30/04/19

Lições das eleições espanholas.

As eleições gerais espanholas colocam-nos perante algumas evidências que convinha não ignorarmos. Em primeiro lugar a proclamada implosão dos partidos do centro-esquerda - partidos socialistas, comprometidos de uma forma ou de outra com a Terceira Via - era manifestamente exagerada. Em segundo lugar a ascensão ao poder de "uma esquerda que conta", tipo Podemos, já viveu melhores dias. Em terceiro lugar a ascensão da direita xenófoba, racista, manifestamente pró-franquista, faz-se, preferencialmente, à custa da erosão da direita conservadora tipo PP e não necessariamente à custa dos sectores operários mais afectados pela globalização.

A ascensão do PSOE é consequência da estratégia do voto útil adoptada pelo seu líder. O PSOE não se candidatou com uma programa político capaz de promover alguma forma de mudança. Recebe por estes dias a unanimidade dos sectores políticos que valorizam a "moderação" política, seja lá isso o que for. Pese embora a decisão de aumentar muito significativamente o salário mínimo nacional, no essencial o PSOE continuará a ser um partido alinhado com as orientações dominantes na UE, tal como o seu congénere português. Limitou-se a gerir com habilidade a ameaça da ascensão da direita franquista e a explorar a previsível erosão do Podemos num processo mais ou menos autofágico. A memória do franquismo e o medo que o seu regresso - ainda que sob formas aceitáveis para o deputado Nuno Melo - impõe, funcionaram como um forte mobilizador eleitoral e como um toque a reunir contra o inimigo comum. O PSOE recolheu os maiores dividendos dessa ameaça.

Os fascistas do VOX viram o seu crescimento atenuado, face às previsões muito optimistas que apontavam para quase 70 deputados, em parte porque o Ciudadanos foi capaz de se constituir como uma alternativa real ao PP. Uma alternativa no centro direita, com expressão nacional e apenas com menos 200 mil votos. Com excepção dos sectores irredutivelmente franquistas, que durante anos se abrigaram sob o chapéu de chuva do PP, os restantes sectores não foram sensíveis ao apelo do "Espanha primeiro" e da Espanha una e indivisível, que o VOX  mimetizou dos slogans de Trump.

O Podemos pia mais fino. O partido evoluíra, no espaço de dois anos, de um conjunto alargado de  organizações  populares de base,  com uma forte intervenção social, capaz de organizar novas formas de promover e refundar a democracia participativa e deliberativa, para a terceira força política espanhola, com uma representação parlamentar de 69 deputados, abrangendo mais de 20 % do eleitorado. Mais do que o BE e o PCP juntos nos seus melhores dias, para se ter a noção da sua dimensão.

No período mais recente o Podemos despiu-se das suas anteriores tentações basistas e optou por trocar as opções participativas e uma intervenção política fundada e construída a partir do poder dos militantes pela promoção e "institucionalização" da liderança de Pablo Iglésias. Uma liderança "top-to-bottom" em tudo semelhante a qualquer outro partido tradicional. Um pouco à imagem do BE em Portugal, diga-se. Esta mudança foi feita com o reforço do poder pessoal de Iglésias e o afastamento de todos os fundadores que tinham questionado as suas orientações. O poder adquiriu até contornos endogâmicos com Iglésias a nomear a sua companheira para líder parlamentar depois de ter afastado Iñigo Errejón em 2017.

Esta evolução custou ao Podemos mais de um quarto dos votos, uma perda de um milhão e trezentos mil votos, e retira-lhe a possibilidade de contribuir para construir uma Geringonça já que os seus votos juntos com os do PSOE não asseguram a maioria parlamentar. Em 2016 o Podemos ficou a escassos 370 mil votos do PSOE e agora viu essa diferença alargar-se para três milhões e setecentos mil votos. Dez vezes mais. Mesmo assim há quem celebre o resultado.

Uma eventual Geringonça ficará sempre à mercê dos independentistas catalães e o PSOE pode - e parece ir nesse sentido -  sentir-se tentado a manter um governo de um só partido, com apoios pontuais, incluindo do sector tradicional da direita, na expectativa de nova vitória nas europeias e de uma maioria absoluta - à custa do Podemos, principalmente - numas novas eleições gerais.

