Se o José Maria Castro Caldas tem razão na análise que propõe no texto intitulado Os Donos da Dívida, que acaba de publicar na página da IAC, a conclusão a tirar é, uma vez mais, que a ofensiva oligárquica europeia, visando a absolutização do seu poder atraves da precarização e da destruição das liberdades e dos direitos dos trabalhadores e da imensa maioria dos cidadãos da Europa, é um traço comum da situação política de todos os países da zona euro e da UE, e que, por isso mesmo — embora assuma formas e graus diferentes nuns e noutros casos —, exige deles uma resposta política comum.
Significa isto que ao longo da intervenção da troika os credores privados internacionais terão passado de uma situação, em 2008, em que detinham 75% da dívida portuguesa, para uma outra, em 2014, em que deterão apenas 20%. De 2008 a 2014 os credores privados internacionais ter-se-ão livrado dos títulos de dívida pública portuguesa.
Para isso mesmo pode ter servido a intervenção da troika: para limpar os balanços das instituições financeiras estrangeiras (sobretudo europeias) de títulos da dívida portuguesa tornados demasiado arriscados. Para onde transitou o risco? Para os fundos europeus e o FMI, isto é, para os cidadãos dos países da eurozona que estão a garantir as emissões de títulos destes fundos destinadas aos empréstimos a Portugal.
Com efeito, não se vê como a secessão soberanista seja uma resposta, porque, em primeiro lugar, debilitaria a força dos trabalhadores e do conjunto dos cidadãos no país que a praticasse como medida de resistência, aumentando ao mesmo tempo os traços dependentes da sua economia; e porque, em segundo lugar, tornaria mais provável a implosão nacionalista da UE, abrindo caminho à sua fragmentação em Estados e/ou coligações de Estados autoritários e militarizados, cujas rivalidades reforçariam a ameaça do fascismo ou desta ou daquela variante de "socialismo nacional" no plano interno de cada um deles, enquanto faria descer sobre o seu horizonte comum o espectro da balcanização armada e da guerra.
5 comentários:
O crédito constituiu, até 2008, um elemento fundamental para a manutenção do sistema tardo-capitalista. Em traços gerais o crédito cumpria 3 funções: era uma fonte de riqueza para o sistema financeiro que o concedia, possibilitava os hábitos consumistas que esse mesmo sistema incentivava e, o que era mais importante, mascarava a desigualdade na distribuição da riqueza entre os 1% dos mais ricos e os restantes 99% da população. No fundo o crédito sustentava o mito económico do desenvolvimento contínuo (teoricamente tão improvável como a noção de progresso e materialmente insustentável por razões ecológicas) e tornava socialmente aceites – na medida em que os disfarçava - os imensos desequilíbrios inerentes ao mercado livre e desregulado. Ou seja, era o crédito que trasvestia o neo-liberalismo de democracia.
Quando hoje em dia os políticos neo-liberais afirmam que se viveu “acima das possibilidades” é a isto mesmo que se referem e esta mutação semântica é, em si mesma reveladora, do enorme fracasso do sistema no ano de 2008.
A partir desse ano, e contra toda a razoabilidade, não se tentou mudar o sistema tardo-capitalista, mas assistiu-se pelo contrário a mutações no mesmo que visam tão-somente a sua manutenção “custe o que custar”. O crédito deu lugar à dívida. A dívida é uma forma de responder à descapitalização do sistema financeiro derivada da crise (quando o crédito se revelou como “produto tóxico”) mediante uma transferência de riqueza do trabalho (dos tais 99% da população) para o capital. Para tornar o processo socialmente aceitável a dívida tem uma componente moral (veja-se o livro David Graeber “debt the first 5000 years” infelizmente pouco divulgado em Portugal), tal como a austeridade (de resto um aproveitamento descarado da crise para implementar políticas neo-liberais de “stripe-tease” do Estado). É esta moral paroquial de que “temos que honrar os nossos compromissos” que, por ora, vai aguentando socialmente este processo.
Fica porém uma dúvida: sem o sistema de crédito para mascarar as desigualdades económicas e socais que o sistema tardo-capitalista gera, como irá esse mesmo sistema continuar a apresentar uma fachada democrática?
