04/12/12

O "anticapitalismo" e o "critério da democracia" — com um abraço para o João Valente Aguiar


João,

pego na tua pergunta certeira — "A questão que se coloca é: é toda a esquerda que se diz anticapitalista realmente anticapitalista?" —, que pesquei na caixa de comentários de um teu recente post no 5dias,  e adianto um começo de resposta.

O que penso é vai sendo mais do que tempo de dizermos bem alto, e de tirarmos as consequências disso em vista da acção, que para ser anticapitalista a luta tem de começar por ser democrática (tanto nos seus objectivos como na sua organização, ou regime que instaura), e que o grau de anticapitalismo de um movimento se mede pela democratização que instaura por onde passa e está, a começar pelas suas próprias fileiras. Podes chamar-lhe a tese da democracia - ou da democratização - como critério do anticapitalismo, e creio que se adequa bem ao que aqui tens procurado fazer valer.

Bom combate, pois, o teu, camarada.

Abraço

miguel serras pereira

9 comentários:

João Valente Aguiar disse...

O teu comentário trouxe-me à memória uma importantíssima tese que o João Bernardo apresentou no seu primeiro livro em 1974:

“se a dominância do colectivo social sobre a produção se desenvolve, sendo a apropriação e a gestão cada vez mais directas e maciças, então a lei fundamental do novo modo de produção realiza-se efectivamente e assimila a si toda a estrutura da sociedade. Mas, se se desenvolve a existência dos intermediários nessa apropriação e nessa gestão, e se esses intermediários se reproduzem enquanto tais, constituindo-se em grupo social estável e consolidando a sua posição particular relativamente à produção e o seu poder político, então constituem-se como classe proprietária dos meios de produção e gestora do processo de produção, e inaugura-se uma forma de irrealização da lei da dominação social sobre a produção, o que tem como resultado, a partir dessa reinversão dos termos da contradição política, a reestruturação do antigo modo de produção”.

De modo muito sintético, as lutas não só têm de se estruturar numa base realmente horizontal e têm desde o início desenvolver vectores de apropriação da produção da vida social e política pelos trabalhadores. Ando a reler um importantíssimo livro do Maurice Brinton (miséria dos nossos tempos a omissão de um autor importantíssimo) onde, no caso russo, ele apresenta factualmente o aparecimento dos comités de fábrica logo em meados de 1917 e como os bolcheviques logo em Janeiro de 1918 actuaram no sentido de os coarctar da sua acção e do seu dinamismo democrático de base. Ou seja, a conversa literalmente da treta de que primeiro se teria de estatizar tudo e algum dia lá muito para a frente (e eventualmente) os trabalhadores já poderiam gerir a vida social é uma camuflagem para a necessidade de uma radicalidade e de uma democraticidade profunda logo desde o início das lutas sociais mais profundas.

Um abraço para ti

José disse...

Na mouche!

Miguel Serras Pereira disse...

Boas leituras, João - é o que constato que andas a fazer e o que te desejo após o Brinton.
Quanto ao resto, faltou-me explicitar no meu comentário que o critério da democracia como medida e condição de qualquer anticapitalismo digno desse nome exclui, evidentemente, a legitimidade de quaisquer suspensões da democracia em quaisquer períodos de transição.

Abraço para ti

Caro José,
obrigado pelo seu apoio reiterado - mas fico curioso de o ouvir mais.

Calorosas saudações democráticas

msp

José disse...

Caro Miguel,

Acrescentaria ao seu acrescento que qualquer anticapitalismo nas condições com que V. o fundamenta – e que eu corroboro – exclui a legitimidade da suspensão da democracia não tanto porque temamos um conluio antidemocrático daqueles que aos vícios e aos assomos de virtuosismo na prática administrativa poderiam ceder, mas porque a verdadeira democracia é – tem de ser, ou de outro modo não será –, mais do que mero regime, a reivindicação como prática, como ética, dum universalismo que, reconhecendo um comum nos cidadãos que se alevanta, é contraditório com uma ideia de iniquidade.

Temo não tê-lo formulado bem.

Calorosas saudações democráticas também para si,
José

Miguel Serras Pereira disse...

Ok, José, muito obrigado pela sua paciência. Tanto quanto vejo, estamos de acordo no essencial, e o resto do caminho só andando se faz. Importante é ter em conta que a possibilidade de abrir caminho passa também pela capacidade que tivermos de transformar internamente, falando-a e recriando-a ao falá-la, a linguagem comum.

Abraço

msp

Anónimo disse...