A esquerda à esquerda dos socialistas perdeu grande parte do fulgor que a caracterizou nos anos duros da austeridade e da luta contra a orientação política imposta pela UE. Passados esses tempos de denuncia falha estrondosamente a construção de uma verdadeira alternativa. Apesar da conquista das duas principais cidades de Espanha - Barcelona e Madrid - o Podemos parece poder cada vez menos. Talvez seja esse o preço a pagar por ter optado por se tornar um partido cada vez mais igual aos restantes com o seu líder máximo,a sua corte de deputados e quadros políticos mediatizáveis e os militantes de base reservados para as eleições internas e outras pequenas liturgias.








27/04/19

As declarações de Bolsonaro sobre turismo sexual

Está me a parecer (pelo menos pelo que leio nas "redes sociais") que ficou tudo muito mais ofendido com a parte que me parece inofensiva do que o Bolsonaro disse do que com a parte que me parece grave (creio que a conversa foi algo como "Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro", e parece-me que está tudo a cascar sobretudo na primeira frase).

21/04/19

Sudão à beira de ter dois governos?

Hoje a oposição sudanesa supostamente vai anunciar a constituição de uma "Autoridade Civil Transitória", paralela à junta militar que governa o país desde a semana passada; ou seja, parece-me que vamos ter uma situação à venezuelana (a menos que os militares aceitem nas próximas horas entregar o poder a um governo civil).

20/04/19

O debate do ano?

Consta por aí que o Zizek deu uma coça ao Peterson.

Atenção que não vi o debate - mais ainda, nunca vi nem o Zizek nem o Peterson a falar, e acho que nunca li nada de qualquer um  (eu gosto é de ler textos, não de ver vídeos - e de qualquer maneira a ideia que tenho deles é de que o Zizek é um bocado para o apalhaçado e o Peterson uma espécie de guru da auto-ajuda, e nenhum dos dois perfis me entusiasma particularmente).

16/04/19

A Europa que conta. Ainda a propósito do Brexit.


Jeremy Corbyn, como se sabe, liderou a campanha dos que defenderam a opção de permanecer na União Europeia, quando da realização do referendo organizado pela ala  direita dos conservadores britânicos.

A campanha dos trabalhistas tinha como lema a declaração “Remain and Reform”. É verdade que Corbyn não fez uma campanha muito empenhada, são bem conhecidas as suas posições eurocépticas, embora tenha proferido declarações cuja importância política foi por cá muito sub-avaliada. 

O seu eurocepticismo, aliás, não o impediu de defender a reforma da União Europeia. Para os que afirmam sem o demonstrar, caso de Daniel Oliveira, que o Manifesto de Corbyn é incompatível com a União Europeia, talvez seja adequado recordar as declarações do líder trabalhista no lançamento dessa campanha, em Fevereiro de 2016. 

Corbyn defendeu a permanência do Reino Unido na União Europeia, ao mesmo tempo que defendeu a posse pública, implicando a reversão das privatizações e a devolução de importantes sectores da economia à posse do Estado. Como? Defendendo reformas progressistas na Europa. Quais? Democratização, reforço dos direitos dos trabalhadores, desenvolvimento sustentável e emprego no coração da política económica. Combate à  pressão para a desregulação económica e a desregulação dos serviços públicos. Esses são os princípios estruturantes da proposta política que mais tarde apresentou aos eleitores sob o lema "For the many not the few", que está materializado no seu famoso Manifesto (aqui). 

Nessa data Corbyn referia a importância da avaliação dos resultados das privatizações e da necessidade de as reverter, dando o exemplo das cidades que, pela Europa, tinham voltado a recuperar o controlo dos serviços públicos anteriormente privatizados. Prometia dar aos municípios o poder para reverterem essas privatizações.


Estaria Corbyn errado? Essas suas promessas seriam de impossível concretização no contexto da União Europeia? 

Para os que acham que a União Europeia não é reformável a resposta é Sim. Eu pertenço ao grupo dos que acham que este pressuposto é apenas uma boutade política, sem qualquer fundamento histórico ou político, e, nalguns casos, uma manifestação de wishfull thinking, daqueles que consideram apenas ser possível a superação do capitalismo com a implosão da União Europeia.

