores (ou, numa versão mais soft, que a propriedade privada de "monopólios naturais" leva à exploração dos consumidores). É por ele deixar de ter acções dessas empresas que os trabalhadores (ou os consumidores) deixam de ser explorados? Não.
Ou um liberal que ache que a administração pública é financiada com dinheiro roubado aos contribuintes. É por ele deixar de ser funcionário público que os contribuintes deixam de ser "roubados" para financiar a escola pública? Não.
Ou seja, um socialista não ter acções ou um liberal não trabalhar no sector público em nada resolve os problemas que os socialistas vêm no capitalismo ou que os liberais vêm no estatismo.
Assim, quando se diz que um socialista não dever ter acções ou um liberal não deve trabalhar para o estado, isso equivale a dizer que quem não gosta do sistema atual deve suportar todos os defeitos que acham que o sistema tem ("exploração", impostos) mas sem beneficiar das suas vantagens. No fundo, é como alguém marcar um quarto num hotel, reclamar das condições e responderem-lhe "Então vai-te embora - mas pagas à mesma!"
Já agora (talvez não tenha muito a ver com isto, mas talvez tenha), este post do "libertarian" (liberal) Roderick T. Long, Guide for Statists: How to Argue Against Libertarians:
If they advocate the abolition of some government program from which they personally benefit, call them hypocrites.
If they advocate the abolition of some government program from which they don’t personally benefit, call them selfish.
E uma excelente resposta nos comentários - "I was born into a cesspool. I can either sink or swim. If you’re asking me to sink, well, I think that’s a pretty unreasonable request."
Imagino que esse post possa ser facilmente virado ao contrário num "Guia para liberais: como argumentar contra socialistas":
Se eles são contra algum "privilégio" de que eles próprios beneficiam, chamem-lhes de hipócritasAté aqui isto foi largamente uma adaptação do que escrevi aqui e aqui; mas agora uns pontos adicionais:
Se eles são contra algum "privilégio" de que eles próprios não beneficiam, chamem-lhes de invejosos
A analogia que Sérgio Barreto da Costa faz aqui entre o socialista que trabalha numa empresa privada e o liberal funcionário público não me parece a mais correta - muitos liberais acham que os funcionários públicos vivem de dinheiro roubado ao sector privado; já os socialistas normalmente não acham que os trabalhadores do sector privado vivem de dinheiro roubado ao sector público (acham sim que os trabalhadores do sector privado são explorados pelos patrões do sector privado); ou seja, discutir se um socialista pode trabalhar numa empresa privada seria mais o equivalente a discutir se um liberal pode pagar impostos (ou, se para ser coerente, teria que ganhar um ordenado abaixo do limiar do IRS, só comprar produtos isentos de IVA, etc.).
Parte da questão é que acho que se deveria ver as coisas em termos de "pode um socialista/liberal/seja-o-que-for beneficiar conscientemente de uma situação de que discorda politicamente?" (como já expliquei, acho que a resposta continua a ser "sim", mas só nesses casos é que há sequer polémica). Isso provavelmente explica porque o António Filipe não foi prejudicado por ter sido visto na sala de espera de um hospital privado (penso que nunca foi esclarecido se ele estava mesmo lá como utente, mas provavelmente estaria) - por norma os críticos da saúde privada não consideram que os utentes da saúde privada sejam beneficiados com ela; pelo contrário, a narrativa habitual é que são prejudicados por o Estado não apostar na saúde pública e por isso são empurrados para o privado (se o António Filipe fosse acionista de um hospital privado é que seria polémico); da mesma maneira, mesmo um socialista radical, que queira coletivizar a posse dos meios de produção, por norma não acha que os trabalhadores de empresas privadas são beneficiados por existirem empresas privadas, logo não terá qualquer problema de consciência nisso; da mesma maneira, poderá haver também liberais que acham que alguns funcionários públicos não são beneficiados ou até serão prejudicados por causa do setor em que trabalham ter forte presença do Estado (p.ex., imagino facilmente um liberal a achar que os professores estariam melhor se o ensino fosse privado), logo aí também não haverá lugar nenhum ao tal "problema de consciência". [Atenção ao meu "conscientemente" a seguir ao "beneficiar" - aqui interessa menos se o individuo beneficia realmente ou não, mas sobretudo se ele acha que beneficia].
Agora, vamos ao "caso Robles"; a respeito disso, na altura eu escrevi:
Uma declaração pessoal - eu não tenho grandes problemas em ser contra uma lei, achar que deveria ser abolida ou alterada, mas beneficiar dela enquanto ela existir. Por exemplo - eu era contra as contas poupança-habitação terem benefícios no IRS, concordo com a decisão do governo de Santana Lopes de ter acabado com esse benefício, mas enquanto esse benefício existiu eu usava-o todos os anos. Em suma, uma pessoa pode discordar das regras do jogo, mas jogar por elas enquanto não as conseguir alterar (e não, não é uma variante do "faz o que eu digo, não faças o que eu faço" - eu nunca andei a defender que as outras pessoas deveriam abster-se voluntariamente de usar benefícios fiscais que existem).Sérgio Barreto Costa recorre ao mesmo argumento que muita gente usou no caso Robles - de que em abstrato não há mal em alguém jogar com as regras que existem, mesmo que as queira alterar, mas no caso de políticos do Bloco de Esquerda já há, porque o BE, alegadamente, tem um discurso "moralista"; mas essa conversa do alegado "moralismo" do BE é uma conversa que é mais afirmada do que efetivamente demonstrada (basicamente, tornou-se "sabedoria convencional" considerar que o BE "tem um discurso moralista" e tal não precisa de ser demonstrado nem explicado). Em que é que consiste efetivamente o "moralismo" do BE? Em fundamentar as suas propostas com argumentos normativos? Mas quase toda a política tem argumentos normativos; ou o Sérgio Barreto Costa achará que liberais consequencialistas podem ser funcionários públicos mas liberais deontológicos já não?
Um ponto final - acho mais relevante quando alguém faz alguma coisa que tem contradição com os seus juizos de facto do que com os seus juizos de valor; alguém fazer algo a que se opõe em principio levanta a tal discussão infidável que tenho falado neste post; mas alguém dizer que "X vai acontecer" e depois ter atos que não fazem grande sentido se X realmente for acontecer levanta claramente dúvidas sobre se acreditam realmente no que dizem; p.ex., alguém que diz que a bolsa está sobrevalorizada mas que ao mesmo tempo continua a comprar ações, ou alguém que diz que o nível do mar vai subir mas compra uma garagem na zona do Largo do Sapal em Portimão, ou um defensor do Brexit que, como gestor financeiro, recomenda que se desinvista no RU e se invista na Europa continental.
2 comentários:
Tretas.
Os verdadeiros "revolucionários" adoptam um modo de vida tipo 'Júlio Henriques'
(entendo que esta é a forma rápidas de condensar um conjunto de ideias, que se encontram muito bem corporizadas em Júlio Henriques, cuja vida se caracterizou e caracteriza por estar de fora e a leste desta problemática pequeno-burguesa )
Ruben B
assim:
qualquer empresário deve fazer o seu negócio com as regras existentes para salários, contratações, despedimentos, custos fiscais, etc..
vote ele á direita ou esquerda.
tá certo.
rui
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