Umas notas muito subtis e dinâmicas expressas por Castoriadis no I volume da Sociedade Burocrática,o livro iniciático de um incontornável teórico e militante dos Conselhos Operários, a par de Pannekoek e Mattick. Ora,1.: " o objectivo da revolução socialista não pode ser simplesmente a abolição da propriedade privada, abolição que os monopólios e sobretudo a Burocracia realizam eles próprios gradualmente sem que resulte outra coisa se não uma melhoria dos métodos de exploração ";2. tal objectivo deve passar, com efeito, " essencialmente pela abolição da distinção fixa e estável entre dirigentes e executantes na produção e na vida social em geral ";3." a distinção entre o pessoal dirigente e o pessoal executante na produção deve começar a esvaziar-se desde a madrugada da revolução ";4. " os objectivos da revolução do proletariado só podem ser realizados e dirigidos por si, e no seu conjunto. A sua realização não pode ser operada por mais ninguém"; 5. " a classe operária não pode nem deve fazer confiança a mais ninguém para levar a cabo a revolução, sobretudo em relação aos seus próprios " quadros " ";6.:" caso não seja o proletariado em si mesmo,e no seu conjunto, que, a qualquer momento,tome a iniciativa e a direcção das actividades sociais,tanto no combate como sobretudo depois da revolução, só se chegará a mudar de chefes e o regime de exploração reaparecerá, sob outras formas talvez, mas idêntico quanto ao essencial ";7.: " a ditadura do proletariado não pode ser simplesmente a ditadura política, deve ser antes do mais a ditadura económica do proletariado, de outra maneira não passará por ser senão uma alcunha da ditadura da burocracia "; 8.: " Uma distinção importantissima que sublinha a diferença entre a revolução proletária e todas as revoluções precedentes: É a primeira vez que a classe que toma o poder não o pode exercer por " delegação ", e não o pode confiar de forma estável e durável aos seus representantes, ao seu Estado`ou ao seu `partido `";9.: " A revolução proletaria não pode, portanto, sob pena de falhanço, limitar-se a nacionalizar a economia e a confiar a sua direcção a pessoas ditas competentes ou sequer a um ´partido revolucionário`, mesmo com um controlo operário mais ou menos vago. Deve confiar a gestão das fábricas e a coordenação geral da produção aos próprios operários, a operários constantemente controlados, responsabilizados e revocáveis"; 10.:" Da mesma forma em relação ao plano politico, a ditadura do proletariado não pode significar a ditadura de um partido, por mais proletario e revolucionário que possa ser. A ditadura do proletariado deve ser uma democracia para o proletariado, e, por consequência, todos os direitos devem ser concedidos aos operários, e acima de tudo, todo o direito de formar organizações políticas tendo as suas caracteristicas singulares ";11. Por outro lado, " é evidente que a distinção e a oposição entre as organizações politicas propriamente ditas( partidos ) e as organizações de massa enquanto que tais( sovietes, comités de fábrica) perderão rapidamente a sua importância e razão de existir, por que o seu prolongamento seria o signo anunciador de uma degenerescência da revolução ".Salut! Niet

Lapa disse...

Os Sovietes apareceram na Russia na revolução de 1905, nessa ocasião os trabalhadores utilizaram a forma que lhes parecia mais apta a defender os seus interesses sem se preocuparem de tácticas ligadas à conquista do poder estatal . O poder era deles enquanto podessem guardar a forma de auto-organização de que se dotaram , forma democrata certamente , mas o termo democracia não é mais virgem que o de comunismo. Parece mais delicado, mais aceitavel nos tempos que correm mas quantos amantes das liberdades formais estariam dispostos a aceitar a forma de poder dos Sovietes ? Em 1917 eles voltaram a surgir e vocês sabem o tratamento que lhes foi dado pelos intelectuais bolcheviques.
Na Espanha a organizaçao foi diferente, Trotski em 1931 parecia perplexo em carta dirigida a Andrés Nin ao não ver Sovietes em Espanha. As necessidades fazem o tipo de organização de que se dotam os trabalhadores e Trotski não foi certamente a pessoa mais adequada para aperceber-se disso . ( Para um melhor conhecimento do movimento revolucionário dos conselhos na Russia de 1905 a 1921 lêr o livro do Oskar Anweiler sobre o assunto.)

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Lapa,

claro que o termo "democracia" não é virgem e pode ser inflectido pelas classes dominantes como legitimador do seu poder.
De qualquer modo, não podemos reinventar a linguagem de uma assentada, por um lado, e, por outro, nem sempre a introdução de sentidos alternativos se faz através da terminologia.
Dito isto, se por "comunismo" entendermos o projecto de uma sociedade sem classes, o fim da exploração, a superação do Estado, etc., etc., o critério da democracia, que acima propus para avaliar do anticapitalismo, aplica-se também no seu caso. Aliás, o exemplo dos sovietes que V. aponta e que Brinton analisa no livro citado pelo JVA - há outro estudo apaixonante sobre o mesmo tema de Oscar Anweiler (edição francesa, com um prefácio de Pierre Broué: Les Soviets en Russie, 1905 - 1921", (NRF, 1972) - mostra isso mesmo.

Repare que isto é só uma precisão, e não uma contestação do seu comentário, porque, tanto quanto vejo, não há aqui propriamente nada de fundamental que nos oponha.

Saudações cordiais

msp

Anónimo disse...

Não existe nada de melhor do que discutir ideias,conceitos e noções de teoria e estratégia política Tanto quanto possivel alicerçadas em bases documentais históricas.No que diz respeito ao comentário de Lapa, no entanto, há um apagamento( involuntário, por certo) do papel relevante assumido em Fevereiro( e nos meses antecedentes)do jogo político entre as diversas sensibilidades de esquerda e extrema-esquerda( até Kerensky era populista radical...)e as diferentes coligações liberais e monarquicas de que o partido dos Cadetes era o epicentro nuclear. E a forma embrionária dos sovietes data de 1905, criada em Petrogrado sobretudo pela influência junto dos trabalhadores por sectores afectos aos socialistas revolucionários e os mencheviques.Os bolcheviques; ou estavam no exilio ou nas masmorras do czar. Salut! Niet