É possível reformar a União Europeia desde que a maioria dos países adopte políticas tais como as defendidas pelo Labour de Corbyn. Não é possível reformar a União Europeia com o tipo de políticas adoptadas por Governos, como o da Geringonça, que se limitam a propor um caminho alternativo, incapaz de romper o paradigma que transformou a União Europeia numa estrutura de dominação dos países menos desenvolvidos. Um caminho com menos sacrifícios para os condenados mas que, no essencial, mantém as lógicas de dominação e de desigualdade, que são a grande construção do neoliberalismo europeu ao longo das últimas três décadas. 

É possível reformar a União Europeia se um partido como o Labour, o maior partido político da União Europeia, liderar o segundo país mais poderoso da União, desarticulando  o eixo que ao longo de décadas sustentou o desvio para a direita do projecto europeu. 
É possível reformar a União Europeia se um país tão importante como o Reino Unido eleger como políticas públicas as que estão consagradas no seu Manifesto e as concretizar, passando da teoria à práctica. O poder do Reino Unido para o fazer é imenso e não serão as velhas estruturas europeias que o impedirão. 


As pretensas incompatibilidades entre as políticas do Manifesto e as orientações da UE não impedirão a sua concretização. As nacionalizações, as ajudas do Estado e o défice fiscal não são obstáculos. No caso dos dois primeiros há exemplos de Países - dos mais importantes  - em que empresas estratégicas são públicas e o resgate dos bancos falidos constituiu um massiva ajuda dos Estados . O Reino Unido não está abrangido pelo PEC, mas há países, como a França, aos quais as regras não se aplicam como aos países periféricos. As mudanças pretendidas no Mercado de Trabalho com a valorização do factor trabalho e a correção salarial a favor dos mais desfavorecidos, não pode ser um argumento a favor do Brexit, tanto mais que Corbyn tem defendido a manutenção de um tipo de União aduaneira, que salvaguarde os direitos laborais. Um dos argumentos desde sempre utilizado pelo trabalhista contra o Brexit dos Tories era a utopia conservadora de construir um tipo de sociedade ainda mais liberalizada em que os direitos sociais fossem completamente ignorados.

Corbyn, resistiu a várias tentativas de o desalojar do poder interno e assistimos, entretanto, a duas coisas notáveis: o Labour tornou-se o maior partido político da União Europeia, com a adesão de centenas de milhares de cidadãos, comprometidos com uma mudança política; o povo do Reino Unido retirou a maioria absoluta aos conservadores e quase conduziu Corbyn à vitória eleitoral, abortando o golpe de May e dos seus capangas. Um momento com um enorme significado político, como tive oportunidade de assinalar. 

Voltando ao Brexit, Paul de Grawe, também no Expresso, em 8.04.2017, defendia que o Brexit era, afinal, uma oportunidade para a UE. O economista considerava que uma política fiscal comum passava a ser possível. Vale a pena reler o que foi então escrito:


O economista alertava para a posição do Reino Unido em defesa do poder de veto dos Governos nacionais nas questões fiscais. Essa posição favoreceu as grandes multinacionais, que não pagam impostos e beneficiam dos serviços públicos disponibilizados pelos governos europeus. Com a saída da Grâ-Bretanha desaparecia o principal obstáculo a uma política fiscal comum. 

Há uma outra forma de olhar para esta possibilidade: com o Reino Unido liderado por Corbyn na UE haverá, acho eu, uma mudança radical: o País que era o maior obstáculo a uma política fiscal comum, mais justa e mais distributiva, passa a ser o país que mais força fará para a promover. Uma mudança de fundo, capaz de promover a reforma da União Europeia. 

Curiosamente foi Corbyn que em Praga num congresso dos partidos socialistas realizado em Dezembro de 2016 alertou para os perigos do populismo de extrema-direita e fez o diagnóstico dos motivos que estavam na sua origem.  
Não foi ao carácter irreformável da UE que o líder trabalhista se referiu. Foi às opções políticas adoptadas pelos socialistas que, basicamente, mimetizaram as opções neoliberais. O carácter irreformável da UE é verdade num determinado contexto político e é consequência das opções políticas que os diferentes protagonistas tomam. Irreformável nesse contexto, não como uma fatalidade.