Não tendo eu uma posição definitiva deste debate e padecendo de muito mais dúvidas que certezas, continuo sem perceber como é que o Miguel Serras Pereira consegue antever, com toda a precisão, que a saída de um acordo de integração regional possa, automaticamente produzir um recrudescimento de formas violentas de nacionalismo. Isto para além de recuperar uma comparação espúria com o período entre-guerras...
JPM,
o nacionalismo já grassa visivelmente por vários países da UE - não tem visto as notícias sobre o FN francês, a "xenofobização" da UMP do mesmo país, por exemplo? Ou noutro registo: não tem dado pelos movimentos identitários e separatistas na Bélgica, em Itália, em Espanha, no Reino Unido?
E, bom, quando vemos a ascensão do nacionalismo na Grécia - com o seu rosto nazi e o seu rosto estalinista -, para não falarmos nas palavras de ordem não menos nacionalistas do grosso das fileiras dos advogados da saída unilateral do euro, deixamos de ter necessidade de invocar "automatismos" para compreender que o eventual progresso das forças anti-europeístas (porque é disso que se trata: basta ver como o PCP aposta na implosão da UE ao mesmo tempo que insiste na recuperação da soberania e na independência nacional, ou nas virtudes de soluções "patrióticas e de esquerda") seria a vaga de fundo de uma maré de nacionalismo que tem vindo a subir, cada vez mais ameaçadora.
msp
Continuo sem entender - mas deve ser defeito meu - como é que uma reconfiguração de um processo de integração regional, por si só, nomeadamente pela revisão de um seu instrumento - a união monetária - é capaz de produzir um efeito das dimensões que sugere. A não ser que se tenha dado por adquirido o confinamento de propostas de crescente internacionalização ao conhecido esquema, esse sim, decididamente liberal, que estipula que a integração por via económica e financeira é condição necessária para a integração política (agora não me lembro de cabeça do nome do tipo que tem esse esquema, mas tem quatro fases e passa da criação de uma zona de comércio livre, passa pela união aduaneira e vai até à união monetária). Pelo contrário, não consigo perceber porque não se pode conceber que a união monetária como está, e sejamos francos, com possibilidades muito reduzidas de ser mudada, pode contribuir ela também para regar os diversos nacionalismos ( que, e mais uma vez, permita-me discordar, me assustam de formas diversas entre si).
Caro JPM,
talvez o defeito seja meu, que não me explico bem.
Mas, enfim, vamos tentando.
Os nacionalismos a que me refiro são uma expressão ideologicamente modulada do mal-estar e da revolta perante as políticas liberais e o austeritarismo dominantes na UE e na ZE. Perfeitamente de acordo. Mas o facto de serem um sintoma de males reais não os torna solução para os nossos problemas - antes os agrava.
Toda a economia é política, traduz relações de poder, e assenta em relações de poder, que alimenta e reproduz. Por isso, a questão da união monetária - mal concebida, mal adoptada, e que nem sequer assegura plenamente a moeda única de que se reclama - e da sua ruptura põe-se em termos políticos. Aqui, como na Grecia - e talvez amanhã em Itália, com o regresso de um Berlusconi em versão mais chauvinista - as forças que defendem a saída do euro são, na maioria, forças que visam explicitamente essa medida como um primeiro passo para a implosão ou dissolução da UE e a reconquista de uma mítica "independência nacional", tanto mais mítica quanto o certo é que é reclamada muitas vezes por cálculos geoestratégicos de partidos como o KKE ou o PCP que não rejeitariam outras dependências agravadas, mascaradas de solidariedade, por parte da RPC, por exemplo, ou de outras nações "anti-imperialistas".
Ora, a desagregação da UE, objectivo comum de partidos como os refridos e outros, no extremo oposto (o Front national, a Aurora Dourada, etc.), criaria condições infinitamente piores do ponto de vista material e também do combate democrático contra o austeritarismo dominante. Ou, pelo menos, é o que tenho tentado mostrar neste e noutros posts sobre a questão europeia, que, com sua licença, me dispenso de repetir.
Ter-me-ei feito entender um pouco melhor - ou explicado melhor as razões por que não me parece que esteja apenas em jogo "a saída de um acordo de integração regional"?
Seu interlocutor atento
msp
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