A conquista dos sectores trabalhadores pelos projectos políticos radicais de extrema direita, xenófobos e pró-fascistas resulta do abandono a que esses sectores foram votados pelas lideranças socialistas, particularmente com Tony Blair e a sua terceira via. Para recuperar esses sectores a esquerda tem que mudar de política. O Manifesto do Labour é uma ferramenta adequada para o fazer. Pelos vistos são cada vez mais os britânicos que pensam dessa maneira e, apesar das suas hesiitações, Corbyn está cada vez mais perto de ser o novo primeiro-ministro do Reino Unido.  

Há declarações de Corbyn na altura das eleições legislativas nas quais ele atribuía a principal responsabilidade da desigualdade territorial  ao abandono das áreas industriais por força de opções políticas dos conservadores.  Estes desinvestiram na política industrial, condenando vastas áreas e as suas populações ao abandono e à pobreza. Trata-se de opções políticas reversíveis e não se entende como é que fora da UE essas opções podem ser facilitadas. 

O Reino Unido não faz parte da moeda única e não está sujeito às regras do pacto de estabilidade e crescimento. Mas isso, sendo importante, é, do meu ponto de vista, pouco significativo. O que importa é o facto de o Labour ser um grande partido, com uma liderança comprometida com o combate à desigualdade e com a valorização dos direitos dos trabalhadores. Essa liderança no interior da UE representa uma enorme oportunidade para empreender uma importante democratização das relações sociais e para corrigir drasticamente a desigualdade entre o capital e o trabalho. Representa uma oportunidade para que as relações de produção e as relações sociais a elas associadas se democratizem. São uma oportunidade para que a União Europeia não só recupere o carácter progressista perdido mas seja um espaço democrático e solidário capaz de promover um desenvolvimento mais sustentável  e mais solidário. Solidariedade interna, mas também solidariedade com a África e com a América Latina. 

Não percebo, nem consigo encontrar uma explicação minimamente articulada que me esclareça aquilo que ganhamos cada um de nós com a separação dos  países e o seu regresso às fronteiras de antes da adesão? 

Por isso, nas próximas eleições europeias, não voto em nenhum dos partidos que estando na Europa e nas suas organizações, defendam a implosão do projecto europeu e façam gala de mostrar que o projecto europeu falhou e é irreformável. O meu voto irá para quem tiver ideias claras e quiser lutar para reformar a Europa. Voto no Remain and Reform. 

15/04/19

Ler os Outros: " Que aprender com a revolta dos esquecidos?"

Hoje, no Público, João Ferrão reflecte sobre a crescente desvalorização dos saberes sobre territórios  e paisagens. 
Trata-se de uma breve reflexão sobre as dinâmicas instaladas na sociedade portuguesa que, naturalmente, tem consequências imediatas e futuras. As primeiras manifestam-se quando em cada ano os alunos fazem as suas opções de acesso ao ensino superior. As formações que se relacionam com  as ciências que estudam os territórios e a sua sustentabilidade e desenvolvimento são cada vez menos procuradas. Há cursos com cada vez menos procura e há formações que são pura e simplesmente abandonadas pelas próprias faculdades. Neste mesmo dia o Público dá conta do encerramento da formação em Arquitectura Paisagísta na Universidade de Évora. 
A  mais longo prazo fenómenos como os do incêndio florestal de Pedrogão serão recorrentes e a incapacidade para prevenir e evitar essas tragédias cada vez maior. Os esquecidos continuarão a ser vitimas desse esquecimento que não é uma fatalidade, como todos já sabemos, tratando-se de uma escolha política. 


É essa a síntese certeira que permite melhor compreender a nossa realidade. Há uma vitória do Mercado e a consolidação da sua estratégia. Na relação entre o Estado e o Mercado, o Mercado vence em toda a linha e a estratégia do Estado mínimo impõe-se com estrondo. O Estado usa os seus recursos - e sobretudo aqueles de que abdica -  para aplicar a estratégia do Mercado que, paradoxalmente, o conduz à irrelevância e ao fracasso. Fracasso que pode ser medido pelo número crescente de "esquecidos". Naquilo que é estruturante, longe do barulho vazio da política do curtíssimo prazo, constrói-se uma nova ignorância. Que dita, e ditará, as suas regras. O neoliberalismo está de boa saúde e recomenda-se. 

13/04/19

Segundo presidente sudanês a cair em 48 horas

Sudan's Ibn Auf steps down as head of military council (Al Jazeera):
The head of Sudan's ruling military council has resigned in a speech broadcast live on state television, naming Lieutenant General Abdel Fattah Burhan as his successor. (...)

Protesters in Khartoum greeted the move with "ululations and cheers", said Al Jazeera's Hiba Morgan.

"People are celebrating on the streets; they are saying that they managed to topple President Omar al-Bashir after four months of protests and less than 48 hours after the military council took over, they managed to bring down Ibn Auf, too," she said from the capital.

Burhan, who was appointed as al-Bashir's chief of staff and head of the ground forces in February, did not have the "same tainted record" as that of other al-Bashir era officials, she said, citing accusations of war crimes against both the former president and his successor during the 2003-2008 war in Sudan's western region of Darfur. (...)

The Sudanese Professionals Association (SPA), which spearheaded the months-long demonstrations that triggered al-Bashir's overthrow on Thursday, hailed Ibn Auf's departure as a "triumph of the will of the masses".

However, it called on residents of Khartoum to continue their days-long sit-in outside the army headquarters, in defiance of a nighttime curfew imposed by the army, until their demands for a civilian-led transitional government and democratic reforms, as outlined in the January Declaration of Freedom and Change, were met.

They called for a "total strike until the full transfer of power" and urged supporters elsewhere in the country to take to the streets outside the military's various posts "until these demands are fully implemented".
[Os meus leitores já devem ter notado que entrei de novo em modo "pegar num país em crise política e fazer posts de hora a hora sobre ele" - de vez em quando dá-me para isso]

12/04/19

Um "soviete" da classe média na revolução sudanesa?

Um aspeto curioso dos protestos no Sudão é que aparentemente os está a liderar - a Associação dos Profissionais Sudaneses, uma organização que agrupa várias organizações profissionais (de médicos, professores, engenheiros, etc.); isto talvez seja eu a querer transpor os esquemas do século XX para o XXI, mas faz-me lembrar um pouco a Revolução Russa de 1905, em que o mais parecido que havia com uma força organizadora não era propriamente nenhum partido  mas o Soviete de São Petersburgo, eleito a partir das fábricas e sindicatos. A grande diferença aqui é que será um "soviete da classe média" (isto é provavelmente um contrassenso, mas enfim), criado a partir das organizações de profissionais qualificados e não das fábricas.

[Por esta descrição das suas origens, inicialmente preocupados sobretudo com reivindicações salariais e de condições de trabalho, imagino que a Associação seja mais vocacionada para os "lugares contraditórios de classe entre a pequena-burguesia e o proletariado" - ou seja para profissionais assalariados - do que para a "pequena-burguesia" - isto é, trabalhadores por conta própria]

E, entretanto, já ia o post quase no fim, lembrei-me que um melhor exemplo talvez fosse o Solidariedade na Polónia (de novo, com a nuance de a Associação sudanesa ser um organização da classe média e não da classe operária).

A prova testemunhal é admissível em relação à questão da existência de deus ?


Não sei se alguém andou a por aguardente alucinogénica no meu café da manhã, mas acabo de ler que um antigo papa afirma que os crimes de pedofilia na igreja se explicam por causa de Maio de 68 e da “ausência de Deus”.

11/04/19

Sudão - queda do regime ou apenas mudança de pessoal?

Sudan's military removes President Omar al-Bashir (Al Jazeera):
Sudan's President Omar al-Bashir has been arrested and put "in a safe place", the country's defence minister said in a TV address, as he announced the formation of a military-led transitional government.

"I announce as minister of defence the toppling of the regime and detaining its chief in a secure place," Ahmed Awad Ibn Auf said on Thursday.

"The armed forces will take power with representation of the people to pave the way for Sudanese people to live in dignity."

Seated on a gold-upholstered armchair, Army general Auf announced a three-month state of emergency, a nationwide ceasefire and the suspension of the 2005 constitution, along with the dissolution of the presidency, parliament, and council of ministers.

He also said Sudan's air space would be closed for 24 hours and border crossings shut until further notice.
Entretanto, o principal movimento da oposição, o sindicato ilegal Associação dos Profissionais Sudaneses, não parece estar totalmente satisfeito:
After our struggle and perseverance for more than four months, filled with blood, sweat and tears, we urge the masses to mobilize, continue and enhance the sit-ins. We assert that the people of Sudan will not accept anything less than a civil transitional authority composed of a patriotic group of experts who were not involved with the tyrannical regime.

The leadership of our people’s armed forces ought to handover power to the people, according to what was expressed in the declaration of freedom and change.

08/04/19

A respeito da Argélia e do Sudão

Aconteça o que acontecer, não mandem a NATO.

05/04/19

O pseudo-"snobismo invertido" de alguma direita

O artigo de Henrique Raposo no Expresso de 30 de março ("Uma Família às Direitas") repete um exercício que grande parte da direita portuguesa gosta de ocasionalmente praticar - alegar que o Passos Coelho terá sido menosprezado pela elite lisboeta de esquerda por viver em Massamá. A mim isto parece-me aquela anedota do individuo que tem um trisavô negro, ninguém sabe que ele tem um trisavô negro nem nada na sua aparência indica isso, mas queixa-se de racismo sempre que alguém o trata mal.

Logo no dia a seguir a, num comício, ele ter dito que vivia em Massamá, ouvi uma autarca local do PSD dizer "está tudo a falar do homem viver em Massamá; mas qual é o mal do homem viver em Massamá?" e pensei "mas alguém está a ligar alguma coisa a ele viver em Massamá? As únicas pessoas que falam da casa em Massamá é o Passos Coelho e os PSDs".

Da mesma maneira, nestes anos todos (com uma exceção) só à direita é que ouço falar ou leio referências a Massamá, em artigos falando dos "preconceitos da esquerda lisboeta contra Passos Coelho por ele viver em Massamá", enquanto à esquerda o assunto foi quase completamente ignorado; a única exceção que notei foi a Raquel Varela (que efetivamente falou disso num artigo ou post qualquer), mas que é uma pessoa até bastante desalinhada face à ortodoxia da esquerda mainstream, logo não me parece que seja relevante para a partir daí se concluir seja o que for face à generalidade da esquerda.

E o mais ridículo disto é tentar fazer passar uma pessoa cujo percurso transpira "menino-bem" por todos os poros quase como uma espécie de "excluído" - filho de um médico e dirigente político local, dirigente da JSD na altura em que a JSD era "o que está a dar", amigo de um dos ramos da família Espírito Santo, patrocinado por Ângelo Correia, e que até a própria aparência física evoca o estereótipo do "menino da linha de Cascais" (mesmo que viva na linha de Sintra): quem olhe para as fotografias de Passos dos tempos da JSD é praticamente o estereotipo visual do "betinho" dos anos 80/90 (ou será que já estou a ficar como a Helena Matos?).

Henrique Raposo também refere o caso de Cavaco Silva - aí reconheço que não serie a melhor pessoa para falar do assunto; afinal, sendo eu algarvio, filho de mãe nascida em Paderne e de pai nascido na campina de Loulé (ou seja, praticamente vizinhos de Boliqueime), é natural que no meio em que eu vivi durante grande parte do governo de Cavaco Silva não houvesse sinais diretos de snobismo contra Cavaco Silva por ele ser de Boliqueime (se calhar mesmo alguém que desprezasse Cavaco por isso não o iria dizer ao pé de mim);

Dito isto, mesmo a nível da opinião publicada nunca notei que há esquerda houve grande sobranceira pelas origens provincianas de Cavaco Silva - mais facilmente isso se via na direita "Independente", em que por vezes, esses sim, batiam no tema "burgessos de meia-branca que não se sabem vestir" (embora talvez mais a respeito de alguns dos membros do seu governo ou da direção do PSD do que de Cavaco em si). Sim, a esquerda pegava muito em questões como ele não saber o número de cantos dos Lusíadas, mas isso não me parece ter nada a ver com questões de "elite versus vindos de baixo" ou "Lisboa versus província" mas sim da guerra "cultura humanista vs. cultura técnica" - para ilustrar isso, olhe-se para outras duas figuras: Ferreira do Amaral e José Saramago. O primeiro (descendente de uma das famílias portuguesas mais tradicionais) era vilipendiado pela "esquerda cultural" como o símbolo da "política do betão", enquanto o segundo (com origens rurais e pobres) era idolatrado (muito antes de ganhar o Nobel); também nunca notei que as pessoas que insinuavam que Cavaco era inculto dissessem o mesmo da Lídia Jorge (ou seja, é uma questão de "advogados, escritores, filósofos e sociólogos versus engenheiros, gestores e economistas" não de "Lisboa versus Boliqueime").

Eu até diria que, à esquerda, se algo predominava era uma tentativa de apresentar Cavaco como mais de "elite" do que era - inclusive nos seus primeiros tempos era normal ele ser chamado pela esquerda como "Cavaco e Silva" (provavelmente com a intenção de lhe dar um ar aristocrático e mostrá-lo como o inimigo de classe) e os tempos de antena do PS em 1987 (o autor era, aliás, Vasco Pulido Valente, que Henrique Raposo refere no seu artigo) tinham uma rábula insinuando que o apoiante típico do PSD cavaquista era um empresário filho de famílias ricas e que ia regularmente "à quinta do papá" (ok, é verdade que esta imagem pretendia representar os supostos apoiantes e não Cavaco Silva propriamente dito, mas de qualquer maneira era uma tentativa de o colar às elites sociais ).

Na verdade, suspeito que quem mais pegava nas supostas origens humildes de Cavaco Silva era o próprio PSD (tal como na casa de Massamá de Passos Coelho) e adjacentes, nomeadamente tentando apresentar o ter uma bomba de gasolina como se fosse algo de "proletário", quando no contexto da época e do local isso até poderia ser considerado quase como um negócio de elite (além de que o pai do Cavaco Silva, além da bomba de gasolina, era também um dos principais comerciantes de frutos secos do Algarve nos anos 60, e a mãe era de uma família de proprietários de terras - quem veio de baixo na família foi o pai, que esse sim, nasceu pobre e esteve emigrado em França antes de regressar a Portugal e iniciar a sua atividade empresarial).

Por isso é que o post tem no título «pseudo-"snobismo invertido"» - já que esse "snobismo invertido" é largamente ficcional, já que implica construir um passado muito mais humilde do que aquele que os personagens em questão realmente tiveram; se no caso de Cavaco Silva isso ainda fazia algum sentido (poderia não ser um excluído económico, mas de certa forma era efetivamente um excluído social, do ponto de vista da elite lisboeta), parece-me completamente alucinado no caso de Passos Coelho (e a prova disso é que, ao contrário de com Cavaco, a tentativa de apresentar Passos Coelho como alguém vindo de fora da elite não teve quase nenhuma ressonância no público em geral).

01/04/19

Angola: uma vitória importante na luta contra a corrupção.

O actual Presidente angolano conseguiu esta semana uma importante vitória na sua luta contra a corrupção: recuperou mais de 3 mil milhões de euros do chamado Fundo Soberano, que tinha caído nas mãos de alguns gestores que gozavam de uma forte cobertura política nas altas esferas do MPLA.

A verba recuperada é da mesma dimensão daquela que o FMI emprestou ao Estado Angolano, só para se ter a noção da sua importância.

João Lourenço prossegue a sua campanha para romper com as prácticas de confisco do Estado e das suas riquezas, em benefício da família do anterior Presidente e dos seus amigos. Trata-se de uma tarefa hercúlea já que a oligarquia que dominava o poder era constituída pelos seus camaradas de partido, muitos dos quais partilharam com ele o período que se iniciou antes da independência e se prolongou - com uma colossal acumulação de fortuna pessoal nas mãos de alguns oligarcas - até aos nossos dias.

Não há muitos processos de mudança com estas características na África de expressão portuguesa. Também é verdade que nenhum país lusófono é tão rico como Angola e em nenhum a corrupção assumiu tão descaradamente a dimensão de uma Política de Estado.